Open-access Biografia, identidade e narrativa: elementos para uma análise hermenêutica

Resumos

O artigo discute os recursos oferecidos pelos métodos biográficos na análise de trajetórias de vida, destacando as contribuições da hermenêutica, sobretudo a partir dos trabalhos de Paul Ricouer (Tempo e Narrativa) e Gadamer (Verdade e Método), sobre as inter-relações entre as dimensões da experiência e a sua articulação simbólica nos auto-relatos, tomados como modalidades narrativas. Estas considerações teórico-metodológicas são contextualizadas, em vários momentos do artigo, tendo como referência um estudo anteriormente realizado sobre trajetórias no campo ambiental, locus da pesquisa onde esta abordagem metodológica foi acionada.

análise de trajetórias; campo ambiental; métodos biográficos; narrativas


This article discusses the resources offered by the biographic methods about life trajectory analysis, emphasizing the contributions made by hermeneutic thought, specially in the works by Paul Ricouer (Time and narrative) and Gadamer (Truth and method) on the interrelations between the experience and its symbolic articulation in the autobiographical reports, here taken to be forms of narrative. A context for these theoretical and methodological considerations is given several times in this article, the reference being a study previously made on trajectories in the environmental field, site of the research where this methodological view was applied.

biographic methods; environmental field; narrative; trajectory analysis


ESPAÇO ABERTO

Biografia, identidade e narrativa: elementos para uma análise hermenêutica

Isabel Cristina Moura Carvalho

Universidade Luterana do Brasil – Brasil

RESUMO

O artigo discute os recursos oferecidos pelos métodos biográficos na análise de trajetórias de vida, destacando as contribuições da hermenêutica, sobretudo a partir dos trabalhos de Paul Ricouer (Tempo e Narrativa) e Gadamer (Verdade e Método), sobre as inter-relações entre as dimensões da experiência e a sua articulação simbólica nos auto-relatos, tomados como modalidades narrativas. Estas considerações teórico-metodológicas são contextualizadas, em vários momentos do artigo, tendo como referência um estudo anteriormente realizado sobre trajetórias no campo ambiental, locus da pesquisa onde esta abordagem metodológica foi acionada.

Palavras-chave: análise de trajetórias, campo ambiental, métodos biográficos, narrativas.

ABSTRACT

This article discusses the resources offered by the biographic methods about life trajectory analysis, emphasizing the contributions made by hermeneutic thought, specially in the works by Paul Ricouer (Time and narrative) and Gadamer (Truth and method) on the interrelations between the experience and its symbolic articulation in the autobiographical reports, here taken to be forms of narrative. A context for these theoretical and methodological considerations is given several times in this article, the reference being a study previously made on trajectories in the environmental field, site of the research where this methodological view was applied.

Keywords: biographic methods, environmental field, narrative, trajectory analysis.

O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal.

Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa.

O auto-relato pode ser tomado como um locus privilegiado do encontro entre a vida íntima do indivíduo e sua inscrição numa história social e cultural. A biografia, ao tornar-se discurso narrado pelo sujeito autor e protagonista, instaura sempre um campo de renegociação e reinvenção identitária. Os métodos biográficos nas ciências sociais, na psicologia social contemporânea e na psicanálise, por exemplo, operam neste interjogo entre a privacidade de um sujeito e o espaço sócio-histórico de sua existência, seja ampliando a compreensão dos fenômenos sociais e grupais, seja fazendo emergir um sujeito capaz de recontar a narrativa sobre si mesmo, na clínica.

O marco dos métodos biográficos para a análise de trajetórias no campo ambiental foi objeto de pesquisa que realizamos anteriormente (Carvalho, 2001, 2002). Nesse sentido, sem retomar o campo realizado, mas tendo-o como referência, o propósito deste artigo é discutir os caminhos teórico-metodológicos trilhados na análise da formação do que chamei de sujeito ecológico, um tipo ideal presente na experiência de educadores e lideranças ambientais no Brasil. Uma crença, articulada narrativamente no relato autobiográfico, que move processos de identificação, organiza escolhas e tomada de decisões, configurando a internalização de uma orientação ecológica como princípio orientador da vida pessoal e instaurador de relações intersubjetivas onde se dá o reconhecimento pelos pares e a legitimação no campo ambiental1.

O sujeito ecológico alude simultaneamente a um perfil identitário e a uma utopia societária. Como podemos observar nas últimas décadas no Brasil, particularmente após 1992, este ideal ecológico, à medida que se expande e conquista legitimidade, se oferece ao conjunto da sociedade como modelo ético para o estar no mundo, como bem o expressou numa entrevista o fotógrafo Sebastião Salgado:

Não sou religioso. Acredito na espécie humana. A espécie humana é muito recente e muito frágil e pode desaparecer. Deveria ser egoísta no sentido de se autoproteger. A proteção do meio ambiente, essa deveria ser a religião do planeta. (Depoimento de Sebastião Salgado a Roberto D’Ávila, no programa Conexão, TVE, 4 fev. 1998)

Os sentidos em risco: tradição e ruptura

As experiências culturais que poderíamos identificar como constitutivas de uma tradição ambiental no Ocidente moderno – como, por exemplo, o Naturalismo, as novas sensibilidades ambientais no século XVIII, o Romantismo alemão no século XIX, a contracultura nos anos 60, o imaginário edênico – disponibilizam simultaneamente diferentes sentidos do ambiental. Na experiência contemporânea, tomada a partir do campo ambiental e, particularmente, dos educadores ambientais, podemos observar como estas visões têm sido acionadas, combinadas, negadas e reinventadas numa trama de novos e velhos significados. Em nossa análise, conforme a noção de círculo hermenêutico transposta por Geertz (1991) para a análise das culturas, trata-se justamente de tornar visível a dialética das partes (formas simbólicas específicas) e do todo (a estrutura significante do contexto cultural) que constituem o fenômeno cultural a ser compreendido2.

