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Museu da Maré: memórias e (re)existências

RESENHAS

Mabel Luz Zeballos Videla* * Doutoranda em Antropologia Social.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

MUSEU DA MARÉ: memórias e (re)existências. Direção: Regina Abreu; Pedro Sol. Rio de Janeiro: Museu da Maré - Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré; Departamento de Museus e Centros Culturais - Iphan/MinC; Imagine Filmes, 2008. DVD.

Memória e resistência são palavras-chave nesse vídeo que apresenta o Museu da Maré do Rio de Janeiro. A Maré é uma enorme área de favela, categoria que denomina as moradias populares surgidas em processos irregulares de ocupação do solo urbano no Brasil. A autoconstrução é signo característico desse tipo de espaço onde a resistência adquire múltiplos aspectos. Os moradores da Maré não apenas resistiram às autoridades públicas que nos primeiros anos de ocupação tentaram removê-los, à pobreza e à falta de recursos e infraestrutura para habitar ali, mas, também, às forças da natureza. Chegados à baía de Guanabara à busca de emprego, do interior do Estado do Rio de Janeiro e de Minas Gerais nos anos de 1940 e do Norte e Nordeste do país a partir de 1950, os primeiros moradores construíram suas casas sobre palafitas. Eles colocaram precárias pontes para transitar entre os barracos de madeira, sobre uma água contaminada que ameaçava de morte as crianças que usavam aquelas estreitas passarelas como espaço de brincadeira. As ventanias, as tempestades, as enchentes, tudo podia acabar a qualquer momento com as precárias casas ou, pelo menos, estragar objetos no seu interior mal protegido por telhados que deixavam passar a água da chuva.

A aventura de morar sobre a água e a conquista do chão para a habitação, aterrando a área mediante a compra de caminhões de terra e trabalhando em mutirões pelas noites e madrugadas, é narrada no espaço do museu. Ali, as passagens são estreitas como os becos e ruelas exteriores e aos lados há janelas e portas abertas que permitem ao passante imaginar o interior das casas. Joga-se com os diversos níveis do chão na busca de refletir não apenas a geografia da favela, mas a da cidade toda, e há uma preocupação em narrar a paisagem atual da Maré, não mais dominada por barracos de madeira sobre a água, mas uma paisagem onde a alvenaria, o tijolo e a laje se impuseram dando lugar ao crescimento vertical.

No vídeo, o espectador é apresentado aos 12 tempos em torno dos quais a exposição museográfica foi montada, e a equipe que ali trabalha vai tecendo a história do museu e a história da Maré, trazendo dados colhidos em arquivos e em depoimentos de moradores e apelando a uma série de arranjos estéticos que buscam evocar imagens e tempos da cidade e da favela vivida. Está o tempo da saída do Nordeste recriado nas paredes do museu pela cor laranja que busca evocar a terra seca. O azul quer significar a chegada à água, associada ao tempo das festas religiosas em volta de Nossa Senhora dos Navegantes, que lembra que ali era uma região de pescadores. Outros tempos são recriados: o trabalho, a feira, a casa. E não falta espaço para o tempo dos medos. Ontem o medo a cair na água podre, o medo das autoridades passando cabos de aço nas palafitas e puxando com tratores até destruir um a um os barracos de madeira; hoje o medo da violência, das balas perdidas. Integrando a dinâmica da cidade ao espaço do museu, há nele uma habitação que espera ser completada com estantes que irão exibir moldes de tiros tomados das paredes das casas da favela e raios X de pessoas que levaram balas perdidas. Como explicam os coordenadores, longe de se tratar de um problema restrito à favela, a ameaça daviolência armada atinge atualmente a todos os moradores da cidade. À visão da favela como berço do crime e do medo, tantas vezes veiculada pela imprensa, os organizadores do museu buscam contrapor a dignidade da conquista do espaço para viver por meio do trabalho e da organização coletiva, a produção de vida através das práticas cotidianas, das festas, dos brinquedos das crianças e das práticas religiosas.

A "estrela" do museu é um barraco de madeira construído sobre estacas, a três metros de altura, trazendo a imagem das palafitas que deram origem à Maré. A cor do barraco é azul por fora, para falar da água, e rosa por dentro, para dizer sobre o aconchego do lar onde se teciam sonhos e esperanças. O espectador entra no barraco pelo olho da câmera que acompanha uma mulher negra, uma "contadora de histórias", uma moradora da Maré que narra essa intimidade do habitar abrindo gavetas que escondem segredos, descobrindo miniaturas, imagens religiosas e fotografias de família esparsas pela casa. As cadeiras junto à mesa são todas diferentes, os elementos da cozinha lembram as comidas que ali se preparavam e várias malas cuidadosamente colocadas em cima do guarda-roupa denunciam "que quem vive ali está constantemente de passagem".

Insiste-se, o Museu da Maré "não é um lugar para guardar objetos ou cultuar o passado. Aqui é um lugar de vida", "um lugar de memória". Assim, um dos tantos "casos" que povoam essa memória partilhada, "O casamento na palafita", é narrado e atuado pelo grupo de "contadores" que recebe os visitantes do museu. Trata-se de um casamento lembrado porque "a ponte caiu, o pessoal ficou todo sujo de lama, foi em casa tomou banho, trocou de roupa... e dançaram a noite inteira". Esses "contadores" operam como uma ponte entre a Rede Memória da Maré, ativa desde 1997, a população local e os visitantes do museu. O vídeo vem a amplificar a audiência, alargando o alcance desse esforço.

A história do museu afunda suas raízes em ações coletivas locais que desde fins da década de 1980 vêm assinalando a vontade de lembrar desse povo. O final dessa história inclui a inauguração do museu, em 2006, prêmios ganhos e o reconhecimento do Ministério da Cultura. O antecedente imediato da constituição do museu é a exposição intitulada "A força da Maré", montada em 2004 no Museu da República, antigo centro político do Brasil. Na época, uma série de objetos e documentos foi cumulada e, depois da exposição, muitos moradores que assistiram emocionados à instalação dos seus objetos não quiseram eles de volta. Nessas ações e na busca de interagir com outras instituições, o museu ganhou visibilidade para além da Maré, do Rio de Janeiro e do Brasil todo. O Museu da Maré não quer ser um museu do ghetto; ele tem vocação de diálogo com a cidade e com o mundo. É nesse sentido que o vídeo se torna ferramenta, contextualizando os processos locais em relação à cidade toda e ao país no geral e dando expressão a uma escolha metodológica e, portanto, política, que após anos de pesquisa aproxima para um público amplo as experiências vividas da favela com a participação ativa de alguns dos seus moradores.

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    Doutoranda em Antropologia Social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Dez 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2009
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