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A conveniência da cultura: usos da cultura na era global

RESENHAS

José Rogério Lopes

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Brasil

YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 615 p.

A imagem que possuía dos estudos culturais americanos, reproduzidos na recursividade erudita, foi quebrada com essa obra de Yúdice. O autor reuniu nesse livro um conjunto de escritos convergindo para um projeto amplo de investigações em torno das mutações ocorridas na esfera cultural global, sem descuidar das análises situacionais que dão concretude às suas afirmações. E aqui, talvez, sua própria condição de dominicano radicado nos EUA tenha contribuído para não confundir a escala de percepção dos problemas com a escala de sua resolução.

A definição básica de seu livro é de que a cultura é hoje um recurso que gera e atrai investimentos, cuja distribuição e utilização, seja para o desenvolvimento econômico e turístico, seja para as indústrias culturais ou novas indústrias dependentes da propriedade intelectual, mostra-se como fonte inesgotável. Nesse sentido, a cultura pressupõe seu gerenciamento, perspectiva distinta das características da alta cultura e da cultura cotidiana no sentido antropológico. Essa perspectiva, contudo, não implica que sua análise inviabilize "aplicações" antropológicas, senão que imprime uma necessária revisão da importância da análise situacional nos estudos antropológicos que se debruçam sobre práticas e representações culturais contemporâneas.

Visando elaborar uma compreensão dessa contribuição, vou expor os princípios de sua elaboração e deixarei à margem suas ilustrações, pelas limitações de uma resenha.

A concepção de "cultura como recurso" é tomada pelo autor desde a absorção da ideologia e da sociedade disciplinar pela racionalidade econômica e ecológica, na contemporaneidade. Inserida no movimento global das indústrias culturais, que discursam pela preservação das tradições como forma de manter a biodiversidade, a cultura conteria e expressaria elementos importantes para os agenciamentos da sociedade civil, visando o desenvolvimento político e econômico. E trata-se, aqui, de pensar a cultura em um mundo lançado à crise.

O quadro traçado por Yúdice supõe discutir, no passo das transformações contemporâneas e seguindo uma orientação fundada em Foucault, as noções de agenciamento e empoderamento, a performatividade do "cuidado de si", o imperativo social do desempenho, os movimentos culturais e a positivação legal dos processos identitários locais frente às agências globais, além das correspondências fabricadas entre a inovação como alavanca do capital e a cultura.

Movimentando-se analiticamente sobre manifestações exteriorizadas basicamente nas Américas, Yúdice lança um olhar panorâmico sobre os fluxos globais dos movimentos culturais originados nesses territórios, com foco aprofundado em alguns deles, para mostrar como a globalização problematizou o uso da cultura como um expediente nacional.

Essa problematização definida historicamente na imbricação da cultura com o desenvolvimento da tecnologia, a partir do século XVIII, assumiu atualmente uma legitimidade baseada na utilidade que, aos poucos, deslegitimou a crença na liberdade artística. A cultura perdeu sua transcendentalidade, nesse processo, e passou a ser administrada por gestores sociais, como uma "[ ] reserva disponível" (p. 25), segundo a Bestand de Heidegger.

A consolidação desse processo ocorreu entre as décadas de 1960 e 1990, acompanhando o advento da concepção de capital cultural – como complementação do desenvolvimento econômico – e a consequente proliferação das diversas organizações agenciadoras de cultura, fragmentadas em milhares de projetos que se tornaram concorrenciais e se submeteram a critérios de utilidade para acessar os investimentos sociais. Nesse movimento, enformou-se uma economia cultural, na razão de um conjunto de ações e produções culturais alinhadas com o crescimento econômico, em uma economia política que se fundamenta no esforço coletivo que transforma atividades sociais em propriedades, sobretudo, intelectuais.

Suas análises dão mostras de como o desenvolvimento das políticas culturais ocorrem em estreita relação com os fluxos globais, ora reforçando e firmando territorialidades e reconhecimentos que se reforçam pelo sentimento generalizado de insegurança social, ora produzindo uma "ong-ização" das culturas locais.

Ambas as expressões se projetam na passagem da insegurança civil para a insegurança social, e se exteriorizam como denúncias, mas se apresentam na forma de produtos culturais, gerenciados em múltiplas formatações mercantis: vídeos, filmes, CDs, camisetas, imãs de geladeira e outros produtos, que expõem representações dos riscos que afetam comunidades, mas também das ações culturais que autoafirmam um devir comunitário de conquista de cidadania.

No horizonte das múltiplas afirmações evocadas por esses produtos emerge um comércio de marcas com o selo da cidadania cultural que legitima um modelo de consumo cidadão: consumindo identidades que se afirmam politicamente, o próprio ato de comprar torna-se político.

Nesse contexto, a perda da transcendentalidade da cultura e a deslegitimação da liberdade criativa mudaram a lógica dos atores e das instituições culturais, em acordo com uma crescente e emergente atividade urbana, dinamizando as identidades dos lugares, mas também motivando deslocamentos de referências diversas, nos fluxos globais, que se imbricam naquela dinamização. Ou seja, a aproximação da globalização a culturas diferentes aumentou o questionamento das normas.