Nesse caso está em jogo a relação entre a produção de sentidos culturais específicos em face de uma tradição como horizonte de significação. Não se trata, contudo, de localizar os sentidos atuais do ambiental em um ou outro lado do pêndulo reedição-ruptura da tradição; mas, antes, dar visibilidade à relação entre o todo e as partes, apontando para a dialética da reinvenção da tradição. Como bem nos mostra Sahlins (1990) sobre as vicissitudes da ação simbólica, ao serem atualizados, os significados dados num certo horizonte de significação são colocados em risco na ação, tanto pela conjuntura histórico-cultural presente quanto pelo valor intencional subjetivo de seu uso pelos sujeitos ativos3:

A ação simbólica é um composto duplo, constituído por um passado inescapável porque os conceitos através dos quais a experiência é organizada e comunicada procedem do esquema cultural preexistente. E um passado irredutível por causa da singularidade do mundo em cada ação: a diferença heraclitiana entre a experiência única do rio e seu nome. A diferença reside na irredutibilidade dos atores específicos e de seus conceitos empíricos que nunca são precisamente iguais a outros atores e outras situações – nunca é possível entrar no rio duas vezes. As pessoas, enquanto responsáveis por suas próprias ações, realmente se tornam autoras de seus conceitos; porque, se sempre há um passado no presente, um sistema a priori de interpretação, há também "uma vida que se deseja a si mesma" (como diria Nietzsche). (Sahlins, 1990, p. 189)

Nesse sentido, poderíamos dizer que os sentidos do ambiental, postos em risco pela ação – contextos histórico-culturais específicos e singularidades pessoais – dos educadores ambientais, indica a confluência da tradição no presente, mas também sua recriação. A diversidade de sentidos que as relações com a natureza e o ambiente adquirem na singularidade das interações sociais e históricas presentes, afirma e reinventa uma tradição ambiental, cotidianamente.

A narrativa como mediação entre o tempo vivido e a significação da ação em Paul Ricouer

A (re)invenção da tradição só ganha sentido à medida que é capaz de entretecer os sentidos disponibilizados contextualmente com a substância viva da experiência do narrador. Assim, ganha destaque o valor da experiência como fonte e possibilidade da narrativa. Esta profunda ligação entre narrativa e experiência é reiterada por Benjamin (1987) como uma qualidade comunicativa em crise. Ao comentar o embaraço que freqüentemente atinge um grupo quando alguém é solicitado a narrar algo, alerta:

É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Uma das causas deste fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa [ ] a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. (Benjamin, 1987, p. 198).

O laço indissociável entre a experiência e a sua (re)elaboração na condição narrativa – enquanto abertura para revivificar e ao mesmo tempo recriar o vivido – é central para a análise de relatos autobiográficos. Por isso não poderíamos seguir nesse caminho sem recorrer ao brilhante ensaio de Paul Ricoeur, intitulado Tempo e Narrativa (1994-1997), onde o autor expõe a função significativa ou figurativa operada pela narrativa ficcional como modelo estrutural análogo a todo ato narrativo. Fiel ao propósito hermenêutico de sustentação das tensões antinômicas, Ricoeur percorre as aporias do tempo no pensamento ocidental demarcando, entre concepções paradoxais – como a do muthos trágico em Aristóteles e a de distentio animis em Agostinho, ou ainda a de um tempo fenomênico, físico, em Kant e a de consciência íntima do tempo em Husserl – o espaço entrepolar da narrativa de ficção como síntese não fechada de um tempo objetivo e de um tempo vivido. Postula assim uma função narrativa pela qual se dá a inscrição da ação humana na temporalidade.

Ricoeur busca na Poética de Aristóteles as noções de mimese, na acepção de imitação ou representação da ação, e de intriga, enquanto agenciamento dos fatos, como estruturantes de sua própria definição de narrativa4. Assim, tomando a idéia do muthos como a arte de compor intrigas, Ricoeur entende a atividade mimética como ato criativo onde o ficcional é abertura à significação:

Se continuarmos a traduzir mimese por imitação, deve-se entender o contrário do decalque de um real preexistente e falar de imitação criadora. E, se traduzirmos mimese por representação, não se deve entender, por esta palavra, alguma duplicação da presença, como se poderia ainda entendê-lo na mimese platônica, mas o corte que abre o espaço de ficção [ ] Nesse sentido o termo aristotélico mimese é o emblema dessa desconexão, que para empregarmos um vocabulário que hoje é o nosso, instaura a literariedade da obra literária. (Ricoeur, 1994, p. 76).

O que está em jogo nessa trama da existência narrada é a tensão permanente entre as forças organizadoras da ordem e da concordância e as forças da discordância, do caos, da surpresa, do inesperado e arbitrário do destino5. É, portanto, através do papel articulador da tessitura da intriga que se compreenderá a mediação fundamental entre tempo e narrativa. Contudo, como Ricoeur reconhece, a temporalidade como fio tramado pela narrativa não está originalmente em Aristóteles. Para o filósofo grego o tempo é tratado como um tempo objetivo, mensurável, presente no campo da physis e ausente da esfera narrativa. Mas, é justamente no tensionamento da mimeses com os atributos da temporalidade vivida, evidenciadas pela concepção agostiniana, que Ricoeur vai construir seu conceito de narrativa enquanto articulação temporal da ação:

Aristóteles, vimos, ignorou os aspectos temporais da tessitura da intriga. Proponho-me a desimplicá-los do ato da configuração textual e demostrar o papel mediador desse tempo da tessitura da intriga entre os aspectos temporais prefigurados no campo prático e a refiguração da nossa experiência temporal por esse tempo construído. Seguimos, pois, o destino de um tempo prefigurado em um tempo refigurado, pela mediação de um tempo configurado. (Ricoeur, 1997, p. 87)

