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ALMEIDA, Leonardo Oliveira de. Eu sou o ogã confirmado da casa: ogãs e energias espirituais em rituais de umbanda. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2018. 214 p.

ALMEIDA, Leonardo Oliveira de. . Eu sou o ogã confirmado da casa: ogãs e energias espirituais em rituais de umbanda. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2018. 214 p.

O tambor tinha voz própria e gemeu o perigo. E quando o rapaz, envergonhado, montou na caminhonete e acelerou para ir embora com o carro cheio de mulheres a quem queria impressionar, dois pneus estouraram de uma vez. Ele entendeu o recado e, com medo do que ainda podia acontecer, teve que colocar o tambor na cabeça e levá-lo a pé para a ngoma, passando pelas encruzas sagradas como as curvas do rio e as pontas de areia.

Tambor das minas, conto de Cidinha da Silva (2018SILVA, C. da. Um exu em Nova York. Rio de Janeiro: Pallas, 2018., p. 70).

É bonito de se ver publicado mais um livro sobre as religiões de matriz africana. Adjetivo o ato sem temor: a beleza é valorizada entre os afrorreligiosos. Essa satisfação se intensifica ao saber que esse livro, de fato, vai ser lido e apreciado pela comunidade participante do estudo, que concedeu as informações e vida necessárias para que a obra seja o que é. Fora a comunidade de terreiro, certamente ele vai interessar aos outros afrorreligiosos, pesquisadores e públicos mais gerais, pois trata da nação omolocô, com ainda poucos estudos dedicados e ela, e, mais especificamente, trata do omolocô no Ceará. Sabemos que a respeito das religiões de matrizes africanas e indígenas naquele estado se tem pouquíssimo publicado.

Eu sou o ogã confirmado é um livro que tem em seu foco a preparação, atuação e os rituais mobilizados pelo ogã no contexto do omolocô e da umbanda. O ogã nessa nação é o responsável pelos toques do tambor - essenciais para que as entidades venham e ocupem seus filhos no terreiro, portanto não deve ser confundido com o cargo de outras nações, que é honorífico e tem a responsabilidade de assessorar e intermediar as relações do terreiro com o entorno. A pesquisa aconteceu no Abassá de Omolu e Ilê de Iansã, terreiro de Fortaleza localizado no bairro Joaquim Távora. Leonardo também acompanhou alguns ogãs em seus toques em outros terreiros.

Além da introdução e considerações finais, há cinco capítulos, por onde passearemos para conhecer um pouco melhor do assunto. A obra, publicada pela Editora da Universidade Federal do Ceará, é o primeiro volume da Coleção de Humanidades da UFC, tendo sido publicada em razão de um concurso de dissertações do Programa de Pós-Graduação em Sociologia dessa mesma universidade.

Leonardo tem uma obsessão: a importância do tambor e, principalmente, quem o faz ressoar dentro do terreiro, ocupando posição central na gira. Portanto, sua busca em compreender como o ogã, a partir de “práticas mágico-religiosas”, mobiliza as incorporações dos médiuns e modula as energias que atravessam os rituais e trabalhos, vai levá-lo a se aventurar pela etnomusicologia, sobretudo a que se dedicou aos estudos da sonoridade afro-brasileira, e construir uma crítica a esse material. O seu incômodo com a etnomusicologia afro-brasileira consiste no foco excessivo que se dá aos padrões musicais, partituras e outros recursos lançados pelos estudiosos para mostrar que sem a música não se tem muita coisa na religião. A estratégia de Leonardo não foi simplesmente inverter a situação, mas ao focar na pessoa do ogã, exercendo praticamente uma microssociologia de suas ações no terreiro, encontramos a junção da importância dos sons, das rezas (como foi alertado pelo pai de santo da casa, não se trata de música no terreiro) e da pessoa que conduz e modula a energia a partir do toque. Para tal, há os diversos tipos de toques acionados a partir da especificidade da gira e do trabalho em questão: o catimbó, cabula, samba, jurema, terecô, barravento e os toques da linha do mar, estes últimos mais raros. Encontrou também o cargo do mão de couro, que é aquele que passou pelo ritual de consagração, consistindo-se no ogã confirmado da casa, sendo o único que pode tocar o tambor principal. Temos personagens principais no terreiro: Pai Wanglê e Francisco (mão de couro), assim como os que podem tocar os tambores auxiliares, que recebem a denominação de tambozeiros. A mesma pessoa pode ser ogã de uma casa e tambozeiro em outra, embora Francisco prefira tocar apenas onde foi consagrado, saindo apenas se for a pedido de seu pai de santo.

Esses ogãs fazem contexto da história do omolocô no Ceará, que, segundo podemos ver no livro, se entrelaça com a história da televisão cearense. O primeiro capítulo desvela que a casa religiosa era antes liderada pela ialorixá Valdívia de Souza, mãe biológica de Pai Wanglê. Uns dos materiais utilizados pelo pesquisador para acessar essa história é o livro de Caio de Omolu, filho de santo da casa que publicou sua obra em 2002 (Omolu, 2002OMOLU, C. de. Umbanda omolocô: liturgia, rito e convergência: a visão de um adepto. São Paulo: Ícone, 2002.).

