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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira

Herbert Baldus’ selective mediation between German ethnology and Brazilian anthropology

Resumo

Radicado em São Paulo desde o início da década de 1930, Herbert Baldus atuou em várias frentes no emergente campo das ciências sociais no Brasil, no qual procurou manter viva a tradição de americanistas alemães. Além do ensino e da pesquisa, o professor de etnologia da Escola de Sociologia e Política de São Paulo promoveu o trabalho de seus conterrâneos por meio de traduções e publicações. Acontece que alguns americanistas alemães, como Walter Krickeberg e Fritz Krause, estiveram envolvidos com o nazismo entre 1933 e 1944. A análise da correspondência em alemão de Baldus revela algumas ambiguidades em sua deontologia, notadamente nas suas escolhas para a divulgação científica, e oferece uma nova perspectiva sobre a sua contribuição para a antropologia brasileira do seu tempo.

Palavras-chave:
Herbert Baldus; americanistas alemães; nazismo; deontologia

Abstract

Living in São Paulo since the early 1930s, Herbert Baldus worked in different ways in favor of the emerging field of social sciences in Brazil, also seeking to keep the tradition of German Americanists alive. In addition to teaching and research, the professor of Ethnology at the School of Sociology and Politics of São Paulo promoted the work of his compatriots through translations and publications. But some German Americanists, like Walter Krickeberg and Fritz Krause, were committed to Nazism between 1933 and 1944. The analysis of Baldus’ correspondence reveals some ambiguities in his deontology, especially in his choices for scientific divulgation, and offers a new perspective on his contribution to the Brazilian anthropology of his time.

Keywords:
Herbert Baldus; German Americanists; Nazism; deontology

Americanistas alemães nos “tristes trópicos”1 1 O presente trabalho foi realizado durante a pandemia do coronavírus. Impedido de viajar para consultar arquivos nacionais e estrangeiros, agradeço a Eric Santos Alves pela cópia da correspondência entre Herbert Baldus e Richard Thurnwald, do Arquivo do Museu Paulista, a Elena Welper pela cópia de uma carta de Richard Thurnwald (02/10/1939), do Arquivo Edgard Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas, e a Judith Syga-Dubois pela cópia da documentação relativa à candidatura de Baldus para uma bolsa da Fundação Rockefeller, em 1932, conservada na Biblioteca Pública de Oldenburg (Alemanha). Agradeço ainda às pessoas que elaboraram os pareceres anônimos pela leitura acurada. Uma parte deste artigo foi apresentada no Colóquio Internacional “Changing Fields. Hilde and Richard Thurnwald’s Ethnology”, realizado na Université Sorbonne-Nouvelle entre os dias 7 e 9 de julho de 2021. Com exceção das cartas de Baldus organizadas e publicadas em Elena Welper (2019) com tradução de Peter Welper, as traduções das citações são todas minhas.

Durante as primeiras décadas do século XX, a etnografia alemã foi uma das principais referências internacionais para o campo científico da antropologia em formação no país.2 2 Para Eduardo Viveiros de Castro (1992, p. 177), “os naturalistas e etnólogos alemães que andaram por aqui no século XIX e começo do século XX não chegaram a se impor à tradição acadêmica moderna, embora tenham influenciado decisivamente o americanismo”. Ainda sobre a tradição dos americanistas alemães, ver o dossiê “German-Speaking Anthropologists in Latin America, 1884-1945” (Revista de Antropologia, 2019). Assim como Karl von den Steinen (1855-1929), Paul Ehrenreich (1855-1914), Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), Max Schmidt (1874-1950) e Fritz Krause (1881-1963), outros nomes, como Curt Nimuendajú (1883-1945) e Herbert Baldus (1899-1970), inscrevem-se nas redes da etnografia alemã no Brasil (Petschelies, 2019PETSCHELIES, E. As redes da etnografia alemã no Brasil (1884-1929). 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.).

Curt Nimuendajú e Herbert Baldus são dois personagens emblemáticos da história da antropologia brasileira (Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 22). Ambos tiveram muita importância para o desenvolvimento científico da disciplina, sendo a contribuição do primeiro mais voltada às pesquisas de campo e à “etnografia de salvamento” e a do segundo, ao ensino e à divulgação científica no incipiente meio acadêmico nacional.

A correspondência de mais de dez anos entre Herbert Baldus e Curt Nimuendajú (1934-1945) foi objeto de pesquisa da antropóloga Elena Welper, que, nas palavras de Carlos Fausto, “salvou uma parte apreciável do arquivo Curt Nimuendajú que queimou em setembro de 2018 no trágico incêndio do Museu Nacional”. Nessas cartas, tem-se a interlocução entre dois homens “apaixonados pelo seu trabalho e decepcionados com os rumos do mundo, em particular com a ascensão do nazismo, que rejeitam visceralmente” (Fausto, 2019FAUSTO, C. Um etnógrafo na periferia do sistema mundial. In: WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus. Rio de Janeiro: Camera Books, 2019. p. 20-21., p. 21).

Para o presente artigo, fundamental foi a correspondência em alemão entre Herbert Baldus e Richard Thurnwald durante os primeiros anos do pós-guerra, que se encontra no Arquivo do Museu Paulista. A análise dessas cartas permite observar alguns ressentimentos e silêncios ainda presentes nesse período. Percebe-se, outrossim, o espectro do nazismo pairando sob a disciplina e tendo impacto na vida de Herbert Baldus e de outros etnólogos alemães, mesmo depois da guerra. Com base na correspondência de Herbert Baldus com dois interlocutores de sua mais alta estima e na divulgação científica da etnologia alemã no Brasil, da qual Baldus foi um dos principais mediadores nas décadas de 1930, 1940 e 1950, busco a seguir apontar para algumas ambiguidades e mesmo intrigas marcadas por afetos e desafetos de um dos principais nomes no carrefour entre a tradição etnográfica alemã e a moderna antropologia brasileira.

Entre afetos e desafetos

Após a defesa de sua tese em Berlim no ano de 1931, Herbert Baldus se candidatou para uma bolsa da Fundação Rockefeller de 12 meses nos Estados Unidos. Ele tinha 33 anos. No seu dossiê de candidatura, encontram-se quatro cartas de recomendação dos professores Lehmann, Thurnwald, Thilenius e Westermann. Datada de 28 de janeiro de 1932, a carta de Richard Thurnwald destacou as qualidades do candidato para trabalho de campo e a sua experiência na América do Sul.3 3 Carta de recomendação de Richard Thurnwald (28/01/1932) a August Wilhelm Fehling, responsável pela seleção de bolsistas alemães da Fundação Rockefeller. Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8). Já as cartas de Lehmann, Thilenius e Westermann apontaram certas limitações do candidato. Mas foi a carta de Diedrich Westermann aquela que, provavelmente, mais pesou para chumbar a candidatura de Baldus. “Se os bolsistas da Rockefeller devem ser vistos como uma elite da próxima geração de estudiosos alemães, eu não consideraria Baldus um candidato adequado”, declarou Westermann.4 4 No original: “Wenn die Rockefeller-Stipendiaten als eine Elite der kommenden Generation deutscher Gelehrter angesehen werden sollen, so würde ich Baldus nicht als geeigneten Kandidaten ansehen.” Carta de recomendação de D. Westermann (16/01/1932) a August Wilhelm Fehling, responsável pela seleção de bolsistas alemães da Fundação Rockefeller. Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8). Além disso, a tese de Baldus não teve a menção honorífica summa cum laude e nem magna cum laude, o que diminuía as chances de sua candidatura. A sua proposta de pesquisa apresentava ainda inconsistências. A frustração com o resultado da seleção da bolsa da Fundação Rockefeller pode ter influenciado a sua decisão de se instalar em São Paulo, ainda mais quando a Sociedade de Assistência Científica Alemã (Notgemeinschaft der deutschen Wissenschaft) poderia auferir recursos para o seu trabalho etnográfico no Brasil.5 5 As cartas de recomendação dos professores Lehmann e Westermann para o candidato à bolsa da Fundação Rockefeller sugerem que Baldus teria mais chances na América do Sul do que na América do Norte. Em seu dossiê de candidatura, o próprio Baldus expressou o seu interesse em fazer uma nova viagem pela América do Sul e vir a ser professor de etnologia e americanista. Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).

A partir da década de 1930, alguns americanistas alemães encontraram certas dificuldades para continuar o seu trabalho de campo no Brasil. Apesar da obtenção da naturalização brasileira em 1922, Curt Nimuendajú queixou-se do “nativismo” e da xenofobia em correspondência com o seu conterrâneo Herbert Baldus (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 106).6 6 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 11 de setembro de 1939. Mas se o espectro do nazismo poderia prejudicar a atuação de etnólogos de origem alemã no Brasil, o anticomunismo e o antissemitismo na Alemanha começavam a complicar a vida de professores e pesquisadores. Herbert Baldus sentiu-se ultrajado quando soube que a indicação do seu nome para integrar a Sociedade de Antropologia, Etnologia e Pré-História de Berlim (Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte) foi indeferida por causa de uma objeção levantada pelo americanista Walter Krickeberg. Este último acusara Baldus de atuar em favor da causa comunista no Brasil.

Por uma carta do professor Konrad Theodor Preuss, Baldus soube que Krickeberg havia mencionado o nome de Curt Nimuendajú como uma de suas fontes de informação (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 38).7 7 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 20 de julho de 1934. Krickeberg comunicou ainda que alguém da família de Baldus, que queria permanecer anônimo, confirmara a orientação política do expatriado e acrescentou que a esposa de Baldus também era comunista e tinha sido presa uma vez por suas atividades políticas (Díaz de Arce, 2005DÍAZ DE ARCE, N. Plagiatsvorwurf und Denunziation: Untersuchungen zur Geschichte der Altamerikanistik in Berlin (1900-1945). 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Livre de Berlim, Berlim, 2005. Disponível em: Disponível em: https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub188/6962 . Acesso em: 20 mar. 2021.
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, p. 183).8 8 Ulla e Herbert Baldus eram casados desde outubro de 1929, segundo o curriculum vitae apresentado por ele para candidatura de uma bolsa da Fundação Rockefeller. Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8). Diante da acusação de ser comunista, uma carta de Baldus para o professor Preuss revela certa ambiguidade em relação à sua atitude com a “nova Alemanha”.

Não pretendo negar que, certa vez, me manifestei de modo desfavorável sobre o estado das coisas na Alemanha. Mas isto ocorreu sob o impacto da notícia de que minha mulher, por causa de uma denúncia totalmente insustentável - como mais tarde ficou comprovado - tinha sido mantida em prisão preventiva. Desde que ela voltou para a minha companhia, contando-me sobre a nova Alemanha, passei a ver tanto a sua prisão quanto o nacional-socialismo e seus objetivos sob uma luz totalmente diferente e lamento as palavras que escrevi a este respeito a Nimuendajú. (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 39).9 9 Carta de Herbert Baldus para Konrad Theodor Preuss, São Paulo, 20 de julho de 1934.

Baldus considerou uma infâmia a acusação de Krickeberg e receava os impactos decorrentes para a sua vida e para o seu trabalho, pois ela poderia ter as seguintes consequências: perda de seus meios de subsistência já que, segundo ele, esses provinham da Alemanha; impossibilidade de publicação de seus escritos na Alemanha; e inviabilidade de sua candidatura para uma universidade alemã e, por conseguinte, de retorno para o seu país natal (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 40).10 10 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 25 de outubro de 1934. Em carta para o professor Preuss, datada de 20 de julho de 1934, Baldus informou ao seu destinatário que pretendia processar Krickeberg pela intriga.

