Open-access Vingança e territorialidade tikmũ,ũn

Resumo

Neste artigo, retomo a aproximação feita por Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro entre vingança e temporalidade para introduzir um terceiro elemento nessa díade que é a territorialidade. Isso será feito a partir da etnografia dedicada aos povos tikmũ,ũn-Maxakali buscando analisar três perspectivas diferentes. Em primeiro lugar, observo as dinâmicas vindicativas no interior da socialidade tikmũ,ũn. Em segundo lugar, analiso como a vingança memoria relação com lugares específicos por meio de cantos e narrativas. Por fim, mostro como pessoas tikmũ,ũn respondem ao contexto de práticas de violência interétnica acionando o idioma da vingança. Nesse ínterim, argumento que a vingança funciona como um dispositivo que freia a possibilidade de se ter direito sobre a vida e a morte de outrem. Tal dinâmica possibilita a socialidade tikmũ,ũn a não entrar no território da necropolítica, buscando viver um outro território existencial.

Palavras-chave:
vingança; territorialidade; tikmũ,ũn; Maxakali

Abstract

In this article, I return to the approach made by Carneiro da Cunha and Viveiros de Castro between revenge and temporality to introduce a third element in this dyad, which is territoriality. This will be done based on ethnography dedicated to the Tikmũ,ũn-Maxakali people, seeking to analyze three different perspectives. Firstly, I observe the vindictive dynamics within Tikmũ,ũn sociality. Secondly, I analyze how revenge memories relate to specific places through songs and narratives. Finally, I show how people respond to the context of practices of interethnic violence by activating the language of revenge. In the meantime, I argue that revenge works as a device that stops the possibility of having the right to the life and death of others. Such dynamics enable sociality not to enter the territory of necropolitics seeking to live in another existential territory.

Keywords:
vengeance; territoriality; tikmũ,ũn; Maxakali

Introdução

Pessoas indígenas tikmũ,ũn, mais conhecidas pelo etnônimo Maxakali, habitam algumas aldeias na porção nordeste do estado brasileiro de Minas Gerais não muito distante da fronteira com o sul da Bahia. Ali, alguns pajés narram a seguinte história:

A mãe dos putuxop [coletivo-espírito-papagaio] sempre chorava quando eles chegavam em um novo lugar. Kû kû kûm… kû kû kûm…, ela fazia, dizendo que ali alguém havia matado um de seus parentes. Os filhos sempre diziam à mãe que parasse de chorar e dissesse logo quem encheu barriga comendo o pai. Primeiro encontraram uma sucuri que matou seu pai. Apesar disso, mesmo que a mãe advertisse sobre os perigos, os irmãos putuxop foram onde ela estava e foram cercados por ela. O mais velho conseguiu, com os dentes de sua flecha, fazer cócegas em seu ventre, fazer com que a sucuri levantasse e todos pudessem sair do círculo fechado por ela. Depois, flecharam a sucuri, cortaram-na em pedaços e levaram para a mãe cozinhar. Enquanto a mãe cozinhava, eles cantavam:

Eu e meu irmão matando a sucuri, estamos matando a sucuri,
estamos matando a sucuri, dia rai aa…
eu e meu irmão matando a sucuri,
estamos matando a sucuri…

Quando se mudaram novamente, a mãe chorou e contou que a cobra-cega havia matado seus parentes. Os putuxop foram atrás da cobra-cega. Ela saiu de dentro da terra, debaixo de um cará grande. Ela logo matou um dos irmãos putuxop. O irmão mais conhecedor fez vários feitiços e seu irmão ficou bom. Logo atiraram a flecha na cobra-cega e a mataram. Era uma cobra-cega gente, que parecia índio. Levaram para a mãe, que cozinhou, mas mostraram primeiro para a mãe a minhoca pequena e a mãe disse que não era aquela que havia matado o pai. Deram então o “bicho verdadeiro” e enquanto a mãe cozinhava, os putuxop cantavam:

Minhoca-gente sai de dentro da terra e mata,
a minhoca-gente sai de dentro da terra e mata, ai dia a bia ai…

Foram embora novamente e a mãe chorou. Ela disse que foi a lacraia que matou seus parentes. os putuxop foram procurar a lacraia e a viram correndo atrás dos quatis e das antas. Os putuxop mataram a anta e esconderam da lacraia. Quando ela veio, pediu as partes. Um dos putuxop jogou a cabeça da anta com muita força na cabeça da lacraia e a matou. Levaram para a mãe, que cozinhou enquanto eles cantavam:

Filhote de anta fêmea, todo pintado,
filhote de anta fêmea, patas cozidas todas arregaçadas

A epopeia segue com os irmãos do povo-papagaio se deslocando por diferentes lugares onde encontravam “povos” intentando vingar a morte do seu pai. Os afetos e a intuição da mãe dos putuxop são seus guias.1

Inicio o artigo com essa narrativa, pois ela condensa os dois pontos principais que pretendo tratar. De um lado, intento lançar um olhar para o lugar da vingança nos meandros da socialidade tikmũ,ũn e, por outro, busco analisar a territorialidade tikmũ,ũn através da vingança. Partindo desses dois lugares, a narrativa acima delineia alguns dos elementos em torno da noção de vingança e territorialidade da perspectiva tikmũ,ũn. Procuro levar adiante a hipótese levantada por outros pesquisadores que se debruçaram sobre o mito acima apresentado, de que há uma relação intrínseca entre deslocamento, vingança e guerra no interior da socialidade tikmũ,ũn (Ribeiro, 2008; Romero, 2015a; Tugny, 2011a). A proximidade entre os temas evoca claramente o artigo “Vingança e temporalidade: os Tupinambás” de Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro (1986). Minha aposta é a de que Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, ao falarem da vingança Tupinambá, evocam uma temporalidade que emana das afecções que atravessam os corpos guerreiros Tupinambá. Essa temporalidade perpassa os movimentos entre diferentes grupos inimigos e é por meio das imagens que emanam da relação entre esses grupos que é possível sustentar uma noção de memória. Uma vivência que é memoriada através da relação entre grupos inimigos, pela qual encontramos na socialidade Tupinambá uma subordinação da “espacialidade à temporalidade na morfogênese [onde] a memória aparecerá como o meio e o lugar por excelência de efetuação social” (Carneiro da Cunha; Viveiros de Castro, 1986, p. 75). De modo semelhante, Anne-Christine Taylor (1997, p. 10, tradução minha) sugere que a

história Jivaro se tece […] entre o apagamento das vidas e a lembrança dos homicídios, entre o esquecer dos parentes mortos pela memória dos parentes próximos mortos por não parentes, entre a obliteração do destino dos grandes homens e sua posteridade pela figura do inimigo, através das recitações dos inimigos.2

Realizando um esforço imaginativo para além do material mencionado, fico a me perguntar que tipo de relação com os lugares e com a terra existiria entre os diferentes grupos Tupinambá nos intervalos do contratempo diante da subordinação da espacialidade à temporalidade. Que tipo de afecção emana entre uma guerra e outra? A tentativa de tratar desse esforço especulativo neste artigo ocorrerá através da etnografia dedicada aos povos tikmũ,ũn, que, embora não sejam um povo Tupi mas classificado dentro do tronco linguístico Macro-Jê, sempre estiveram a meio caminho entre a costa e o interior das Minas Gerais (cf. Campelo, 2009, p. 14-26; Pires Rosse, 2007, p. 29). Entre uma proximidade de guerras com povos Tupi e um contínuo deslocamento pela Zona Tampão situada nos limites entre os estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia (Mattos, 2002; Paraíso, 2014). É digno de nota, como salienta Campos (2009, p. 30), que algumas palavras entoadas dentro dos cantos advinham de vocábulos Tupi. Por essas e outras que decidi começar este artigo com a narrativa acima, que trata de vingança e antropofagia. Se, como sugerem Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro (1986, p. 66), a vingança aparece como algo que não tem fim mas também não tem começo, tendo seu ponto de partida em um lugar puramente virtual, nosso ponto de partida, como vimos, são as vinganças realizadas pelo povo-espírito-papagaio em diferentes lugares no tempo e no espaço. Assim, embora não encontremos uma elaboração ritual de morte do inimigo no pátio da aldeia aos moldes Tupinambá (cf. Carneiro da Cunha; Viveiros de Castro, 1986; Calavia Sáez, 2020, 2024; Sztutman, 2005), a narrativa acima evoca o discurso da vingança do inimigo e a sua ingestão como bem o fizeram Tugny (2011a, p. 38) e Ribeiro (2008, p. 106).

