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Améfrica Ladina e a crítica à democracia racial em Lélia de Almeida Gonzalez

Améfrica Ladina and the criticism of racial democracy in Lélia de Almeida Gonzalez

Resumo

Este trabalho se insere no esforço coletivo de promover uma releitura do pensamento político-social brasileiro a partir de autoras e autores cujas reflexões foram historicamente silenciadas em virtude de suas pertenças étnico-raciais e/ou de gênero. Mais especificamente, partimos do pensamento de Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994) para refletir sobre o mito da democracia racial enquanto estruturante de um projeto de nação no Brasil. A questão orientadora aqui é: como a noção de Améfrica Ladina, enquanto fundamento de uma nova leitura da formação da sociedade brasileira, complexifica a crítica ao mito da democracia racial? A hipótese a ser desenvolvida é que o diferencial da crítica da autora está na identificação, ainda nas décadas de 1970 e 1980, de uma tripla forma de discriminação entre raça, classe e gênero que marginaliza brutalmente as mulheres negras - e que não pode ser silenciada na compreensão da formação nacional do Brasil. Ademais, a intelectual em questão ainda apresenta a definição de racismo por denegação como aspecto particular do mito da democracia racial.

Palavras-chave:
Améfrica Ladina; mito da democracia racial; Lélia de Almeida Gonzalez; mulheres negras

Abstract

This work is part of the collective effort to promote a rereading of Brazilian political and social thought from authors and authors whose reflections were historically silenced due to their ethnic-racial and/or gender belongings. More specifically, we start from the thought of Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994) to reflect on the myth of racial democracy as structuring a nation project in Brazil. The guiding question here is: how does the notion of Améfrica Ladina, as the foundation of a new reading of the formation of Brazilian society, complexcriticism of the myth of racial democracy? The hypothesis to be developed is that the differential of the author’s criticism lies in the identification, still in the 1970s and 1980s, of a triple form of discrimination between race, class and gender that brutally marginalizes black women - and that cannot be silenced in the understanding of brazil’s national formation. Moreover, the intellectual in question still presents the definition of racism denial as a particular aspect of the myth of racial democracy.

Keywords:
Améfrica Ladina; racial democracy; Lélia de Almeida Gonzalez; black women

Considerações iniciais

O pensamento político-social brasileiro e sua história das ideias caracterizam-se por uma diversidade de pensadores que buscaram construir interpretações sobre o Brasil. Neles encontramos elementos fundantes para a construção de ferramentas socioanalíticas que auxiliam na compreensão de uma realidade nacional própria. Tais intérpretes, como Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Raymundo Faoro e tantos outros contribuíram, a partir de múltiplos olhares e perspectivas disciplinares diversas, com entendimentos acerca da formação nacional e dos seus sujeitos constituintes. Todavia, uma questão crucial tem sido colocada na última década: por que há uma ausência de diversidade de gênero e étnico-racial entre os assim chamados “intérpretes do Brasil”?

Destacamos essa questão inicial não para respondê-la propriamente, o que demandaria uma investigação de caráter histórico-social que fugiria ao escopo deste trabalho; nem tampouco para invalidar as contribuições já consagradas do pensamento político-social brasileiro. Mas apenas para destacar o elemento propulsor das nossas reflexões, que reside no reconhecimento da necessidade de alargar essa história das interpretações do Brasil, inserindo nela uma rede de autoras e autores que ficaram invisibilizadas/os dentro dos cânones da teoria social brasileira - e cujas contribuições, nesse sentido, apenas recentemente vêm sendo incorporadas nos nossos modos de compreensão dos dilemas nacionais. É possível dizer que investimos, aqui, em uma sociologia das ausências e das emergências (Santos, 2019SANTOS, B. de S. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.) que busca valorizar e reconhecer uma ecologia de saberes diversos para expandir a compreensão do presente.

As contribuições do pensamento político-social brasileiro - desde a perspectiva mais “ensaística” das primeiras décadas do século XX até aquelas que promoveram mais diretamente a institucionalização das ciências humanas e sociais no Brasil (Liedke Filho, 2005LIEDKE FILHO, E. D. A sociologia no Brasil: história, teorias e desafios. Sociologias, Porto Alegre, v. 7, n. 14, p. 376-437, jul./dez. 2005.) - para a compreensão dos dilemas da nossa formação nacional são amplamente conhecidas e discutidas hoje, com reverberações inestimáveis para a leitura contemporânea do nosso país. A fortuna crítica em torno desse conjunto de interpretações, no entanto, apenas muito recentemente, e de modo ainda esparso, tem conseguido avançar na quebra da hegemonia masculina e branca no dito pensamento social brasileiro. Há certamente aqui pistas para reflexões futuras acerca de como nossa leitura das “interpretações do Brasil”, no âmbito das ciências humanas e sociais, espelha formas interseccionais de desigualdade (étnico-raciais, de gênero, regionais…) prevalecentes em nossa sociedade.