Assim que tiver se manifestado sobre este assunto, vou proceder contra o senhor Krickeberg com todos os meios para obrigá-lo a confessar a irresponsabilidade de sua atitude e se retratar da sua acusação. Não acho muito heroico atacar pelas costas, de sua confortável escrivaninha, uma pessoa que, aqui no exterior luta com as maiores dificuldades para realizar o seu trabalho. Nós, cientistas alemães no exterior, mais do que nunca, precisamos ter a certeza que a pátria nos apoia, senão materialmente, ao menos idealmente. (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 39).11 11 Carta de Herbert Baldus para Theodor K. Preuss, São Paulo, 20 de julho de 1934.

Meses depois, em meio a dificuldades financeiras, Baldus informava Curt Nimuendajú que “da história com Krickeberg, até agora não ouvi mais nada. Por mim, essa gente lá que faça fofocas à vontade, contanto que eu aqui tenha dinheiro suficiente para viver e viajar” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 42).12 12 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 17 de dezembro de 1934. Porém, Baldus continuava preocupado com as consequências da intriga de Krickeberg e chegou a apelar para o etnólogo Emil W. Mühlmann. Ambos eram da mesma geração e tinham estudado em Berlim com o professor Richard Thurnwald. Em carta datada de 28 de janeiro de 1935, Mühlmann chegou a intervir junto ao presidente da Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte, informando que Baldus lhe confirmou a “sua positiva atitude em relação ao Terceiro Reich” e pediu ainda para lhe transmitir essa sua “política atitude” (cf. Díaz de Arce, 2005DÍAZ DE ARCE, N. Plagiatsvorwurf und Denunziation: Untersuchungen zur Geschichte der Altamerikanistik in Berlin (1900-1945). 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Livre de Berlim, Berlim, 2005. Disponível em: Disponível em: https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub188/6962 . Acesso em: 20 mar. 2021.
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, p. 183).13 13 No original: “Er versichert mir seine positive Einstellung zum Dritten Reich und bittet mich, Ihnen gegenüber diese seine politische Gesinnung zum Ausdruck zu bringen.”

As intrigas de Krickeberg continuaram a causar constrangimentos nos próximos anos.14 14 Sobre os ataques de Krickeberg e suas diatribes, ver a tese de Norbert Díaz de Arce, especialmente o seu quinto capítulo (Díaz de Arce, 2005, p. 153-181). Seus ataques tiveram ainda por alvo Walter Lehmann, Konrad Theodor Preuss e Richard Thurnwald. Esses três tinham sido professores de Baldus na Alemanha (Sampaio-Silva, 2000SAMPAIO-SILVA, O. O antropólogo Herbert Baldus. Revista de Antropologia , São Paulo, v. 43, n. 2, p. 23-79, 2000., p. 24). Porém, Curt Nimuendajú parece ter mantido “boas relações” com o então diretor do Museu de Etnologia de Berlim. Em carta datada de 14 de agosto de 1939, Nimuendajú pediu para Emil-Heinrich Snethlage mandar lembranças suas ao professor Krickeberg (cf. Mere, 2013MERE, G. Emil-Heinrich Snethlage (1897-1939): nota biográfica, expedições e legado de uma carreira interrompida. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: ciências humanas, Belém, v. 8, n. 3, p. 773-804, 2013., p. 795).15 15 Carta de Curt Nimuendajú para Emil-Heinrich Snethlage, Belém do Pará, 14 de agosto de 1939. Para o americanista nazista, “apesar do nome indígena”, Curt Nimuendajú era “um bom alemão” (Díaz de Arce, 2005DÍAZ DE ARCE, N. Plagiatsvorwurf und Denunziation: Untersuchungen zur Geschichte der Altamerikanistik in Berlin (1900-1945). 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Livre de Berlim, Berlim, 2005. Disponível em: Disponível em: https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub188/6962 . Acesso em: 20 mar. 2021.
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, p. 183). Ambos se encontraram em Berlim, durante a viagem de Nimuendajú à Europa em 1934 para tratar da venda de algumas coleções etnográficas.

Malgrado o envolvimento do nome de Nimuendajú na intriga de Krickeberg, Baldus não ficou magoado com quem ele tinha muito apreço, conforme a sua carta de 20 de julho de 1934 (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 38).16 16 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 20 de julho de 1934. Alguns anos depois, o nome de Nimuendajú foi novamente implicado num outro caso de constrangimento para Baldus. Tratava-se do fenômeno Lévi-Strauss, cujo sucesso fulgurante em 1937 deixou Baldus afetado e preocupado a ponto de desabafar nos seguintes termos em carta para Nimuendajú:

Posso entender muito bem que o senhor não queira participar da planejada expedição francesa e também estou convencido de que, por muitos motivos, teria tido muito mais aborrecimento do que prazer. Pois essa gente sabe maravilhosamente bem explorar os outros e depois fingir que nunca ninguém além deles existiu ou trabalhou. Apreendi isto muito recentemente, por experiência própria, principalmente em relação ao senhor Lévi-Strauss, a quem desobstruí todos os caminhos e que agora fundou com grande estardalhaço uma Sociedade Etnográfica, encarregada de organizar um Instituto para Etnologia na Universidade. Lévi-Strauss não para de emitir para a imprensa julgamentos sábios, na qualidade de autoridade etnológica e pré-histórica, pondo-se portanto em cena como um maioral e, de repente, fingindo não mais me conhecer e fazendo tudo para me excluir. Isto tudo me deixaria indiferente - pois prefiro uma vida solitária e contemplativa a esses ruídos variados - mas, como certos caciques daqui, como por exemplo Fernando de Azevedo, declararam que teria sido exatamente o por mim tão admirado senhor Nimuendajú que teria posto o senhor Lévi-Strauss em cena, ao enaltecê-lo como grande etnólogo, tendo considerado o artigo Bororo uma obra de mestre, então não quero - pelo menos não com o senhor - deixar este assunto em nobre silêncio. (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 71).17 17 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 11 de outubro de 1937.

Passado um mês, Nimuendajú respondeu a carta de Baldus, procurando esclarecer alguns pontos e expressar seus sentimentos: “Fico extremamente sentido se prejudiquei logo o senhor com aquela declaração sobre Lévi-Strauss. É ainda mais embaraçoso para mim, porque já é a segunda vez que terceiros lhe causam dificuldades, envolvendo o meu nome” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 76).18 18 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 22 de novembro de 1937. Mas o remetente fez saber ao seu destinatário o seguinte:

O senhor pode acreditar que não tenho o menor interesse em tomar partido de um homem com as qualidades morais de Lévi-Strauss - ainda por cima contra o senhor - mas não posso evitar e lhe peço perdão ao lhe dizer com toda honestidade: Não posso desprezar, nem com a maior boa vontade, o meu julgamento sobre o referido trabalho. (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 76).19 19 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 22 de novembro de 1937.

Embora tenha considerado que Lévi-Strauss se portara “de forma muito infame” em relação a Baldus, Nimuendajú renovou os seus elogios ao trabalho do jovem etnólogo francês.20 20 Sobre a correspondência de Nimuendajú e Lévi-Strauss, ver Welper (2020). Essa separação entre juízo moral e científico teria implicação na deontologia da incipiente etnologia no Brasil. Mais tarde, Baldus parece ter aplicado essa lição ao buscar separar política e ciência, notadamente para a divulgação científica de alemães comprometidos com o nazismo.

Em 1934, Baldus viu as portas se fecharem para um futuro retorno ao país natal depois da acusação de Krickeberg. Em 1937, Lévi-Strauss surgia como um concorrente. Diante do promissor antropólogo francês, o alemão sentia que suas chances eram poucas de obter uma cátedra de etnologia em São Paulo. O desafeto de Baldus aparece em outras cartas quando se refere a Lévi-Strauss e aos franceses, marcando as fronteiras entre nós (alemães), eles (franceses) e os outros (brasileiros): “Essa gente tem mais talento do que nós para vender a si próprios, sabem fazer com que os outros falem deles sem parar e de modo exagerado, com as respectivas fotos, sabem bajular as pessoas necessárias etc.” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 60).21 21 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1936.

Em outra missiva, Baldus foi implacável com a maneira de proceder de Jean Vellard, condenando-a pela sua “barbárie covarde e criminal”. Por outro lado, ele não condenou o método do seu conterrâneo Mayntzhusen que mantinha “amigavelmente” presos tantos indivíduos quanto possível para criar um contato permanente com os Guayaki; método que o próprio Baldus tentou aplicar sem sucesso quando esteve em campo com Mayntzhusen por alguns meses (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 72).22 22 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 11 de outubro de 1937. Isso não significa que outras questões de deontologia não fossem tratadas por Baldus. Ao menos, ele marcou a sua posição ao condenar, na maioria dos representantes da sua “raça”, “um interesse maior em explorar os índios e, eventualmente, dormir com suas mulheres, do que apoiar a conservação das próprias culturas indígenas” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 79).23 23 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1937.

Na correspondência entre Baldus e Nimuendajú, as queixas vinham de ambas as partes. O nativismo e a xenofobia foram mencionados nas suas cartas, mesmo que Baldus parecesse ter uma opinião diferente sobre o nativismo brasileiro daquela do seu interlocutor. Em setembro de 1939, Curt Nimuendajú viu-se impedido de fazer uma viagem para o Xingu, pois o Conselho de Fiscalização de Expedições Artísticas e Científicas no Brasil negou a permissão para viajar sob o pretexto de que ele não havia cumprido as obrigações assumidas em relação à viagem anterior. Nimuendajú reconhecia que o seu trabalho de campo era “um escândalo para muita gente” e contava com a probabilidade de que, “devido à xenofobia” e pelo fato de não ter consentido em ficar a serviço do Museu Nacional, suas atividades poderiam ter fim (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 106).24 24 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 11 de setembro de 1939. Anunciava ainda ao destinatário da carta que poderia transferir o seu campo de trabalho para a zona subandina da Colômbia, do Peru e da Bolívia.

Do trabalho de campo provinha um dos principais meios de sustento de Nimuendajú, pois ele vendia coleções para museus etnológicos estrangeiros e nacionais. Para ficar num exemplo, entre 1929 e 1936, Nimuendajú organizou sete coleções, as quais foram vendidas para os museus alemães de Hamburgo, Leipzig e Berlim, para o museu sueco de Göteborg e para os nacionais de Belém, São Paulo e Rio de Janeiro (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 67).25 25 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Boa Vista, 6 de julho de 1937.

A venda de coleções foi tema recorrente na correspondência entre Nimuendajú e Baldus. Esse último chegou a pedir um conselho para o primeiro, quando intencionava vender uma coleção para a Europa ou para a América do Norte. Entre os museus europeus, Baldus descartou os da Alemanha nazista não por questões ideológicas, mas simplesmente porque havia o risco de não receber dinheiro algum devido às determinações em vigor sobre as divisas e transferência de valores para o exterior (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 47).26 26 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 6 de novembro de 1935. No entanto, uma carta de Emil W. Mühlmann para Eugen Fischer informava que Baldus colecionava para museus alemães ainda em 1935 (cf. Díaz de Arce, 2005DÍAZ DE ARCE, N. Plagiatsvorwurf und Denunziation: Untersuchungen zur Geschichte der Altamerikanistik in Berlin (1900-1945). 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Livre de Berlim, Berlim, 2005. Disponível em: Disponível em: https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub188/6962 . Acesso em: 20 mar. 2021.
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, p. 183).27 27 No original: “Sie werden sich entsinnen, dass vor einiger Zeit Dr. Herbert Baldus, der z. Zt. mit Mitteln der Notgemeinschaft als Ethnograph im Chaco reist und auch für deutsche Museen sammelt, um die Mitgliedschaft in der Anthropologischen Gesellschaft nachsuchte.”

