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Alimentação, sociedade e cultura

RESENHAS

CONTRERAS, Jesús; GRACIA, Mabel. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011. 496 p.

Rodrigo Araújo Maciel

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

Embora a antropologia da alimentação seja um campo que vem se consolidando gradativamente desde meados da década de 1960, algumas das obras mais referenciadas ainda não encontram tradução para o português. Esse era o caso do livro Alimentação, sociedade e cultura, de Jesús Contreras Hernández1 1 Graduando em Ciências Sociais, Formado em Filosofia, atualmente é professor de Antropologia Social na Universidade de Barcelona. e Mabel Gracia Arnáiz,2 2 Professora de Antropologia Social na Universitat Rovira i Virgilli. até o ano de 2011. Lançado na Espanha em 2005 com o título Alimentación y cultura: perspectivas antropológicas, este livro, originalmente elaborado para os estudantes dos vários escopos que se debruçam sobre o comer, reforça a constatação de que as pesquisas na área da alimentação têm crescido também no Brasil.

Dividido em sete capítulos principais, além da introdução e epílogo, a obra pretende esmiuçar as possibilidades e principalmente as necessidades de diálogo entre antropologia, sociologia, nutrição, gastronomia, entre outras disciplinas, que se dedicam à alimentação humana. As (graves) consequências dessa compartimentação disciplinar refletem-se nas lacunas constatadas não só pelas pesquisas como na aplicação de ações relacionadas ao tema, conforme ressaltam Denise Oliveira e Silva e Maria do Carmos Soares de Freitas na nota elaborada para abertura da edição brasileira, pois: "A desconsideração das questões culturais vinculadas a alimentação e nutrição favoreceu por muito tempo o desperdício de recursos públicos." (p. 12).

Essa falta de reflexão por parte de alguns profissionais vem modificando-se, e nesse sentido a contribuição do livro de Contreras e Gracia não é só grande como também um indicativo de que essa postura não é mais aceita consensualmente pelos seus pares. Chamando a atenção para o viés quase exclusivamente epidemiológico com que a nutrição acabou por se revestir desde a sua estruturação enquanto especialização no inicio do século XX, os autores encontram ali uma oportunidade de construir uma ponte mais sólida para as trocas de saberes possíveis e assim conceber a alimentação como um fato "biopsicosocial" – sendo esses os principais tópicos abordados no quinto e sexto capítulos do referido livro, chamados "Corpos, dietas, culturas" e "Segurança e insegurança alimentar".

No primeiro capítulo, intitulado "Teorias antropológicas sobre a alimentação", é apresentado de forma acessível um mapeamento geral da antropologia social onde se sublinham os momentos em que a comida e o comer foram abordados e problematizados pela disciplina. O que configura por si só uma tarefa árdua, uma vez que não existe uma sucessão linear de discursos e correntes de pensamento, coexistindo inúmeras concepções e interpretações no mesmo intervalo temporal. Passa-se assim de forma breve, mas ainda consistente, pelas diversas correntes emergentes desde os finais do século XIX na antropologia e nas ciências sociais em geral, tais como os enfoques dados pelo funcionalismo, estruturalismo, semiologia, culturalismo, materialismo, fenomenologia, entre outras vertentes que privilegiaram em maior ou menor grau o tema.

Além de lançar uma panorâmica esclarecedora sobre o estado da arte, que vai dos estudos que precedem o de Audrey Richards (2005) até pesquisas mais recentes no campo da alimentação, contribuindo para o entendimento dos caminhos para os quais se enveredaram os estudos na área, o que se revela como mais significativo é a defesa do método etnográfico na realização dessas pesquisas, confrontando diretamente a exclusividade dada em alguns casos ao método quantitativo, adotado por excelência em levantamentos estatísticos que ignoram especificidades não menos importantes.

