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GIOBELLINA BRUMANA, Fernando. El lado oscuro: la polaridad “sagrado/profano” y sus avatares. Buenos Aires: Katz, 2014. 210 p.

GIOBELLINA BRUMANA, Fernando. El lado oscuro: la polaridad “sagrado/profano” y sus avatares. 2014. Buenos Aires: Katz, 210

El lado oscuro trata da noção de sagrado e de sua potência tanto como conceito explicativo quanto como conceito crítico. Fernando Giobellina Brumana revisita a noção tornada clássica na teoria antropológica francesa através do trabalho inaugural de Émile Durkheim (1858-1917), Les formes es formes élémentaires de la vie religieuse (1912), por meio de duas figuras emblemáticas, mas pouco recuperadas pela antropologia em geral: Robert Hertz (1881-1915) e Georges Bataille (1897-1962). Pertencentes a gerações sucessivas o trabalho desses autores teriam em comum o fato de colocarem em relevo a dimensão nefasta ou, como de saída diz o título do livro, obscura da noção de sagrado. Se Durkheim e Marcel Mauss (1872-1850) haviam dado ênfase à “face diurna” do conceito, trata-se aqui de destacar a “face noturna” como chave de compreensão da vida social (p. 134).1 1 Todas as traduções que se seguem são de minha autoria.

Apesar das afinidades teóricas entre os autores em questão, Giobellina Brumana destaca que Hertz e Bataille viveram trajetórias profissionais e experiências institucionais bastante distintas, que se relacionam diretamente com sua produção. Enquanto Hertz era sociólogo de formação e fazia parte da sólida Escola Sociológica Francesa fundada por Durkheim, que teve e segue tendo projeção teórica até os dias de hoje, Bataille era funcionário da biblioteca pública de Paris, intelectual que permaneceu à margem da sociologia acadêmica, tendo participado de diversas associações independentes e efêmeras entre os anos 1920 e 1940, sendo o Collège de Sociologie (1937-1939) um espaço de destaque para pensar a noção de sagrado.2 2 Dentre as associações das quais participou Bataille nos anos 1930 estão a revista Documents (1929-1930), o Cercle Communiste Démocratique (1932), a associação Contre-Attaque (1935), Acéphale (1937-1939) e o referido Collège de Sociologie. Se um tinha uma formação definida em um campo específico do conhecimento, a sociologia, o outro transitava entre a filosofia, as artes, a teoria social e a literatura, sendo de difícil captura em uma única área do saber.3 3 Bataille terminara sua formação em 1922 da conceituada École des Chartes, considerada um reduto de erudição parisiense (Leniaud, 1993). É preciso lembrar também que a produção de Hertz é consideravelmente menor que a de Bataille, já que o autor teve uma vida intelectual curta interrompida por sua morte durante a Primeira Guerra Mundial.

O livro está assim divido em duas partes: uma primeira que trata da produção de Bataille nos anos 1930, “Sacré Bataille!”, e uma segunda que se dedica a Hertz e seus trabalhos do início do século XX, “Ondas hertzianas”. É curioso que há também um capítulo de passagem entre esses dois momentos que se detém na figura de Michel Leiris (1901-1990). A posição intermediária do autor no livro se justifica por sua trajetória marcada por uma dupla vinculação: etnólogo doutorado pela École Pratique des Hautes Études, onde fora aluno de Mauss, e inserido no Musée de L’Homme desde 1935,4 4 Leiris apresenta em 1938 a tese de doutorado La langue secrète des Dogon de Sanga como resultado da etnografia realizada entre 1931 e 1933 na África através da participação na missão Dacar-Djibouti. Em outro trabalho Giobellina Brumana (2005) explora mais de perto os preparativos dessa missão. Leiris nunca deixara de lado o ofício de escritor e seu vínculo com as artes, tendo participado junto a Bataille de associações artístico-políticas como o mencionado Collège de Sociologie. De alguma forma Leiris representa a passagem entre o universo formal da sociologia francesa, também experienciado por Hertz, e aquele que vivenciou com Bataille nos anos 1930, marcado pela experiência das vanguardas.5 5 Leiris participara de 1922 a 1924 do grupo formado por André Breton na rua Blomet sendo incorporado ao surrealismo de 1924 a 1929. Ele e Bataille se conheceram justamente no ano da entrada do primeiro no movimento e a partir daí estabeleceram um laço afetivo e intelectual duradouro. Com Bataille Leiris participou de Documents e, posteriormente, do Collège de Sociologie. Para mais detalhes ver: Surya (1992); Armel (1997) e Bataille e Leiris (2004).