Mas o ponto que gostaria de sublinhar é que, se putuxop se movimenta em direção a diferentes aldeias de “inimigos”, temos aí um processo de relação e memória com a terra. Como sugere Ribeiro (2008, p. 106), na narrativa de putuxop “a vingança, juntamente com a caça, é apontada como o elemento detonador dos deslocamentos”. De tal modo, o desejo e o afeto atravessado pela vingança mobilizam o deslocamento dos personagens por diferentes lugares. Cada lugar guarda uma relação com um ser diferente e em cada lugar se vivencia uma perspectiva diferente com relação a cada povo por onde os putuxop se deslocam (cf. Tugny, 2011a, p. 36, 37). Desse modo, a vingança mobiliza o movimento e ao mesmo tempo a memória, que emana através dos cantos quando se come os inimigos. Vista dessa forma, a vingança memoria uma relação com outrem através dos cantos, assim como aciona a relação dos personagens com lugares específicos. É dentro dessa dimensão que pretendo tratar a relação entre vingança e territorialidade no contexto tikmũ,ũn.

O desafio do artigo, portanto, é duplo. Um, retomar o conceito de vingança para lançar um olhar sobre o seu lugar na socialidade tikmũ,ũn, e dois, evidenciar as formas tikmũ,ũn de produzir territorialidade por meio da vingança. Entendo que, com isso, a vingança cria memória através de uma relacionalidade (Carsten, 2011) específica com a terra, dando forma e estética (Strathern, 2015, p. 267-268) para os nós que diferentes pessoas tikmũ,ũn teceram com os lugares. Se como sugere Ingold (2015, p. 227) todos os lugares “como um conjunto de coisas, é um nó de histórias”, a relacionalidade que emana de determinados lugares habitados por pessoas tikmũ,ũn sugere uma densidade de histórias.

Dito isso, proponho neste artigo tratar de três argumentos em torno da noção de vingança no território existencial tikmũ,ũn (Glowczewski, 2015, p. 25; Guattari, 1992, p. 26). No primeiro argumento, defendo que a vingança dentro da perspectiva relacional aparece enquanto um dispositivo capaz de impedir a eclosão de uma guerra, explicarei isso mais adiante em detalhes. O segundo argumento que apresento é o de que a vingança aparece enquanto um dispositivo capaz de memoriar uma territorialidade específica tikmũ,ũn. Como sugere Ingold (2015, p. 219), a densidade da malha de um lugar se faz por meio de nós de história, e quanto maior a densidade histórica, mais entrelaçado é o emaranhado da malha que compõem os nós. Para observar isso, trarei como exemplos narrativas de atos pelos quais a vingança aparece como idioma de guerras memoriada através de histórias, cantos e rituais. Um terceiro argumento que pretendo explorar no artigo é o de que a vingança parece sugerir uma outra ética política para a vida e para morte, apontando para um caminho diferente da necropolítica descrita por Mbembe (2018), praticada pela máquina de captura estatal (Deleuze; Guattari, 1997). A vingança parece justamente lembrar aos corpos tikmũ,ũn da problemática de se ter direito sobre a vida e a morte de outrem presente na soberania estatal (Foucault, 2004).

Metodologia da pesquisa empírica

Para estruturar esses três argumentos, o caminho etnográfico que pretendo trilhar neste artigo parte de três eventos da história recente tikmũ,ũn. Em quase todos esses eventos estive em campo vivendo-os de maneira próxima com os grupos tikmũ,ũn. Para alguns deles, me apropriarei da descrição de outros colegas. O material empírico que será apresentado aqui é alicerçado em um trabalho de campo realizado para o meu doutorado durante os anos de 2014, 2015 e 2016, somando ao todo algo como 14 meses de trabalho. Procurei ao longo desse período percorrer diferentes aldeias tikmũ,ũn, intentando realizar um levantamento genealógico exaustivo do maior número possível delas. O objetivo era buscar conhecer a memória de deslocamento dos grupos por meio da circulação de cantos dos yãmĩyxop (coletivo-espírito) em seus corpos, uma vez que os cantos são elementos importantíssimos para a fabricação do corpo da pessoa tikmũ,ũn (Álvares, 1992). Diante disso, buscava entender a história dos grupos tikmũ,ũn por meio dos cantos para responder à pergunta: como os grupos tomam forma (Calavia Sáez, 2013; Wagner, 1974) e se tornam visíveis através dos cantos e da relação com os yãmĩyxop? Metodologicamente, buscava atravessar os pontos relacionais da rede genealógica com linhas de vida de pessoas e grupos (Ingold, 2007, p. 117-119, 2015, p. 219). Isso me conduziu para narrativas de deslocamento tikmũ,ũn entre os estados de Minas Gerais e Bahia e para narrativas sobre lugares onde os grupos tikmũ,ũn residiam e que ficaram fora do processo de demarcação das suas terras. Com isso, ao percorrer várias das aldeias tikmũ,ũn, realizei em conjunto com diferentes atores tikmũ,ũn mapeamentos participativos dos lugares onde seus antepassados viveram. Esses mapas foram entregues para a Funai em 2015, durante a conferência nacional de política indigenista no seu momento de realização nas aldeias tikmũ,ũn.3 Assim, boa parte das narrativas que serão aqui apresentadas ou foram realizadas no âmbito dessa busca ou pelo interesse na questão da territorialidade tikmũ,ũn. Todo o material foi narrado na língua tikmũ,ũn e em seguida traduzido para o português, sempre acompanhado de algum pajé ou professor bilíngue. Não serão exploradas aqui todas as narrativas e cantos, apenas aquelas que concernem e tratam do tema da vingança, que apareceu em algumas delas. Serão abordadas ainda histórias recentes de vingança dentro do grupo que culminou em guerras e ainda reflexões de pessoas tikmũ,ũn sobre o lugar da morte quando pessoas tikmũ,ũn são assassinadas por não indígenas. Serão mescladas para desenvolver tal abordagem narrativas colhidas por mim e por outros pesquisadores, devidamente referenciadas ao longo do texto. Poderíamos então sinalizar três movimentos ao longo do artigo, um primeiro que procura observar o lugar da vingança dentro de uma ética e moralidade tikmũ,ũn observadas dentro do âmbito das relações interpessoais. Em um segundo momento, procuro observar o lugar que a vingança ocupa enquanto dispositivo de criar vínculos e relação com lugares específicos, e, por fim, trago exemplos da vivência tikmũ,ũn em meio à violência imposta pelo processo colonial. Por meio dessa dinâmica, procuro observar o tipo de territorialidade que emana daí e como a vingança pode ser acionada como dispositivo ético para a pessoa tikmũ,ũn questionar a sua existência diante violência imposta a seus corpos.

Desenvolvimento: parte I - a vingança na socialidade tikmũ,ũn

Em julho de 2005 viajei até a terra indígena Maxakali acompanhando a equipe do Laboratório de Etnomusicologia da UFMG. Na ocasião, um importante professor indígena passava boa parte do tempo embriagado. Entendendo que se tratava de um processo individual e que em breve a bebedeira iria passar, continuamos com as nossas atividades seguindo o cronograma proposto. Entretanto, um dia estávamos em nossa casa e ouvimos um choro solitário que atravessou a sonoridade costumeira da aldeia. Era o lamento de uma mulher diante de uma pessoa tikmũ,ũn morta. A esse lamento foram se somando outras vozes femininas, tornando-o mais intenso. Resolvemos ocupar a parte exterior da casa para entender o que se passava, e vimos que muitas mulheres se dirigiam à casa do professor. Poucos minutos depois, o cacique se dirigiu até nós e disse: “Fiquem tranquilos, um grupo foi atrás dele e será morto.” Algumas horas depois, um grupo de homens retornava com sacos onde no seu interior estavam partes esquartejadas do corpo do professor. Na época, não entendi exatamente o que estava por trás dessa afirmação. Um segundo evento pode nos dar pistas sobre o que poderia estar por trás do comentário.