Os três níveis da operação mimética (mimeses I, II e III) da ação propostos por Ricoeur estão sintetizados nos tempos da prefiguração, configuração e refiguração, respectivamente. Esses tempos constituem as mediações simbólicas constitutivas do ato de narrar e, como tal, da própria experiência compreensiva. Dessa forma, o ato narrativo passa de um tempo prefigurado da ação, no nível do vivido e da experiência em mimese I, para um tempo configurado simbolicamente pela composição narrativa em mimese II, tendo em vista comunicar uma experiência a alguém, o que caracteriza o terceiro tempo enquanto tempo da alteridade, onde se comunica o narrado para alguém. Assim, tem-se o tempo refigurado em mimese III, que restitui à ação o tempo vivido do leitor, completando o ciclo dessas operações narrativas, onde o sentido nunca se encerra num fechamento ou cristalização:

O acontecimento completo não é apenas que alguém tome a palavra e dirija-se a um interlocutor, é também que ambicione levar à linguagem e partilhar com outro uma nova experiência. É essa experiência que, por sua vez, tem o mundo como horizonte. Referência e horizonte são correlativos como o são a forma e o fundo. Qualquer experiência possui, ao mesmo tempo um contorno que a cerca e discerne e ergue-se sobre um horizonte de potencialidades que constituem seu horizonte externo e interno. [ ] Essa pressuposição muito geral implica que a linguagem não constitui um mundo ela própria. Ela não é sequer um mundo. Porque estamos no mundo e somos afetados por situações, tentamos nele nos orientar por meio da compreensão e temos algo a dizer, uma experiência a levar à linguagem e a partilhar. (Ricoeur, 1994, p. 119).

Assim, a dimensão pré-narrativa poderia ser relacionada à pré-compreensão em Gadamer, indicando o mundo da experiência que, ao passar pelas operações configurantes, acede à linguagem e ao caráter público e compartilhado do símbolo porque tem como finalidade a comunicação com outrem6. Este terceiro momento poderia ser relacionado ao momento da aplicação em Gadamer, apontando para o encontro do mundo da obra e do mundo do leitor, sinalizando para o ambiente de recepção (e réplica) de um enunciado, onde afinal se conclui o percurso da mimese e se efetiva a ação narrativa enquanto experiência de compreensão humana. Nesta perspectiva, tanto em Ricoeur quanto em Gadamer, poderíamos pensar que o que constitui um discurso e torna possível uma situação de comunicação é a condição de um sujeito que leva à linguagem e compartilha com outrem uma experiência. Nesse sentido, enquanto ato narrativo, a comunicação pode ser entendida como correlato da compreensão hermenêutica, com todos os seus atributos.

Contudo, Ricoeur segue em sua análise extraindo conseqüências do que propõe como um terceiro-tempo, constituído pelo entrecruzamento entre as intenções referenciais próprias da história e da ficção em relação ao tempo. A questão, apresentada por ele se formula nos seguintes termos: "Até que ponto o entrecruzamento das intenções ontológicas da história e da ficção constitui uma réplica apropriada à ocultação recíproca das duas perspectivas, fenomenológica e cosmológica, sobre o tempo?" (Ricoeur, 1997, p. 423).

Para dar conta das antinomias sobre as quais ancora sua reflexão – tempo cósmico e ficcional; a função de representação do passado histórico e os efeitos do encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor; interpenetrações da história e da ficção pela ficcionalização da história e historicização da ficção – Ricoeur introduz a noção de identidade narrativa:

Essa dialética do entrecruzamento seria em si mesma um sinal de inadequação da poética à aporética, se não nascesse dessa fecundação mútua um rebento, cujo conceito introduzo aqui e que testemunha certa unificação dos diversos efeitos de sentido da narrativa. O frágil rebento oriundo da união da história e da ficção é a atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade de uma ‘identidade narrativa. (Ricoeur, 1997, p. 424).

Com essa importante categoria prática, apresentada como "a solução poética do círculo hermenêutico" (Ricoeur, 1997, p. 427), pode-se captar o quem da ação, sem encerrá-lo numa identidade estável. Ao contrário, a identidade narrativa constitutiva do sujeito permite apreendê-lo na mudança, incluindo a mutabilidade na coesão de uma vida:

O sujeito, mostra-se então, constituído ao mesmo tempo como leitor e escritor de sua própria vida. Como a análise literária sobre a autobiografia verifica, a história de uma vida não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta sobre si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas. [ ] A identidade narrativa não é uma identidade estável e sem falhas; assim como é possível compor várias intrigas acerca dos mesmos incidentes (os quais, com isso, já não merecem ser chamados de os mesmos acontecimentos), assim também sempre é possível tramar sobre sua própria vida intrigas diferentes ou até opostas. (Ricoeur, 1997, p. 425, 428)

A noção de identidade narrativa supõe um processo estrutural formador do que Ricoeur denomina ipseidade – compreendida como a identidade de um si mesmo relacional e, portanto, marcado pela abertura de um ser afetado pelo mundo, em contraste com uma identidade fixa do mesmo7.

Nesse sentido, a articulação identitária no sentido da ipseidade se daria de modo privilegiado a partir de narrativas pessoais e/ou históricas, dando conta dos processos de mútua constituição entre o sujeito e suas relações no mundo. Esse modo de constituição de um si mesmo aplica-se tanto à identidade social de uma comunidade quanto à noção de subjetividade pensada no caso de um indivíduo. Destaca-se, nesse sentido, o papel da ética, enquanto decisão orientadora da ação tanto dos indivíduos quanto dos grupos sociais, como constitutiva da ipseidade. Nas palavras de Ricoeur:

A identidade narrativa só equivale a uma verdadeira ipseidade em virtude desse momento derrisório, que faz da responsabilidade ética o fator supremo da ipseidade [ ] a narrativa já pertence ao campo ético em virtude da pretensão, inseparável da narração, à correção ética. (Ricoeur, 1997, p. 429).