Invertendo a ordem cronológica esperada é Bataille e não Hertz o autor primeiramente abordado no livro, e, apesar do explícito desconforto de Giobellina Brumana com relação ao primeiro, eu diria que é fundamentalmente sobre ele que El lado oscuro parece versar.6 6 Ao longo do livro o autor não se furta em comentar os exageros envolvidos na construção da persona de Bataille. Ao falar de uma carta do autor enviada à esposa de Leiris, por exemplo, Giobellina Brumana comenta explicitamente: “A carta a Zette em que Bataille expressa dor, que finalmente não foi enviada, me parece de uma surpreendente sinceridade (surpreendente para mim, que vejo com tão pouca confiança seu emissor)” (p. 74-75, grifo meu). Embora Hertz ganhe atenção considerável – e destaco aqui a importância de trazê-lo para o debate, já que apesar de sua produção original, figura normalmente nos manuais de história da antropologia apenas como um apêndice de Mauss e Durkheim –, seu trabalho parece funcionar mais como um contraponto num jogo de figura e fundo em que Bataille salta aos olhos. Para além dos projetos radicais pela qual se tornou miticamente conhecido, como a experiência da sociedade secreta Acéphale no fim dos anos 1930, o trabalho de Giobellina Brumana dá a ver a consistência da reflexão batailleana sobre o sagrado e seu interesse para a teoria antropológica.7 7 Sabe-se que nos planos de Acéphale havia até mesmo a proposição de um sacrifício humano consentido, que jamais chegou a ocorrer (p. 70). Trata-se, assim, de entender o giro conceitual que Bataille opera na clássica noção de sagrado proposta pelo Anée Sociologique.

Se o trabalho de Durkheim expõe a oposição sagrado/profano, mostrando a capacidade de compressão e distensão da vida social e a importância dos momentos de efervescência coletiva característicos da vida religiosa para a manutenção da própria ordem social, a questão da ambiguidade do próprio polo do sagrado é definida, mas não explorada a fundo por ele. Hertz ocupa então um lugar fundamental ao refletir sobre os polos fasto e nefasto do sagrado, como demonstra seu conhecido artigo sobre a preeminência da mão direita (1909). Nele o autor explora a hierarquia existente entre as dimensões “direita” e “esquerda” das práticas corporais humanas e seus desdobramentos em uma série de oposições. Há, como comenta Giobellina Brumana um encapsulamento de dualidades operando nesse texto: “se produz uma circularidade; ‘esquerda/direita’ é uma espécie de avatar de ‘profano/sagrado’, mas no sagrado opera também a polaridade ‘direita/esquerda’” (p. 162). É essa circularidade desenhada por Hertz que permite pensar a produção aparentemente contraditória de um “sagrado profano” à qual Bataille irá se apegar depois.

Se em Hertz já havia então a ideia de que “o lado que conjuga a esquerda e seus equivalentes, o lado obscuro da humanidade, não é negativo apenas do ponto de vista da moralidade, mas também é incontornável e perigoso, uma força que ameaça todo o sistema” (p. 163), em Bataille essa será a ideia motriz que guiará não somente várias das experiências associativas lideradas por ele, mas também sua produção teórica dos anos 1930. Ao reivindicar a noção de despesa (1933) e a de heterogêneo (1933) gestadas nesse momento é também do sagrado nefasto que o autor está falando, trata-se de faces de uma mesma moeda conceitual. O salto de Bataille é, assim, o de trazer para o campo da política uma noção advinda do universo religioso. Se o sagrado profano é uma força transformadora e perigosa é preciso praticá-la como instrumento político de crítica à modernidade e à sociedade ocidental.