Alguns meses depois do ocorrido acima eclode um conflito que envolveu praticamente todos os grupos tikmũ,ũn (cf. Álvares, 2018, p. 132-136; Nacif, 2005; Vieira, 2006, p. 67-79). A síntese do episódio me foi assim descrita por um interlocutor (os nomes das pessoas envolvidas foram suprimidos):

Alguns anos atrás ocorreu um problema lá no Pradinho, naquele lugar conhecido como Mĩkax kaka teve um indígena que matou outro lá. Eles moravam na aldeia conhecida como Vila Nova. Depois o grupo da pessoa morta queria que se matasse o assassino, mas o grupo dele se deslocou para Água Boa e morou durante um tempo na aldeia da minha cunhada. Depois disso, veio o chefe da Funai e falou que iria demarcar uma terra. Tinha também um padre do Cimi que morava aqui dentro e falou para a minha cunhada ir morar nas terras da fazenda de Valdomiro, em uma área que foi habitada no passado por seus parentes. De fato, esse lugar era onde morou os pais dessa minha cunhada. Eles queriam que a Funai conseguisse uma terra lá. O padre Lucimar comprou lona para fazer barraca, chamaram uma Toyota e levaram os indígenas para lá. Eles permaneceram por lá durante um tempo. Eles voltavam para ver a roça e as casas deixadas para trás. Entretanto, tinha um pessoal que bebia e xingava o grupo da minha cunhada e também o grupo que veio do Pradinho fugido. Um dia, vários tikmũ,ũn foram para Santa Helena de Minas e retornaram em um caminhão. Tinha uma pessoa que veio sozinha, era de uma outra aldeia da localidade de Água Boa. Não sei por quais razões um indígena do grupo da minha cunhada matou ele e fugiu. O grupo do falecido veio para tentar matá-lo, mas ele não estava e fugiu. Com raiva, mataram o irmão da minha cunhada que estava bem ali na estrada. O irmão da minha cunhada Jupi foi tentar conversar, para dizer que estava tudo em paz, que eles iriam pegar o rapaz que matou a pessoa do outro grupo. Mas eles não quiseram escutar. Mataram o irmão da minha cunhada e logo depois mataram outro membro do grupo da minha cunhada. Cortaram vários pedaços dos corpos e deixaram na estrada. O grupo da minha cunhada soube que os outros queriam ir atrás ainda e fugiram para a fazenda de Valdomiro. Num dia, foram todos para a feira de Santa Helena de Minas aqui perto. Lá fizeram problema, beberam muita cachaça e alguns diziam para os outros: “Eu vou te matar.” Meu irmão estava lá. Um membro, do grupo do Pradinho que estava refugiado na aldeia da minha cunhada matou a sua esposa depois de beber muita cachaça. A filha desse meu irmão e ele ficaram com muita raiva. Num outro dia esse meu irmão foi para Santa Helena de Minas e lá ele matou o pai do assassino da sua esposa. Em Santa Helena de Minas pegou um carro e retornou, mas desceu antes de chegar na aldeia. Alguém vinha e falou: “Vamos cortar caminho pela fazenda de um não indígena.” Mas o próprio grupo pegou e deu um jeito de matar esse meu irmão. Depois disso, avisaram lá no Pradinho. Eles vieram para acertar as contas com aquele que causou problema lá. Vieram armados com flecha e espingarda, mas antes da guerra tomar proporções maiores, a polícia veio e levou os indígenas que estavam no Valdomiro lá para o município de Santa Helena de Minas. Ficaram um tempo em um campo de futebol perto de Machacalis. Depois a Funai comprou um ônibus e os levou para Campanário. A terra era ruim e foram para a terra atual perto de Ladainha, quase em Teófilo Otoni [MG]. Depois conseguiram uma terra para o grupo fugido do Pradinho nas proximidades de Topázio, também perto de Teófilo Otoni.

Ambos os episódios apresentados acima apontam para a importância ocupada pela vingança no interior da socialidade tikmũ,ũn. Enquanto o primeiro episódio parece apontar para uma espécie de ponto final numa possível sequência de ciclos de vingança, no segundo caso o que vimos foi exatamente o contrário. A fuga do grupo de assassinos para uma outra aldeia desencadeou uma longa sequência de assassinatos que continuam vivos na memória de praticamente todos os grupos tikmũ,ũn. De tal modo que, talvez, o “fiquem tranquilos” queria nos dizer que com a morte do assassino não seria desencadeado um conflito maior entre os grupos tal como ocorreu no segundo episódio. Matar alguém no contexto tikmũ,ũn aponta portanto para uma guerra em potencial, para a abertura de um ciclo de vingança entre diferentes grupos. A fala apresentada acima é repleta desses episódios. Álvares (1992, p. 51-52) nos lembra que “os conflitos geram uma cadeia de vingança entre os membros dos grupos envolvidos que se prolongam por vários anos, até que estes se afastem espacialmente de forma radical”.

É dentro dessa lógica que parece se inserir a afirmação de algumas lideranças na época do conflito, que diziam “quero que a Funai leve esse pessoal para o Rio de Janeiro”. Essa resposta coincide com uma forma tikmũ,ũn de viver as suas relações com a terra e as suas relações internas. Confinados em uma área aproximada de 6000 hectares, a Terra Indígena Maxakali impõe um limite aos diferentes grupos tikmũ,ũn de viverem essa dinâmica de afastamento diante de conflitos graves. Essa perspectiva está no cerne da dinâmica do território existencial tikmũ,ũn, a guerra e vingança é um impulso para os grupos se espalharem pelo território. O movimento centrífugo que ocorria no passado, que possibilitava os diferentes grupos tikmũ,ũn desenvolverem uma territorialidade espraiada ao longo dos vales dos rios Jequitinhonha, Mucuri e Doce pelos estados da Bahia, Minas Gerais e Espirito Santo (Paraíso, 2014), ainda é operacionalizado dentro de uma pequena área demarcada. A multiplicação de aldeias no interior da Terra Indígena acontece devido aos conflitos internos aos grupos, mas quando o conflito toma dimensões mais graves, como no relatado acima, apresenta-se como uma forma do grupo de forçar o Estado a agir para resolver um problema interno, mas que aponta ao fim para um problema que é territorial .4

É digno de nota que, em muitas das narrativas que colhi ao longo do meu trabalho de campo sobre os deslocamentos no passado, empreendidos por pessoas e grupos tikmũ,ũn, era comum iniciar a narrativa dizendo que em um determinado lugar um grupo de pessoas fez “coisa ruim” (hãm kummuk mĩy) e começaram a se deslocar. Vingança e territorialidade está portanto no cerne da memória e do tempo da história tikmũ,ũn. Mas se ela está na memória dos grupos tikmũ,ũn, quais são as formas de memoriar relação com lugares, pessoas e grupos? Retomando a narrativa inicial, vimos que, à medida que comiam seus inimigos, os espíritos putuxop entoavam cantos. Os cantos, portanto, parecem ocupar um lugar central nas formas de memoriar e atualizar relação com lugares e eventos.

Desenvolvimento: parte II - vingança, memória e territorialidade

Em uma densa e sofisticada etnografia sobre os afetos e a memória que permeia as relações de parentesco, os processos de fragmentação e multiplicação de nomes, grupos e subgrupos entre os Yaminahua de Raya, no Peru, Naveira (2007, p. 230), sugere que “a memória dos conflitos (quem matou quem) é também a memória do parentesco […] O nexo vindicativo e o nexo do parentesco são providos de uma força que conclama, além de sua memória, sua atualização.” O autor traz como evidência para dar forma aos afetos e à memória os cantos yama yama performados no cotidiano Yaminahua (Naveira, 2007, p. 233). De modo análogo, pessoas tikmũ,ũn possuem cantos que sustentam densas narrativas que memoriam a relação de seus antepassados com lugares específicos, bem como narrativas de histórias de vingança.