Constitui-se assim, através da categoria de identidade narrativa uma interessante compreensão das relações entre indivíduo, sociedade e historicidade. Nesse caso, a fronteira com que normalmente se distinguem esses campos poderia ser entendida menos como indicador de oposição e diferença e mais como área de negociação e trânsito entre esferas, que no plano do vivido se constituem mutuamente e nunca se dicotomizam.

Ao final de Tempo e Narrativa, depois de ter explorado as possibilidades, mas também os limites da narrativa e da identidade narrativa diante das aporias da ação, da história e do tempo, Ricoeur conclui sem obturar a abertura constitutiva do círculo hermenêutico como condição da compreensão: a impossibilidade do domínio do sentido frente aos componentes não narrativos da ação e ao mistério do tempo. Impossibilidade que não paralisa, mas ao contrário, move a compreensão, a busca de compromisso ético e de uma identidade no tempo8.

Entre o sujeito e a história, o fato e o ficcio, o vivido e o narrado: o mapa biográfico

Os métodos biográficospodemser consideradoso território mais amplo onde se inscrevem os diversos recursos e abordagens para a análise de auto-relatos e de trajetórias de vida9. A contribuição de uma abordagem hermenêutica a partir de Gadamer e Paul Ricouer reitera a fronteira entre sujeito e história como o ambiente epistêmico por excelência da pesquisa biográfica e rompe com uma possível orientação realista. Ao tomar os relatos biográficos como modalidades narrativas, estes deixam de ser produções individuais e factuais e evidenciam a interpenetração entre sujeito e história bem como entre os acontecimentos e sua reconfiguração na tessitura de vidas narradas. Nessa perspectiva, o universo comum que engloba um campo de práticas e discursos, como o ambiental, por exemplo, também pode ser visto, ele mesmo, como uma grande narrativa que engloba e torna plausíveis as narrativas individuais.

Na busca de acessar a conexão entre indivíduo e seu ambiente sócio-histórico, são valorizados, na perspectiva biográfica, o auto-relato, a idéia de trajetória, e a própria noção de biografia como expressões privilegiadas desse encontro paradigmático, como apontam Ferraroti (1983), Eckert (1994-97) e Marre (1991)10. Também em Bourdieu (1996) a história de vida conduz a construção de uma trajetória que, diferentemente das biografias comuns, descreve uma série de posições ocupadas pelo mesmo agente (ou um mesmo grupo) em estados sucessivos no campo a que pertence. Tomando o conceito de campo social como um espaço de relações materiais e simbólicas onde se posicionam os sujeitos, as trajetórias são percursos que só ganham sentido dentro das regras do jogo, onde os agentes são afetados por um habitus11 e submetidos aos efeitos da illusio do campo12.

A noção de biografia para os autores acima citados opera com a idéia de que os indivíduos são atravessados por movimentos culturais e processos históricos involuntários, contrapondo-se a certa orientação realista, que influenciou a Escola de Chicago, particularmente nos anos 20 e 3013. Assim, não está em foco uma recuperação de dados biográficos de cunho individualista e psicológico, mas sim a reconstrução, através dos relatos autobiográficos, da trajetória histórica e cultural de um determinado grupo, ou ainda, das forças que constituem um campo social (Bourdieu, 1996). Nesse sentido, se poderia afirmar, com Canclini (1997), que a identidade é uma construção que se narra14.

A análise biográfica se constitui essencialmente numa situação comunicativa. Para ser levada a cabo com sucesso depende de várias atividades comunicativas: o informante deve contar sua história de vida; descrever situações de vida, e argumentar sobre problemas significativos e recorrentes em sua vida e como ele/ela se relaciona com isso. O pesquisador, ao trabalhar meticulosamente sobre esse material comunicativo, também se torna ele mesmo mais um interlocutor, integrando o circuito dialógico da produção do conhecimento.

Esta situação comunicativa ou dialógica pode ser estendida a outras vozes, pois o sujeito da autobiografia, ao narrar sobre si mesmo, localiza-se quanto a outras narrativas, e participando de um consenso mais amplo. Como afirmam Bruner e Weisser (1995) a autobiografia é uma atividade de posicionamento, quase de navegabilidade:

a função última da autobiografia é a autolocalização, o resultado de um ato de navegação que fixa a posição em um sentido mais virtual do que real. Pela autobiografia, situamo-nos no mundo simbólico da cultura. (Bruner; Weisser, 1995, p. 145).

Ora, para navegar é preciso estar dentro de um consenso, ao menos o que determina as convenções e, portanto, a legibilidade do mapa de navegação.

Campo ambiental e identidade narrativa

No mundo ambiental os mapas biográficos são muito variados, mas suficientemente articulados para indicar uma comunidade de sentido (Rorty, 1987). Há temas claramente nucleadores. São organizadoras do campo, por exemplo, as tensões: ser humano X natureza; controle e regulação social X autonomia e emancipação; mudança individual X mudança coletiva/mundial/planetária, enquanto bases valorativas para se pensar uma ética ambiental.

Esses dilemas que atravessam o campo ambiental são percebidos como comuns e esse reconhecimento compartilhado gera uma sensação do tipo "eu sei que você sabe que eu sei o que você quer dizer" (Bruner; Weisser, 1995, p. 156), responsável tanto por um nível básico de cumplicidade quanto, certamente, por uma ampla margem de ilusão e equívocos. Esse primeiro olhar de reconhecimento e inclusão do outro num universo comum é o que poderíamos considerar, recorrendo uma vez mais à metáfora de Bruner e Weisser, como uma carta básica de navegação, isto é, a condição básica de consenso que delimita um campo, necessária até mesmo para posicionar as divergências e oposições dentro dele.

