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O mar por tradição: o património e a construção das imagens do turismo<a name=vnota></a>

Resumos

Tomando por base a argumentação de MacCannell, segundo a qual os turistas são estruturalistas arquetípicos em busca de "imagens autênticas" de um tempo mítico, este artigo analisa a forma como o património é utilizado para fornecer o suporte cenográfico necessário à construção dos destinos turísticos. Ilustrando com um caso de activação patrimonial numa localidade de forte tradição piscatória do litoral português, procura-se simultaneamente acrescentar uma reflexão sobre a reciprocidade existente entre os usos simbólico, político e económico do património quando os vários actores sociais se envolvem na sua activação.

identidade; memória; património; turismo


This article analyses the way that patrimony is used to supply the necessary scenographical assistance in the construction of touristic destinations, based on MacCannell, who argues that tourists are archetypical structuralists in search of "authentic images" of a mythical time. Also, this article reflects upon the existing reciprocity between the symbolic, political, and economic uses of patrimony, when the different social actors are involved in activating that patrimony. Thoughts on this reciprocity are here illustrated with a case of patrimonial activation at place in the Portuguese coast with a strong fishing tradition.

identity; memory; patrimony; tourism


ARTIGOS

O mar por tradição: o património e a construção das imagens do turismo* * Neste artigo foi mantida a grafia vigente em Portugal (N. do Org.).

Elsa Peralta

Universidade Técnica de Lisboa – Portugal

RESUMO

Tomando por base a argumentação de MacCannell, segundo a qual os turistas são estruturalistas arquetípicos em busca de "imagens autênticas" de um tempo mítico, este artigo analisa a forma como o património é utilizado para fornecer o suporte cenográfico necessário à construção dos destinos turísticos. Ilustrando com um caso de activação patrimonial numa localidade de forte tradição piscatória do litoral português, procura-se simultaneamente acrescentar uma reflexão sobre a reciprocidade existente entre os usos simbólico, político e económico do património quando os vários actores sociais se envolvem na sua activação.

Palavras-chave: identidade, memória, património, turismo.

ABSTRACT

This article analyses the way that patrimony is used to supply the necessary scenographical assistance in the construction of touristic destinations, based on MacCannell, who argues that tourists are archetypical structuralists in search of "authentic images" of a mythical time. Also, this article reflects upon the existing reciprocity between the symbolic, political, and economic uses of patrimony, when the different social actors are involved in activating that patrimony. Thoughts on this reciprocity are here illustrated with a case of patrimonial activation at place in the Portuguese coast with a strong fishing tradition.

Keywords: identity, memory, patrimony, tourism.

Para que serve o património? Para que servem as ruínas e as pedras que protegemos contra a erosão do tempo? Porque erigimos museus e casas de cultura onde depositamos os resíduos dos factos da história ou os modus vivendi que queremos preservar no presente e legar para o futuro. Que valor tem a "tradição"? Praticamente todas as investigações que tenho desenvolvido até ao momento dedicam-se à indagação de estas e outras questões relacionadas com o património cultural, tendo procurado, em sucessivos terrenos de pesquisa, dados que me permitam explorar essa problemática.

Foram também essas questões que coloquei a mim própria quando me dirigi a Ílhavo pela primeira vez e, inesperadamente, me deparei com o seu Museu Marítimo, uma portentosa obra de arquitectura de estilo modernista, situada numa localidade afastada dos centros cosmopolitas da oferta cultural e sem outras referências arquitectónicas de relevo para além de alguns quase sempre decrépitos exemplares de Arte Nova que abundam naquela região. Aliás, Ílhavo pode ser considerado como um bom exemplo do desordenamento urbanístico e paisagístico que caracteriza quase todo o litoral português, especialmente aquela faixa localizada a norte da bacia do Tejo, e que é resultado de dinâmicas de crescimento urbano e da pressão de um sistema produtivo que se caracteriza pela coexistência de explorações agrícolas de tipo familiar com uma industrialização difusa e com actividades terciárias emergentes. Além disso, esta é uma zona que debitou consideráveis fluxos de emigrantes, cujas remessas foram empregues na construção de habitações próprias que reflectiam as influências culturais a que foram sujeitos no estrangeiro e que adulteraram o ordenamento paisagístico da região.