Minha aposta aqui é a de que esses lugares cantados não são só “espaço” (Casey, 1996; Ingold, 2015). Os lugares da perspectiva tikmũ,ũn apresentam uma temporalidade que atravessa seus corpos por meio daquilo que chamamos comumente de rituais. Os cantos, então, quando são entoados nas aldeias através dos rituais com os yãmĩyxop (cf. Campelo, 2009, 2018; Pires Rosse, 2013), densificam os nós de relação entre pessoas tikmũ,ũn e os lugares, conectando humanos e outros que humanos, passado e presente e todos aqueles que puderam ou não estar lá. Assim, a territorialidade (Amoroso; Viegas; Vieira, 2015) através dos yãmĩyxop sugere tanto a possibilidade de vivência-construção de lugar como a construção de pessoas por meio da circulação de cantos (Álvares, 1992; Tugny, 2011a). Se entendemos que a pessoa tikmũ,ũn ao longo da vida adquire cantos e que esses cantos são passados através das relações de parentesco (Álvares, 1992; Campelo, 2018), a relação com os lugares atravessa o corpo e o parentesco tikmũ,ũn de modo próximo ao que Coelho de Sousa (2018) defende para os Kisêdjê. Nesse sentido, o paisagear (Cardoso, 2016, p. 40) tikmũ,ũn através dos cantos dos yãmĩyxop cria vínculos com os espíritos e densifica relações com os lugares por meio do próprio parentesco e da circulação de cantos. Assim, seguindo Ingold (2007), diferentes tipos de prática transformam o espaço abstrato em lugar praticado, habitado e vivido. Da perspectiva tikmũ,ũn, viver e habitar esses lugares é tornar visível a memória de histórias de vingança do passado atualizadas por meio dos rituais, dos cantos, das narrativas, dos sonhos e por meio dos deslocamentos nos dias atuais pelo território, demarcado ou não (cf. Campelo, 2018; Estrela da Costa, 2022; Tugny, 2011a).

Assim, retomando os meandros da guerra ocorrida em 2005, foi mencionado acima a existência de um lugar onde um dos grupos tentou realizar uma retomada, que é conhecido como Tehakohit. Ali é um exemplo onde encontramos essa relação intrínseca entre lugar, cantos e narrativas de vingança. O diagnóstico fundiário de Rodrigo Thurler Nacif (2005, p. 20), solicitado pela Funai naquela ocasião, dá o seguinte testemunho:

No passado, os parentes de Isabel [mãe de Noêmia Maxakali, líder do grupo] deixaram temporariamente esta última área [Tehakohit] para realização dos rituais aos Yamïyxop [povos-espírito]. Seus irmãos Luizinho, Totonho [Tatônio] e Dominguinho foram mortos, e Isabel não pode voltar. Luizinho foi morto por vingança da família de Mariazinha, sua esposa, que ele espancou até a morte, estando ambos embriagados. Dominguinho foi acusado de feitiçaria, onde teria provocado duas mortes, ato implicado a uma questão de direito a uma área de plantio. Totonho, seu irmão, também envolvido, atirou no braço de Zezinho, rival na questão, junto com seu irmão Alqueirinho, que mataria por sua vez os dois irmãos de Isabel. […] Dona Isabel ficou então morando em Água Boa, […] aquele território, apesar de ser terra devoluta no momento em que foi demarcada a gleba Água Boa, em 1941, ficou de fora dos limites reservados aos índios.

Noêmia Maxakali e Sueli Maxakali me relataram que Dona Isabel desejava ser enterrada nesse lugar onde seus antepassados viveram para ali permanecer; entretanto, diante de uma série de conflitos com outros grupos tikmũ,ũn e com fazendeiros locais, isso não foi possível. O topônimo desse lugar é Tehakohit (Terra Corrida) e diversos cantos memoriam as relações tikmũ,ũn passadas com ele. Noêmia Maxakali relata que, além dos conflitos internos relatados por Nacif acima, houve também expulsão tikmũ,ũn por parte dos fazendeiros locais:

Tem o canto de kokex [cachorro] que saiu em Tehakohit é o canto [entoado pelos po’op (povo-espírito-macaco)]. E tem um pajé mais velho que andou por ali, pegou e deu esse canto para meu tio Dominguinho. E tem outro canto que saiu e é de lá mesmo […] ali onde hoje é a fazenda de Valdomiro. No canto, nossos tios choram de saudade do cachorro dele [explica o conteúdo do canto]. Foi bem ali onde é nossa aquela terra, o canto saiu ali, era da minha mãe. Os brancos mataram alguns de nossos parentes. E atiraram em meus tios com espingarda. E matou e jogou fogo, acendeu e queimou. Depois meus parentes pegaram e foram embora de Tehakohit. Ali eles ficaram no passado. Há um outro canto, porque tinha uma cobra assim e ficou assoviando, assoviando e ele pensou que fosse outra coisa para pegar, matar e comer. Chegou lá e era uma surucucu. Eles foram embora […] E foi ali sim que saíram as coisas na terra do Valdomiro, você entende? Minha mãe não esqueceu, eu não esqueço do que aconteceu lá.

Outras duas localidades são memoriadas e trazem no seu cerne o tema do deslocamento e da vingança. Uma dessas histórias fala de uma série de conflitos internos que ocorreram nas proximidades de Umburaninha, que dista 15 quilômetros da TI Maxakali, em um lugar onde havia uma aldeia tikmũ,ũn e que também ficou fora dos limites da Terra Indígena delimitados pelo Estado brasileiro. Ali, onde hoje é uma fazenda nas proximidades de Batinga, é contada uma história por uma sequência de cantos do povo-espírito-morcego (xunim). A narrativa fala de um antepassado que era um exímio pescador e que tinha ido até o rio Umburanas pescar. Um outro personagem seguiu-o e ficou rio acima com inveja, porque não conseguia pegar os peixes com a mesma maestria que o primeiro. Com raiva, ele acaba assassinando o exímio pescador para pegar os seus peixes. Um terceiro vê o assassinato ocorrer e decide contar aos parentes do falecido para que eles se vinguem. O observador segue até o rio e vê o corpo do morto no fundo. Os espíritos-morcego cantam da seguinte maneira:

Yã hõmã mãhĩy
nũy tu mĩy
Como pode?
Você o matou.
ĩmã kahĩy hã hãm ãnux
eu vi e contarei
ĩmã kahĩy hũ ãmũnnux
eu vi e contarei
Hãm nux yã õm
Falarei a eles
Te ĩxa kax hõm ma
Contarei aos parentes dele

O observador conta aos parentes do falecido e seu filho decide acompanhar um tio paterno e o restante da aldeia em uma busca de pau de sapucaia no interior da floresta. Ali, no meio da busca, ele descobre o assassino e vinga a morte do seu pai. O tio do garoto falou para ele “é assim que deve ser”, depois da morte do assassino de meu irmão. No canto, o assassino pede calma ao filho vingador:

Kax puxe ũm
max mũn hã
Hãm ãpah mãm
Muitas sapucaias
Me escutou
Você escutou e veio
Tak te
Tak te xe,e
Tak te xe
Tak te xe,e
Pelo pai
Pai verdadeiro
Pelo pai
Pai verdadeiro
Mõ hĩynix pu
Hĩy te õm nũ
Hĩy te õm nũ
Hĩy te õm nũ
ãXop kup nox
Ãxop kup nox
Ãxop kup nox
Vá apanhar
Ali onde caíram!
Ali onde caíram!
As duas sapucaias longas!
As duas sapucaias longas!