Seguindo nesse estabelecimento de contato entre os distintos enfoques, no segundo e terceiro capítulos, denominados respectivamente de "A alimentação humana: um fenômeno biocultural" e "Os condicionamentos contextuais e a variabilidade cultural dos comportamentos alimentares", observa-se que o intuito maior reside em borrar as fronteiras entre o dualismo biológico/social, principalmente quando entendido que a hierarquização de importâncias, privilegiando um dos escopos em detrimento do outro, acaba por deformar as percepções possíveis do próprio objeto, culminando na obtenção de resultados problemáticos.

Nesses dois capítulos é que percebemos mais nitidamente o quanto a contestação desses binarismos visa apenas diminuir o fosso entre tais aspectos, sem superá-los completamente. Dessa forma, por vezes, a crítica tecida ali acaba contraditoriamente reforçando os lugares ocupados por esses polos. Entendido que o objetivo não repousava sobre a superação de tal questão, não cabem maiores questionamentos quanto à propriedade das digressões apresentadas. Mas também entendido que as teorias antropológicas contemporâneas não mais se assentam nas dicotomias expressas, como aquelas que pautaram parte das elucubrações de Lévi-Strauss, por exemplo, não deixa de ser interessante pensar, mesmo com a certeza de não encontrar uma resposta definitiva: em qual medida se fazem ainda pertinentes questionamentos como esses para o campo das ciências sociais atualmente?

Chega-se assim ao quarto capítulo da obra, "Alimentação, sociedade e distinção social", onde fica claro como os sistemas alimentares – realidades complexas e dinâmicas – são operados pelos atores, explicitando dessa forma o quanto a comida comunica no contexto social. Calcado principalmente nas noções apresentadas pelo cientista social francês Pierre Bourdieu (2007), nesse caso a alimentação humana se configuraria como mecanismo simbólico sociocultural que serve para classificar e estratificar, gerando a partir daí categorias oscilantes. As constatações ali apresentadas aproximam-se e complementam o conteúdo trazido a lume em livros como o de Massimo Montanari (2008), Comida como cultura, entre outras obras que abordam a temática e já circulam em português.

Questões como gênero, idade e hierarquia social são então conciliadas na perspectiva da análise, onde se observa que a comida (entendida em suas múltiplas manifestações) denota e acusa questões simbólicas que transcendem a materialidade estrita, operando assim como uma espécie de gramática que significa e explica, além de nutrir e satisfazer fisiologicamente.

Dessa forma, embora trate mais propriamente de exemplos tirados do panorama europeu e norte-americano, devido às especificidades contextuais onde se encontram inseridos os autores, o livro consegue dar conta de uma variedade ampla de assuntos relacionados à alimentação que dialogam com a realidade brasileira. Finalizando com um destaque à globalização alimentar, o consumo e as identidades construídas nacional e regionalmente, a "Síntese", que funciona também como sétimo capítulo complementar, consegue ligar de forma clara as inúmeras conclusões apresentadas ao longo dos extensos capítulos que a antecedem.

A obra aqui tratada consegue alcançar o propósito ao qual se dedica, suprindo satisfatoriamente as brechas que a "Introdução" acusa existir e persistir no meio acadêmico. Servindo como prisma novo para se observar algumas paisagens desgastadas, Contreras e Gracia conseguem sair da superfície, atingindo uma profundidade analítica sem, contudo, cair em um texto hermético. Sendo assim, Alimentação, sociedade e cultura aparece como ponto de partida seguro para "iniciantes", além de referencial substancial para "iniciados", agregando conhecimentos relevantes a bibliografia especifica sobre o tema.

  • BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2007.
  • MONTANARI, M. Comida como cultura São Paulo: Senac, 2008.
  • RICHARDS, A. Hunger and work in a savage tribe: a functional study of nutrition among the Southern Bantu. London: Routledge, 2005.
  • 1
    Graduando em Ciências Sociais, Formado em Filosofia, atualmente é professor de Antropologia Social na Universidade de Barcelona.
  • 2
    Professora de Antropologia Social na Universitat Rovira i Virgilli.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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