Acessibilidade / Reportar erro

HEKMAN, Susan. The feminine subject. Cambridge: Polity Press, 2014. 228 p.

HEKMAN, Susan. . The feminine subject. Cambridge: Polity Press, 2014. 228 p.

Nesse livro, Susan Hekman1 1 Susan Hekman é professora no Departamento de Ciência Política da Universidade do Texas em Arlington (UTA), nos Estados Unidos. argumenta em prol de uma releitura do desenvolvimento da teoria feminista a partir da revisão de autoras já bastante reconhecidas. Inicia com um capítulo sobre Simone de Beauvoir, lendo-a como aquela que colocou a questão que tem orientado a teoria feminista até hoje: o que significa ser mulher? Sua intenção é demonstrar que, ao inserir a “problemática da mulher” em uma tradição filosófica masculinista, Beauvoir evidenciou a necessidade de uma mudança radical. Sua rejeição de um entendimento abstrato do sujeito e dos decorrentes modelos de autonomia e liberdade desincorporadas a levou a formular uma noção de sujeito que é situado, corporificado e necessariamente conectado com outros sujeitos - o que, segundo Hekman, acabou por se tornar o ponto de partida da teoria feminista.

Nos dois capítulos seguintes, Hekman comenta as teóricas feministas que tiveram como foco a diferença sexual. No segundo capítulo, trata das chamadas French feminists: Luce Irigaray, Julia Kristeva e Hélène Cixous. Hekman defende aqui que as obras dessas autoras sejam lidas como continuidade, e não como ruptura com Beauvoir, pois entende que essas autoras assumiram o desafio de criar o sujeito feminino fora dos limites do pensamento ocidental, cada uma tendo realizado esse intento à sua maneira. A instabilidade e a anarquia que marcam os conceitos de sujeito dessas autoras evidenciou a exclusão das mulheres do âmbito da política. Hekman ressalta, no entanto, que falta ainda aqui uma definição mais precisa do sujeito político feminino, que acaba por ser tratado mais por aquilo que não é.

No terceiro capítulo, Hekman aborda o feminismo radical e as teorias que tratam do relational self, evidenciando que as teóricas norte-americanas tomaram outros caminhos em relação à diferença sexual. Escreve que, por um lado, as feministas radicais exploraram temas como sexualidade, reprodução e maternidade biológica, colocando-os como a fonte da opressão das mulheres, além de atacarem um dos pontos centrais do liberalismo: a separação entre público e privado. Por outro lado, pontua que teóricas como Carol Gilligan trataram do relational self com suas duas suposições: que o self é formado em relação aos outros e que ele tem seu contraste no self autônomo, separado e masculinista. Para Hekman, o deslocamento de Gilligan está em questionar a superioridade de uma moral - que é definida como o domínio moral propriamente dito - ligada à construção de um sujeito masculino.

Já no quarto capítulo, Susan Hekman explica que, apesar dos esforços em contrapô-la, a tradição ocidental hegemônica continuou a influenciar a produção teórica feminista. É o caso principalmente do liberalismo e do marxismo, que tiveram ligações com o feminismo em frentes diversas. O argumento de Hekman, entretanto, é que as teóricas feministas que se aliaram a essas tradições - como Carol Pateman e Nancy Harstock - acabaram por modificá-las de maneira a transformarem suas premissas básicas. Para Hekman, ficou evidente que a “questão da mulher” não pode ser encaixada em nenhuma dessas tradições.

No quinto capítulo, Hekman trata do abandono de uma concepção unitária de mulher que se deu a partir da reivindicação de mulheres não brancas por reconhecimento na teoria feminista, da ascensão de uma política identitária com ênfase em múltiplas fontes da identidade e do advento da filosofia pós-estruturalista. Trazendo à tona as relações entre feminismo e pós-modernismo, a autora relata que, se por um lado ambos foram aproximados pelo entendimento de que o sujeito é constituído pelo discurso, também se distanciaram na medida em que o feminismo tem como objetivo resistência e transformação. Hekman coloca a importante questão de como um sujeito totalmente constituído pelo discurso poderia resistir a essa constituição. Segundo a autora, o feminismo pós-moderno - tendo como importante referência o livro Gender trouble de Judith Butler (1990BUTLER, J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.) - revelou que a teoria feminista precisava de um novo modo de definir os sujeitos, a agência, a política e o conhecimento a partir da constatação da “morte do sujeito” (abstrato e masculinista).

