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BOFF, Clodovis et al. As Comunidades de Base em questão. São Paulo: Paulinas, 1997. 326 p.

BOFF, Clodovis. As Comunidades de Base em questão. 1997. São Paulo: Paulinas, 326

Hoje soa quase como um truísmo afirmar a importância da reflexão interdisciplinar na análise de fenômenos sociais. Mas o que dizer quando antropólogos (Carlos Alberto Steil e Renata de Castro Menezes) e sociólogos (Ivo Lesbaupin, Pedro A. Ribeiro de Oliveira e Solange dos Santos Rodrigues) unem-se a teólogos (Clodovis M. Boff, Faustino Teixeira e Paulo Fernando C. De Andrade) no estudo de uma mesma realidade, no caso, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)? Pois, diferentemente da antropologia e da sociologia, ramos eminentemente empíricos do conhecimento, a teologia dificilmente poderá ser entendida como estando circunscrito ao dado diretamente observável da experiência. Lembremos que há quase trinta anos o sociólogo norte-americano Peter Berger (19951 BERGER, P. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 1995., p. 192) afirmou, em tom polêmico, que uma “teologia empírica” é metodologicamente impossível, não obstante ter estabelecido uma ressalva que não é de menor relevância: “vale a pena tentar seriamente uma teologia que vá passo a passo com o que se diz empiricamente a cerca do homem”.

A obra Comunidades de Base em questão, fruto do empenho coletivo dos autores referidos anteriormente, inscreve-se, em parte, nesta tentativa que Berger apenas vislumbrava, no final da década de sessenta, como uma das possibilidades do fazer ciência.

Não há como negar que nos últimos anos a visibilidade das CEBs sofreu considerável decréscimo. No campo das ciências sociais assuntos mais recentes, como pentecostalismo e neopentecostalismo, têm ocupado a atenção de grande parte dos pesquisadores, no campo propriamente católico a renovação carismática católica vem gradualmente canalizando para si os olhares da instituição e, por fim, os meios de comunicação quando falam de catolicismo referem-se, na maior parte das vezes, aos carismáticos católicos.

O silêncio recente torna possível e, mais ainda, desejável, a avaliação do que foi e tem sido a “caminhada” histórica das CEBs. E este contexto, no qual, talvez mais do que nunca, as CEBs passam a ser percebidos como um fazer-se histórico, sujeitos, portanto, aos impasses e dilemas que permeiam nossa contemporaneidade, que torna factível a obra que ora vem a público. Todos os nove textos que compõem este volume são oriundos da avaliação de dez dioceses brasileiras conduzida no decurso dos últimos doze anos pelo grupo ISER/ASSESSORIA do qual todos os autores fazem parte.

Em todos os artigos podemos ver com bastante nitidez que os autores demonstram a preocupação de enfatizar – e o fazem com louvável maestria – as profundas modificações operadas pelas CEBs no campo eclesiástico católico, bem como, no campo mais amplo de nossa vida social. Transformações que aparecem, portanto, em múltiplos aspectos: a ênfase na maior participação leiga em correlação direta com a ruptura do monopólio do poder religioso do clero; a ampliação do acesso aos sacramentos que só era possível por ocasião das visitas de desobriga; a nova forma de organização pastoral fundada na idéia da participação igualitária de leigos e leigas, distinta, portanto, da estrutura tradicional atomística da paróquia, assentada na figura quase autocrática do pároco; a valoração da dimensão do compromisso social assumido pelas CEBs na sua opção preferencial pelos pobres e que culminou no engajamento político de vários de seus membros em organizações populares e movimentos sociais que tiveram um papel crucial no processo de abertura democrática.

No entanto, há de se reconhecer que os méritos deste livro não se esgotam aí, pelo contrário, a beleza de seu conteúdo consiste justamente na busca pelo esclarecimento dos limites com que se defrontou e defronta a prática das CEBs. Para tanto, uma pergunta se faz necessária: quais as possibilidades de consolidação de princípios e valores democráticos e igualitários em uma instituição cuja marca distintiva sempre foi o forte clericalismo e a estrutura verticalizada de poder? Aqui nos deparamos com os impasses criados pela coexistência da igualdade com a hierarquia.

Percebe-se, por um lado, que a participação leiga permanece restrita as decisões tomadas nas comunidades e nas igrejas locais, tornando-se praticamente inexistente ao nível das dioceses e das assembléias regionais e nacionais. Por outro lado, o livro nos mostra que o “novo modo de ser igreja das CEBs” jamais foi reconhecido juridicamente, o que, em última instância, significa afirmar que o poder permanece legalmente centralizado no clero. A não incorporação da idéia de participação, do compromisso de libertação e, principalmente, da opção pelos pobres no Direito Canônico mantém a realidade das CEBs sujeita a arbitrariedade das decisões clericais, que variam conforme o setor da hierarquia que se faz hegemônico em um dado momento da igreja. A experiência de fato não foi consolidada como experiência de direito.

Todavia, é preciso considerar que, se existem limitações estruturais que decorrem da própria vinculação institucional das CEBs que é, como diz Clodovis Edgar Rodrigues Barbosa Neto Boff, sua força e sua fraqueza, existem outras que decorrem diretamente da sua prática. Sendo a qualidade do relacionamento de seus dirigentes com o catolicismo popular tradicional a principal delas.

Ainda que um grande número de participantes das CEBs compartilhem dos símbolos e crenças do catolicismo popular tradicional – caracterizado, em parte, pelo culto aos santos e pela lógica contratual de relacionamento com o sagrado – o livro demonstra a ocorrência de uma certa dissonância entre esta forma de catolicismo e o catolicismo “consciente” e “modernizante” dos agentes da pastoral que se encarregam da coordenação das comunidades. Não se trata, é certo, de uma descontinuidade absoluta, pois as apropriações simbólicas ocorrem de ambos os lados, mas da existência de tensões localizadas. Assim, a percepção dos agentes de pastoral fortemente marcada pela ênfase na conscientização política, procede a uma radical ressemantização das cosmologias e dos conteúdos míticos presentes nas inúmeras práticas religiosas do catolicismo popular tradicional, ao mesmo tempo em que este último ressignifica, dentro de um locus tradicional, as ideologias modernizantes dos primeiros.

Refletir sobre a prática política das CEBs hoje exige, antes de mais nada, reconsiderar a atuação vanguardista dos agentes pastorais, que se tomaram, como afirmou Carmem Cinira de Macedo (1986)2 MACEDO, C. C. de. Tempo de gêneses: o povo das Comunidades Eclesiais de Base. São Paulo: Brasiliense, 1986. em seu valioso trabalho sobre as CEBs, verdadeira “elite popular católica” que acabou por reproduzir, no interior do laicato, o próprio clericalismo elitista do qual as CEBs buscavam se afastar.

Talvez as CEBs ainda possam lançar muita luz sobre o nosso presente, talvez ele não seja tão avaro de perspectivas quanto quer parecer, talvez… Mas para tal é imprescindível que as “armas da crítica” unam-se a autocrítica das armas na confecção de obras como esta, na qual avistamos mais do que somente análises acuradas e minuciosas, presentes, é certo que se o diga, da primeira à última página, mas, sobretudo, pistas e indícios que ao término nos conduzem a redefinir e, quiçá, repensar caminhos outros de um caminho que, como o das CEBs, já é resolutamente outro.

Referências

  • 1
    BERGER, P. O dossel sagrado São Paulo: Paulus, 1995.
  • 2
    MACEDO, C. C. de. Tempo de gêneses: o povo das Comunidades Eclesiais de Base. São Paulo: Brasiliense, 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 1997
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