Nesse sentido, o reconhecimento da necessidade de descontruir e alargar o que entendemos por pensamento político-social brasileiro embasa nossa proposta de uma agenda de pesquisa que busque promover uma sociologia das ausências e das emergências, ou seja, que expanda o conhecimento presente através do reconhecimento e valorização de intelectuais e suas respectivas interpretações até então invisibilizadas. Nossa investigação se propõe a somar com outras tantas pesquisas, como Ratts e Rios (2010)RATTS, A.; RIOS, F. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.; Rios e Maciel (2017/2018)RIOS, F.; MACIEL, R. Feminismo negro em três tempos. Labrys, études féministes/ estudos feministas, [s. l.], v. 1, p. 120-140, 2017/2018.; Rios e Lima (2020)RIOS, F.; LIMA, M. Introdução. In: GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 9-21. e Figueiredo (2020)FIGUEIREDO, A. Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 29, e0102, 2020., no intuito de legitimar uma ecologia de saberes fundada na pluriversalidade da sociedade brasileira. Para tanto, propomos aqui compreender a realidade sociopolítica brasileira a partir das interpretações de Lélia de Almeida Gonzalez (2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.), promovendo diálogos com outros/as intelectuais negros/as, como Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Kabengele Munanga.

Em particular, o objetivo do artigo é analisar a leitura da formação da sociedade brasileira promovida pela autora, sintetizada na expressão “Améfrica Ladina”, que complexifica a crítica ao tradicional “mito da democracia racial”. A pensadora mineira Lélia Gonzalez, radicada no Rio de Janeiro, vem nesse último decênio (2010-2020) tendo seus escritos e pensamentos visibilizados como parte de um esforço coletivo de ocupação de espaços antes negados, especialmente às intelectuais negras. Nesse sentido, torna-se cada vez mais evidente como a autora desenvolveu um diálogo crítico com os chamados intérpretes do Brasil e com a reflexão acadêmica voltada às relações raciais no país (Rios; Lima, 2020RIOS, F.; LIMA, M. Introdução. In: GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 9-21., p. 11-12). Ademais, é importante destacar a sua atuação na aproximação entre as preocupações dos movimentos sociais e a academia, não só por sua variada presença em fóruns de discussão nacionais e internacionais, mas também em particular por seu papel de liderança no Movimento Negro Unificado (MNU).1 1 Para reflexões da nossa autora nesse sentido, cf. Gonzalez (2018, p.142), e Ratts e Rios (2010) para considerações sobre as relações de Lélia Gonzalez com o movimento negro. Acerca do movimento negro no Brasil, e em particular do MNU, cf. Pereira, A. M (2008), Rios (2012) e Pereira, A. A. (2013).

O artigo se divide em quatro momentos, além deste: i) o primeiro trata de como Lélia de Almeida Gonzalez compreende o mito da democracia racial, a partir de uma leitura crítica própria sobre os autores do cânone do pensamento social brasileiro; ii) no segundo, a identificação de uma tripla discriminação - raça, gênero e classe - sobre as mulheres negras, em diálogo com Beatriz Nascimento. Aqui ambas pensadoras refletem criticamente a permanência das formas de violência e opressão que perduram desde o período colonial até os dias atuais, em termos de corpo, sexualidade e exploração do trabalho; iii) o terceiro aborda como a ideia de “racismo por denegação”, termo construído por Lélia Gonzalez, está em forte diálogo com outros intelectuais invisibilizados que vêm sendo recuperados dentro da reflexão sobre relações raciais no período, em particular Abdias do Nascimento e Kabengele Munanga; iv) por fim, concluímos com a ideia de Améfrica Ladina e a importância na valorização das matrizes socioculturais amefricanas como local de (r)existência.

O mito da democracia racial (brasileira) em Lélia de Almeida Gonzalez

É hoje amplamente conhecido o conjunto de representações sobre a sociedade brasileira que foi sintetizado na expressão “democracia racial”. Mais do que apenas um conceito partilhado por setores intelectuais, tornou-se também uma leitura da realidade nacional que foi incorporada em políticas públicas, discursos oficiais e se espalhou mesmo no senso comum (Portela Jr., 2020PORTELA JR., A. A nação em disputa. Recife: Editora UFPE, 2020.). Não à toa, assim, foi alvo das principais críticas desenvolvida pelo MNU nos anos finais da ditadura civil-militar (1964-86) no Brasil (Alberti; Pereira, 2006ALBERTI, V.; PEREIRA, A. A. A defesa das cotas como estratégia política do movimento negro contemporâneo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 37, p. 143-166, 2006.). Ainda que a expressão aparente estar em relativo desuso hoje (Telles, 2003TELLES, E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003., p. 98), é pertinente atentarmos para as ideias nela contidas - que permanecem sob outras formas - e, nesse sentido, observamos as críticas desenvolvidas por Lélia Gonzalez que apontam para a construção de uma leitura outra da formação da sociedade brasileira.

A suposta existência de uma democracia racial no Brasil ancora-se em narrativas que se consolidaram, nos meios intelectuais, na primeira metade do século XX, embora, como afirmou Florestan Fernandes (2008FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes: vol. 1. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008., p. 309-310), “esse mito não nasceu de um momento para outro. Ele germinou longamente, aparecendo em todas as avaliações que pintavam o jugo escravo como contendo ‘muito pouco fel’ e sendo suave, doce e cristãmente humano.”