No caso concreto de Ílhavo, essas dinâmicas são acompanhadas de uma considerável pressão turística, motivada pelas duas vastas praias que se situam no concelho, a praia da Barra e a da Costa Nova, e pela proximidade com a Ria de Aveiro, uma zona lagunar. Não dispondo, assim, de um património construído de interesse, nem no que se refere à arquitectura civil nem a elementos monumentais, salvo alguns exemplares de arquitectura militar, como é o caso do farol da Barra, Ílhavo dispõe de elementos paisagísticos importantes, para além de deter uma interessante memória social, associada à vivência marítima das suas gentes.

Apesar da capacidade de captação de fluxos turísticos, a procura gerada é altamente sazonal, concentrando-se especialmente nos meses de Verão, não existindo, para além de uma paisagem já um pouco desqualificada, outros elementos de atracção, nomeadamente, os históricos e os culturais. Foi, por isso, com alguma estranheza, que me deparei com a imponência do Museu Marítimo de Ílhavo, com a modernidade das suas linhas arquitectónicas, tão discrepantes do resto da paisagem.

O que faria, então, ali, tão imponente obra de arquitectura? Para que serve, afinal, o Museu Marítimo de Ílhavo? Sugerir uma interpretação para essas questões e, simultaneamente, reflectir sobre para que serve o património, é o propósito deste artigo.

Os usos do património

O património, de que tipo seja, serve sempre para qualquer coisa. Na definição do conceito Llorenç Prats considera-o, antes de mais, uma construção social (1997, p. 19), porque para que determinados elementos se constituam como património têm de ser resgatados de um corpus cultural mais ou menos difuso e sujeitos a uma engenharia social que lhes confere valor e significado. A conversão de objectos e fenómenos culturais em património não é espontânea nem natural. Nem sequer é um fenómeno cultural universal. O património constrói-se, ou, se se quiser, utilizando as palavras de Llorenç Prats, "activa-se" (1997, p. 31). O que quer dizer que toda a operação de construção ou activação patrimonial comporta em si mesma um propósito ou uma finalidade. Existe uma dimensão utilitária inerente a todo o processo de construção patrimonial.

Essa dimensão utilitária é moderada pelo valor de identificação simbólica que é reconhecido ao património. Mas também aqui ela está presente. Sendo uma idealização construída por uma sociedade sobre quais são os seus próprios valores culturais, o património serve, antes de mais, a fins de identificação colectiva, veiculando uma consciência e um sentimento de grupo, para os próprios e para os demais, erigindo, nesse processo, fronteiras diferenciadoras que permitem manter e preservar a identidade colectiva. É uma síntese simbólica (Santana Talavera, 1998, p. 37), permeável às flutuações da moda e aos critérios de gosto dominantes e matizada pelo figurino intelectual, cultural e psicológico de uma época, que compreende todos aqueles elementos que fundam a identidade de um grupo e que os diferenciam dos demais. Como Geertz (2000, p. 91) sublinha, os símbolos são "fontes extrínsecas de informação", que comunicam a pertença a um nós por contraponto a uma não pertença a um outro.