Nascida na década de 1930, Valdívia tinha mediunidade muito forte e recebeu ajuda de seu guia Pai Joaquim de Angola, fundando o Centro Espírita de Umbanda São José de Aruanda. É em 1986 que a ialorixá Valdívia muda o nome de seu terreiro para Abassá de Oxalá e Ilê de Oxum. Aproxima-se do omolocô, a partir de seu recebimento de deká de Pai César Uchoa. É com a morte dela em 2010 que Pai Wanglê assume a liderança da casa, alterando o nome do terreiro de acordo com seus orixás. Ainda sobre Valdívia, ela tem em sua linhagem Pai César, iniciado por Mãe Ginja (Maria Luiza). Esta é lembrada em Fortaleza como mãe de santo e artista, embora nem sempre se juntem as duas personalidades. Tendo atuado ativamente na TV Ceará, interpretando papéis em novelas, a atriz e ialorixá tentava administrar as duas atividades, tendo o terreiro recebido visitas de artistas. Contudo, a partir da década de 1970, com a intensificação de sua atividade como mãe de santo, ela se afasta progressivamente da vida de atriz. Mãe Ginja é de fundamental importância para a implementação do omolocô no Ceará, tendo iniciado, a partir de 1980, diversos filhos e filhas.

Como vimos, Pai Wanglê assume a liderança da casa, reforçando que o terreiro é constituído por relações de parentesco e afinidade, daí a importância de se ter uma personagem consagrada a tocar o tambor dentro da casa, pois a proximidade a faz conhecer as pessoas, suas entidades espirituais e, assim, pode conduzir os toques em suas intensidades e tempos adequados. Após o capítulo sobre os estudos de música, com a crítica já apresentada aqui, o livro segue com dois capítulos descrevendo as práticas mágico-religiosas do ogãs e a lógica desses atos. O último capítulo traz cinco casos etnográficos, com rituais e trabalhos onde a ação do ogã é ressaltada. Leonardo faz uso das teorias sobre a magia da escola sociológica francesa, a partir de Mauss e Hubert. Contudo, no lugar de mostrar a coletividade, simplesmente, dos atos mágicos, ele individualiza esses atos na mão dos ogãs para mostrar como ele é essencial na manutenção da energia e do axé da casa. A ideia não é dizer que os atos mágico-religiosos são individuais, mas mostrar como a partir das mãos do ogã se irradia parte do complexo mítico e ritual do terreiro.

Assim, duas categorias são essenciais: a energia e o axé. Ambas são parecidas, contudo, o axé denomina apenas aquilo que está relacionado aos orixás. A energia está ligada aos caboclos, exus, juremeiros, pretos velhos e as entidades da linha do mar. Além de estar relacionada ao que se faz e sente nos rituais da gira. A energia tem temperatura e intensidade de acordo com a entidade que está trabalhando. Embora o ogã mão de couro tenha muita importância, há casas que não o têm, portanto necessitam contratar o ogã tamboreiro, que terá que usar seu repertório de experiências anteriores para conduzir as energias. Assim, o livro de Leonardo também trata das diferenças de intensidade e atuação dos ogãs que se profissionalizam, tendo que tocar em terreiros em que não têm muita intimidade com as entidades e pessoas, e os ogãs mão de couro, consagrados e pertencentes a uma casa específica. Ele deixa explícito que essas personagens não são excludentes e sim situacionais, podendo estar dentro da mesma pessoa. A especificidade do ogã também determina as relações ogã-médium e ogã-divindade. Enquanto o tamboreiro articula sua experiência acumulada para se relacionar com médiuns e divindades do terreiro visitado, o mão de couro lança mão de seu contato prolongado e intimidade, produzindo efeitos mais intensos.

O livro é um convite para ouvirmos os tambores e as rezas de uma maneira mais atenta, prestar atenção naqueles que surram e fazem o couro cantar. Ele também reforça dois pontos que preciso ressaltar nos atuais estudos afro-brasileiros. Cada vez mais fica nítido que mães e pais de santo funcionam como uma espécie de orientadores das pesquisas - conforme admitiu o pesquisador - tendo isso efeitos interessantes, diferente do que alguns querem acreditar. Segundo, a atenção que o pesquisador dá aos rituais de gira, momento de ápice da vida coletiva do terreiro, nos lembra que ainda temos muito a ver nesses rituais.

Referências

  • OMOLU, C. de. Umbanda omolocô: liturgia, rito e convergência: a visão de um adepto. São Paulo: Ícone, 2002.
  • SILVA, C. da. Um exu em Nova York Rio de Janeiro: Pallas, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019
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