Baldus procurou ainda saber de Nimuendajú se o Museu Nacional do Rio de Janeiro pagava bem pelas coleções etnográficas (Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 48).28 28 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1935. Com a venda de uma coleção, Nimuendajú podia liquidar as suas dívidas e organizar uma nova viagem para voltar a campo. Ao menos, assim foi com os dez contos que recebeu do Museu Nacional por uma de suas coleções (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 53).29 29 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 20 de fevereiro de 1936. Baldus pediu ainda outros conselhos para Nimuendajú, pois pretendia fazer algumas viagens e “tentar colecionar alguma coisa” (Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 66).30 30 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937. Cabe lembrar que Baldus havia vendido algumas coleções para o Museu de Etnologia de Hamburgo das suas duas primeiras viagens pela América do Sul na década de 1920.31 31 Ver curriculum vitae (Lebenslauf) de Baldus e também carta de recomendação do professor Lehmann (05/02/1932). Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).

Segundo Elena Welper (2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 32), a etnografia de salvamento foi um ponto de convergência entre Nimuendajú e Baldus. O trabalho de campo era ainda uma necessidade científica, pois permitia estudar povos e culturas que estariam em risco de “desaparecimento” (Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 32). As coleções sobre as quais ambos tratavam em sua correspondência não eram apenas de objetos da cultura material, mas também da cultura imaterial. Numa de suas cartas, Nimuendajú fez saber que havia se comprometido com o Museu Nacional para organizar todas as lendas recolhidas por ele a fim de publicar a coleção, além de uma pequena série que deveria estar pronta em abril de 1944 (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 156).32 32 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 21 de março de 1944. Por seu turno, Baldus pretendia publicar uma coleção de “lendas índias” do Brasil para uma série de cadernos de divulgação científica de uma nova editora (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 153).33 33 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 1º de março de 1944.

A venda de coleções de objetos da cultura material e a publicação de “mitos e lendas” da cultura imaterial de terceiros por esses dois representantes da “etnografia de salvamento” e fundadores da antropologia brasileira devem ser entendidas no contexto da época, que demarcava, igualmente, a deontologia e a autocrítica que ambos compartilhavam com outros americanistas. Porém, Baldus esboçou uma crítica à coleção vendida por Nimuendajú ao Instituto de Educação de São Paulo e cuja maior parte era composta por “peças não usadas e, certamente, confeccionadas por encomenda, portanto uma espécie de indústria turística” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 65).34 34 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.

Baldus foi um dos peritos da comissão que Fernando de Azevedo incumbiu de examinar a coleção vendida por Nimuendajú. A relação de amizade do perito com quem vendeu a coleção parece ter prevalecido em detrimento de uma expertise imparcial, pois Baldus informou ao destinatário de sua carta de 5 de fevereiro de 1937 que não comentou com ninguém sobre o fato de a maioria das peças não terem sido usadas. Além disso, o perito disse a Fernando de Azevedo que se tratava da “maior, melhor e mais completa coleção dos índios brasileiros até então existentes em toda a América do Sul e talvez no mundo inteiro” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 64).35 35 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937. O próprio Nimuendajú não concordou com os superlativos “benevolentes demais” que Baldus havia empregado. Ele ainda defendeu a sua coleção nos seguintes termos:

Se eu não tivesse agido assim, simplesmente não possuiríamos qualquer registro material desta tribo, pois eu não sei onde se pode encontrar uma coleção deles (a não ser a minha própria, do ano de 1930, que se encontra em Hamburgo, se não me engano). (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 67).36 36 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Boa Vista, 6 de julho de 1937.

Baldus não apenas exagerou na sua avaliação enquanto “perito”, mas também superestimou o valor venal da coleção, pois a estimou em 40 contos e considerou o pagamento de apenas oito contos um “abuso dos sentimentos filantrópicos do Senhor Nimuendajú e um verdadeiro roubo” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 65).37 37 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937. Provavelmente, Baldus procurava retribuir o apoio e as palavras gentis que lhe dedicou Nimuendajú em carta a Fernando de Azevedo. Este último pretendia organizar um Centro de Documentação Social e Etnográfica, cuja direção ficaria a cargo de Baldus.

Embora a correspondência entre os dois expatriados alemães permita mostrar uma certa reciprocidade de favores, ela contém algumas tensões devidas, geralmente, a posições diferentes sobre certas questões. Além dos desafetos, Baldus parece expressar mais os afetos do que o seu reservado interlocutor. Ao menos é o que indicam as suas cartas quando manifesta seus sentimentos, por exemplo, sobre o falecimento do professor Preuss, “um dos nossos melhores” segundo Baldus em sua carta de 7 de novembro de 1938, e sobre o falecimento do americanista Snethlage “uma vítima dessa guerra nojenta” sentenciou Baldus em sua carta de 26 de abril de 1940. Fez ainda o seguinte adendo: “Ele tinha se tornado pai há pouco tempo e, assim como eu, não era uma pessoa de orientação nazista” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 113).38 38 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 26 de abril de 1940.

Da correspondência entre Nimuendajú e Baldus, Eduardo Viveiros de Castro já chamou atenção para a sua assimetria.39 39 Ver texto de Eduardo Viveiros de Castro publicado na orelha do livro Chamada da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus (Welper, 2019). Uma espécie de dívida simbólica do segundo para com o primeiro pode ser uma das razões para Baldus ter buscado quase sempre encontrar meios de recompensar o amigo mais velho e mais experiente. Se não tinha capital econômico para amenizar as dificuldades financeiras de Nimuendajú, Baldus mobilizou diversas vezes o seu capital social. Em carta datada de 19 de fevereiro de 1943, Baldus propôs uma publicação de mitos inéditos recolhidos por Nimuendajú. “Com os meus amigos da Companhia da Editora Nacional, posso facilmente arranjar a publicação, e, principalmente, também o pagamento adiantado logo que o manuscrito estiver aqui” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 144).40 40 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 19 de fevereiro de 1943. Na mesma carta, o remetente informava ao seu destinatário que poderia obter com o seu amigo Carlos Estevão o aval para uma tradução e publicação da monografia sobre os Apinayé na série Brasiliana, da Companhia da Editora Nacional, e arranjar ainda a publicação paga de um artigo de autoria de Nimuendajú para a revista Sociologia. Baldus escreveu ao seu interlocutor: “Esta revista tem uma seção etnológica dirigida por mim na qual já aparecem trabalhos de Wagley, Thurnwald e outros, e eu ficaria contentíssimo se o amigo honrasse esta seção com a sua colaboração” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 144).41 41 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 19 de fevereiro de 1943.

Em carta datada de 6 de abril de 1945, Baldus propôs ao seu amigo um projeto de pesquisa etnográfica no território do rio Branco, onde havia uma missão da ordem dos beneditinos. A missão tinha em vista receber 20 mil dólares dos Estados Unidos nos próximos anos. O remetente ponderou sobre os limites do projeto: “Eu, por mim, não gosto de ser pioneiro de padres ou de qualquer outra espécie de ‘civilizadores’, mas talvez a gente possa ser mais útil aos índios, elaborando alguma coisa em vez de nos abstermos” (cf. Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019., p. 201).42 42 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 6 de abril de 1945.

Nimuendajú faleceu em dezembro de 1945 em circunstâncias que deram margem para diferentes versões sobre as causas da sua morte. No ano seguinte, Baldus assumiu a direção da seção de etnologia do Museu Paulista. Desde então, a cátedra de etnologia e as novas funções no Museu Paulista demandavam considerável tempo de Baldus, que se via cada vez mais impedido de voltar ao trabalho de campo. Nos anos seguintes, ele continuou a defender uma antropologia aplicada, uma “etnografia de salvamento” e um indigenismo fiel aos princípios de Rondon e Nimuendajú. Por outro lado, algumas ambiguidades continuaram em sua política editorial na sessão de etnologia que dirigia na revista Sociologia e na sua direção da Revista do Museu Paulista, como também na sua correspondência em alemão, notadamente com Richard Thurnwald.

A mediação de Baldus na divulgação científica da etnologia alemã

Nas décadas de 1930 e 1940, pesquisadores dos Estados Unidos e da França, mas também da Alemanha, tiveram uma supina importância na formação de uma primeira geração de cientistas sociais no Brasil (Corrêa, 1987CORRÊA, M. História da antropologia no Brasil (1930-1960): testemunhos: Emílio Willems e Donald Pierson. Campinas: Editora da Unicamp: Vértices, 1987.; Villas Boas, 1997VILLAS BOAS, G. A recepção da sociologia alemã no Brasil. Notas para uma discussão. BIB, Rio de Janeiro, n. 44, p. 73-80, 1997.). Entre as primeiras instituições de ensino superior, destacou-se a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, onde os alemães Herbert Baldus e Emilio Willems atuaram entre outros docentes estrangeiros como Melville Herskovits, Donald Pierson, Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide. No Brasil, Herbert Baldus procurou seguir os passos do seu mestre Richard Thurnwald. A sua devoção como discípulo de Thurnwald já se encontra no seu primeiro trabalho intitulado Estudos dos índios do nordeste do Chaco (Indianerstudien im nordöstlichen Chaco), no qual Baldus (1931)BALDUS, H. Indianerstudien im nordöstlichen Chaco: Forschungen zur Völkerpsychologie und Sociologie. Leipzig: C. L. Hirschfeld Verlag, 1931. faz um agradecimento ao seu professor de Berlim e editor da revista onde foi publicado o referido trabalho.

Richard Thurnwald era pouco conhecido entre os intelectuais brasileiros do entre-guerras. Gilberto Freyre (1999FREYRE, G. Casa-grande e senzala. 35. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999., p. 166) lhe fez uma pequena referência em nota de rodapé de Casa-Grande e senzala. A chamada etnossociologia de Thurnwald teria um impacto na primeira geração formada pela Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo pela mediação dos alemães Baldus e Willems. Ambos estudaram em Berlim e tinham em elevado apreço os ensinamentos do mestre. Em 1939, Baldus e Willems publicaram o Dicionário de etnologia e sociologia(Baldus; Willems, 1939BALDUS, H.; WILLEMS, E. Dicionário de etnologia e sociologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional , 1939.), no qual 30 verbetes se referem à etnossociologia de Thurnwald. Emilio Willems traduziu ainda parte da obra A sociedade humana e seus fundamentos etno-sociológicos (Die menschliche Gesellschaft in ihren ethno-soziologischen Grundlagen) que foi publicada na revista Sociologia em 1941, cuja sessão etnológica estava sob a direção de Baldus.

A tradução e publicação de Thurnwald no Brasil foi útil tanto para a geração de Francisco José de Oliveira Viana (1999)VIANA, F. J. de O. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999., como demonstra seu livro Instituições políticas brasileiras, de 1949, quanto para uma nova geração de etnólogos e sociólogos brasileiros. Em seu livro Lutas de famílias no Brasil, de 1949, Luiz Aguiar Costa Pinto (1980)COSTA PINTO, L. A. Lutas de famílias no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1980. baseou-se na etnologia jurídica de Thurnwald. A tese de Florestan Fernandes (1989)FERNANDES, F. A organização social dos tupinambás . São Paulo: Hucitec , 1989. sobre a organização social dos Tupinambá apresenta algumas ideias que remetem à etnossociologia de Thurnwald. No prefácio de Baldus (1989BALDUS, H. Prefácio. In: FERNANDES, F. A organização social dos tupinambás. São Paulo: Hucitec, 1989. p. 9-13., p. 12) ao primeiro livro de Florestan Fernandes, de 1949, ele afirmava que, “como discípulo do etno-sociólogo Richard Thurnwald”, procurava incutir nos alunos os ensinamentos do mestre.