El lado oscuro é um documento importante do percurso da noção de sagrado e traz à baila trabalhos raramente revisitados, além de retomar um amplo cenário no qual se desenrolou a antropologia francesa. Contudo, ainda que se proponha a realizar um “jogo especular” entre os autores, como já dito, Giobellina Brumana parece, mesmo que a contragosto, ceder à sedutora excentricidade da figura e do pensamento batailleano, o que deixa Hertz na penumbra (p. 129).

Referências

  • 1
    ARMEL, A. Michel Leiris Paris: Fayard, 1997.
  • 2
    BATAILLE, G.; LEIRIS, M. Échanges et correspondances Paris: Gallimard, 2004.
  • 3
    GIOBELLINA BRUMANA, F. O sonho dogon nas origens da etnologia francesa São Paulo: Edusp, 2005.
  • 4
    LENIAUD, J.-M. L’école des Chartes et la formation des élites (XIXe. s). La Revue Administrative, Paris, v. 46, n. 276, p. 618-624, nov./dec. 1993.
  • 5
    SURYA, M. La mort à l’oeuvre Paris: Gallimard, 1992.
  • 1
    Todas as traduções que se seguem são de minha autoria.
  • 2
    Dentre as associações das quais participou Bataille nos anos 1930 estão a revista Documents (1929-1930), o Cercle Communiste Démocratique (1932), a associação Contre-Attaque (1935), Acéphale (1937-1939) e o referido Collège de Sociologie.
  • 3
    Bataille terminara sua formação em 1922 da conceituada École des Chartes, considerada um reduto de erudição parisiense (Leniaud, 19934 LENIAUD, J.-M. L’école des Chartes et la formation des élites (XIXe. s). La Revue Administrative, Paris, v. 46, n. 276, p. 618-624, nov./dec. 1993.).
  • 4
    Leiris apresenta em 1938 a tese de doutorado La langue secrète des Dogon de Sanga como resultado da etnografia realizada entre 1931 e 1933 na África através da participação na missão Dacar-Djibouti. Em outro trabalho Giobellina Brumana (2005)3 GIOBELLINA BRUMANA, F. O sonho dogon nas origens da etnologia francesa. São Paulo: Edusp, 2005. explora mais de perto os preparativos dessa missão.
  • 5
    Leiris participara de 1922 a 1924 do grupo formado por André Breton na rua Blomet sendo incorporado ao surrealismo de 1924 a 1929. Ele e Bataille se conheceram justamente no ano da entrada do primeiro no movimento e a partir daí estabeleceram um laço afetivo e intelectual duradouro. Com Bataille Leiris participou de Documents e, posteriormente, do Collège de Sociologie. Para mais detalhes ver: Surya (1992)5 SURYA, M. La mort à l’oeuvre. Paris: Gallimard, 1992.; Armel (1997)1 ARMEL, A. Michel Leiris. Paris: Fayard, 1997. e Bataille e Leiris (2004)2 BATAILLE, G.; LEIRIS, M. Échanges et correspondances. Paris: Gallimard, 2004..
  • 6
    Ao longo do livro o autor não se furta em comentar os exageros envolvidos na construção da persona de Bataille. Ao falar de uma carta do autor enviada à esposa de Leiris, por exemplo, Giobellina Brumana comenta explicitamente: “A carta a Zette em que Bataille expressa dor, que finalmente não foi enviada, me parece de uma surpreendente sinceridade (surpreendente para mim, que vejo com tão pouca confiança seu emissor)” (p. 74-75, grifo meu).
  • 7
    Sabe-se que nos planos de Acéphale havia até mesmo a proposição de um sacrifício humano consentido, que jamais chegou a ocorrer (p. 70).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2016
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