Enfatizemos primeiro tanto o romantismo do século XIX como o modernismo da década de 1920. No primeiro constrói-se a perspectiva, tanto do indivíduo negro como do sujeito indígena, de seres assimilados pela sociedade e dóceis a esta. O segundo movimento insurge com a exaltação do herói indígena, mas especialmente a valorização da miscigenação como singularidade da nação brasileira. Destaquemos ainda a atuação intelectual e política de Gilberto Freyre (2019)FREYRE, G. Casa-grande e senzala. São Paulo: Global Editora, 2019., em que a mistura das raças deixa de ser explicitamente vista como um obstáculo à formação nacional, sendo então exaltada como elemento singular de uma identidade própria. Seja a figura do indígena, construída pelo modernismo como herói da nação, seja na obra freyriana, em que as raças convivem harmoniosamente na casa-grande, constrói-se um éthos brasileiro (Guimarães, 2003GUIMARÃES, A. S. A. Como trabalhar com “raça” em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jun. 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022003000100008&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 15 jun. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Na leitura culturalista de Freyre, apresentava-se a formação de uma identidade nacional a partir da “vivência harmonizada” das três raças que constituíram o Brasil. Aqui, o autor mostra, a partir de Casa-grande e senzala (Freyre, 2019FREYRE, G. Casa-grande e senzala. São Paulo: Global Editora, 2019.), as relações antagônicas, mas sem enfatizar as formas de exploração/opressão/violência, aproximando-se de uma perspectiva idílica e invisibilizando situações coloniais. O entusiasmo com essa harmonização racial incita o “projeto Unesco”,2 2 Unesco é a sigla de Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. que se trata de um momento entre as décadas de 1940 a 1970 em que a Unesco propõe-se a investir em estudos no Brasil para corroborar a existência de uma democracia racial (Guimarães, 2004GUIMARÃES, A. S. A. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 47, n. 1, p. 9-43, 2004. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012004000100001&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 15 jun. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

É nesse projeto que Roger Bastide e Florestan Fernandes (2013)BASTIDE, R.; FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global Editora, 2013. verificam que o “preconceito de cor” e a segregação racial permaneciam no seio da sociedade brasileira. A partir desses estudos, Florestan Fernandes vai aprofundar sua análise e identificar o dilema racial brasileiro: a população negra vivia num falso dilema entre a ilusória sensação de integração à sociedade de classes assumindo os valores, crenças e costumes ou assumir a existência de um preconceito racial. Em ambas as situações o negro se encontraria à margem da sociedade, em uma zona do não ser (Fanon, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.). Nesse sentido, o autor paulista vai então assumir a existência de um “mito da democracia racial” no Brasil.

É com breve resgate sócio-histórico da produção canônica brasileira do debate acadêmico sobre as relações étnico-raciais que a autora Lélia de Almeida Gonzalez (2020)GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. dialogava, a partir da sua formação acadêmica inicial na década de 1960. Não podemos deixar de destacar também a sua trajetória pessoal como mulher negra, filha de uma família pobre que se mudou de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro. A graduação em geografia, história e filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) ajudou na consolidação de um pensamento crítico próprio que, ao se aproximar dos diferentes grupos e movimentos sociais, especialmente como uma das lideranças do MNU, fizeram a pensadora questionar fortemente o mito da democracia racial na qual estaria inserida.

Na faculdade eu já era uma pessoa de cuca, já perfeitamente embranquecida, dentro do sistema. Eu fiz filosofia e história. E, a partir daí, começaram as contradições. Você enquanto mulher e enquanto negra sofre evidentemente um processo de discriminação muito maior. […]

Desnecessário dizer que a divisão interna da mulher negra na universidade é tão grande que, no momento em que você se choca com a realidade de uma ideologia tão preconceituosa e discriminadora que aí está, a sua cabeça dá uma dançada incrível. […]

[…] a gente não pode estar distanciado desse povo que está aí, senão a gente cai numa espécie de abstracionismo muito grande, ficamos fazendo altas teorias, ficamos falando de abstrações… Enquanto o povo está numa outra, está vendo a realidade de uma outra forma. Inclusive os próprios discursos progressistas que nós vemos por aí têm esse tipo de deformação caracterizada pela impostação ideológica que assumem. A meu ver, o discurso ideológico deforma a realidade, quer dizer, é um discurso de desconhecimento/reconhecimento, na medida em que ele reproduz os interesses de determinados grupos. (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 286-288).