Acontece que Richard Thurnwald esteve comprometido com o colonialismo e, depois, com o nazismo (Dedryvère, 2018DEDRYVÈRE, L. De l’engagement national-socialiste à l’érudition philologique. Revue d’histoire des sciences humaines, [s. l.], n. 32, p. 229-258, 2018. DOI: https://doi.org/10.4000/rhsh.361.
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; Trautmann-Waller, 2020TRAUTMANN-WALLER, C. La colonisation comme objet d’étude: Richard Thurnwald en Afrique de l’Est (juin 1930 - avril 1931). In: GEORGET, J.-L.; IVANOFF, H.; KUBA, R. (ed.). Construire l’ethnologie en Afrique coloniale: politiques, collections et médiations africaines. Paris: Presses de la Sorbonne nouvelle, 2020. p. 47-65.). Enquanto muitos cientistas alemães emigraram da Alemanha (König, 1981KÖNIG, R. Die Situation der emigrierten deutschen Soziologen in Europa. In: WOLF, L. (Hrsg.). Geschichte der Soziologie: Studien zur kognitiven, sozialen und historischen Identität einer Disziplin. Frankfurt: Suhrkamp, 1981. Bd. 4, p. 115-158.; Papcke, 1997PAPCKE, S. L’exil allemand et la sociologie: 1933 et 1945. Genèses, [s. l.], n. 26, p. 143-153, 1997. DOI: https://doi.org/10.3406/genes.1997.1438.
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), Thurnwald deixou os Estados Unidos e retornou para a Alemanha em 1936. É verdade que ele tinha quase 67 anos, o que dificultava a sua inserção profissional em instituição de ensino ou pesquisa no exterior. Mas o seu retorno à Alemanha não foi nada seguro. No campo científico da etnologia, antropologia e sociologia alemãs, ocorria a nazificação (Gerndt, 1987GERNDT, H. (Hrsg.) Volkskunde und Nationalsozialismus: Referate und Diskussionen einer Tagung der Deutschen Gesellschaft für Volkskunde. München: Münchner Vereinigung für Volkskund, 1987.; Klingemann, 1996KLINGEMANN, C. Soziologie im Dritten Reich. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1996.; Michel, 1991MICHEL, U. Wilhelm Emil Mühlmann (1904-1988) - ein deutscher Professor. Amnesie und Amnestie: Zum Verhältnis von Ethnologie und Politik im Nationalsozialismus. In: KLINGEMANN, C. et al. (Hrsg.): Jahrbuch für Soziologiegeschichte. Opladen: Leske und Budrich, 1991. p. 69-117.).

Em 1937, o artigo de Thurnwald, intitulado “Die Kolonialfrage” (Thurnwald, 1937THURNWALD, R. Die Kolonialfrage. Jahrbücher für Nationalökonomie und Statistik, [s. l.], n. 145, p. 66-86, 1937.), atualizava certas opiniões que ele defendera nas primeiras décadas do século XX.43 43 Em 1905, Thurnwald fundara com Alfred Ploetz e Ernst Rüdin a Sociedade para a Higiene Racial (Gesellschaft für Rassenhygiene). Thurnwald foi também um dos editores do periódico Archiv für Rassen- und Gesellschafts-Biologie. Esse artigo foi visto como prova de “sua boa-fé” quando ele se inscreveu para novo ingresso na Universidade de Berlim. No entanto, sua reintegração foi rejeitada pelo chefe da associação de professores nazistas daquela universidade, para quem Thurnwald não era “um nacional-socialista em termos políticos”. Foi o reitor da Universidade de Berlim, Eugen Fischer, quem apoiou a sua reintegração (Steinmetz, 2010STEINMETZ, G. La sociologie et l’empire: Richard Thurnwald et la question de l’autonomie scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 5, p. 12-29, 2010., p. 25). Eugen Fischer havia conduzido pesquisas na colônia alemã do sudoeste africano (hoje Namíbia). Seu trabalho sobre a degeneração dos “bastardos de Rehoboth” apareceu em 1913 (Fischer, E., 1913FISCHER, E. Die Rehobother Bastards und das Bastardierungsproblem beim Menschen: anthropologische und ethnographische Studien am Rehobother Bastardvolk in Deutsch-Südwest-Afrika. Jena: G. Fischer, 1913.). Foi ele também quem apoiou a esterilização daqueles que ele chamava de “bastardos da Renânia” em meados da década de 1930. Cabe ainda lembrar que era Fischer o presidente da Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte quando a indicação do nome de Baldus foi recusada em 1934. Em 1936, Thurnwald foi renomeado para o seu cargo na Universidade de Berlim pelas mãos do reitor e professor Eugen Fischer.

No final da década de 1930, Thurnwald se viu em posição sem grande prestígio no círculo de Berlim e sua margem de manobra se tornaria cada vez mais estreita. Seus anos sombrios (1937-1945) guardam alguns pontos obscuros na história da etnologia e da sociologia na Alemanha do Terceiro Reich. Os estudos sobre o campo científico durante o nazismo têm trazido a lume as contradições e as ambiguidades de alguns professores alemães como Thurnwald (Fischer, H., 1990FISCHER, H. Völkerkunde im Nationalsozialismus: Aspekte der Anpassung, Affinität und Behauptung einer wissenschaftlichen Disziplin. Berlin: Reimer, 1990.; Gerndt, 1987GERNDT, H. (Hrsg.) Volkskunde und Nationalsozialismus: Referate und Diskussionen einer Tagung der Deutschen Gesellschaft für Volkskunde. München: Münchner Vereinigung für Volkskund, 1987.; Klingemann, 1996KLINGEMANN, C. Soziologie im Dritten Reich. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1996.; Melck-Koch, 1989MELCK-KOCH, M. Auf der Suche nach der menschlichen Gesellschaft: Richard Thurnwald. Berlin: Museum für Völkerkunde, Staatliche Museen Preussischer Kulturbesitz, 1989.; Steinmetz, 2010STEINMETZ, G. La sociologie et l’empire: Richard Thurnwald et la question de l’autonomie scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 5, p. 12-29, 2010.; Trautmann-Waller, 2011TRAUTMANN-WALLER, C. L’ethnologie allemande, de la psychologie des peuples au fonctionnalisme historique. Le cas de Richard Thurnwald (1865-1954). In: JEANBLANC, H. (dir.). Sciences du vivant et représentations en Europe (XVIIIe-XXe siècles): transferts culturels, ordonnancement des savoirs et visions des mondes. Montpellier: Presses universitaires de la Méditerranée, 2011. p. 193-201.). Thurnwald chegou a ser membro do Partido Nazista em 1940 (Steinmetz, 2010STEINMETZ, G. La sociologie et l’empire: Richard Thurnwald et la question de l’autonomie scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 5, p. 12-29, 2010., p. 19). Em 1940, cinco entre sete professores catedráticos de etnologia (Baumann, Heydrich, Plischke, Reche e Struck) estavam ativamente engajados no apoio ao Partido Nazista (Conte; Essner, 1994CONTE, E.; ESSNER, C. Völkerkunde et nazisme, ou l’ethnologie sous l’empire des raciologues. L’Homme, Paris, t. 34, n. 129, p. 147-173, 1994., p. 151-152). Em 1946, Richard Thurnwald se tornou professor honorário aos 77 anos. Apesar de sua reintegração na Universidade de Berlim em 1936, ele não seria professor honorário até o fim da guerra. Isso pode ter sido um ponto a seu favor durante a desnazificação. Nos anos do pós-guerra, o septuagenário procurou refundar a etnologia alemã (Trautmann-Waller, 2011TRAUTMANN-WALLER, C. L’ethnologie allemande, de la psychologie des peuples au fonctionnalisme historique. Le cas de Richard Thurnwald (1865-1954). In: JEANBLANC, H. (dir.). Sciences du vivant et représentations en Europe (XVIIIe-XXe siècles): transferts culturels, ordonnancement des savoirs et visions des mondes. Montpellier: Presses universitaires de la Méditerranée, 2011. p. 193-201., p. 208). Nesse período, Thurnwald retomou a correspondência com Baldus. Porém, Baldus ignorava, provavelmente, algumas atitudes políticas do seu mestre entre 1937 e 1945.

Com o início da guerra, a situação política para os imigrantes de origem alemã era pouco segura no Brasil. No caso de Baldus, a nacionalidade brasileira foi concedida em 1941. Desde 1939, Baldus não media esforços para divulgar a etnossociologia de Thurnwald, que, por ser mais próxima da escola anglo-saxã, não parecia representar um problema. Ao mesmo tempo, Baldus procurava convergir a “etnografia de salvamento” com o indigenismo numa espécie de antropologia aplicada. Sua grande inspiração era Curt Nimuendajú, para quem dedicou o seu livro Ensaios de etnologia brasileira, publicado em 1937 (Baldus, 1937BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.).

Para Baldus (1939BALDUS, H. A necessidade do trabalho indianista no Brasil. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v. 57, p. 139-150, 1939., p. 141), o etnólogo desempenha um papel significativo, pois “o destino de povos inteiros depende exclusivamente dele”. Acrescentou ainda: “Necessitamos de auxílio e considerando o tamanho do Brasil e a natureza da obra a fazer cabe pedir o auxílio do governo” (Baldus, 1939BALDUS, H. A necessidade do trabalho indianista no Brasil. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v. 57, p. 139-150, 1939., p. 150). Baldus apostava numa assimilação dirigida pela ciência, pois, desde a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a política indigenista não havia evitado o aumento dos conflitos e da apropriação de terras indígenas. Embora os temas de contato, aculturação e assimilação estivessem entre seus interesses de pesquisa, Baldus parecia ignorar os trabalhos de Thurnwald (1929THURNWALD, R. Social problems of Africa. Africa: journal of the International Institute of African Language and Cultures, [s. l.], p. 130-136, 1929., 1932THURNWALD, R. Social transformations in East Africa. American Journal of Sociology, Chicago, v. 38, n. 2, p. 175-184, 1932., 1935THURNWALD, R. Black and white in East Africa: the fabric of a new civilization. London: George Routledge & Sons, 1935., 1936THURNWALD, R. The crisis of imperialism in East Africa and elsewhere. Social Forces, [s. l.], v. 15, n. 1, p. 84-91, 1936.) que tratavam da África colonial. Em outros textos, Thurnwald desenvolveu uma reflexão sobre a política colonial do Terceiro Reich; suas análises se estruturaram cada vez mais em torno da terminologia nazista e chegou a propor um plano de segregação racial para a África (Linne, 2008LINNE, K. Deutschland jenseits des Äquators?: die NS-Kolonialplanungen für Afrika. Berlin: Ch. Links Verlag, 2008., p. 63; Steinmetz, 2010STEINMETZ, G. La sociologie et l’empire: Richard Thurnwald et la question de l’autonomie scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 5, p. 12-29, 2010., p. 28).