Os aliados do índio morto vingado no meio dos pés de sapucaia travam uma guerra contra o grupo do pescador morto e começam a atirar flechas na casa de seu filho. O tio lhe diz para dançarem no pátio com os braços abertos para desviarem das flechas até elas acabarem. A casa deles estava protegida com casca de árvore para as flechas não penetrarem. O rapaz sai no pátio e atira flechas no bando inimigo e acaba por matar alguns, dispersando-os. Assim sai o canto que estrutura essa narrativa.

Xatix yã max xe yã yã ka,ok gã
Xatix yã max xa yã ũ ka,ok gã
Fechada com a casca de árvore bem forte
Fechada com a casca de árvore bem forte
Ãxutex mah mõ mah Kayok yõn
hõm ĩta kuxax mũyĩy
Para o alto a flecha foi
para acertar na cabeça do assassino
hax hax
Rraii rraii

O narrador comenta:

Esse é o canto do xoxtupnãg. Foi o espírito-povo-morcego (xunimxop) que tirou. É verdadeira essa história sobre os pés de sapucaia. Meu pai me mostrou quando eu era pequeno. Eu vi, e ele me ensinou esse canto. Ele passou pra mim. Esse canto é meu. Tudo isso aconteceu ali onde hoje é uma fazenda que fica bem pertinho de Batinga e Umburaninha, antes de chegar em Bertópolis, no estado de Minas Gerais, quase na fronteira com a Bahia.

Ao acompanharmos os mapas que foram elaborados sobre esses lugares, percebe-se o movimento de confinamento dos grupos tikmũ,ũn. O território, tal como é descrito por meio dos cantos e de narrativas, é outro, muito maior. De uma maneira geral, as narrativas falam de lugares ocupados por pessoas tikmũ,ũn, e contam que os brancos agiam com violência com relação a essa população, expulsando-a das suas localidades. Isso é reflexo do fato de que as terras tikmũ,ũn foram, ao longo do tempo, tratadas como lugar de negociação e fruto de barganha por parte de fazendeiros locais e posseiros que chegavam de diferentes partes do país. Os municípios da região surgiram a partir das negociatas de “amansadores de índios” com posseiros (cf. Nimuendaju, 1958; Paraíso, 1992).

Notamos, a partir do mapa elaborado, que praticamente todos os lugares de ocupação tradicional tikmũ,ũn estão nas proximidades dos atuais municípios que hoje estão no entorno da TI. As proximidades da beira do Umburanas e do córrego de Água Boa eram habitadas ainda por aldeias de indígenas botocudos. Diferentes pesquisadores tikmũ,ũn relataram-me histórias de conflitos e batalhas com esses povos nas proximidades do município de Machacalis, que dista apenas 35 quilômetros de Bertópolis. Aqui, novamente os ciclos de vingança e guerra são lembrados pelo grupo. Na época, o lugar onde hoje está o município de Machacalis era conhecido como povoado de Sebastião do Norte, ou Córrego do Norte. Para os Maxakali, a região é denominada de Puxap Hep (Lagoa dos Patos).

O médico Péricles dos Santos, que morou e atuou em Machacalis, escreveu em seu livro uma longa narrativa sobre as guerras entre botocudos e grupos tikmũ,ũn. Segundo ele, quem lhe contou a história foi o indígena conhecido como José Cardoso (Papá).

O fato ocorreu no fim do século passado [século XIX], quando se deu a fixação definitiva dos Machacalis no Umburanas. Os descendentes do capitão Ariary andavam inquietos pelas matas do Jitirana, fugindo do branco e da febre terçã, em direção ao Umburanas, procurando um lugar seguro para a taba, um lugar de boa provisão de caça e pesca. Mas, sem serem pressentidos, os Botocudos […] já se encontravam instalados nas margens do Córrego do Norte. Pelos rastros, estes descobriram a aproximação dos Machacalis. Silenciaram! Afastaram as crianças e os cachorros para lugares mais distantes e mais fechados pela floresta e, pacientemente, aguardavam que seus rivais concluíssem suas cabanas e nelas se instalassem. O plano de ataque foi bem urdido. Como sempre, os selvagens preferiam as lutas de emboscadas ou dos embates cruéis no fundo das matas. Aproximando-se sorrateiramente, altas horas da noite, os Botocudos completaram o cerco da taba dos Machacalis. Grandes fogueiras foram subitamente acesas, que, crepitando suas labaredas douradas, reluziam-nas nas fisionomias adormecidas daqueles que se instalaram inseguramente no interior das cabanas, terminadas de construir no dia anterior. Todos a postos! Foi soado o toque bélico do ataque por um atleta botocudo, que soprando com hercúlea força o rabo de um tatu canastra, cujo som marcial ecoou lugubremente pelos labirintos da floresta. Não se pouparia um só inimigo! E dentre as vítimas muitas seriam escolhidas para o festivo banquete dos famigerados Botocudos. A agressão foi bárbara e fulminante. Pelas transparentes paredes das indefesas cabanas, as flechas vazavam-nas facilmente e tomavam a direção certeira dos corpos ainda sonolentos e aturdidos pela inopinada agressão. Nem sequer um esboço de defesa poder-se-ia esperar das vítimas! Mas, num desses recursos providenciais em situações delicadas, três guerreiros da grei dos Machacalis conseguem furar o bloqueio em lugares diferentes, sobraçando destemidamente as armas e sem serem percebidos pelo cruel inimigo. Colocaram-se na retaguarda dos Botocudos e ao longe, escondidos pela tênue silhueta das sombras das árvores, divisam sob o reflexo dos clarões, das fogueiras o alvo certeiro de suas flechas - os Botocudos. Da ofensiva, estes, aturdidos, passam à defensiva, sem saberem a quem combatiam, assim como, cada guerreiro Machacalis desconhecia quem o auxiliava no ataque, pois cada um dos três escaparam ao cerco não tinha conhecimento dos companheiros. De quando em vez, a trombeta de tatu soava entre o clarão do fogaréu e as densas trevas, conclamando novos contingentes Botocudos à luta. Estarrecidos ante a defesa rapidamente articulada pelos bravos de Ariary, pela madrugada afastam-se os agressores ressentidos pela derrota sofrida enquanto dois dos Machacalis que sobraram das vítimas e mais 7 mulheres que se esconderam dentro de um monte de palhas choravam copiosamente a morte traiçoeira de seu taba. Em seguida afastaram-se para o córrego Jitirana, onde se uniu a outro aldeamento Machacalis. A consternação foi geral e solidária, jurando a tribo uma cruel desforra em outra oportunidade. Apenas alguns anos se passaram e os Botocudos regressaram às mesmas paragens de antes, nas margens do Córrego do Norte, Município de Machacalis. Dez deles se perderam nas matas, caçando, quando se defrontaram com um grupo de Machacalis. Os olhos destes devem ter sido fuzilados pelo ódio, devido à chacina do córrego do norte. Rapidamente, na consciência rancorosa dos índios, planejou-se com minudencias a vindita. Deliberaram que com o grupo dos Botocudos iria toda a aldeia dos Machacalis cordialmente fazer as pazes, cantar, dançar e caçar. Ao se dirigir para a aldeia dos Botocudos, cada Machacali conduziu um tacape, que ficou ocultamente guardado nas vizinhanças do aldeamento e, em cada cabana do botocudo, hospedou-se uma numerosa família dos visitantes. Durante 10 dias se prolongaram os festejos. Durante o dia se caçava e durante a noite se dançava e cantava. Não se deu trégua aos inimigos, enquanto não fossem abatidos pela exaustão física e pelo desespero psicológico. Antes tinham celebrado um acordo de esconderam as armas, condição que alarmava os Botocudos. Estes pareciam pressentir a catástrofe. Não se podia protelar mais a chacina. Ademais a depressão inimiga alcançara o máximo. Nesta noite fatídica as danças não se prolongaram por muito tempo, e quando os corpos tresnoitados dos inimigos se lançaram nas toscas camas, foram traídos pelo sono profundo. Ao soar um sinal convencional, os Machacalis rapidamente retiraram dos esconderijos as suas armas, cujos tacapes, bramidos com segurança, exterminaram quase todos os Botocudos, escapando ao massacre apenas 5 mulheres que carregaram. […] [uma delas] se uniu a um jovem Machacalis produzindo filhos mestiços… (Santos, 1970, p. 101-103).