Nesse sentido, o património é sempre uma autodefinição cultural, materializada em estandartes públicos, que se fundamenta no passado e numa especificidade etnocultural, cujos elementos são articulados de forma arbitrária para servir o projecto colectivo, sendo que esse projecto é definido, as mais das vezes, por propostas de cunho ideológico emanadas das esferas políticas. Mas alimentando-se do passado para a sua formulação, o património não é o mesmo que os vestígios tangíveis do processo histórico. O património, como interpretação do passado, é uma recriação da história, que emana visões essencialistas do passado e neutraliza as contigências históricas. É história ficcionada através da mitologia, da ideologia e do nacionalismo, transmitindo "[...] mitos de origem e de continuidade exclusivos, dotando um grupo selecto de prestígio e propósitos comuns" (Lowenthal, 1998, p. 128). O legado patrimonial é, assim, um legado falsificado para fins de identificação colectiva, apesar de beber nos factos históricos e na diversidade cultural os motivos para a sua formulação.

Se o património serve para fins de identificação colectiva serve intrinsecamente também os propósitos de quem activa esses repertórios patrimoniais. E quem os activa são os poderes políticos, constituídos ou não, que recorrem à memória colectiva para emanar visões monolíticas do passado que visam a adesão popular aos seus programas políticos e a legitimação simbólica de ideologias identitárias por si veiculadas. O património fornece os símbolos para a criação de uma "mitologia retrospectiva" (Hobsbawm, 1992, p. 16-23), um conjunto de representações que favorece a coesão social ao mesmo tempo que legitima as instituições sociais que emanam estes mitos na medida em que suprimem a contradição e a tensão, as dialécticas desfragmentadoras da realidade e a contestação. A essa operação, Antonio Montesino designa de "lobotomização da memória social" (Montesino, 2000, p. 203), pois difunde versões simplistas e essencialistas do passado como um passado "feliz", que servem o projecto político.

Não obstante os usos políticos do património, considera-se frequentemente que a utilização do património para fins de identificação colectiva é algo de positivo, e que esse é o motivo considerado mais nobre para a sua activação. Tal como Herder considerou, de entre as necessidades básicas do ser humano está a necessidade de pertença a grupos, ideia que subjaz aos seus conceitos de Volkgeist e Nationalgeist. Porém, outros, como Antonio Montesino, a propósito da construção de uma consciência regionalista na Cantábria, condenam veementemente esse processo, considerando-o espúrio, pois mascara o que deve ser um verdadeiro carácter de um moderno processo identitário, entendido como um acto de cidadania e de adesão voluntária a uma determinada comunidade democrática (Montesino, 2000, p. 189). Tanto mais que as versões de identidade emanadas pelas retóricas populistas são unívocas, hegemónicas e exclusivas, quando a identidade nunca assim é.

A par dos usos que foram mencionados, o património tem ainda, grosso modo, um terceiro uso. Trata-se do uso económico do património por via do seu aproveitamento turístico que, no contexto de uma sociedade "pós-tradicional" nostálgica e carente de elementos de identificação colectiva, confere ao património uma nova vitalidade. Essa dimensão mais explicitamente utilitária do património convive com as suas anteriormente identificadas dimensões política e simbólica, numa relação de complementaridade e retroalimentação, pois os referentes simbólicos fornecem os motivos que alimentam a indústria turística e a indústria turística recria os elementos culturais e a própria história, emanando novos referentes simbólicos que dão substância à imaginação colectiva, integrando-se na "mitologia retrospectiva" que sobre o património é erigida e acrescentando-lhes novos elementos. Porque sendo a autenticidade um constructo, o património que é inventado para satisfazer a procura turística não é menos autêntico do que aquele que é resgatado de um corpus cultural, nem a cultura que resulta desse processo de recriação será, como refere Santana Talavera (1998, p. 39), uma cultura bastarda. Afinal, questiona o mesmo autor, "É mais autêntico um forno de lenha que um microondas?" (Santana Talavera, 1998, p. 39). Em qualquer dos casos, os poderes políticos (com implicações económicas) têm uma palavra a dizer, pois são os poderes políticos que activam os repertórios patrimoniais que vão integrar-se na "mitologia retrospectiva", são os poderes políticos que viabilizam os projectos turísticos que deles se servem e são os poderes políticos que, em última instância, "inventam" os motivos que servem de sustento à identidade colectiva. Ou seja, na prática, tudo se constrói na esfera política.