A pensadora vai aprofundar a crítica ao mito da democracia racial ao defini-lo como um projeto de nação racialista centrado em uma pequena parcela da população. Aqui a burguesia branca, a partir do privilégio racial, constrói um discurso permanente de embranquecimento da população. Tal branqueamento não se restringe apenas a aspectos biológicos e/ou fenotípicos, que produzem a exaltação à mestiçagem, mas se trata também de uma domesticação da pessoa negra em que se criam máscaras brancas como forma de um suposto salvamento à inferioridade desse não sujeito (Fanon, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.). A autora, portanto, propõe-se a refletir criticamente sobre como a ideia de nação brasileira está centrada em processos de segregação, discriminação e invisibilização da população negra. E por isso tornava-se urgente visibilizar e destacar a presença da negritude enquanto identidade cultural presente na formação sociopolítica brasileira, reflexão essa que se encontra sintetizada na noção de Améfrica Ladina.

MARA TERESA: Foi aí que você partiu pro movimento negro?

LÉLIA GONZALEZ: Eu parti pra minha negritude, pra minha condição de negra. Eu comecei a verificar que a grande ilusão da ideologia do branqueamento é o negro pensar que é diferente dos outros negros, você cria uma cortina ilusória. (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 318).

Podemos, assim, verificar dois movimentos na crítica da autora ao mito da democracia racial. De um lado, a desconstrução dessa ideologia a partir i) da análise da tripla discriminação sofrida pelas mulheres negras no Brasil e ii) da análise do racismo por denegação característico do nosso país. E, de outro lado, iii) a releitura da formação do Brasil que aponta para a urgência de valorização da identidade negra e das raízes culturais afro-brasileiras e ameríndias, sintetizada na expressão “Améfrica Ladina”. Analisaremos esses pontos a seguir, promovendo diálogos entre o pensamento da autora com outros/as intelectuais negros/as.

Sujeitas negras triplamente discriminadas

Ainda nas décadas de 1970-1980, e pautada especialmente nos trabalhos de Fernandes (2008)FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes: vol. 1. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008., Saffioti (2015)SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015. e Hasenbalg (1979)HASENBALG, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979., Lélia Gonzalez identifica que dentro da divisão social do trabalho no Brasil há três formas de desigualdade. Aqui, raça, gênero e classe se entrecruzam promovendo uma tripla discriminação que imputa às mulheres negras matrizes de dominação como pobreza, racismo e patriarcado. Elas se encontram, de acordo com a análise da autora a partir de dados disponíveis na época, nas franjas mais vulneráveis da pirâmide socioeconômica brasileira, ocupando em sua maioria os trabalhos manuais e obtendo rendimentos médios de até um salário mínimo, seja ontem ou hoje.

Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no nível mais alto de opressão. […] ela se volta para a prestação de serviços domésticos junto às famílias das classes média e alta da formação social brasileira. Enquanto empregada doméstica, ela sofre um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da subordinação e da “inferioridade” que lhe seriam peculiares. (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 58).

Assim, a intelectual mineira/carioca compreende que dentro do capitalismo específico brasileiro, dependente e periférico, as divisões raciais e sexuais do trabalho se somam refletindo uma desigualdade ainda mais profunda para as mulheres negras. A autora acrescenta ainda que tal realidade tem sua origem no próprio processo de colonização do Brasil em que elas eram escravizadas e colocadas para trabalhar nos ambientes domésticos da casa-grande, ou mesmo nas plantações e outros serviços externos.

Quanto à doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas. Daí ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano. E é nesse cotidiano que podemos constatar que somos vistas como domésticas. (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 82-83).

Aqui a pensadora destaca dois elementos constitutivos da realidade racializada brasileira. O primeiro é a constatação da permanência do imaginário das mulheres negras como responsáveis por cuidar e manter limpos os ambientes, não somente o doméstico como também o comercial. A autora francesa Françoise Vergès (2020)VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu, 2020. chama a atenção para como, durante a pandemia da Covid-19, tal fato ganhou uma maior visibilização, visto que as trabalhadoras brancas permaneciam em casa e isoladas, enquanto as mulheres negras precisavam sair para trabalhar, enfrentar o transporte público lotado e manter literalmente o chão limpo para o bom funcionamento do capitalismo.

O segundo aspecto para o qual Lélia Gonzalez chama a atenção é em relação ao papel que as mulheres negras pobres assumem em suas famílias, seja como esteio emocional, seja como provedoras do sustento. Isso decorre tanto pelas altas taxas de homicídio de jovens negros como também pela opressão patriarcal, em que é vista como corpo sexualizado e supostamente imprópria para relações afetivas e duradouras.

Diante dessa opressiva realidade, é oportuno destacar um possível diálogo com Beatriz Nascimento (2019)NASCIMENTO, B. A mulher negra no mercado de trabalho. In: BUARQUE, H. Interseccionalidades: pioneiras do feminismo brasileiro. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019., intelectual negra contemporânea de Lélia de Almeida Gonzalez. Nascimento enfatiza como a estrutura hierárquica da sociedade brasileira, ainda hoje, pauta-se em uma segregação racial originada no sistema escravocrata de castas brasileiro do período colonial. A autora vai além, e identifica como essa inferiorização é interiorizada pela pessoa negra, desobrigando-a a penetrar espaços de privilégio racial e perpetuando o domínio racial.