Se o canto que saiu em Hãm Yĩn Yũm, mencionado acima, próximo de Umburaninha, traz a perspectiva da guerra e ciclos de vingança interna, em Puxap Hep encontramos algumas narrativas tikmũ,ũn estruturadas por cantos entoados pelos putuxop - povo-espírito-papagaio - os mesmos mencionados na narrativa que abre esse artigo. Como apresentado no início, por meio dos seus deslocamentos, os putuxop cantavam os inimigos mortos. Aqui, putuxop entoa cânticos que memoriam os lugares onde encontraram os seus inimigos botocudos. Delcida Maxakali, uma importante pajé tikmũ,ũn, descreve que

o antepassado viu como eram os botocudos. Estudou bem e viu que eles usavam tiara, uma tiara branca. Os botocudos mataram os tikmũ,ũn antes. O antepassado tikmũ,ũn queria entendê-los, eles usavam tiaras para reconhecerem uns aos outros. Os antepassados tikmũ,ũn se juntaram. Como alguns foram mortos, eles tiveram de se juntar novamente. Aquele que se escondeu na mata pensou: “Nós vamos amarrar nossa cabeça também, para nós podermos parecer com eles, misturar e matá-los.” O antepassado tirou fibra de embira para fazer tiara, quando ela é nova, a fibra fica bem branquinha. O antepassado queria parecer-se com o botocudo, e se misturar. Então ele foi lá, e ficou em um morrinho de terra, igual uma ladeirinha, assim. Ali esperavam, perto do caminho “vamos esperar aqui”, aqui, porque ficaremos parecidos com eles. Eles ficaram lá esperando. Viram uma mulher tikmũ,ũn, os botocudos pegaram ela, cortaram o corpo dela inteiro e depois colocaram sal. Ela gritava muito, tinha um índio botocudo que falou: “Beija-flor eu flecho mesmo.” Eles se aproximaram da aldeia, todos escutavam os gritos da mulher. Um tikmũ,ũn jogou flecha que pegou bem na cabeça do cacique. Eles falaram “nós vamos matar essas pragas”. Tiraram embira e amarraram. Eles esperaram, fizeram arco forte para levar e seguiram à noite atrás dos botocudos. Eles disseram “vamos embora”, eles viram que estava de noite, e foram embora os botocudos. Aí eles estavam esperando, eles fugiram, os tikmũ,ũn fugiram todos. Eles vieram, foram, e foram para casa. Mas os tikmũ,ũn tinham tocaia, e então, tãim, tãim, tãim, jogaram flechas para todos os lados para matar. Os povos-espírito papagaio, gavião e do filamento da mandioca gritavam e jogavam flechas. Os gaviões faziam “aop, aop, aop”, os papagaios, “prr, prr, prr”, o espírito-mandioca “aaaaaahhhh”. Os espíritos aliados matavam os botocudos, eles eram muito fortes, os yãmĩyxop. Não deixaram eles irem embora, e foram, seguiram e mataram os botocudos. Os yãmĩyxop mataram os botocudos todos daquele lugar. Porque eles fizeram tiara e pareceram com os botocudos. Tinha um botocudo deitado, dentro da água, com a cara dentro da água e morto. O antepassado pisava em cima e atravessava o rio, e aí lá os espíritos pegaram a fala dos botocudos. Espírito-papagaio quando vem fazer ritual na aldeia, ao amanhecer o dia, ele vai falar a língua dos botocudos, ele roubou a língua deles. Quando dá de tarde ele começa a cantar, e sai e a mulher joga, empurra, são os botocudos, o yãmĩyxop tomou o ritual deles, empurra e faz ele cair, e vem todo mundo, brigar, e brigam mais as mulheres, imitam eles, os botocudos derrubam as mulheres e diz que matavam os tikmũ,ũn. Junto com os espíritos, tikmũ,ũn matava os botocudos, matavam junto com os espíritos, eles eram muito fortes, os yãmĩyxop não deixaram eles irem embora, e foram, seguiram, e matavam. Tikmũ,ũn junto com os yãmĩyxop mataram os botocudos todos daquele lugar. Porque eles fizeram tiara e pareceram com os botocudos, e mataram os botocudos. Aí tinha um deitado, dentro da água, deitado dentro da água, com a cara dentro da água e morto. O antepassado pisava encima e atravessava o rio, e aí lá os yãmĩyxop, pegaram a fala dos botocudos. Os papagaios [putuxop] quando amanhecer o dia eles vão falar a língua dos botocudos. Eles cantam assim:

kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio pisando
tapu’ux xop
nos inimigos
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio pisando
ax i i ia
tapu’ux xop õm
naquele inimigo
tapu’ux xop õm
naquele inimigo
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio vieram
yak hax hi hia
tapu’ux xop õm
naquele inimigo
tapu’ux xop õm
naquele inimigo
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio vieram
kukxeka xenex nẽ
tapu’ux xop
nos inimigos
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio vieram
kukxeka xenex nẽ
atravessando o rio vieram
yak hax hia
tapu’ux xop
nos inimigos
tapu’ux xop
nos inimigos
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nãmi
atravessando o rio pisando
kukxeka hahi
o rio…
haaaai i i i i
nãm tut max nã
reparando o arco e as flechas
nãm tut max nã
reparando o arco e as flechas
tapu’ux ãpot hã
preparando para o inimigo
nãm tut max nã
reparando o arco e as flechas
punux xeka nãg
o chefe dos papagaios
punux xeka nãg
o chefe dos papagaios
tapu’ux ãpot hã
preparando para o inimigo
tapu’ux ãpot hã
preparando para o inimigo
nãm tut max nã
reparando o arco e as flechas
yak ha ha hax hax hi hia
punux xeka nãg
o chefe dos papagaios
punux xeka nãg
o chefe dos papagaios
tapu’ux ãpot hã
preparando para o inimigo
nãm tut hahi
o arco e as flechas
haaaaai i i i i.5

Essas narrativas parecem sugerir uma proximidade àqueles ciclos intermináveis de vingança Tupinambá, tal como discutido por Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro em “Vingança e temporalidade”. Não me parece que aqui a estrutura da vingança siga unicamente o modelo proposto pela autora e autor do referido artigo, de que “para os Tupinambás, a vingança é propriamente interminável, as relações com os inimigos, entre vários grupos de língua Jê, são ao contrário, pensadas como algo que clama por conclusão” (Carneiro da Cunha; Viveiros de Castro, 1986, p. 71). Os exemplos trazidos até aqui apontam para uma zona intermediária entre uma dimensão e outra. Há um clamor para que a máquina da vingança não se interponha, esperando-se que o grupo do assassino mate-o como forma de justiça pela morte causada por ele. Entretanto, caso isso não ocorra, abre-se para ciclos intermináveis de vingança, como pode-se notar nas diversas narrativas que foram apresentadas até aqui. Até o momento, tratei do lugar da vingança dentro da socialidade tikmũ,ũn. Como sugerem Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1986, p. 71), “a vingança é o fio que une o passado e o futuro e, nesse sentido, vingança, memória e tempo se confundem”. Vimos a importância dos cantos como pontos na memória tikmũ,ũn que une a relação com determinadas pessoas e grupos do passado. Se até o momento foi possível demonstrar que a vingança possui um lugar premente no interior das relações e da história tikmũ,ũn, pretendo agora demonstrar como ela aparece também no discurso tikmũ,ũn ante à necropolítica colonial. Passo para uma descrição etnográfica mais direta, extraída dos meus diários de campo.

Figura 1
Pixo em Ladainha.