Richard Thurnwald apresentou um relatório sobre a questão do trabalho indígena na África à Secretaria dos Assuntos Coloniais do Terceiro Reich em 11 de julho de 1938 (Thurnwald, 1938THURNWALD, R. Organisierung der Eingeborenen-Arbeit in Ostafrika und ihre Gestaltungsmöglichkeiten auf nationalsozialistischer Grundlage. Bericht von Prof. Dr. Thurnwald. Berlin: [s. n.], 1938. Disponível em: Disponível em: https://archivfuehrer-kolonialzeit.de/index.php/eingeborene-arbeiter-in-deutsch-ostafrika-spezialia . Acesso em: 20 mar. 2021.
https://archivfuehrer-kolonialzeit.de/in...
). Nesse relatório, a questão do trabalho indígena estava ligada à questão racial. A partir da experiência colonial de outros impérios, ele defendeu uma separação dos “espaços de vida” de brancos e negros (Timm, 1977TIMM, K. Richard Thurnwald: “Koloniale Gestaltung” - ein “Apartheids-Projekt” für die koloniale Expansion des deutschen Faschismus in Afrika”. Ethnographisch-Archäologische Zeitschrift, [s. l.], Bd. 18, p. 617-649, 1977.). Ainda em seu relatório, Thurnwald (1938THURNWALD, R. Organisierung der Eingeborenen-Arbeit in Ostafrika und ihre Gestaltungsmöglichkeiten auf nationalsozialistischer Grundlage. Bericht von Prof. Dr. Thurnwald. Berlin: [s. n.], 1938. Disponível em: Disponível em: https://archivfuehrer-kolonialzeit.de/index.php/eingeborene-arbeiter-in-deutsch-ostafrika-spezialia . Acesso em: 20 mar. 2021.
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, p. 24) sugere que os negros poderiam ser integrados por meio de seu trabalho em uma grande comunidade alemã ultramarina, o que dava azo ao projeto de colonização alemã da África. Esse relatório de 1938 tem algo em comum com o seu pleito de 1912 por uma etnologia aplicada dentro da estrutura do colonialismo (cf. Thurnwald, 1912THURNWALD, R. Angewandte Ethnologie in der Kolonialpolitik. In: THURNWALD, R. (Hrsg.). Internationale Vereinigung für Vergleichende Rechtswissenschaft und Volkswirtschaftslehre. Berlin: Franz Vahlen, 1912. p. 59-69.).

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrocada do nazifascismo, começa uma nova etapa nas ciências sociais. Durante uma conferência realizada em Berlim no verão de 1947, o professor Thurnwald (1948)THURNWALD, R. Aufbau und Sinn der Völkerwissenschaft. Berlin: Akademie Verlag, 1948. (Abhandlg. Jg. 1947, Phil.-hist. Klasse, N. 3). deplorou que a reputação da etnologia tenha sido prejudicada pela suspeita de que servia à política colonial. Como outros de sua geração, Thurnwald procurava se proteger de eventuais ataques relacionados à instrumentalização da etnologia pelo colonialismo e pelo nazismo.

No Brasil do pós-guerra, a antropologia e outras disciplinas ampliam o intercâmbio internacional com suas congêneres nos Estados Unidos e na França. Com a Alemanha, os contatos na área das ciências humanas foram poucos e mitigados. Havia, no entanto, uma longa tradição de americanistas alemães (Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Max Schmidt, Fritz Krause e Theodor Koch-Grünberg). Cabe lembrar ainda a importância de Curt Nimuendajú para a etnologia e a antropologia brasileiras (Welper, 2002WELPER, E. M. Curt Nimuendajú: um capítulo alemão na tradição etnográfica brasileira. 2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.).

Entre os “intérpretes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda foi um dos que mais se interessou pela etnografia alemã (Françozo, 2007FRANÇOZO, M. Os outros alemães de Sérgio: etnografia e povos indígenas em Caminhos e fronteiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais , São Paulo, v. 22, n. 63, p. 137-152, fev. 2007.). Em sua biblioteca havia uma gama de títulos de etnólogos alemães, inclusive de Richard Thurnwald. O prefácio de Sérgio Buarque de Holanda (1980HOLANDA, S. B. de. Prefácio do tradutor. In: DAVATZ, T. Memórias de um colono no Brasil (1850). Apresentação, tradução e notas de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 15-45., p. 30) ao livro Memórias de um colono no Brasil (1850), do imigrante suíço Thomaz Davatz, trazia em nota de rodapé uma referência ao livro Koloniale Gestaltung, de Thurnwald (1939a)THURNWALD, R. Koloniale Gestaltung: Methoden und Probleme überseeischer Ausdehnung. Hamburg: Hoffmann und Campe Verlag, 1939a..

Na introdução do livro, Thurnwald (1939aTHURNWALD, R. Koloniale Gestaltung: Methoden und Probleme überseeischer Ausdehnung. Hamburg: Hoffmann und Campe Verlag, 1939a., p. 15) afirmou que a “Alemanha se encontrou novamente sob a conduta [Führung] do nacional-socialismo.” Como ressaltou Rudolf Karlowa (1939KARLOWA, R. Besprechungen. Zeitschrift für vergleichende Rechtswissenschaft, Frankfurt, v. 53, p. 372-373, 1939., p. 373) em sua resenha sobre o livro Koloniale Gestaltung, o autor apresenta os princípios de uma estrutura colonial “como deve ser buscada na construção nacional-socialista de colônias” em contraste com “os métodos e caminhos errados das democracias ocidentais”. Um leitor como Sérgio Buarque de Holanda não podia se enganar sobre o conteúdo desse livro de Thurnwald que tratava tanto da política colonial alemã do passado quanto das reivindicações alemãs para reaver suas colônias durante o Terceiro Reich.

Sérgio Buarque de Holanda tinha também um exemplar do Manual de etnologia (Lehrbuch der Völkerkunde, Thurnwald, 1939bTHURNWALD, R. Lehrbuch der Völkerkunde. Stuttgart: Ferdinand Enke , 1939b.).44 44 Ver http://acervus.unicamp.br/index.asp?codigo_sophia=235935. Esse livro tinha sido alvo de uma crítica virulenta de Walter Krickeberg em 1937. Na biblioteca do professor da USP, havia ainda um exemplar de Methodik der Völkerkunde (Mühlmann, 1938MÜHLMANN, W. Methodik der Völkerkunde. Stuttgart: Ferdinand Enke, 1938.), publicado em 1938.45 45 Ver http://acervus.unicamp.br/index.asp?codigo_sophia=249419. Esses exemplos mostram que o historiador paulista conhecia os trabalhos de Thurnwald, Preuss, Mühlmann, Krickeberg, entre outros etnólogos alemães.

Ao assumir a direção do Museu Paulista em 1946, o autor de Raízes do Brasil confiou a nova seção de etnologia ao etnólogo Herbert Baldus, que, por sua vez, recebeu a incumbência de dirigir a Revista do Museu Paulista.46 46 Cópia do contrato de Baldus encontra-se no Arquivo do Museu Paulista. AMP/Set-Dez.1946. Os dois homens já se conheciam e uma longa amizade se desenvolveu desde 1946. Segundo Antônio Cândido, ele costumava encontrar com frequência Herbert Baldus na casa de Sérgio Buarque de Holanda (Passador, 2002PASSADOR, L. H. Herbert Baldus e a antropologia no Brasil. 2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002., p. 195-196).

Como explicar, então, que Baldus nunca escreveu uma linha sobre o projeto de apartheid proposto por Thurnwald (1939BALDUS, H.; WILLEMS, E. Dicionário de etnologia e sociologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional , 1939.), uma vez que o livro Koloniale Gestaltung estava ao alcance de suas mãos na biblioteca do seu amigo e diretor do Museu Paulista? Para seus colegas e alunos, Baldus era um homem “humanista” e “liberal” (Passador, 2002PASSADOR, L. H. Herbert Baldus e a antropologia no Brasil. 2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002., p. 174). Assim como Sérgio Buarque de Holanda, Baldus era um antifascista. Ao mesmo tempo, algumas cartas de Baldus contêm certos silêncios que permitem melhor compreender a difícil situação nos anos de guerra e os dilemas de certos “homens de ciência”. Os trabalhos de Thurnwald que Willems e Baldus divulgaram em suas aulas ou que traduziram e publicaram no Brasil eram trabalhos de síntese. Baldus contornou assim alguns trabalhos que poderiam questionar uma eventual instrumentalização política da etnossociologia do seu mestre.

Baldus era contra a ideia de segregação racial e favorável a uma nova política indigenista no sentido de uma “colonização pacífica”. Segundo ele, era o etnólogo quem deveria indicar quando acelerar a assimilação dos grupos indígenas, já que quem não podia mais viver “sem calças e sem cachaça” exigia uma rápida assimilação (Baldus, 1939BALDUS, H. A necessidade do trabalho indianista no Brasil. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, v. 57, p. 139-150, 1939., p. 147).

A convicção de Baldus sobre o poder do etnólogo exala hoje certa arrogância científica e sinaliza uma contradição. Segundo ele, a etnologia aplicada se traduzia em ação indigenista, enquanto a etnologia pura ou teórica poderia ser feita sem qualquer vínculo com a política. Portanto, aqui está uma parte da resposta às escolhas de Baldus quando ele publica algumas contribuições de etnólogos comprometidos com o nazismo ou simpatizantes do fascismo.

Após 25 anos à frente da seção de etnologia do Museu Paulista, Baldus fez uma avaliação crítica da ação indigenista em três partes: proteção, pacificação e aculturação dirigida. Apesar dos esforços do Serviço de Proteção aos Índios e missões religiosas, vários grupos indígenas se encontravam isolados, vulneráveis e ameaçados de extermínio. Suas críticas ecoaram as do ex-diretor do SPI, José Maria da Gama Malcher, e se alinhavam às palavras de Darcy Ribeiro apresentadas no IV Congresso Indígena Interamericano, realizado no México em 1960 (Baldus, 1962BALDUS, H. Métodos e resultados da ação indigenista no Brasil. Revista de Antropologia , São Paulo, v. 10, p. 27-42, 1962., p. 37-38).

Como democrata e liberal, Baldus se opôs a toda discriminação racial. Em discurso como presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 1963, Baldus deplorou as afirmações racistas e destacou que, em um país com milhões de negros como o Brasil, muitas vezes são eles que ensinam aos outros o que é humanitarismo. Segundo Baldus, os corifeus da ideologia racista “já são fósseis para nós e não merecem controvérsia” (Baldus, 1963, apudPassador, 2002PASSADOR, L. H. Herbert Baldus e a antropologia no Brasil. 2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002., p. 173).

No mesmo discurso, o presidente da ABA reconheceu que racistas tinham os seus representantes “na Alemanha hitlerista” até “entre os antropólogos profissionais de bastante renome” (Baldus, 1963, apudPassador, 2002PASSADOR, L. H. Herbert Baldus e a antropologia no Brasil. 2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002., p. 173). Tal fato exigiu, provavelmente, de Baldus um maior cuidado em seus contatos com seus pares alemães e para fazer escolhas na hora de divulgar o trabalho deles por meio de traduções e publicações. Como apontou Orlando Sampaio-Silva (2000SAMPAIO-SILVA, O. O antropólogo Herbert Baldus. Revista de Antropologia , São Paulo, v. 43, n. 2, p. 23-79, 2000., p. 36):

Nota-se em Baldus interesse especial pelos autores de língua alemã, particularmente os alemães que contribuíram para o conhecimento dos índios do Brasil, com ensaios em língua germânica, como se percebe em seu trabalho “Beiträge in deutscher Sprache zur Indianerforschung in Brasilien (1954-1958)”.

Com ênfase na correspondência em alemão de Herbert Baldus com Richard Thurnwald entre 1947 e 1953 e nos artigos publicados em periódicos, como a revista Sociologia ou a Revista do Museu Paulista, percebe-se uma certa ambiguidade na mediação de Baldus, notadamente no que tange à relação entre ciência e política. A seguir, procuro discutir como etnólogos estrangeiros envolvidos com o nazismo tiveram o aval de Herbert Baldus para publicação de seus artigos ou resenhas de seus trabalhos em periódicos científicos dos meados do século XX.

Evidências de ambiguidades

Fundado em 1895, o Museu Paulista teve como primeiro diretor o naturalista alemão Hermann von Ihering, que criou a Revista do Museu Paulista (RMP). Sob a sua direção, o periódico espelhou a ênfase dada por ele à história natural da América do Sul e da qual os “povos da natureza” (“Naturvölker”) faziam parte, segundo a etnologia (Völkerkunde) em voga na Alemanha e da qual Hermann von Ihering era um dos seus representantes no Brasil. Segundo Baldus (1949BALDUS, H. Revista do Museu Paulista. Boletim Bibliográfico, São Paulo, v. 12, p. 169-171, 1949., p. 169), “sua dedicação ao estudo não só da fauna, mas também do índio, refletia-se igualmente na Revista do Museu Paulista, fundada por ele em 1895”.