Tendo em vista a noção ampliada de narrativa enquanto condição de produção de sentidos e identidade, poderíamos dizer que, ao lidarmos com fontes textuais – o que inclui documentos e relatos – estamos diante do ato narrativo em uma de suas modalidades. Trata-se de, nesse caso, observar desde os depoimentos biográficos como se tece a intriga que configura o ambiental enquanto campo social e evento histórico durável15. O campo ambiental, nesse caso, poderia ser tomado ele mesmo como constituindo uma narrativa, dentro da qual os sujeitos estão já situados quando começam a contar sua história pessoal como profissionais de meio ambiente.

Assim, enfocando as trajetórias individuais e sua confluência na constituição do campo ambiental, podem-se ver aí as marcas que configuram este espaço como constitutivo de uma identidade narrativa, que torna possível que sujeitos, desde sempre mergulhados na historicidade e lingüisticidade, agenciem os fatos de acordo com uma perspectiva de compreensão do mundo que quer comunicar uma certa experiência pessoal e social.

Nesse sentido, pode-se dizer que os sujeitos sociais são ativos narradores ao mesmo tempo em que são narrados, isto é, são formados pelas estruturas narrativas dominantes de seu tempo, e particularmente dos campos de ação onde estão inseridos. Nesse sentido vale a pena trazer a contribuição de Edward Bruner (1986), no contexto do debate antropológico, que introduz a noção de narrativa como estrutura de significado, tomando a etnografia como uma narrativa tanto quanto o relato dos nativos sobre o qual ela se constrói. Desde uma perspectiva reflexiva ele afirma que a etnografia, enquanto ato interpretativo, é guiada por uma narrativa, isto é "uma estrutura narrativa implícita que fala sobre as pessoas que nós estudamos" (Bruner, E., 1986, p. 139). Para Edward Bruner os principais elementos de uma narrativa são: a estória, o discurso e o relato (telling)16.

A estória, entendida como modelo, tem um duplo aspecto: é ao mesmo tempo linear e instantânea. Por um lado, a estória é experienciada como uma seqüência e, por outro lado, é percebida como um todo de uma só vez – antes, durante e depois do relato. As estórias dão sentido ao presente e nos tornam capazes de vê-lo como parte de um conjunto de relações envolvendo um passado constituído e um futuro. As narrativas mudam, todas as estórias são parciais, todos os sentidos incompletos. Não há significado fixo no passado, a cada novo relato varia o contexto, a audiência difere e a estória é modificada. Assim, "recontar se torna profetizar"17 (Bruner, E., 1986, p. 153).

A respeito do relato, Edward Bruner (1986) aponta para quatro níveis de relatos que compõem a pesquisa, enquanto uma produção discursiva polifônica. O primeiro é o relato dos povos e/ou sujeitos estudados sobre si mesmos (auto-relato). O segundo é o do pesquisador em seu diário de campo. O terceiro é aquele que o pesquisador faz para sua audiência (colegas/academia), com quem enriquece sua análise para uma posterior publicação. O quarto pode ser considerado como aquele dos pesquisadores/leitores do trabalho, que o sumarizam e o discutem em suas próprias salas de aula e publicações. Assim, estamos sempre recontando as mesmas histórias e ao mesmo tempo recriando-as.

Tendo em vista a natureza narrativa dos processos biográficos, Riemann e Schütze (1991) também enfatizam o relato e a análise biográfica como uma situação essencialmente criativa, que é lançada no circuito comunicativo, e como tal se estrutura com base em atividades tais como: o informante deve contar sua história; descrever situações de vida, e argumentar sobre problemas significativos e recorrentes e como ele/ela se relaciona com isso. O pesquisador, ao trabalhar meticulosamente sobre esse material comunicativo, também se torna ele mesmo mais um interlocutor, integrando o circuito dialógico da produção do conhecimento.

Esta situação comunicativa pode ser estendida a outras vozes, pois o sujeito da autobiografia, ao narrar sobre si mesmo, localiza-se em relação a outras narrativas, participando de um diálogo mais amplo com outros campos ou contextos sociais. Os autores destacam as experiências de vida no contexto de sua produção pela interação social, e enfatizam o modo como estas são interpretadas e sedimentadas no curso desta interação. O relato biográfico é, portanto, continuamente afetado pela interpretação, seja do próprio sujeito que o profere, seja do pesquisador que intervém enquanto mais um interlocutor18.

Nos níveis do relato distinguidos por Edward Bruner, nas dimensões comunicativas indicadas por Riemann e Shütze, ou ainda nas mediações configurantes da atividade mimética descrita por Ricoeur, estamos diante dos diversos níveis do ato simbólico e narrativo. Nesse jogo polifônico, o sentido não está nunca aprisionado numa intenção ou significado prévio, mas é efeito imprevisível de um encontro de alteridades, portanto somente acontece numa situação de comunicação e está fadado às vicissitudes da recriação permanente.

A condição narrativa remete a experiência humana para o campo do ficcio, no sentido da permanente reelaboração, ou ainda, poderíamos dizer, da auto-invenção. Nesse sentido, a condição narrativa está presente tanto na literariedade da obra artística quanto no percurso do sujeito que se narra para salvar-se das paralisias de uma trajetória cristalizada em pontos de trava neuróticos19. Seja enquanto produtividade cultural ou individual, trata-se de tomar o relato biográfico como ato narrativo que proporciona ao sujeito sempre uma nova oportunidade de se apresentar, recontar e reposicionar-se, tecendo e retecendo a intriga, sob os limites da discordância do destino, do tempo e do desconhecimento de si mesmo.