Desenvolvimento: parte III - vingança e necropolítica

Nos últimos dias do mês de janeiro de 2015, numa tarde quente do verão brasileiro, o cheiro e o amarelo das mangas impregnam o espaço nas proximidades da Aldeia Verde. Saímos para caçar. Quando regressamos, ouvimos a notícia que Daldina Maxakali havia sido atropelada quando se deslocava em direção ao município de Ladainha. Ela é conhecida na aldeia como uma grande yãmĩixop tut (mãe de espíritos), dona de muitos cantos. Diante da morte de Daldina, pude sentir como a intensidade da morte de uma pessoa impregna os corpos através da dor, dos lamentos, dos deslocamentos ao cemitério, da presença da alma da pessoa morta, a saudade que percorre vivos e mortos, as transformações afetivas da aldeia, a relação com os cantos e com os espíritos e a intensidade das transformações do corpo de uma pessoa falecida. Poucos dias antes da fatalidade, a aldeia vivia momentos de intensa alegria. As expedições de caça, pesca, coleta de manga e mel eram frequentes, bem como sequências de ciclos festivos que eram realizados ininterruptamente.

Foi por volta das 8 horas da noite do dia 30 de janeiro de 2015 que recebemos um telefonema de uma pessoa do município de Ladainha, informando que Daldina fora atropelada logo na entrada da cidade. Apesar do acidente, o motorista da Sesai a tinha conduzido para Teófilo Otoni e disse que ela estava bem. No meio da tarde do dia seguinte o telefone toca e a aldeia recebe a notícia de que Daldina havia falecido.

Aos poucos as lamentações das mulheres aumentam em intensidade. Junto a essa intensidade de lamentos, muitas pessoas começam a deixar as suas casas para se alojarem na casa de parentes próximos. Isael Maxakali, meu anfitrião, me diz que as pessoas não dão conta de dormir nas suas casas. A alma de Daldina iria começar a perambular nas proximidades da aldeia com saudade dos seus parentes vivos. Seus filhos e filhas, que moram em casas nas proximidades da sua, se mudam para a casa do pai, junto com seus cônjuges, filhas e filhos. A casa fica cheia. No dia seguinte Daldina é enterrada. A aldeia vive o luto não trazendo os yãmĩyxop para a kuxex e para a aldeia. Evitam-se atividades esportivas. Evitam-se pinturas que demonstrem beleza em respeito ao luto das pessoas (cf. Álvares, 1992; Campelo, 2018).

Dias depois desse falecimento, lideranças da Aldeia Verde decidem realizar uma manifestação-ocupação em Ladainha, perante o silêncio dos moradores e ao perceberem que nada seria feito quanto ao assassino de Daldina. A realização da manifestação foi divulgada através das redes sociais e contou com a presença de representantes da Funai, Cimi, da Igreja, além de pessoas tikmũ,ũn oriundas de diversas outras aldeias. Quando chegamos a Ladainha, vemos escrito em Maxakali no chão bem em frente ao bar onde tudo aconteceu: “ũn ka,ok yãmĩy”, que me traduziram como “espírito de mulher forte”. Bem em frente ao escrito desenharam um mimanãm, um mastro utilizado para amplificar e ecoar no tempo e no espaço as vozes dos yãmĩyxop. Quando passamos pelo local, mulheres que estavam dentro do ônibus começam a chorar e, ao descermos do ônibus, os homens que estavam com suas flechas e arcos nos seus corpos seguem em direção ao local do atropelamento. Sequências de cantos são entoados em direção ao caminho que conduz às escrituras desenhadas no chão. Ali, revezam com as mulheres sequências de cantos. Após os cantos, as lideranças, quase todas mulheres, pedem a palavra. Sueli Maxakali diz o seguinte:

É assim, porque quando mata uma pessoa, no mesmo local fica o espírito, o yãmĩy. Nós mulheres recebemos o yãmĩy e quando morre uma criança nós recuperamos o yãmĩy dele para nós. Quando a gente morre, o nosso yãmĩy fica pra trás, aí temos de [ouvir os cantos] pra poder seguir e morar junto com os yãmĩyxop. O que aconteceu é que levamos Daldina para o cemitério. [Agora precisamos] fazer canto para essas pessoas que foram atropeladas pelo não índio. Sempre enterramos e fica tudo por isso mesmo. Não tem investigação. Isso nos entristece. Eu quero deixar bem claro também porque mata índio, aí, o local onde que mataram fica sem os cantos. Aí alguém passa e fala: “Ah! Nós vimos uma pessoa lá no mesmo local, que mataram.” Mas é o yãmĩy daquela pessoa, ele tem que ouvir o canto. Aí eles ficam pensando se vão fazer, aí nós estamos mostrando que todos os locais que tem isso, tem de fazer o canto pra ele. Eles têm de ficar com os yãmĩy porque sabemos que existe yãmĩy nosso que é muito forte. Por volta de meia-noite eles vieram aqui e fizeram esse desenho. A gente sabe que yãmĩy veio fazer isso. Porque antigamente, quando acontecia assassinato, o próprio índio fazia com a própria mão, hoje a lei diz que não pode acontecer isso. Nós estamos esperando a forma e a maneira da Justiça agir. E também fizemos assim, ela foi uma pajé, sabe muitos cantos… mataram ela tipo um cachorro, deixaram ela aqui e fugiram, é com isso que ficamos chateados, só isso que eu queria falar.

Após a fala de Sueli Maxakali, Noêmia Maxakali toma a palavra:

Porque eu ficava pensando… Pessoal mata o parente da gente, e fica por isso mesmo, Funai não resolve esse problema… a gente tem que separar, arrumar, mas a gente não aguentou [de dor], eu não aguentei, senão a gente tinha trazido o corpo para enterrar aqui [nessa rua, em frente a esse bar], a gente tem que fazer as coisas, mas a gente tem que fazer com calma, que da mesma coisa nós vamos colocar as coisas aqui. Mas eu quero também que o prefeito ajude a pegar esse pessoal que está aqui e colocá-los em outro canto. Na estrada aqui quero aumentar caminho pra nós e para a comunidade. É para aumentar porque [moradores de Ladainha] viram o que aconteceu aqui. Esse pessoal viu, está tudo cheio, o pessoal aqui viu, viu moto, viu placa e não querem contar. Agora prefeito se vira, pega e dá para tikmũ,ũn um pedacinho dessa terra aqui e deixa esse pedaço para a mulher que morreu. É para ela andar aqui e cantar. Depois que outra pessoa passar por aqui e ouvir os seus cantos. Meu filho passou aqui de noite e ouviu os seus cantos. Ele estava lá na rodoviária e ouviu ela cantando por aqui, mas ele não teve medo, pois é ritual que ela está fazendo. Quando a pessoa adoece e fica deitada, a gente chega e reza para ela. A pessoa vai fazendo e vai escutando até morrer e então ela segue com os yãmĩy. Porém, agora ela foi matada e ela não levou nada. Ninguém cantou. Se a gente cantar a gente morre em cima, todo mundo nem fez o canto para ela. Esse pedacinho aqui é dela. Agora eu quero que tirem esse pedacinho aqui e coloquem em outro canto, minha resposta é essa. A pessoa que matou tem de levar ao menos eu, prima de Isael, a tia dele, Delcida, e nós queremos olhar a pessoa de cara a cara, bem assim, dentro da cadeia. Depois disso nós pega e sossegamos, pessoal enterra índio e fica por isso mesmo. Índio nunca matou branco, branco é muito, a gente tem de ensinar e começar a matar também. Porque é muito e tem de começar a matar também o branco, índio é pouco, estão matando-nos agora. Está faltando para nós matarmos eles. Polícia tem de ir atrás desse pessoal e pegar. Não é para deixar solto não, não é para deixar solto de jeito nenhum. Se a gente souber que não prendeu ainda, a partir de hoje não tem nada escondido. Nós vamos procurar, se não souber quem é, nós vamos atrás para saber. Espírito vai meia-noite e mata, pra pagar também. Não tem Justiça pra isso, não tem advogado, não tem nada pra isso. Nós estamos quietos, pra pagar a morte da minha sobrinha, esse pessoal aqui escondeu a moto. Eles têm de contar a placa da moto, qual moto, pra tirar o que está abafado dentro de nós. E eu vou fazer um ritual para ficar aqui cantando.