Se a mulher negra hoje permanece ocupando empregos similares aos que ocupava na sociedade colonial, é tanto devido ao fato de ser uma mulher de raça negra como por seus antepassados terem sido escravos. (Nascimento, B., 2019NASCIMENTO, B. A mulher negra no mercado de trabalho. In: BUARQUE, H. Interseccionalidades: pioneiras do feminismo brasileiro. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019., p. 51-52).

Em consonância com Lélia Gonzalez, Nascimento então identifica na divisão de trabalho no Brasil uma tripla discriminação às mulheres negras, pelo racismo, pelo patriarcado e por ocupar os estratos mais pobres. Outro destaque da autora é no que se refere ao processo de industrialização recente brasileira, a partir da década de 1960, e como na formalização das mulheres no mercado de trabalho as vagas passam a ser ocupadas predominantemente por brancas.3 3 Especialmente no comércio e em atividades mais burocráticas, como por exemplo a ocupação de secretária e vendedora. Aqui a mulher negra permanece excluída desses espaços sob a alegação de não possuírem a formação educacional adequada. Mas o fato, como destaca Beatriz Nascimento (2019)NASCIMENTO, B. A mulher negra no mercado de trabalho. In: BUARQUE, H. Interseccionalidades: pioneiras do feminismo brasileiro. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019., é que se trata da negação à mulher negra do acesso à educação e, também, porque essas ocupações se relacionam com o público, em que ela deve permanecer invisibilizada - escondida em espaços subalternos.

Retornando a Lélia Gonzalez (2020)GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., é importante salientar que a tripla discriminação que a mulher negra sofre não está retratada apenas em uma divisão do trabalho segregadora, mas também na sexualização dos corpos dessas mulheres, vistas com a função apenas de saciar prazeres e fantasias. A autora avança ainda mais em sua reflexão, ao identificar que essas discriminações estão fundamentadas em um longo processo de violentação da mulher negra. Aqui Lélia Gonzalez ainda aponta críticas à perspectiva idílica de Freyre (2019)FREYRE, G. Casa-grande e senzala. São Paulo: Global Editora, 2019. e de Caio Prado Jr. (2008)PRADO JR., C. História econômica do Brasil. 48. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008., identificando que a mistura de raças apenas foi possível através da tomada violenta dos corpos das mucamas que trabalhavam na casa-grande.

Lélia de Almeida Gonzalez vai trazer consigo, ainda, como os termos “doméstica” e “mulata” são definidores da mulher negra nesse imaginário opressor e violento de dominação - dando continuidade à objetificação caracterizada pelo termo “mucama”. A mulher negra permanece, ontem e hoje, vista como sujeita para cuidar das casas e como corpo sexualizado e exótico que precisa ser tomado à força.

O processo de exclusão da mulher negra é patenteado, em termos de sociedade brasileira, pelos dois papéis sociais que lhe são atribuídos: “domésticas” ou “mulatas”. O termo “doméstica” abrange uma série de atividades que marcam seu “lugar natural”: empregada doméstica, merendeira na rede escolar, servente nos supermercados, na rede hospitalar, etc. Já o termo “mulata” implica a forma mais sofisticada da reificação: ela é nomeada “produto de exportação”, ou seja, objeto a ser consumido pelos turistas e pelos burgueses nacionais. (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 44).

Beatriz Nascimento, dentro desse diálogo imaginário aqui, concorda com Lélia de Almeida Gonzalez ao identificar que a mulher negra se encontra no polo oposto ao da mulher branca. A autora destaca o papel ativo daquela sujeita sendo responsável pelo cuidado e pela reprodução.

Devido ao caráter patriarcal e paternalista, atribui-se à mulher branca o papel de esposa e mãe, com a vida dedicada ao seu marido e filhos. Deste modo, seu papel é assinalado pelo ócio, mantendo-se amada, respeitada e idealizada naquilo que o ócio lhe representava como suporte ideológico de uma sociedade baseada na exploração do trabalho [e da pessoa] de uma grande camada da população. Contrariamente à mulher branca, sua correspondente no outro polo, a mulher negra é considerada uma mulher essencialmente produtora, papel semelhante ao do homem negro, isto é, desempenha um papel ativo. (Nascimento, B., 2019NASCIMENTO, B. A mulher negra no mercado de trabalho. In: BUARQUE, H. Interseccionalidades: pioneiras do feminismo brasileiro. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019., p. 49-50, colchetes da autora).

Todavia, a sexualização do corpo feminino negro se dá por vias violentas de forma a exercer o poder de dominação masculina branca. Aqui, transforma a sujeita negra em uma máquina/objeto que pode produzir prazer e satisfação ao homem branco. Na atualidade, os casos de feminicídio, por exemplo, têm como denunciantes uma maioria de sujeitas negras (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. São Paulo, ano 14, 2020.).