Ílhavo – a construção de um destino turístico-cultural

Ílhavo é uma localidade com uma forte tradição piscatória. Debruçada sobre uma faixa costeira situada no centro-norte de Portugal, a povoação de Ílhavo teve provavelmente a sua génese nas actividades ligadas ao mar, complementadas com algumas explorações agrícolas de carácter familiar, à semelhança de muitas outras localidades que povoam o litoral português. Se inicialmente a actividade piscatória de Ílhavo se caracterizou essencialmente por uma pesca costeira e artesanal, cedo os ilhavenses se especializaram na pesca do bacalhau, uma pesca longínqua praticada nos mares gelados da Terra Nova e da Gronelândia. Esta foi uma actividade estruturante no concelho, sendo raras as famílias que não tivessem pelo menos um dos seus membros implicados nesse tipo de pesca. Aliás, segundo o que os próprios ilhavenses aclamam, se existe "Terra do Bacalhau" em Portugal, essa terra é Ílhavo, o que se deve provavelmente ao facto de, se as tripulações dos bacalhoeiros fossem oriundas das mais variadas zonas do país, já as suas cúpulas eram especialmente originárias de Ílhavo, melhor posicionadas para reclamar este reconhecimento. Essa actividade impulsionou o desenvolvimento da marinha mercante e da construção naval na costa de Ílhavo, o que, conjuntamente com a indústria cerâmica, deu grande incremento económico à região.

A partir dos anos 70, restrições à pesca, devido à manutenção dos stocks e a crescente competição internacional, precipitaram o declínio definitivo da pesca do bacalhau, o que obrigou a que o concelho, para fazer face à diminuição da oferta de emprego no sector das pescas, se virasse para outras actividades. De entre essas actividades está o turismo, que já tinha aqui alguma expressão, especialmente um turismo balnear, potenciado pelas praias da Costa Nova e da Barra, muito procuradas no Verão pelas populações do concelho e das suas imediações. A sazonalidade desse tipo de turismo e a procura turística por este gerada, caracterizada, essencialmente, por permanências de curta duração, levaram a que o executivo municipal considerasse a aposta num turismo mais diversificado, com vista a aumentar a sua rentabilidade económica, tanto mais que, quer as condições atmosféricas, quer a temperatura e a turbulência do mar, não conferem às praias de Ílhavo a atractividade de outras situadas mais a sul, nomeadamente nas costas alentejana e algarvia.

A diversificação da oferta turística local, acompanhando as tendências do mercado turístico que ditam um crescente interesse pelos motivos culturais, pressupunha a definição de uma "imagem de marca" assente em elementos culturais, que favorecesse a identificação de Ílhavo como um destino turístico diferenciado. Como Selwyn (1996, p. 21) refere, "[...] o que faz com que um destino turístico seja atractivo é o facto de se pensar que tem uma característica especial, um ‘espírito de lugar’ especial [...]". E um lugar com um "espírito" especial, um lugar com "magia", é aquele que, pela singularidade e/ou ancestralidade das suas práticas, é tido por autêntico. MacCannell (1976), na tão conhecida quanto criticada análise que faz do turista moderno como um "estruturalista" arquetípico, considera precisamente que o turista encontra a motivação para as suas deslocações no desejo de recuperação mitológica das estruturas tradicionais que conferiam à vida um sentido de totalidade e que foram demolidas pela modernidade. O turista procura recapturar os totens de um tempo e de um mundo que idealiza como míticos, aos quais ele já não pertence. Um tempo e um mundo pré-modernos, cuja autenticidade deriva da sociabilidade dos seus residentes, imaginados pelo turista para refazer a perda dos referentes simbólicos que a modernidade lhe legou. Move-se, em suma, em busca do "outro autêntico", procurando encontrar nesse processo o "eu autêntico" (Selwyn, 1996, p. 24), que existe na imaginação do turista. Se esse "outro autêntico" não existe, ou se existe de forma difusa, há que, senão "inventá-lo", pelo menos recriá-lo.