Entre 1917 e 1945, o historiador Afonso d’Escragnolle Taunay foi o segundo diretor do Museu Paulista. Sob as suas diretivas houve uma série de mudanças na instituição, inclusive no seu periódico. Uma nova fase da RMP iniciou após a contratação de Herbert Baldus para a seção de etnologia. Como lembrou o próprio Baldus (1949BALDUS, H. Revista do Museu Paulista. Boletim Bibliográfico, São Paulo, v. 12, p. 169-171, 1949., p. 170):

Mas, quando o autor de “Raízes do Brasil” me confiou, com a chefia da nova secção, a direção de seu órgão, lembrei-me que havia uma tradição a respeitar. Na lista das revistas etnológicas do mundo inteiro, inserta no “Lehrbuch der Völkerkunde” de K. Th. Preuss, o Brasil é representado por três, sendo duas do Museu Nacional e, uma, a “Revista do Museu Paulista”.

Herbert Baldus tinha plena consciência que era preciso “conservar um nome já consagrado no mundo internacional dos etnólogos”. Ao mesmo tempo, ele inaugurou uma nova série da RMP. Desde o primeiro volume da nova série, a presença de americanistas alemães foi uma constante na RMP sob a direção de Baldus. O novo cargo no Museu Paulista foi para ele uma ocasião para recompor e ampliar a sua rede de contatos profissionais com ex-professores e colegas alemães. As cartas em alemão do diretor da RMP revelam a sua preocupação com o passado nazista de alguns nomes de potenciais colaboradores. Apesar das informações solicitadas e recebidas sobre o passado nazista de outrem, Baldus publicou na RMP alguns trabalhos de americanistas que estiveram comprometidos com o regime nazista ou que foram simpatizantes do fascismo italiano.

Na direção da RMP, Baldus procurou ampliar o reconhecimento nacional e internacional do periódico. Para isso, convidou colaboradores internacionais, inclusive americanistas alemães. Entre 1947 e 1952, a RMP publicou alguns artigos de americanistas alemães como Max Schmidt e Fritz Krause. Esse período pós-guerra foi marcado por uma certa reserva em nível internacional a despeito da desnazificação de alguns cientistas alemães. Muitos cientistas e intelectuais tinham deixado a Alemanha nazista (König, 1981KÖNIG, R. Die Situation der emigrierten deutschen Soziologen in Europa. In: WOLF, L. (Hrsg.). Geschichte der Soziologie: Studien zur kognitiven, sozialen und historischen Identität einer Disziplin. Frankfurt: Suhrkamp, 1981. Bd. 4, p. 115-158.; Papcke, 1997PAPCKE, S. L’exil allemand et la sociologie: 1933 et 1945. Genèses, [s. l.], n. 26, p. 143-153, 1997. DOI: https://doi.org/10.3406/genes.1997.1438.
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). Quem havia permanecido era suspeito, ainda mais que muitos passaram incólumes pela malha da desnazificação, como Eugen Fischer e Otmar von Verschuer. Entre os da geração de Herbert Baldus, Wilhelm Emil Mühlmann e Walter Krickeberg foram absolvidos de qualquer responsabilidade, enquanto Fritz Krause perdera alguns direitos, inclusive de docência.

Herbert Baldus sabia da posição nazista de alguns etnólogos alemães devido às informações contidas nas cartas de alguns remetentes como os professores Konrad Theodor Preuss e Richard Thurnwald. Algumas informações sobre o passado nazista de um ou outro chegaram após o fim da guerra quando a correspondência entre Baldus e Thurnwald foi retomada com regularidade entre 1947 e 1953.

No pós-guerra, Thurnwald lamentava a situação miserável de Berlim ocupada pelos aliados. Em sua carta datada de 12 de julho de 1947, Thurnwald agradeceu um pacote enviado por Baldus - Thurnwald usou a sigla da Cooperative for American Remittances to Europe em inglês com a palavra pacote (Paket) em alemão, como ficou chamado na época (“CARE-Paket”).47 47 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 12 de julho de 1947. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949). Dias mais tarde, em nova missiva, Thurnwald tratou dos honorários de uma publicação que podiam ser convertidos em alimentos. Sugeriu frutas secas, chocolate e outros doces, já que quase não se encontram frutas em Berlim.48 48 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 24 de julho de 1947. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949). Em sua carta de 2 de novembro de 1948, Thurnwald deplorava a sua situação: “Vivemos aqui como uma prisão”.49 49 No original: “Wir leben hier wie in einem Gefängnis”. Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 2 de novembro de 1948. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949). Afirmou ainda que trabalhava em casa com a esposa em condições muito difíceis, pois os cortes diários de energia eram longos, sem falar na falta de carvão para aquecimento. A miséria em Berlim era indescritível e os berlinenses usavam roupas esfarrapadas, afirmou Thurnwald. Já Hilde Thurnwald, em carta datada de 11 de março de 1949, relatava uma situação menos lamentável do que a descrita por seu marido: “Meu marido e eu não devemos reclamar. Em comparação com as condições médias, estamos indo muito bem. Também temos um apartamento confortável e carvão suficiente”.50 50 Carta de Hilde Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 11 de março de 1949. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).

A análise da correspondência de Baldus com o casal Thurnwald mostra que os laços de amizade ficaram mais fortes depois do encontro deles nos Estados Unidos em 1949. Para Baldus, Thurnwald não era apenas o mestre, mas também um conselheiro. Em carta datada de 7 de janeiro de 1950, ele pediu alguns conselhos a Thurnwald, pois estava preocupado com o seu futuro e pensava em retornar para a Alemanha. A resposta de Thurnwald não demorou a chegar. Em 20 de março de 1950, o mestre aconselhou o discípulo a ficar em São Paulo, ou pelo menos no hemisfério sul.51 51 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 20 de março de 1950. AMP/P21: Série: Correspondência (1950-1952).

Além da amizade entre os dois homens, a correspondência demonstra suas trocas intelectuais. Periódicos científicos, artigos ou livros eram enviados de um para o outro e teve início um trabalho em parceria para a revista Sociologus, cujo editor era Thurnwald.52 52 Richard Thurnwald fundou a Zeitschrift für Völker-Psychologie und Soziologie em 1925. Posteriormente, a revista mudou o seu nome para Sociologus, Zeitschrift für empirische Soziologie, Sozialpsychologische und ethnologische Forschung. Artigo de Baldus foi publicado na primeira edição de Sociologus do pós-guerra. Para a sua revista, Thurnwald contou com a colaboração de Herbert Baldus (São Paulo, Brasil), Wolfram Eberhard (Berkeley, Estados Unidos), Douglas G. Haring (Syracusa, Estados Unidos), A. L. Kroeber (Nova York, Estados Unidos), F. Rudolf Lehmann (Potchefstroom, África do Sul), Günter Wagner (Windhoek, sob supervisão da África do Sul), Ernst Wahle (Heidelberg, Alemanha) e Diedrich Westermann (Baden em Bremen, Alemanha). Em 22 de fevereiro de 1951, Thurnwald pediu a seu amigo no Brasil alguns nomes de pesquisadores que poderiam contribuir para a revista. Baldus respondeu em carta de 1º de março de 1951. Ele deu algumas sugestões para nomes de pesquisadores na América do Sul, como o naturalista e antropólogo italiano José Imbelloni, diretor do Museu Etnográfico de Buenos Aires, e conhecido como “fascista, germanófilo e americanofóbico”.53 53 No original: “Faschist, Deutschenfreund und Hasser der Nordamerikaner”. Carta de Herbert Baldus a Richard Thurnwald, São Paulo, 1o de março de 1951. AMP/P21: Série: Correspondência (1950-1952). Embora se encontrassem “alguns disparates” em seus escritos, o nome de Imbelloni foi indicado por Baldus. Por seu turno, Emilio Willems (1945)WILLEMS, E. Alguns estudos recentes de antropologia física. Boletim Bibliográfico , São Paulo, v. 6, p. 23-45, 1945. referia-se, sem constrangimentos, aos trabalhos de Imbelloni em seu artigo sobre antropologia física.

No pós-guerra, o “fascista” José Imbelloni teve artigos publicados na Revista de Antropologia (Imbelloni, 1953IMBELLONI, J. Las formaciones humanas del planalto y del borne maritmo del Brasil en el panorama de las razas de América. Revista de Antropologia , São Paulo, v. 1, n. 2, p. 109-122, 1953.) e na Revista do Museu Paulista (Imbelloni, 1956-1958IMBELLONI, J. Las reliquias del sambaquí: colecciones de cráneos, autores y métodos 1872-1951. Revista do Museu Paulista, Nova Série, São Paulo, v. 10, p. 243-280, 1956-1958.). Na primeira, o editor era o antropólogo Egon Schaden, discípulo de Baldus, e na segunda, o próprio Baldus. O editor da RMP esteve suficientemente informado sobre o passado nazista ou fascista de quem ele convidava para colaborar em periódicos sob a sua direção ou dos quais era membro do conselho editorial e/ou científico. Ao menos, a correspondência dele com Thurnwald revela a troca de informações sobre as atitudes políticas de terceiros.

Em uma carta datada de 17 de fevereiro de 1948, Baldus respondeu ao pedido de Thurnwald sobre um certo Mayntzhusen. Thurnwald havia recebido um manuscrito de Mayntzhusen, de quem Baldus fez um retrato nada lisonjeiro. Apesar de Mayntzhusen ser um “nazista selvagem” (“wilder Nazi”), Baldus deu parecer favorável para publicação do seu manuscrito, pois seria, sem dúvida, uma importante contribuição para “nossa ciência”.54 54 Carta de Herbert Baldus a Richard Thurnwald, São Paulo, 17 de fevereiro de 1948. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).

Em carta de 18 de setembro de 1948, Baldus informava que desejava ajudar Martin Haetinger, um imigrante alemão que se apresentou como um ex-aluno de Thurnwald. Baldus pediu ao seu mestre algumas informações sobre a sua habilidade científica e a sua atitude política. Em 24 de novembro de 1948, Thurnwald respondeu dizendo que Haetinger havia feito uma boa tese e que tinha pontos fortes. Ainda assim, Thurnwald suspeitava que Haetinger estivesse entre os “seguidores” (“Mitläufern”) do regime nazista. Ele advertiu que Haetinger não foi um ativista como Mühlmann, autor de livros de propaganda nazista e que buscava, agora, redimir-se.55 55 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 24 de novembro de 1948. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).

Em carta de 1º de fevereiro de 1949, Baldus agradeceu a Thurnwald pelas informações sobre Haetinger e perguntou novamente sobre a atitude política do professor Franz Termer durante o período nazista. Baldus desconfiava que Termer recomendara Haetinger para protegê-lo e que nisso haveria uma simpatia ideológica entre o professor e o seu assistente. Thurnwald admitiu que não sabia se Termer era nazista em sua carta datada de 11 de março de 1949, mas acrescentou que Termer contratou Haetinger e outro nazista no Museu de Etnologia de Hamburgo. Thurnwald ponderou que algumas pessoas estavam em uma posição difícil naquela época. Ele afirmou que ele próprio deixou Berlim quando se viu na mira do africanista Heinz Sölken. Além disso, ele deplorava a permanência no meio acadêmico de alguns “senhores desnazificados”.56 56 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 11 de março de 1949. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949). Thurnwald não deu nomes, mas, provavelmente, estava pensando, entre outros, em Walter Krickeberg e Wilhelm Mühlmann.