As experiências, ao serem contadas, transpõem a vida para o registro da narrativa, transformam-se em textos e passam a ser reguladas pelas regras de gênero e convenções que regem esse domínio. Dessa forma, por exemplo, o narrador do auto-relato não coincide completamente com o personagem que protagoniza a ação, a começar por não compartilhar com este as condições de espaço e tempo. Com isto destaca-se a disjunção entre o sujeito que narra (narrador) e o foco narrativo, mesmo que na autobiografia se trate de um foco em primeira pessoa, do tipo eu-protagonista20.

Bruner e Weisser valorizam na autobiografia não apenas o conteúdo ou os acontecimentos relatados (o que dizer/o que aconteceu), mas também o estilo do relato (como contar, para quem se fala). Para os autores:

A forma de uma vida é função tanto das convenções de gênero e estilos a que se submete a narração dessa vida, quanto, por assim dizer, daquilo que ‘aconteceu’ no seu decorrer. Os pontos decisivos de uma vida não são provocados por fatos, mas por revisões na história que se usa para falar da própria vida e de si mesmo. [ ] Assim, isso me leva a propor que, num certo sentido, as vidas são textos: textos sujeitos a revisão, exegese, reinterpretação e assim por diante. (Bruner; Weisser, 1995, p. 142).

Os processos reflexivos de interpretação que se expressam no conceito de textualização parecem ser uma característica da própria autoconsciência, um fenômeno histórico que está na origem da própria modernidade21. A condição de um sujeito que narra sua vida coloca-o numa posição que é ao mesmo tempo de autor e de intérprete de si mesmo. Trata-se aqui de pontuar a distância entre o sujeito e o si mesmo que é narrado. Esta disjunção subjetiva é a condição que torna a autocompreensão uma tarefa de interpretação e transforma o sujeito numa espécie de autor-intérprete de si mesmo. Esta condição faz do auto-relato uma construção não transparente e não plenamente controlável para o sujeito, aproximando-a de um ato de criação estruturalmente análogo à ficção. Neste sentido o relato autobiográfico não representa o sujeito, mas o produz. Daí a natureza de auto-invenção do relato autobiográfico. Nesse sentido, como afirmam Bruner e Weisser (1995, p. 153) a autobiografia pode ser entendida como uma atividade de autoposicionamento – que fixa uma posição mais virtual do que real – e resulta de um ato de navegação pelo mundo simbólico da cultura.

O que estou sugerindo é que entre a busca da verossimilhança nos auto-relatos e a criação deliberada da narrativa literária há mais continuidades do que supõe uma nítida demarcação dos territórios do real e do ficcional. Assim, por exemplo, pude tomar os auto-relatos sobre a trajetória ambiental dos sujeitos que pesquisei como se afastando de uma história natural, como acontece na narrativa de ficção. Guardadas as diferenças entre esses dois campos narrativos, as biografias narradas através das trajetórias de vida também poderiam ser vistas como espaços ficcionais, a partir dos quais lembrar e contar é sempre reorganizar e reconstruir uma identidade narrativa22. Essa auto-invenção, por sua vez, traz consigo a invenção do Outro, das relações de alteridade e, portanto, da identidade narrativa de um campo intersubjetivo e cultural em questão. É nesse sentido que a auto-invenção dos sujeitos é simultaneamente posicionada num campo social e demarcadora desse mesmo campo.

Nesse sentido, nos estudos anteriormente mencionados (Carvalho, 2001, 2002), o que estava sendo inventado no ato narrativo autobiográfico dos educadores ambientais, para além da individualidade das vidas narradas, podia ser postulado nos termos de uma identidade narrativa que ao mesmo tempo demarca o campo e a ação dos sujeitos dentro dele. Esta construção identitária, tomada do ponto de vista dos atores, evidencia um sujeito ecológico, um tipo ideal suposto a guiar-se por uma ética ambiental e comprometido em levar adiante e expandir as crenças preconizadas pelo campo ambiental. Essa mesma construção identitária, tomada do ponto de vista do campo, se instaura enquanto horizonte de atribuição de sentidos para o ambiental, constituindo, portanto, o campo de possibilidades do sujeito ecológico.