Se se tomar por válida essa argumentação, que tem por base a obra de MacCannell (1976), não obstante as críticas a ela dirigida por Cohen (1988) que defende que muitos turistas estão apenas interessados no mero divertimento não pretendendo recriar estruturas através de mitos, pode-se também afirmar que as actuais tendências do mercado turístico, que vão no sentido de um interesse crescente pelos destinos de carácter cultural, se devem ao florescimento de um sentimento de nostalgia por um passado "autêntico". O turista que procura os destinos culturais fá-lo pelo carácter simbólico das "imagens" e "objectos" do passado que lhe são oferecidos, que representam um mundo definitivamente perdido e irrepetível. Pela própria natureza dos recursos em que se baseiam – a cultura e o património – os destinos culturais estão, pelas razões que referi, entre os destinos com mais "magia", ou seja, mais "autênticos" e com um valor sagrado mais elevado, no sentido adstrito por Graburn (1989, p. 21-36) aos locais de peregrinação turística.

Por essas razões, o turismo cultural, seja como produto exclusivo ou como complemento de outras atracções turísticas, converte-se numa modalidade de importância crescente dentro do sector, com implicações económicas evidentes, tendo ainda a vantagem de contribuir para a conservação dos bens culturais, sempre tão onerosa para os cofres do Estado e das autarquias, e cada vez mais reclamada pelas populações locais, também elas mais atentas aos seus ícones de identificação colectiva.

Em Ílhavo, o poder político local percebeu que o turismo poderia ser uma alternativa viável para compensar o declínio de outras actividades. Mas percebeu também que o produto "sol e mar" teria, pelas condições climatéricas menos favoráveis e pelas tendências de crescimento identificadas para o sector turístico, que ser reconfigurado em torno de um motivo ou elemento diferenciador, que complementasse a oferta existente, se se queria posicionar no conjunto da oferta turística da região, muito marcada pela imagem da Ria e pela tipicidade das suas embarcações, associada à vizinha cidade de Aveiro, sede do Distrito a que Ílhavo pertence.

Havia que proceder-se à identificação daqueles elementos que representassem a "autêntica" cultura ilhavense e retirar dessa identificação uma imagem suficientemente forte, que permitisse um posicionamento de Ílhavo no conjunto da oferta turística da região e do país. Do escrutínio efectuado, com o apoio da Universidade de Aveiro, resultou a identificação dos "elementos marcantes" da identidade local, e que foram sistematizados no plano estratégico definido para o concelho.

De entre os elementos apresentados – dos quais constam toda a etnografia associada à Ria de Aveiro e à actividade da apanha do moliço pelas suas embarcações típicas, a Fábrica de Porcelana da Vista Alegre, uma das principais e também uma das mais antigas unidades de produção de cerâmica do país, e que pode ser visitada pelo público, o Forte e o Farol da Barra, edifícios de arquitectura militar de considerável valor patrimonial e alguns exemplares de Arte Nova – existe um elemento considerado decisivo na definição da singularidade da cultura ilhavense: o Mar. Mas não apenas o mar como praia e como sol, mas um Mar maior, de cultura, história e identidade: o "Mar por Tradição", a expressão escolhida pelo executivo municipal para servir de slogan de promoção do concelho (para o exterior), mas também para servir de slogan político alardeado nos discursos populistas proferidos (para o interior), dirigido a um eleitorado que procura ainda refazer-se da perda da sua relação privilegiada com o Mar e numa comunidade onde é ainda muito expressiva a voz daqueles que detinham um prestígio social elevado pelas posições privilegiadas que ocupavam nas cúpulas hierárquicas da pesca do bacalhau.