No sexto e último capítulo, Susan Hekman trata da corrente (neo)materialista contemporânea com a qual se identifica. Segundo a autora, a era das diferenças, ainda que reivindicando a desconstrução das dicotomias, acabou por privilegiar o discursivo em detrimento do material. Uma nova abordagem deveria então ter como objetivo atingir a desconstrução da dicotomia através de um método que reconhecesse e se construísse a partir das compreensões do construcionismo linguístico. Referências aqui seriam os trabalhos de Nancy Tuana (2001TUANA, N. Material locations. In: TUANA, N.; MORGEN, S. (Ed.). Engendering rationalities. Bloomington: Indiana University Press, 2001. p. 221-243.) e Karen Barad (2007BARAD, K. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglement of matter and meaning. Durham: Duke University Press, 2007.). Também os estudos sobre o corpo foram afetados por essa crítica, e reformulações interessantes foram feitas por Elizabeth Grosz (1994GROSZ, E. Volatile bodies: toward a corporeal feminism. Bloomington: Indiana University Press, 1994.) e Annemarie Mol (2002MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002.). Para Hekman, tais autoras teriam transformado a “mulher”, não mais a colocando como um corpo definido masculinamente, mas como um fenômeno produzido pela linguagem, ciência, tecnologia, dentre outros. Da mesma forma, a dicotomia entre humano e não humano, que também tem informado nossas definições de sujeito, é destacada por Hekman. Na teoria feminista, as principais contribuições a respeito do tema teriam sido realizadas por Katherine Hayles (1999HAYLES, K. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature and informatics. Chicago: University of Chicago Press, 1999.), Stacy Alaimo (2010ALAIMO, S. Bodily natures: science, environment, and the material self. Bloomington: Indiana University Press, 2010.) e Jane Bennett (2010BENNETT, J. Vibrant matter: a political ecology of things. Durham: Duke University Press, 2010.). Não obstante, Hekman argumenta que a partir desses estudos, formula-se uma ontologia do corpo, mas não uma ontologia do sujeito. Avança então uma tese contraintuitiva: o melhor guia na exploração do sujeito seria o trabalho de Butler, principalmente em suas produções recentes.

Hekman argumenta que há vários indícios de que, para Butler, o sujeito não é inteiramente determinado pela linguagem. Linguagem e materialidade não estariam colocadas como opostas no trabalho dessa autora, mas como mutuamente implicadas, fazendo com que a definição de sujeito esteja mais próxima de uma mistura complexa de linguagem, poder, agência, materialidade e subjetivação. Nesse sentido, os conceitos de “performatividade” e de “precariedade” (Butler, 2009BUTLER, J. Frames of war: when is life grievable?. New York: Verso, 2009.), além de suas considerações acerca do parentesco (Butler, 2004BUTLER, J. Precarious life: the power of mourning and violence. New York: Verso, 2004.), apontam para um reconhecimento da materialidade que faz com que Butler atinja o objetivo proposto pelo feminismo (neo)material: a articulação do sujeito material sem o abandono da construção discursiva. Para Susan Hekman, essa é a melhor descrição de uma ontologia do sujeito disponível na teoria feminista contemporânea.

Susan Hekman, ao fazer uma releitura original do desenvolvimento da teoria feminista desde Simone de Beauvoir, contribui para a construção de uma postura que enfatiza mais as afinidades entre as diversas correntes que os pontos nos quais diferem. Além disso, traça uma aproximação interessante entre Beauvoir, Butler e a corrente (neo)materialista contemporânea, ainda que com a finalidade implícita de angariar aliadas de peso para o quadro teórico de que participa. O livro constitui, enfim, uma vasta revisão da teoria feminista, que nos ajuda tanto a localizar as principais questões que a norteiam e as especificidades de cada autora quanto a reconhecer que a busca pelo entendimento do “sujeito feminino” é um processo contínuo que se dará enquanto o feminismo for necessário.

Referências

  • ALAIMO, S. Bodily natures: science, environment, and the material self. Bloomington: Indiana University Press, 2010.
  • BARAD, K. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglement of matter and meaning. Durham: Duke University Press, 2007.
  • BENNETT, J. Vibrant matter: a political ecology of things. Durham: Duke University Press, 2010.
  • BUTLER, J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.
  • BUTLER, J. Precarious life: the power of mourning and violence. New York: Verso, 2004.
  • BUTLER, J. Frames of war: when is life grievable?. New York: Verso, 2009.
  • GROSZ, E. Volatile bodies: toward a corporeal feminism. Bloomington: Indiana University Press, 1994.
  • HAYLES, K. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature and informatics. Chicago: University of Chicago Press, 1999.
  • MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002.
  • TUANA, N. Material locations. In: TUANA, N.; MORGEN, S. (Ed.). Engendering rationalities Bloomington: Indiana University Press, 2001. p. 221-243.
  • 1
    Susan Hekman é professora no Departamento de Ciência Política da Universidade do Texas em Arlington (UTA), nos Estados Unidos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br