Recebido em 25/04/2003

Aprovado em 15/05/2003

Referências bibliográficas

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  • SAHLINS, M. Ilhas de história Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
  • 1
    Uma observação a fazer é que, em meio aos diferentes usos e conceituações dos termos ecológico/ecologista e ambiental/ambientalista, para nomear o campo social ao qual nos referimos optamos pelo termo ambiental, pelo seu caráter mais abrangente. No entanto, quando se trata de delinear o perfil identitário nucleador desse campo, encontramos aí a matriz ecológico/ecologista como traço mais específico e pertinente. Fazendo jus à contribuição dos movimentos ecológicos para formação do campo ambiental, este parece ser o signo apropriado para denominar o tipo ideal que opera como uma matriz para outras identidades derivadas que circulam no campo (ambientalista, ativista ambiental, verde, alternativo, etc.).
  • 2
    Segundo Geertz: "Do ponto de vista pragmático, duas abordagens, dois tipos de abordagem devem convergir se se quer interpretar uma cultura: uma descrição e formas simbólicas específicas (um gesto ritual, uma estátua hierática) enquanto expressões definidas; e uma contextualização de tais formas no seio da estrutura significante total de que fazem parte e em termos da qual obtém sua definição. No fundo, isto é, obviamente, o já conhecido círculo hermenêutico: a apreensão dialética das partes que estão incluídas no todo e do todo que motiva as partes, de modo a tornar visíveis simultaneamente as partes e o todo" (Geertz, 1991, p. 133).
  • 3
    Sahlins, ao introduzir uma análise diacrônica na perspectiva estruturalista, aponta para a dialética da "estrutura na conjuntura" onde as combinações e recombinações dos significados postos em risco na ação levam a uma "reavaliação funcional de categorias": "O que quero dizer com 'estrutura na conjuntura' é a realização prática das categorias culturais em um contexto histórico específico, assim como se expressa nas ações motivadas dos agentes históricos, o que inclui a microssociologia de sua interação" (Sahlins, 1990, p. 15). A partir da submissão da estrutura a uma conjuntura que inclui o risco subjetivo da revisão dos signos pelos sujeitos ativos em seus projetos e interesses pessoais, enfatiza a tensão produtiva das dinâmicas de inovação e recriação na ação simbólica.
  • 4
    A noção de intriga é trazida por Ricoeur desde o muthos trágico para designar o que o autor denomina de configuração da narrativa: "O tecer da intriga foi definido, no plano mais formal, como um dinamismo integrador, que tira uma história una e completa de um diverso de incidentes, ou seja, transforma esse diverso em uma história una e completa. Essa definição formal abre o campo para transformações organizadas que merecem ser chamadas intrigas desde que nelas possam ser discernidas totalidades temporais a operar uma síntese do heterogêneo entre circunstâncias, objetivos, meios, interações, resultados desejados ou não" (Ricoeur, 1995, p. 16).
  • 5
    Na definição do muthos a concordância é a disposição ordenada dos fatos, enquanto a discordância é a ação desorganizadora representada pelos incidentes aterrorizantes e lamentáveis.
  • 6
    Ricoeur concorda com as considerações de Cliford Geertz sobre o caráter público do símbolo: "Para o antropólogo, o termo símbolo sublinha de imediato o caráter público da articulação significante. Como diz Geertz: 'a cultura é pública porque a significação o é'. Adoto de bom grado essa primeira caracterização que marca bem que o simbolismo não está no espírito, não é uma operação psicológica destinada a guiar a ação, mas uma significação incorporada à ação e decifrável nela pelos atores do jogo social" (Ricoeur, 1994, p. 92).
  • 7
    A noção de ipseidade se distingue de uma subjetividade egocentrada para remeter a um ser do conhecimento, efeito das narrativas, na imbricação dos planos pessoal e cultural: "Essa conexão entre ipseidade e identidade narrativa confirma uma de minhas mais antigas convicções, a saber, que o si do conhecimento de si não é o eu egoísta e narcísico cuja hipocrisia - e ingenuidade -, bem como o caráter de superestrutura ideológica e o arcaísmo infantil e neurótico as hermenêuticas da suspeita denunciaram. O si do conhecimento de si é o fruto uma vida examinada, segundo a frase de Sócrates na 'Apologia'. Ora, uma vida examinada é, em ampla medida uma vida depurada, explicada pelos efeitos catárticos das narrativas tanto históricas quanto fictícias veiculadas por nossa cultura. A ipseidade é assim, a de um si instruído pelas obras da cultura que ele aplicou a si mesmo" (Ricoeur, 1997, p. 425).
  • 8
    É pertinente retomar as conclusões do terceiro tomo de Tempo e Narrativa. Aqui se evidencia a recusa, por parte de uma hermenêutica dialética, ao fechamento da círcularidade compreensiva por uma resolução que extinguiria o tensionamento da compreensão com sua alteridade negativa - aspectos não narrativos, experiência pré-conceitual, mistério do tempo. Como afirma Ricoeur: "Não é verdade que a admissão dos limites da narrativa venha a abolir a posição da idéia de unidade na história, com suas implicações éticas e políticas. Ela, antes, o exige. Tampouco se dirá que a admissão dos limites da narrativa, correlativa da admissão do mistério do tempo, terá caucionado o obscurantismo; o mistério do tempo não equivale a uma interdição que recaia sobre a linguagem; ele, antes, provoca a exigência de pensar e de dizer mais. Se assim for, é preciso prosseguir até o fim o movimento de retorno, e sustentar que a reafirmação da consciência histórica nos limites de sua validez requer, por sua vez, a busca, pelo indivíduo e pelas comunidades a que ele pertence, de sua respectiva identidade narrativa. Esse é o núcleo duro de toda nossa investigação; pois é só nessa busca que se respondem com uma pertinência suficiente a aporética do tempo e a poética da narrativa" (Ricoeur, 1997, p. 463-464).
  • 9
    Usamos o conceito de métodos biográficos no sentido indicado por Marre, onde os recursos autobiográficos - relato, história de vida, etc. - são tomados não apenas como técnicas de pesquisa mas como parte constitutiva de um método. Segundo o autor: "Engloba-se na expressão história de vida (life history), tanto relatos orais, como autobiografias escritas, longas entrevistas abertas e outros documentos orais ou testemunhos escritos, conferindo, assim, à expressão, um sentido mais amplo do que aquele com que geralmente é empregada" (Marre, 1991, p. 90).
  • 10