Mecanismos ideológicos se encarregaram de perpetuar a legitimação da exploração sexual da mulher negra através do tempo. Com representações baseadas em estereótipos de que sua capacidade sexual sobrepuja a das demais mulheres, de que sua cor funciona como atrativo erótico, enfim, de que o fato de pertencer às classes pobres e a uma raça “primitiva” a faz menos oprimida sexualmente, tudo isso facilita a tarefa do homem em exercer sua dominação livre de qualquer censura, pois a moral dominante não se preocupa em estabelecer regras para aqueles carentes de poder econômico. (Nascimento, B., 2019NASCIMENTO, B. A mulher negra no mercado de trabalho. In: BUARQUE, H. Interseccionalidades: pioneiras do feminismo brasileiro. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019., p. 53-54).

Diante do exposto, podemos afirmar que Lélia Gonzalez, corroborada por Beatriz Nascimento, revela de forma crítica a realidade da mulher negra brasileira. Identificam como essas sujeitas são subalternizadas em suas relações, tanto trabalhistas como afetivas. O mito da democracia racial revela-se ainda mais profundo, apresentando entranhas que interseccionam formas de desigualdade que são insuficientemente lidas apenas pelo aspecto de classe. Ademais, Lélia de Almeida Gonzalez vai além, afirmando a permanência de um privilégio racial e cis-heteropatriarcal como fundante do projeto de nação racialista brasileiro centrado no discurso dominante de uma suposta democracia racial. Contudo, a partir da própria Lélia Gonzalez, quais os mecanismos que dão sustentação a esse mito?

A ocultação do mito da democracia racial: o racismo por denegação

[A] gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente pretende caracterizar. A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí, das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo prá nossa história ser esquecida, tirada de cena. (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 194).

A noção de memória como “lugar da emergência da verdade” é uma boa síntese da orientação predominante nas organizações negras naqueles anos finais da ditadura civil-militar, quando da época da atuação de Lélia Gonzalez. Deixar a memória falar “através das mancadas do discurso da consciência” implicava furar o bloqueio que o discurso oficial e as concepções hegemônicas em torno das relações raciais construíram para a compreensão das condições de vida da população negra no Brasil. Como acabamos de discutir, esse “discurso dominante”, no termo de Gonzalez - sintetizado na noção de “democracia racial” - obstaculizou a percepção e o combate em torno das discriminações e exclusões raciais na sociedade brasileira, ainda mais quando consideramos que ele se torna uma “imagem de Brasil” oficializada e promulgada pelo Estado, não só em âmbito nacional, mas também internacional.

Mas se hoje é evidente o mecanismo de ocultação de privilégios e violências inerente a esse discurso, no momento em que Lélia de Almeida Gonzalez escrevia estava ainda por se consolidar, nos meios políticos e intelectuais, essa percepção crítica das relações raciais no Brasil. Parte da luta dizia ainda respeito a mostrar à sociedade e ao Estado brasileiro que o racismo e as desigualdades raciais eram problemáticas que precisavam ser enfrentadas com denodo - pois tais questões estavam ainda no “lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento”. Um lugar que não era fortuito nem inocente, pois expressão das dinâmicas particulares de funcionamento do racismo na sociedade brasileira. A exclusão da “memória” pela “consciência” é, na reflexão da nossa autora, fruto de um modo muito particular de racismo, característico do nosso país.

Sueli Carneiro (2018CARNEIRO, S. Gênero e raça na sociedade brasileira. In: CARNEIRO, S. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018. p. 153-185., p. 168) fala na “conspiração de silêncio que envolve o tema do racismo em nossa sociedade e a cumplicidade que todos partilhamos em relação ao mito da democracia racial e tudo o que ele esconde”. Na reflexão de Gonzalez, essa cumplicidade vai para além da invisibilização da temática das relações raciais e, portanto, das condições de vida da população negra no país - embora também a inclua, como em sua famosa crítica ao Partido dos Trabalhadores, em texto apropriadamente intitulado “Racismo por omissão” (cf. Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018.). A “conspiração do silêncio” envolve também (outros polos desse mesmo processo) a naturalização e a negação do racismo no Brasil. Diz ela:

A primeira coisa que a gente percebe nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por quê? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha, pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados. Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas… Nem parece preto. (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 193-194).

Esse racismo de caráter bem peculiar - que se invisibiliza, naturaliza e se nega - é, na reflexão da autora, uma marca da sociedade brasileira e do seu discurso de democracia racial. Ele está na raiz das nossas dificuldades de enfrentamento das iniquidades raciais, na medida em que põe em circulação na sociedade um conjunto de ideias e comportamentos que reforçam a percepção da população negra como menos digna de direitos (“negro tem mais é que viver na miséria”, “ele tem umas qualidades que não estão com nada”), ao mesmo tempo que apregoa uma suposta igualdade de tratamento e oportunidades (“todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus”, “preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem”).

Essas reflexões estão em consonância com a forma como outro intelectual, contemporâneo seu, compreende o mito da democracia racial. Segundo Abdias do Nascimento (2016NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 47-48, grifo nosso):

[À] base de especulações intelectuais, frequentemente com o apoio das chamadas ciências históricas, erigiu-se no Brasil o conceito da democracia racial; segundo esta, tal expressão supostamente refletiria determinada relação concreta na dinâmica da sociedade brasileira: que pretos e brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência, nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais ou étnicas.