Considerações finais

Da perspectiva tikmũ,ũn morrer é seguir para dois destinos post-mortem. De um lado, a depender dos caminhos trilhados ao longo da vida, a pessoa pode transformar-se em ĩnmõxa - um zumbi canibal possuidor de facas cortantes ao invés de mãos, que tem uma pele impenetrável. Saudoso dos seus parentes consanguíneos, ĩnmõxa retorna para devorar seus corpos. Ademais, como nos relatam diferentes interlocutores tikmũ,ũn, esses seres surgiram das cinzas dos brancos (cf. Álvares, 1992; Campelo, 2018; Romero, 2015b). Por outro lado, um outro destino da pessoa tikmũ,ũn no post-mortem é transformar-se em yãmĩyxop. Dentro dessa perspectiva, o corpo da pessoa vira palavra-canto yĩy, que seguirá para a hãmnõy, uma “terra outra” onde encontra-se com inúmeros yãmĩy (Álvares, 1992; Romero, 2021). Como uma longa produção bibliográfica já demonstrou, os grupos tikmũ,ũn passam parte considerável do seu tempo em relação cotidiana com os yãmĩyxop (Campelo, 2009; Pires Rosse, 2013; Romero, 2021; Tugny, 2011a). Os yãmĩyxop vêm até as aldeias tikmũ,ũn por meio dos sonhos, de festas, cantos, caçadas e banquetes para possibilitar que se viva aqui, na terra, uma “terra outra” - a terra dos yãmyĩxop. Através dos cantos que os yãmĩyxop trazem em seus corpos, imagens poéticas são enunciadas trazendo o ponto de vista de inúmeros seres, bem como memoriando e paisageando lugares. Sob esse ângulo, os cantos são atravessados pelas imagens poéticas que emanam deles mesmos e ao mesmo tempo revelam longas narrativas que memoriam lugares de ocupação tikmũ,ũn que ficaram fora da demarcação das suas terras (cf. Campelo, 2018). Então, é através da relação com os yãmĩyxop que os grupos tikmũ,ũn atualizam relação com lugares específicos que ocuparam no passado. Dei ênfase ao longo do artigo às narrativas de vingança, mas com isso estou longe de esgotar o que é esse território cantado tikmũ,ũn. Meu objetivo foi demonstrar a importância da vingança como dispositivo para costurar a memória e a história tikmũ,ũn bem como de estabelecer um vínculo com o território por meio de uma ética da vingança.

Ao longo do artigo demonstrei, portanto, que a vingança realizada sobre o corpo de outrem impede que diante de um assassinato ecloda uma guerra maior entre diferentes grupos tikmũ,ũn. Ao mesmo tempo, vimos que alguns lugares são memoriados por meio de narrativas de vendeta, que são estruturadas por cantos. A relação com esses lugares é atualizada por meio dos rituais realizados nas aldeias, onde os yãmĩyxop entoarão os cânticos desses lugares. Os cantos, poderíamos dizer, faz a pessoa tikmũ,ũn habitar os lugares, impregnando-os de relação. O evento descrito acima mostra a importância do lugar onde Daldina foi atropelada para seus parentes tikmũ,ũn. “É para ela andar aqui e cantar.” “Agora prefeito se vira, pega e dá para tikmũ,ũn um pedacinho dessa terra aqui e deixa esse pedaço para a mulher que morreu.” “Por volta de meia-noite os yãmĩyxop vieram aqui e fizeram esse desenho. A gente sabe que yãmĩy veio fazer isso [referência ao pixo no chão de Ladainha no local onde ocorreu o atropelamento, ver Figura 1]”. Aquele lugar agora tem uma dona e está longe de ser um espaço vazio, como foi argumentado no início do artigo. O lugar onde Daldina foi atropelada será sempre um lugar cheio de vivência e memória. Como sugere (Tugny, 2011a, p. 38), os cantos produzem uma memória sobre os entes que não habitam mais o território atual, ao mesmo tempo em que “guardam sempre uma porção de inimigos potenciais e a iminência da guerra como forma de resistir à força de atração e unificação do Estado” (Tugny, 2011a, p. 54).

Partindo dessa afirmação de Tugny, a passagem apresentada acima revela um desejo nas falas tikmũ,ũn, de que a violência imprimida no corpo de Daldina seja vingada. Indignada, Noêmia Maxakali não se lembra de episódios que pessoas tikmũ,ũn tivessem matado algum branco: “Índio nunca matou branco, branco é muito, a gente tem […] de começar a matar também. Está faltando para nós matarmos eles.” Algumas passagens anteriores a essa, ela comenta ainda que “se a gente souber que não prendeu […] Nós vamos procurar, se não souber quem é… Espírito vai meia-noite e mata, pra pagar também. Não tem Justiça pra isso, não tem advogado, não tem nada pra isso.” Aqui Noêmia aciona o discurso da vingança como resposta aos limites da burocracia da Justiça brasileira ante às práticas genocidas dos brancos. O fato de nunca terem matado brancos talvez se explique por se recusarem a operar nos mesmos termos de direito à vida e à morte promovida pela necropolítica colonial (cf. Berbert; Campelo, 2018). Em um certo sentido, o que está em jogo na perspectiva tikmũ,ũn é uma outra política relacionada à vida e à morte. Nesse ínterim, a vingança aparece não apenas no interior das relações tikmũ,ũn, mas também enquanto discurso e narrativa diante de um episódio de violência interétnica.

Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro (1986, p. 70) sugerem que “em vez de nos perguntarmos o papel da vingança na sociedade, seria necessário procurar o que é uma sociedade fundada sobre a vingança”. Diante do que foi exposto, não me parece forçoso dizer que a vingança ocupa um lugar importante nas afecções tikmũ,ũn. Longe de querer relativizar e minimizar a violência inerente à vendeta, contudo, a mensagem que os episódios acima reforçam é o fato de que ninguém da perspectiva tikmũ,ũn tem o direito sobre a vida e morte de outrem. Ĩnmõxa é um zumbi canibal que por onde passa deixa um rastro de morte e carnificina. Não é de se estranhar que seja associado aos brancos. Em uma narrativa amplamente difundida nas aldeias tikmũ,ũn, Tupã oferece aos brancos as armas de fogo - símbolo da violência colonial - e para pessoas tikmũ,ũn são oferecidos o arco e a flecha (cf. Campelo, 2018; Romero, 2015b; Tugny, 2011b). Sob esse ângulo, a socialidade tikmũ,ũn, ao ser atravessada pela vingança, “corta a rede” (Strathern, 2011), para que não atravesse o território da necropolítica (Mbembe, 2018). O que parece até o momento é que viver uma “terra outra” (hãm nõy) através dos yãmĩyxop interessa mais aos grupos tikmũ,ũn do que habitar o território da necropolítica. E talvez justamente por isso nunca matem os brancos, pois, como sua própria filosofia ensina, a pele de ĩnmõxa é impenetrável e o que emana da relação com ele é carnificina e genocídio.

Referências

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  • 1
    Para o leitor interessado na versão integral da narrativa, ver Tugny (2011a, p. 33-36).
  • 2
    No original: “L’histoire jivaro se tisse ainsi entre l’effacement des vies et le souvenir des homicides, entre l’oubli des parents tués par des parents et la mémoire des proches tués par des non-parents, entre l’oblitération de la destinée des grands hommes et leur postérité, sous la figure de l’ennemi, dans les récits des adversaires.”
  • 3
    Ao(à) leitor(a) interessado(a) nesse tema, sugiro ver o vídeo elaborado pelo cinegrafista e antropólogo xacriabá Edgar Kanaykõ (Povo […], 2016), bem como ao filme Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra é nossa, dirigido por Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero (Nũhũ […], 2020).
  • 4
    Zanatto e Rosa (2023) mostram que no contexto de sobreposição entre Terras Indígenas e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável, o conflito entre ribeirinhos e indígenas é um forma de forçar o Estado a agir no contexto; acredito que de modo análogo foi algo que ocorreu aqui no contexto tikmũ,ũn.
  • 5
    Extraído de Romero (2015a, p. 47-49).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2025

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2024
  • Aceito
    09 Ago 2024
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