Porque representa um recurso valioso susceptível de rentabilização económica, por via do seu aproveitamento turístico, indo ao encontro das tendências do sector que demonstram haver cada vez mais "apetite" pelos motivos culturais, e de rentabilização política, através da legitimação simbólica dos eleitos municipais, o Mar, na sua expressão histórica, em geral, e a pesca do bacalhau, em particular, converte-se no principal factor estratégico a apostar no concelho. Como se pode retirar das palavras do Vereador do Pelouro do Turismo da Câmara Municipal de Ílhavo, a aposta neste factor permitirá um posicionamento do concelho que, sendo turístico, é também político e simbólico.

O concelho de Ílhavo, quer às suas características e situação geográfica, sempre foi, e de há muito tempo, um concelho com uma forte componente turística. [...] Tem essa apetência natural. E isto [...] faz com que o concelho tenha uma série de potencialidades que, na minha opinião, nos últimos anos não foram bem exploradas. Este Presidente de Câmara tomou posse em 1997, começou a trabalhar em 1998, e uma das primeiras preocupações que teve foi posicionar o concelho. Não havia uma estratégia, o concelho não estava posicionado, não nos diferenciávamos de Aveiro, não havia uma "imagem de marca". Sabia-se que tínhamos cá o farol, sabia-se que durante muitos anos tivemos pessoas ligadas à pesca do bacalhau. Somos o concelho do país com a tradição mais forte na pesca do bacalhau. Mas não havia este aproveitamento organizado e consistente desta característica que nós temos. Aproveitamento turístico e cultural. A cultura e o turismo não se podem dissociar. [...] De facto não havia esse posicionamento e felizmente no último mandato houve essa decisão de, primeiro, saber o que nós temos que nos pode diferenciar do resto. Havia um pouco a tradição em Ílhavo de nos virarmos muito para a Ria. O Mar estava um pouco esquecido. Para o concelho de Ílhavo o Mar era apenas as praias. E nós não podemos competir com praias do Alentejo ou Algarve. Temos vento, águas frias, temos nevoeiro, temos chuva. Portanto, não é pelo sol e praia que nos vamos posicionar. Vamo-nos posicionar pelo Mar, mas na sua componente histórica e vamos valorizar a Ria mas não vamos competir com Aveiro. Não vamos estar a investir demasiado naquilo que outro concelho já tem. [...] Vamos "vender" (na perspectiva turística) a imagem da Ria, mas vamos vender sobretudo uma outra imagem, que é a imagem do Mar. É a vertente principal. O próprio logotipo da Câmara de Ílhavo tem o sol, uma onda grande que é o Mar e uma onda pequena que é a Ria e o slogan é o "Mar por Tradição". O nosso forte é o Mar, tradição do Mar, não tanto o Mar praia e sol. (Depoimento em entrevista realizada em 7 de Maio de 2003).

No sentido da concretização dessa estratégia, o recém-eleito executivo empenhou-se, antes de mais, não apenas na desde há muito reclamada reabilitação do Museu Regional e Marítimo de Ílhavo, um antigo suporte e instrumento de identidade local, mas na total reconstrução do seu edifício, convertendo-o num novo museu, agora exclusivamente dedicado aos temas marítimos, cuja imponência e arrebatadora arquitectura pasma quem com ele se depara. Concedeu-se, no novo Museu, um espaço permanente à representação da pesca do bacalhau à linha, expressão épica e singular da pesca do bacalhau, e por isso apelidada de "Faina Maior", que havia já sido encenada no anterior museu, mas que aqui consegue outra grandeza pela capacidade de acolher a reprodução integral do convés de um lugre bacalhoeiro. Multiplicaram-se os colóquios e as exposições temporárias dedicadas ao tema e adquiriu-se o navio arrastão Santo André, de forma a ilustrar devidamente todas as modalidades da pesca longínqua do bacalhau e que passou a funcionar como pólo museológico do Museu Marítimo de Ílhavo. Outros projectos estão perspectivados, visando a representação das várias dimensões associadas a essa pesca ou de outras actividades ligadas ao mar, executando uma estratégia que ficou explícita no Documento de Apoio à Preparação do Plano Estratégico do Concelho de Ílhavo:

A experiência marítima de Ílhavo, especialmente o papel que a comunidade desempenhou nas campanhas da pesca do bacalhau, encontra-se ainda bem presente na memória colectiva da população. Este forte elo de ligação ao Mar constitui uma herança cultural e um traço marcante da identidade de Ílhavo que importa preservar e reforçar. Os projectos da expansão e qualificação do Museu Marítimo, bem como a recuperação de uma das antigas secas de bacalhau, constituem importantes iniciativas de valorização e afirmação da identidade concelhia assumindo-se como símbolos da articulação entre a dinamização cultural e a animação social e vivencial de Ílhavo, que é preciso incentivar e desenvolver. (Câmara Municipal de Ílhavo, 2002, p. 24).

Embora eleja como fundamental o valor simbólico e identitário dessa "herança cultural", o plano não descarta a possibilidade da "dinamização" deste factor de singularidade, tornando explícita essa intenção quando sublinha o seu valor como recurso, como se pode ler no seguinte trecho do mesmo documento:

Um elemento marcante da realidade do concelho é a sua forte identidade sócio-cultural que lhe confere um factor de singularidade valiosíssimo. A associação ao Mar, desde as suas origens até às múltiplas actividades que ainda hoje lhe estão ligadas, passando pela diferenciação sócio-geográfica que promoveu em épocas recentes da sua história, constitui um recurso precioso que importa procurar valorizar e integrar numa estratégia de desenvolvimento. Acontece que o Mar "pertence" ao imaginário Nacional, o que reforça o seu valor como recurso. (Câmara Municipal de Ílhavo, 2002, p. 5).

A argumentação que tenho sugerido no presente artigo encontra a sua principal sustentação na última frase do texto antes transcrito. O valor de recurso referido é o resultante do seu aproveitamento turístico, potenciado e reforçado pela sua "pertença" ao "imaginário Nacional", o que amplia o horizonte de comercialização do "produto cultural" Mar. Como Graburn (1989) refere, a valorização dos destinos turísticos varia em função do grau de sacralização que lhes é conferido. E um destino que oferece a "imagem" de um povo e de nação que se autodefine na sua relação com o mar é um destino com um grau de sacralização elevado e, portanto, valorizado pelo mercado turístico. Nas palavras de Ramalho Ortigão: "Para os Portugueses, o mar tem atractivos especiais. Para nós, ele é o caminho das conquistas, dos descobrimentos, da poesia, da inspiração artística, da glória nacional" (Ortigão,1966, p. 30). Ao definir-se como a terra que tem o "Mar por Tradição", Ílhavo apresenta-se como um destino onde todos os portugueses podem, ao encarar-se com o "outro autêntico" que já não são, reinventar o "eu autêntico" que os liga às suas origens e que desejam ser para o futuro, como num jogo de espelhos, que põe em confronto a imagem que temos e a imagem que julgamos e desejamos ter. E, nesse sentido, Ílhavo potencia-se como um destino com "magia".

Nesse cenário evocativo de um autêntico "espírito" português, o bacalhau, bem como a actividade piscatória a ele associada, fornece a corporização do ideário mítico associado ao mar, concretizando em objectos e em práticas a fluidez da memória e da imaginação. O bacalhau é, de todos os pratos típicos, o mais típico dos pratos portugueses. Sendo uma presença assídua à sua mesa e estando associado às comensalidades das principais ocasiões festivas, o bacalhau é referido pelos portugueses como algo que os liga às suas origens. Por outro lado, a singularidade da pesca do bacalhau, conforme foi durante décadas praticada pelos portugueses nos mares gelados da Terra Nova e da Gronelândia, com uma frota de veleiros brancos que largavam no mar embarcações de um só homem (dóris) que procediam à pesca do bacalhau à linha, evoca imagens épicas só comparáveis às da "Grande Aventura" dos Descobrimentos.