Estão aqui já os dois elementos principais que serão, nos anos posteriores, associados à ideia de “democracia racial”: de um lado, a caracterização das relações raciais no Brasil como harmoniosas; de outro, a existência de uma igualdade de oportunidades, independentemente das “origens raciais ou étnicas” dos indivíduos. Mas o aspecto que interessa particularmente à nossa discussão diz respeito ao modo como o autor trata das singularidades da manifestação do racismo na sociedade brasileira, que o distanciaria de outras realidades nacionais, em especial a dos Estados Unidos e a da África do Sul. Vejamos:

Devemos compreender “democracia racial” como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país. Da classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação da “mancha negra”; da operatividade do “sincretismo” religioso à abolição legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão censitária - manipulando todos esses métodos e recursos - a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa máquina ironicamente designada “democracia racial” que só concede aos negros um único “privilégio”: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora. A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade do africano e seus descendentes. (Nascimento, A., 2016NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 111, grifo nosso).

Nessa perspectiva, a noção de “democracia racial” permite captar os elementos essenciais e peculiares desse tipo de racismo. A partir da fala de Nascimento, podemos sintetizar em duas as principais formas de manifestação desse “racismo estilo brasileiro”. De um lado, sua manifestação - ou seria mais preciso dizer “ocultação”? - na forma das ideias de “assimilação, aculturação, miscigenação”. E, de outro lado, seu caráter difuso, não institucionalizado, que não se manifesta via confronto aberto. Trata-se, na verdade, em ambas as formas, de um racismo que não se explicita enquanto tal, que não põe às claras suas atitudes discriminatórias e as ideias preconceituosas que o embasam.

Na perspectiva de Lélia Gonzalez, as singularidades dessas formas de manifestação do racismo na sociedade brasileira deitam raízes no próprio processo de colonização. Para a autora, colonialismo e racismo imbricam-se historicamente, na medida em que este último atuava como mecanismo de reforço e naturalização da “superioridade euro-cristã (branca e heteropatriarcal)” (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 323). E, nesse sentido, contribuía para a legitimidade da violência etnocida e destruidora que a Europa empregou sobre outras regiões do globo, bem como no subsídio considerado científico para a melhor organização da racionalidade administrativa das colônias.

Quando se analisa a estratégia utilizada pelos países europeus em suas colônias, verifica-se que o racismo desempenhará um papel fundamental na internalização da “superioridade” do colonizador pelos colonizados. E ele apresenta, pelo menos, duas faces que só se diferenciam enquanto táticas que visam ao mesmo objetivo: exploração/opressão. Refiro-me, no caso, ao que é comumente conhecido como racismo aberto e racismo disfarçado. (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 324).

Vamos nos deter um pouco nessa distinção, que possui consequências do ponto de vista das identidades raciais, das formas de segregação racial e das estratégias de resistência ao racismo nos países que sofreram a violência colonial.

O “racismo aberto”, segundo a autora, é característico das sociedades de origem anglo-saxônicas, germânica ou holandesa. Nelas, os grupos brancos recorrem à violência explícita e a formas jurídico-políticas de segregação para manter seus privilégios, sua “pureza” e reafirmar sua “superioridade”. Nesse sentido, estruturam a sociedade de modo a estabelecer espaços, instituições e direitos interditados aos “grupos não brancos”. Os exemplos clássicos, já mencionados por Abdias do Nascimento nos excertos acima, seriam tanto da África do Sul sob o regime do apartheid quanto os Estados Unidos na época da vigência do Jim Crow.

Esse tipo de racismo delimita marcos muito particulares para definir as identidades raciais. Nessas realidades nacionais, “negra é a pessoa que tenha tido antepassados negros (‘sangue negro nas veias’)” (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 324). Nos Estados Unidos, a segregação formal levou à adoção de “um regime de descendência mínima (hypo-descendent) ou uma gota de sangue (one drop) para determinar quem era negro ou não, eliminando assim a tradição de alguns estados que reconheciam a categoria de mulatos” (Telles, 2003TELLES, E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003., p. 104-105). Essa “regra da gota de sangue única” variava segundo os estados, estabelecendo juridicamente que as pessoas negras seriam aquelas que possuíam pelo menos um oitavo, ou um dezesseis avos, ou um trinta e dois avos de ascendência africana. De todo modo, como afirma Telles (2003TELLES, E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003., p. 105), determinava que “todas as pessoas de mistura racial com mínima mescla africana fossem classificadas como negras”. A conformação de tal sistema de classificação racial remeteria ao contexto e aos modos particulares com que a abolição da escravatura se deu nos EUA, segundo Medeiros (2013MEDEIROS, C. A. Brasil, Estados Unidos e a questão racial: a fertilidade de um campo cheio de armadilhas. In: PAIVA, A. R. (org.). Ação afirmativa em questão. Rio de Janeiro: Pallas, 2013. p. 240-265., p. 247), e visava impedir “a união de trabalhadores brancos e negros em sindicatos poderosos”.