Em 18 de julho de 1947, durante uma reunião para a retomada da Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte, Thurnwald se opôs à inclusão do nome de Krickeberg na lista dos membros fundadores por ser um “nazista”. Krickeberg não estava presente na reunião, mas escreveu ao seu detrator e exigiu uma retratação de Thurnwald, caso contrário, ele entraria com um recurso contra Thurnwald. A relação entre os dois homens era tensa desde os ataques de Krickeberg ao livro de etnologia editado por Konrad Theodor Preuss.57 57 Para mais detalhes sobre a denúncia de Krickeberg e sua diatribe com Thurnwald, veja o capítulo 5 da tese de Norbert Díaz de Arce (2005, p. 153-181).

Na altura, Thurnwald foi acusado de fazer uma etnologia insuficientemente “ariana” e de ter publicado em sua revista artigos de autores judeus. Outra diatribe envolveu Krickeberg, Baumann e Thurnwald. Este último não abordou o seu acerto de contas com Krickeberg em sua correspondência com Baldus. Ao seu discípulo no Brasil, compartilhou outros desafetos, como o seu ressentimento em relação a Mühlmann, seu ex-aluno, e que também havia se envolvido na diatribe iniciada por Krickeberg em 1937.

Em 1937, Herbert Baldus (1937)BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. publicou Ensaios de etnologia brasileira, com prefácio de Affonso de E. Taunay, então diretor do Museu Paulista. Nesses ensaios pululam as referências aos americanistas alemães. Contudo, não há nenhuma referência ao nome de Walter Krickeberg. Talvez a ausência de qualquer referência tenha a ver com a hostilidade de Krickeberg e pelo fato de ele ter acusado Baldus de ser comunista e um inimigo da Alemanha. Apesar disso, Baldus procurou separar política de ciência durante os anos de guerra, mas também no pós-guerra. No Dicionário de Etnologia e Sociologia, organizado por Baldus e Willems (1939)BALDUS, H.; WILLEMS, E. Dicionário de etnologia e sociologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional , 1939. e publicado em 1939, o nome de Krickeberg aparece relacionado a três verbetes. Na introdução de sua Bibliografia crítica da etnologia brasileira, Baldus (1954aBALDUS, H. Introdução. In: BALDUS, H. Bibliografia crítica da etnologia brasileira. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, Serviço de Comemorações Culturais, 1954a. v. 1, p. 9-24. Disponível em: Disponível em: http://etnolinguistica.wikidot.com/biblio:baldus-1954-bibliografia . Acesso em: 20 mar. 2021.
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, p. 17) ainda reservou um lugar importante para Krickeberg entre aqueles que, depois de Martius e Ehrenreich, procuraram sintetizar o material a respeito da etnologia brasileira.

Outro nome que aparece na correspondência entre Baldus e Thurnwald é o do americanista alemão Fritz Krause. Desde 1944, Krause não trabalhava mais no Museu de Etnologia de Leipzig. Devido ao processo de desnazificação, ele foi demitido dos serviços públicos por causa do seu passado nazista. Ele também perdeu a sua licença para ensinar.

Em 1952, dois artigos de Fritz Krause foram publicados na Revista do Museu Paulista. Sérgio Buarque de Holanda traduziu os dois artigos. O primeiro artigo tratou da alcova de parto entre os Bakairi, do qual a principal fonte foi o caderno de esboços de Wilhelm von den Steinen durante a segunda expedição de seu primo Karl von den Steinen ao Brasil entre 1887 e 1888. O outro artigo foi sobre tatuagem de unhas entre os Yamarikumá, do qual as fontes foram o diário de viagem e um esboço de Herrmann Meyer durante sua expedição ao Brasil em 1896.

O diretor da RMP foi informado por Richard Thurnwald que Fritz Krause era um nazista em sua carta datada de 3 de dezembro de 1947. Nessa carta, o remetente informou que Fritz Krause estava em dificuldades por ter sido um membro do partido (Parteigenosse), assim como Wilhelm Emil Mühlmann. Thurnwald ressaltou que Krause não seguiu os nazistas por muito tempo, enquanto Mühlmann era autor de um livro de propaganda.58 58 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 3 de dezembro de 1947. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).

Os dois trabalhos de Krause publicados na RMP em 1952 demonstram que Baldus e Holanda não se preocuparam, respectivamente, em publicar e traduzir a obra de um etnólogo que se comprometera com o Terceiro Reich. Essas traduções e publicações permitem, outrossim, compreender uma visão nada naïve da relação entre ciência e política.

Um outro trabalho de Fritz Krause foi publicado no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, quando ele estava ainda a frente do Museu de Etnologia de Leipzig. Trata-se de “Nos sertões do Brasil” (In den Wildnissen Brasiliens), obra traduzida por Egon Schaden e publicada em partes na Revista do Arquivo Municipal entre 1940 e 1944 (ver, por exemplo, Krause, 1940aKRAUSE, F. Nos sertões do Brasil. Revista do Arquivo Municipal , São Paulo, v. 66, p. 47-58, 1940a., 1940bKRAUSE, F. Nos sertões do Brasil. Revista do Arquivo Municipal , São Paulo, v. 67, p. 175-204, 1940b., 1940cKRAUSE, F. Nos sertões do Brasil. Revista do Arquivo Municipal , São Paulo, v. 68, p. 175-198, 1940c., 1940dKRAUSE, F. Nos sertões do Brasil. Revista do Arquivo Municipal , São Paulo, v. 69, p. 213-221, 1940d.). O original em alemão tinha sido publicado em Leipzig em 1911.

Ainda em 1960, um artigo de Fritz Krause sobre máscaras grandes do alto Xingu, com 12 figuras e 8 pranchas fora do texto, foi publicado na RMP (Krause, 1960KRAUSE, F. Máscaras grandes do alto Xingu. Revista do Museu Paulista , Nova Série, São Paulo, v. 12, p. 87-124, 1960.). Herbert Baldus sempre teve em conta o trabalho de Krause realizado nas selvas brasileiras na primeira década do século XX. Assim como os seus tradutores (Egon Schaden e Sérgio Buarque de Holanda), Baldus preferiu guardar silêncio sobre os anos sombrios de Fritz Krause. Por outro lado, o silêncio pode indicar a capacidade de Baldus em perdoar. Cabe lembrar que o ato de perdoar ou de ser perdoado não significa esquecer e pode ajudar a resolver ou amenizar conflitos com si mesmo e com outrem. O perdão pode dar uma chance para um novo começo. Mesmo que Krause tenha sido réu no processo de desnazificação do pós-guerra, parece que Baldus preferia virar a página.

Nas cartas de Baldus do período do pós-guerra, percebe-se o seu interesse pelo eventual envolvimento de americanistas alemães com o nazismo. Elas contêm ainda indícios da faculdade de indulgência de Baldus para com alguns de seus interlocutores alemães. Na correspondência entre Herbert Baldus e Richard Thurnwald, encontra-se uma série de evidências da dificuldade de ambos em lidar com o constrangimento do passado nazista de outrem. As missivas de Thurnwald revelam ainda o seu cinismo, conquanto o seu silêncio sobre certas questões parece sintomático de uma atitude coletiva de parte da população alemã do pós-guerra.59 59 Durante uma estada na Alemanha do pós-guerra, o sociólogo americano Everett Cherrington Hugues entrevistou alemães sobre temas como nazismo, racismo, campos de concentração, a solução final, etc. Em artigo publicado mais tarde, Hugues (1962) tratou da relação entre “boa gente” (“good people”) e “trabalho sujo” (“dirty work”) e na qual identificou uma atitude coletiva de certa cumplicidade dessa “boa gente” com quem tinha que fazer o “trabalho sujo”. Se Thurnwald não se privou de comentar sobre a sorte dos outros em sua correspondência com Baldus, ele soube guardar silêncio sobre os seus anos sombrios (1936-1945).

Desde 1953, Herbert Baldus era o diretor do Museu Paulista da USP, cargo que ocuparia até 1960 (Sampaio-Silva, 2000SAMPAIO-SILVA, O. O antropólogo Herbert Baldus. Revista de Antropologia , São Paulo, v. 43, n. 2, p. 23-79, 2000., p. 36). Também era o presidente do comitê de organização do XXXI Congresso Internacional dos Americanistas, que foi realizado em São Paulo no mês de agosto de 1954. Desde 1953, Baldus contava com a participação de Thurnwald no evento (Baldus, 1954bBALDUS, H. Richard Thurnwald 1860-1954. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 47-52, 1954b., p. 51). A morte do mestre, em janeiro de 1954, deixou ao discípulo o consolo de uma homenagem póstuma durante o seu discurso de abertura do supracitado congresso em 23 de agosto de 1954 (Baldus, 1955BALDUS, H. Discurso do Professor Herbert Baldus, Presidente da Comissão Organizadora. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS, 31., São Paulo, 1954. Anais […]. São Paulo: Anhembi, 1955. v. 1, p. xliii-l.); aliás, poucas horas antes do suicídio de Getúlio Vargas.

Considerações finais

As escolhas de Baldus para a divulgação científica da etnologia alemã no Brasil têm sido tratadas na antropologia brasileira sem levar muito em conta as suas ambiguidades. Geralmente, a notória postura antifascista de Baldus e o seu apego aos valores da democracia liberal inibem a crítica sobre as contradições e os eventuais conflitos internos - e demasiadamente humanos - de alguém que procurou separar política e ciência. Porém, Baldus se envolveu em intrigas em meados da década de 1930, sobre as quais a sua correspondência revela algumas declarações graves.

Como mediador, Baldus conseguiu de alguma forma “adaptar” a etnologia alemã em dois contextos brasileiros diferentes, ou seja, os anos do regime autoritário do Estado Novo (1937-1945) e os do período do pós-guerra. Se essa adaptação passou por certos filtros de leitura, tentando privilegiar os trabalhos de síntese ou mais teóricos e contornar qualquer vestígio colonial ou nazista, cabe questionar as motivações de Baldus - talvez mais pessoais e políticas do que científicas - e suas repercussões na antropologia brasileira.

Assim como Curt Nimuendajú, Herbert Baldus foi um dos fundadores da antropologia brasileira. Ambos organizaram e venderam coleções etnográficas e seus respectivos legados em termos de produção intelectual representam uma transição da tradição etnográfica alemã do século XIX para a moderna antropologia dos meados do século XX. Contudo, a deontologia de suas práticas em trabalhos de campo, em venda de coleções, em publicação e na divulgação científica, tem sido tratada mais nas entrelinhas de alguns textos da antropologia (Françozo, 2007FRANÇOZO, M. Os outros alemães de Sérgio: etnografia e povos indígenas em Caminhos e fronteiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais , São Paulo, v. 22, n. 63, p. 137-152, fev. 2007.; Passador, 2002PASSADOR, L. H. Herbert Baldus e a antropologia no Brasil. 2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.; Petschelies, 2019PETSCHELIES, E. As redes da etnografia alemã no Brasil (1884-1929). 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.; Welper, 2016WELPER, E. M. Da vida heroica ao diário erótico: sobre as mortes de Curt Nimuendajú. Mana, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 551-586, 2016.), mesmo que alguns artigos da década de 1980 (Corrêa, 1988CORRÊA, M. Traficantes do excêntrico: os antropólogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 6, n. 3, p. 79-98, 1988.; DaMatta, 1985DAMATTA, R. De volta aos Tristes Trópicos: notas sobre Lévi-Strauss e o Brasil. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v. 4, n. 21, p. 78-80, nov./dez. 1985.; Taylor, 1984TAYLOR, A.-C. L’americanisme tropical, une frontière fossile de 1’ethnologie? In: RUPP-EISENREICH, B. (dir.). Histoires de l’anthropologie: XVI-XIX siècles. Paris: Klinksieck, 1984. p. 213-33.) já tenham discutido de forma mais crítica sobre a contribuição de americanistas estrangeiros.