    Segundo Ferraroti "Toda prática social humana é uma atividade sintética, uma totalização ativa de todo o contexto social. Uma vida é uma prática que se apropria das relações sociais (as estruturas sociais) as interioriza e as transforma em estruturas psicológicas pela sua atividade de desestruturação-reestruturação. [ ] Nosso sistema social está plenamente contido em nossos atos, dentro de nossos sonhos, delírios, obras, comportamentos, e a história deste sistema está inteiramente presente dentro da história de nossa individualidade" (Ferraroti, 1983, p. 50). Eckert, sobre o uso de relatos e narrativas no método etnográfico refere-se à "complexa combinação entre as narrativas pessoais, relatos de ciclos de vida, biografias, histórias familiares, trajetórias e projeções de vida remetidos ao contexto histórico do desenvolvimento de uma sociedade, em que os informantes aparecem como atores históricos e sujeitos portadores de uma identidade, considerando que as narrativas pessoais estão permeadas de intersubjetividade" (Eckert, 1994-97, p. 18). Para Marre, o método biográfico "tem como objetivo - a partir da totalidade sintética que é o discurso específico de um indivíduo - reconstruir uma experiência humana vivida em grupo e de tendência universal" (Marre, 1991, p. 89).
  • 11
    Habitus é um conceito formulado por Elias (1994, p. 150) como "a composição social dos indivíduos [ ] o solo de que brotam as características pessoais mediante as quais um indivíduo difere dos outros membros de sua sociedade". Para Elias, o habitus seria a um estilo ou uma grafia mais ou menos individual que brota da escrita social. Bourdieu retoma o conceito e o utiliza como nexo fundamental na constituição do campo social. Para Bourdieu o habitus marca uma relação de cumplicidade ontológica dos agentes e o mundo social, que estrutura a percepção e a ação prática dos agentes num determinado campo. O habitus seria como "um corpo socializado, um corpo estruturado, um corpo que incorporou as estruturas imanentes do mundo ou de um setor particular desse mundo, de um campo, e que estrutura tanto a percepção desse mundo como a ação nesse mundo" (Bourdieu, 1996, p. 144).
  • 12
    Segundo Bourdieu "A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, que vale a pena jogar. [ ] Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer enquanto jogos e a illusio é essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do campo social". Assim, "Todo campo social, seja o campo científico, seja o campo burocrático ou o político, tende a obter daqueles que nele entram essa relação com o campo que chamo de illusio. Eles podem querer inverter as relações de força no campo, mas, por isso mesmo reconhecem os alvos, não são indiferentes" (Bourdieu, 1996, p. 139-140).
  • 13
    Os métodos biográficos nos anos 20 e 30 foram de certa forma reprimidos pelo desenvolvimento de uma filosofia positivista então em ascensão que influenciou a Escola de Chicago. É nesse contexto que a história de vida vai se desenvolver como técnica subordinada à necessidade de fazer investigações realistas (cf. Marre, 1991).
  • 14
    Para Canclini (1997, p. 149), "ao se tornar um relato que reconstruímos incessantemente, que construímos com os outros, a identidade se torna também uma co-produção".
  • 15
    Como indica Ricoeur (1995) referindo-se ao historiador Paul Veyne, a noção de intriga pode ser consideravelmente ampliada a ponto de integrar componentes tão abstratos da mudança social quanto os que foram colocados em relevo pela história não factual e até mesmo pela história serial. Também usa o conceito de narrativa aplicado às compreensões predominantes que caracterizam um determinado período histórico. É assim que ele se refere à perda de credibilidade do grande relato moderno que introduz a pós-modernidade.
  • 16
    "A estória é a seqüência abstrata de eventos sistematicamente relatados, é a estrutura sintagmática. O discurso é o texto no qual a história se manifesta, o posicionamento num meio particular, como a novela, o mito, a leitura, filme, conversação. O relato (telling) é a ação, o ato de narrar, o processo comunicativo que produz a história no discurso. Nenhuma distinção é feita aqui entre contar/relatar (telling) e mostrar (showing), pois a mesma estória pode ser recontada ou atuada, ou ambos" (Bruner, E., 1986, p. 139) - "estória" está grafada, neste artigo, em conformidade com a edição brasileira do livro de E. Bruner.
  • 17
    Em inglês a expressão é: "retelling become foreteling".
  • 18
    Segundo Riemann e Schütze (1991), os processos biográficos afetam as atitudes e moldam relacionamentos sociais com outros grupos, e consigo mesmo. Tais experiências são, pela seqüência dos eventos contextuais da história de vida e relacionamentos com outros contextos complementares, competidores, e também recessivos e dominantes contextos. Durante os eventos da história de vida a posição da identidade pessoal muda consideravelmente. Essa mudança de orientação atinge os relacionamentos consigo mesmo, com o presente, com sua história pessoal, e seu futuro, e é acompanhada de um trabalho biográfico. Este é o trabalho de relembrar, interpretar e redefinir, que envolve o trabalho comunicativo de companheiros de interação, especialmente outros significativos.
  • 19
    Como Freud (1914) já havia postulado em Recordar, Repetir e Elaborar, não há repetição sem elaboração, não há memória sem recriação. A repetição que caracteriza o sintoma neurótico é ao mesmo tempo sinalizador da possibilidade de superação do mesmo e produção do novo. Este ultrapassamento da repetição pelo novo é justamente o limiar buscado pela cura psicanalítica que, cabe lembrar, se dá pela palavra.
  • 20
    O conceito de foco narrativo é sistematizado por Leite, L. C. M. (1997).
  • 21
    Para Bruner e Weisser (1995, p. 159): "A transformação histórica desse tipo de autoconsciência no Ocidente constitui o determinante principal da mentalidade moderna - as formas do gênero autobiográficos por ele produzidas. Nessa avaliação, o declínio da servidão e do feudalismo, as abstrações inerentes ao uso do dinheiro e a idéia de excedente de recursos e reservas podem ter provocado um impacto sobre essas formas orais e altamente passíveis de interpretação, o mesmo tipo de impacto já provocado pela cultura escrita".
  • 22
    Concordo com Bruner e Weisser (1995, p. 145) quando consideram: "A estratégica tarefa do contar - seja a história contada para consumo próprio ou de outrem, e as duas coisas sempre acontecem - é tornar a narrativa crível. Criar essa narrativa não significa mentir deliberadamente ou, como devem fazer os escritores de ficção, usar um fragmento da memória para a elaboração de uma história; ao agirmos assim, buscamos uma verossimilhança que satisfará a nós e a nossos ouvintes".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      Jul 2003

    Histórico

    • Aceito
      15 Maio 2003
    • Recebido
      25 Abr 2003
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