Auxiliados pela ampla difusão das tecnologias de informação e de informática, os atores culturais locais desenvolvem uma economia das experiências, no seio da qual encenam ou desempenham as normas sociais e exteriorizam suas críticas a elas. Porém, tais movimentos mostram também como as comunidades locais apropriam-se dos seus processos culturais na forma de direitos autorais e formatam produtos globais provendo-os de conteúdo local.

E para além de uma representação da modernidade oferecida como tecnologia, tornando opaca a essência das coisas, em Yúdice, a tecnologia não se reduz a seu caráter instrumental, mas se apresenta como um apelo que agrupa e ordena, revelando uma verdade que bloqueia outras verdades. Daí que a reflexão sobre a tecnologia deve considerar, simultaneamente, a familiaridade com a sua essência e a diferença em relação à mesma, como na arte, tratando-se menos de instrumentalidade e mais de performatividade, que emerge como uma quarta episteme (no sentido foucaultiano, depois de semelhança, representação e historicidade) na forma como, além da instrumentalidade, pratica o social.

Essa performatividade baseada no questionamento das normas supõe que os agentes realizam "[ ] uma prática reflexiva do autogerenciamento frente aos modelos [ ] impostos por determinada sociedade ou formação cultural" (p. 64). E divergente da concepção de simulacro de Baudrillard, Yúdice propõe que o termo "performatividade" "[ ] se refere aos processos pelos quais identidades e entidades de realidade social são constituídas pela repetidas aproximações dos modelos (ou seja, o normativo), bem como por aqueles 'resíduos' ('exclusões normativas') que são insuficientes" (p. 53) – um movimento de superação da concepção gramsciana de luta cultural pela hegemonia, pelo qual o autor atualiza o uso dessa concepção, nos estudos culturais, apresentando-a como negociação da agência cultural.

Atuando na contramão dos produtos gerenciados pela hegemonia cultural, como apropriação que esferas autônomas operam sobre diferenças instáveis, emergem sujeitos performativos subversivos que, para além da negociação da agência cultural, fazem de sua performatividade o foco de estratégias e cálculos de interesses em jogo na invocação da cultura como recurso, produzindo valor. Essa performatividade subversiva pressupõe enfatizar o papel ativo do sujeito em seu próprio processo de constituição, complementando-o com a apropriação que o "autor" (na concepção bakhtiniana) elabora sobre "outras vozes e perspectivas" que encontra em sua cultura.

Enfim, trata-se de pensar que essas experiências de sujeitos, grupos e culturas que vivem os processos de fragmentação espaço-temporal contemporâneos, decorrentes das interpretações rivais à alteridade das normas globais, devem ser estudados como núcleos de vida cultural transbordando em novos arranjos sociais, negociados com a imposição de modelos normativos, entre os atores endógenos e exógenos aos grupos em questão, que operam as transformações sociais contemporâneas. E essas negociações podem se relativizar no interior da própria convivência social, ou se reproduzir em intramodelos conflitivos e concorrenciais, como campos problemáticos ativos.

Isso porque, segundo o autor, a conveniência da cultura é condicionada pelo contexto, como expressão de uma força performativa, que se configura relacionalmente entre os modos de recepção dos públicos às produções culturais e um campo de força gerado pelas disposições diferentes das instituições estatais e da sociedade civil. Daí que as forças performativas são montagens específicas de vetores que convergem para o estabelecimento de diferenças significativas entre sociedades nacionais, como acordos interativos, modelos interpretativos e condicionamentos comportamentais que influenciam a produção de conhecimento e produzem uma "fantasia social preponderante" (p. 79).

Na medida em que essas representações extensivas de normas compulsórias e totalizadoras invalidam outras identidades, atingem atores que não se identificam com elas e abrem lacunas ente os modelos, por onde se movem alguns atores sociais. Eles estabelecem estratégias e ativismos que buscam superar as normas totalizadoras, fundamentando-se no uso da cultura como recurso, o que gera possibilidades de interpretação de suas próprias necessidades.

Esse recurso à cultura, como de elaboração de interpretações rivais às normas totalizadoras, onde identidades são des-hierarquizadas e reconstruídas, legitima grupos, ações e representações diversas. Assim, no interior do campo de forças performativas emergem interpretações rivais que buscam desconstruir o modelo totalizador, onde os atores agenciam sua autonomia e legitimidade em modalidades alternativas de poder, enquadrando interpretações que canalizam a significação dos seus discursos e atos.

E esse recurso à cultura como fundamento das produções e manifestações locais, que assumem diversas linguagens em sua vocalização, não deixa de ser uma produção discursiva das identidades.

Nesse sentido, encontramos em Yúdice um cenário de vastas possibilidades ao antropólogo, sobretudo àquele que investiga e interpreta a produção discursiva das culturas, as narrativas identitárias dos atores culturais e as mediações tecnológicas hoje operantes nesses processos. Importa, para tanto, compreender que esses gerenciamentos culturais contemporâneos, ao rivalizar com a fantasia preponderante de uma sociedade, problematizam o imaginário social normalizado nos processos de globalização e se tornam referenciais importantes para o estudo da diferenciação cultural.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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