Atualmente, a chamada “descolonização dos museus” fomenta uma discussão sobre as formas possíveis de restituição de objetos etnográficos cuja recolha foi feita à época dos impérios coloniais. Com base na documentação dos museus e na correspondência dos colecionadores e curadores sobre as expedições e as aquisições de coleções, novas pesquisas podem trazer à luz muita informação sobre as formas de coleta e de aquisição de coleções “brasilianas” para museus estrangeiros desde Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Theodor Koch-Grünberg, Max Schmidt e Fritz Krause até Curt Nimuendajú e Herbert Baldus. Nota-se que a recolha da maioria das coleções de etnologia brasileira dos museus alemães foi realizada durante as primeiras décadas do período republicano. Apesar disso, os métodos empregados e a deontologia dos americanistas alemães não diferiam muito dos etnólogos africanistas que realizaram expedições durante o colonialismo. O que relatou Michel Leiris (1934)LEIRIS, M. L’Afrique fantôme. Paris: Gallimard, 1934. sobre os métodos empregados na recolha de objetos pela missão etnográfica Dakar-Djibouti (1931-1933), dirigida por Marcel Griaule, permite imaginar o que pode também ter ocorrido durante as expedições de americanistas alemães no Brasil. A atividade de colecionador de Baldus precisa ser ainda estudada.

A frustrada carreira literária de Baldus, a condição de expatriado, as dificuldades financeiras e as intrigas e as decepções da fase inicial de sua trajetória profissional no Brasil podem ter interferido nas suas escolhas para divulgação científica durante os anos de guerra e do pós-guerra. Nesse sentido, os afetos e desafetos afirmam a dimensão humana das atividades de Baldus, sobretudo na sua mediação seletiva da etnologia alemã no Brasil. As ambiguidades, os silêncios, os ressentimentos e as contradições na correspondência em alemão de Baldus devem ser contextualizados para lograr uma compreensão da contribuição e dos limites de uma geração de americanistas alemães na história da antropologia brasileira.

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  • 1
    O presente trabalho foi realizado durante a pandemia do coronavírus. Impedido de viajar para consultar arquivos nacionais e estrangeiros, agradeço a Eric Santos Alves pela cópia da correspondência entre Herbert Baldus e Richard Thurnwald, do Arquivo do Museu Paulista, a Elena Welper pela cópia de uma carta de Richard Thurnwald (02/10/1939), do Arquivo Edgard Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas, e a Judith Syga-Dubois pela cópia da documentação relativa à candidatura de Baldus para uma bolsa da Fundação Rockefeller, em 1932, conservada na Biblioteca Pública de Oldenburg (Alemanha). Agradeço ainda às pessoas que elaboraram os pareceres anônimos pela leitura acurada. Uma parte deste artigo foi apresentada no Colóquio Internacional “Changing Fields. Hilde and Richard Thurnwald’s Ethnology”, realizado na Université Sorbonne-Nouvelle entre os dias 7 e 9 de julho de 2021. Com exceção das cartas de Baldus organizadas e publicadas em Elena Welper (2019)WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019. com tradução de Peter Welper, as traduções das citações são todas minhas.
  • 2
    Para Eduardo Viveiros de Castro (1992VIVEIROS DE CASTRO, E. O campo na selva, visto da praia. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 170-190, 1992., p. 177), “os naturalistas e etnólogos alemães que andaram por aqui no século XIX e começo do século XX não chegaram a se impor à tradição acadêmica moderna, embora tenham influenciado decisivamente o americanismo”. Ainda sobre a tradição dos americanistas alemães, ver o dossiê “German-Speaking Anthropologists in Latin America, 1884-1945” (Revista de Antropologia, 2019REVISTA DE ANTROPOLOGIA. São Paulo, v. 62, n. 1, 2019.).
  • 3
    Carta de recomendação de Richard Thurnwald (28/01/1932) a August Wilhelm Fehling, responsável pela seleção de bolsistas alemães da Fundação Rockefeller. Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
  • 4
    No original: “Wenn die Rockefeller-Stipendiaten als eine Elite der kommenden Generation deutscher Gelehrter angesehen werden sollen, so würde ich Baldus nicht als geeigneten Kandidaten ansehen.” Carta de recomendação de D. Westermann (16/01/1932) a August Wilhelm Fehling, responsável pela seleção de bolsistas alemães da Fundação Rockefeller. Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
  • 5
    As cartas de recomendação dos professores Lehmann e Westermann para o candidato à bolsa da Fundação Rockefeller sugerem que Baldus teria mais chances na América do Sul do que na América do Norte. Em seu dossiê de candidatura, o próprio Baldus expressou o seu interesse em fazer uma nova viagem pela América do Sul e vir a ser professor de etnologia e americanista. Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
  • 6
    Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 11 de setembro de 1939.
  • 7
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 20 de julho de 1934.
  • 8
    Ulla e Herbert Baldus eram casados desde outubro de 1929, segundo o curriculum vitae apresentado por ele para candidatura de uma bolsa da Fundação Rockefeller. Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
  • 9
    Carta de Herbert Baldus para Konrad Theodor Preuss, São Paulo, 20 de julho de 1934.
  • 10
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 25 de outubro de 1934.
  • 11
    Carta de Herbert Baldus para Theodor K. Preuss, São Paulo, 20 de julho de 1934.
  • 12
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 17 de dezembro de 1934.
  • 13
    No original: “Er versichert mir seine positive Einstellung zum Dritten Reich und bittet mich, Ihnen gegenüber diese seine politische Gesinnung zum Ausdruck zu bringen.”
  • 14
    Sobre os ataques de Krickeberg e suas diatribes, ver a tese de Norbert Díaz de Arce, especialmente o seu quinto capítulo (Díaz de Arce, 2005DÍAZ DE ARCE, N. Plagiatsvorwurf und Denunziation: Untersuchungen zur Geschichte der Altamerikanistik in Berlin (1900-1945). 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Livre de Berlim, Berlim, 2005. Disponível em: Disponível em: https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub188/6962 . Acesso em: 20 mar. 2021.
    https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub...
    , p. 153-181).
  • 15
    Carta de Curt Nimuendajú para Emil-Heinrich Snethlage, Belém do Pará, 14 de agosto de 1939.
  • 16
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 20 de julho de 1934.
  • 17
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 11 de outubro de 1937.
  • 18
    Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 22 de novembro de 1937.
  • 19
    Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 22 de novembro de 1937.
  • 20
    Sobre a correspondência de Nimuendajú e Lévi-Strauss, ver Welper (2020)WELPER, E. M. Interwar anthropology from the global periphery: Curt Nimuendajú’s correspondence with Robert Lowie and Claude Lévi-Strauss. Journal of Ethnographic Theory, [s. l.], v. 10, n. 2, p. 670-680, 2020..
  • 21
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1936.
  • 22
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 11 de outubro de 1937.
  • 23
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1937.
  • 24
    Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 11 de setembro de 1939.
  • 25
    Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Boa Vista, 6 de julho de 1937.
  • 26
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 6 de novembro de 1935.
  • 27
    No original: “Sie werden sich entsinnen, dass vor einiger Zeit Dr. Herbert Baldus, der z. Zt. mit Mitteln der Notgemeinschaft als Ethnograph im Chaco reist und auch für deutsche Museen sammelt, um die Mitgliedschaft in der Anthropologischen Gesellschaft nachsuchte.”
  • 28
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1935.
  • 29
    Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 20 de fevereiro de 1936.
  • 30
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.
  • 31
    Ver curriculum vitae (Lebenslauf) de Baldus e também carta de recomendação do professor Lehmann (05/02/1932). Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
  • 32
    Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 21 de março de 1944.
  • 33
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 1º de março de 1944.
  • 34
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.
  • 35
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.
  • 36
    Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Boa Vista, 6 de julho de 1937.
  • 37
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.
  • 38
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 26 de abril de 1940.
  • 39
    Ver texto de Eduardo Viveiros de Castro publicado na orelha do livro Chamada da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus (Welper, 2019WELPER, E. M. (org.). Chamado da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus . Rio de Janeiro: Camera Books , 2019.).
  • 40
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 19 de fevereiro de 1943.
  • 41
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 19 de fevereiro de 1943.
  • 42
    Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 6 de abril de 1945.
  • 43
    Em 1905, Thurnwald fundara com Alfred Ploetz e Ernst Rüdin a Sociedade para a Higiene Racial (Gesellschaft für Rassenhygiene). Thurnwald foi também um dos editores do periódico Archiv für Rassen- und Gesellschafts-Biologie.
  • 44
    Ver http://acervus.unicamp.br/index.asp?codigo_sophia=235935.
  • 45
    Ver http://acervus.unicamp.br/index.asp?codigo_sophia=249419.
  • 46
    Cópia do contrato de Baldus encontra-se no Arquivo do Museu Paulista. AMP/Set-Dez.1946.
  • 47
    Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 12 de julho de 1947. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
  • 48
    Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 24 de julho de 1947. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
  • 49
    No original: “Wir leben hier wie in einem Gefängnis”. Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 2 de novembro de 1948. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
  • 50
    Carta de Hilde Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 11 de março de 1949. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
  • 51
    Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 20 de março de 1950. AMP/P21: Série: Correspondência (1950-1952).
  • 52
    Richard Thurnwald fundou a Zeitschrift für Völker-Psychologie und Soziologie em 1925. Posteriormente, a revista mudou o seu nome para Sociologus, Zeitschrift für empirische Soziologie, Sozialpsychologische und ethnologische Forschung. Artigo de Baldus foi publicado na primeira edição de Sociologus do pós-guerra. Para a sua revista, Thurnwald contou com a colaboração de Herbert Baldus (São Paulo, Brasil), Wolfram Eberhard (Berkeley, Estados Unidos), Douglas G. Haring (Syracusa, Estados Unidos), A. L. Kroeber (Nova York, Estados Unidos), F. Rudolf Lehmann (Potchefstroom, África do Sul), Günter Wagner (Windhoek, sob supervisão da África do Sul), Ernst Wahle (Heidelberg, Alemanha) e Diedrich Westermann (Baden em Bremen, Alemanha).
  • 53
    No original: “Faschist, Deutschenfreund und Hasser der Nordamerikaner”. Carta de Herbert Baldus a Richard Thurnwald, São Paulo, 1o de março de 1951. AMP/P21: Série: Correspondência (1950-1952).
  • 54
    Carta de Herbert Baldus a Richard Thurnwald, São Paulo, 17 de fevereiro de 1948. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
  • 55
    Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 24 de novembro de 1948. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
  • 56
    Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 11 de março de 1949. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
  • 57
    Para mais detalhes sobre a denúncia de Krickeberg e sua diatribe com Thurnwald, veja o capítulo 5 da tese de Norbert Díaz de Arce (2005DÍAZ DE ARCE, N. Plagiatsvorwurf und Denunziation: Untersuchungen zur Geschichte der Altamerikanistik in Berlin (1900-1945). 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Livre de Berlim, Berlim, 2005. Disponível em: Disponível em: https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub188/6962 . Acesso em: 20 mar. 2021.
    https://refubium.fu-berlin.de/handle/fub...
    , p. 153-181).
  • 58
    Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 3 de dezembro de 1947. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
  • 59
    Durante uma estada na Alemanha do pós-guerra, o sociólogo americano Everett Cherrington Hugues entrevistou alemães sobre temas como nazismo, racismo, campos de concentração, a solução final, etc. Em artigo publicado mais tarde, Hugues (1962)HUGUES, E. C. Good people and dirty work. Social Problems, Oxford, v. 10, p. 85-97, 1962. tratou da relação entre “boa gente” (“good people”) e “trabalho sujo” (“dirty work”) e na qual identificou uma atitude coletiva de certa cumplicidade dessa “boa gente” com quem tinha que fazer o “trabalho sujo”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2021
  • Aceito
    01 Jul 2021
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