A utilização das imagens épicas associadas à "Faina Maior" havia já sido encetada pela ideologia fascista do Estado Novo que, através de rituais públicos e comemorações litúrgicas, converte a pesca do bacalhau à linha em revivificação da "grandeza marítima" do "Povo português", e os seus protagonistas em herdeiros dos gloriosos argonautas dos Descobrimentos. Como diz Álvaro Garrido,

repositório de mitos e de uma fortíssima memória épica, a pesca do bacalhau figura na propaganda e no discurso oficial do salazarismo como um dos elementos mais relevantes deste feixe de sugestões ideológicas. Os planos estatais de ampliação e renovação das frotas da pesca são apresentados como sinal de recuperação de uma grandeza perdida; celebram uma Nação reencontrada com o mar e exaltam um regime que teria conseguido recolocar uma frota de navios nos mares, símbolo da soberania nacional, de reabilitação do poder do Estado e da sua Marinha. (Garrido, 2001, p. 125).

Essa memória, que é fruto de vivências próprias mas também da doutrinação dos ideólogos do Estado Novo, é ainda hoje muito detida pela população, tanto mais que se trata de uma memória recente. Porém, muito devido ao facto das memórias de cunho historicista se terem tornado pouco populares no período pós-Revolução, mantém-se circunscrita ao círculo fechado da comunidade local. Ao ser integrada no mercado turístico, essa memória amplia-se e revivifica-se, adquirindo um novo valor. Antes utilizado na propaganda do regime pelo seu valor simbólico e político, o património marítimo é agora de novo resgatado, e de novo "reinventado", adequando-se a outras dinâmicas e significações. Tomando por base uma memória que se mantém viva junto de determinados actores do tecido social, o património marítimo de Ílhavo constitui-se como um importante capital simbólico susceptível de intrumentalização política, quer por via da legitimação social que é conferida aos eleitos locais que o promovem, quer através da rentabilização económica conseguida mediante a sua integração nos circuitos turísticos, evidenciando a reciprocidade existente entre as dimensões simbólica, política e económica no processo, agora certamente mais democrático, de atribuição de valor ao património e que, hoje, encontra outro factor de capitalização e de ampliação: o turismo.

Conclusões

Ao longo deste artigo procurei sugerir que o património tem um valor que é debitado pelos seus usos simbólico, político e económico, e que existe uma reciprocidade entre estes usos, porque não existe património que seja simbólico que não seja também político e porque o património só terá um valor económico, por via da sua comercialização no mercado turístico, se tiver um valor simbólico elevado. Como MacCannell (1976) referiu, o turista moderno move-se pela procura das estruturas "míticas" que pertencem a um espaço e a um tempo por si imaginados. E o património é um suporte especialmente eficaz na simulação destes cenários "autênticos" promovidos pela indústria turística, fornecendo uma cópia de um (pseudo) passado impressa no presente que, ao integrar-se na "mitologia retrospectiva" se converte, reciprocamente, em instrumento de identificação colectiva. Em qualquer dos casos, serve os propósitos ideológicos e económicos dos poderes locais que activam as versões patrimoniais e que as colocam no circuito turístico. Mesmo quando é encarado como produto de uma "hedonocracia", para utilizar de Kirsheblatt-Gimblett (2001, p. 61), que converte o património em produtos comerciais, o turismo é sobre a invenção e reinvenção de mitos colectivos e, nessa medida, é uma forma de produção cultural, com implicações económicas políticas e sociais profundas.

Recebido em 17/07/2003

Aprovado em 20/08/2003

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    Neste artigo foi mantida a grafia vigente em Portugal (N. do Org.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      Out 2003

    Histórico

    • Recebido
      17 Jul 2003
    • Aceito
      20 Ago 2003
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