Evidentemente que, segundo esse sistema, quaisquer tipos de mistura ou contato raciais são, no limite, proscritos legal ou socialmente, pois iriam de encontro à manutenção da suposta “pureza” e “superioridade” das camadas sociais brancas. “De acordo com essa articulação ideológica, miscigenação é algo impensável (embora o estupro e a exploração da mulher negra sempre tenham ocorrido)” (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 324). Paradoxalmente, esses mecanismos de segregação racial, de combate à miscigenação, característicos do “racismo aberto”, contribuíram para reforçar a identidade racial dos grupos discriminados. Levaram ao estabelecimento de formas de organização, de instituições, de grupos e redes de apoio em que a população negra se apoiava mutuamente e se percebia distinta dos grupos brancos dominantes.

Na verdade, a identidade racial própria é facilmente percebida por qualquer criança desses grupos [discriminados]. No caso das crianças negras, elas crescem sabendo o que são e sem se envergonharem disso; o que lhes permite desenvolver outras formas de percepção no interior da sociedade onde vivem. (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 326).

Uma percepção mais nítida da identidade racial está também na raiz, segundo nossa autora, de formas de resistência ao racismo marcadas pela autonomia, inovação, diversificação e credibilidade nacional e internacional. Os obstáculos impostos pelo racismo dominante e legalizado impuseram à comunidade negra a união para a luta, em diferentes níveis, contra a opressão racial. Conforme a autora: “É justamente a consciência objetiva desse racismo sem disfarces e o conhecimento direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico considerado ‘inferior’” (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 327).

Uma realidade bastante distinta seria característica dos países latinos, de colonização ibérica. Esses são marcados pelo racismo disfarçado ou, como o denomina Lélia de Almeida Gonzalez (2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 324), “racismo por denegação”. Diferentemente das realidades nacionais marcadas por uma segregação explícita legitimada pelo Estado, nesses países predominam ideologias da mistura e da assimilação raciais - no caso do Brasil, sintetizadas no discurso da “democracia racial”, que já abordamos. Essencialmente, no quesito que agora nos ocupa, um discurso que nega a importância das identidades raciais particulares para afirmar uma suposta identidade mestiça agregadora das diferenças; mas que, no entanto, deixa intocadas em si as hierarquias estruturais e as discriminações e preconceitos cotidianos que marcam as relações étnico-raciais na sociedade brasileira.

Em termos de técnicas jurídico-políticas de administração das colônias, as metrópoles ibéricas teriam dispensado formas abertas de segregação. Em sociedades já racialmente estratificadas, as hierarquias sociais/raciais prevalecentes já garantem a superioridade dos brancos enquanto grupo dominante sem a necessidade de recorrer a legislações explicitamente hierárquicas ou que delimitassem o pertencimento ou não a um grupo racial. “A decisão da elite brasileira de promover o branqueamento através da miscigenação ao invés da segregação racial tornava desnecessárias as regras formais de classificação racial” (Telles, 2003TELLES, E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003., p. 105). Como consequência, os modos de delimitação das identidades raciais em países como o Brasil se tornaram mais complexos, ambíguos e fluidos do que naqueles países marcados pela segregação racial legalizada - ainda que, nesses países, o marco orientador do branqueamento continue atuando como princípio hierarquizador das identidades raciais no seio da sociedade.

Por isso mesmo, a afirmação de que todos são iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista em nossas sociedades. O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos do estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura. (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 326).

É interessante observar como essa reflexão da autora encontra ecos em importantes análises contemporâneas acerca das relações raciais no Brasil. Em particular, na obra do antropólogo Kabengele Munanga. O autor também reconhece as “peculiaridades culturais e históricas do racismo à moda nacional” (Munanga, 2003MUNANGA, K. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas. In: SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, V. R. (org.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003. p. 115-128., p. 118). Ou, como chama vez ou outra, do “racismo à brasileira” (Munanga, 2017MUNANGA, K. As ambiguidades do racismo à brasileira. In: KON, N. M.; SILVA, M. L. da; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 33-44.) - o que também ecoa Lélia de Almeida Gonzalez (2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 322), que fala que “o racismo ‘à brasileira’ se volta justamente contra aqueles que são o testemunho vivo da mesma (os negros), ao mesmo tempo que diz não o fazer (‘democracia racial’ brasileira)”.

Kabengele Munanga (1999MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 110) busca compreender essas peculiaridades do racismo à brasileira identificando-o como um “modelo racista universalista”, o qual

[…] se caracteriza pela busca de assimilação dos membros dos grupos étnico-raciais diferentes na “raça” e na cultura do segmento étnico dominante da sociedade. Esse modelo supõe a negação absoluta da diferença, ou seja, uma avaliação negativa de qualquer diferença e sugere no limite um ideal implícito de homogeneidade que deveria se realizar pela miscigenação e pela assimilação cultural. A mestiçagem tanto biológica quanto cultural teria entre outras consequências a destruição da identidade racial e étnica dos grupos dominados, ou seja, o etnocídio.

Contrariamente à ideologia racial praticada nos EUA e que procurava assegurar a supremacia racial branca através de um sistema segregacionista rígido, a elite brasileira, na sua maioria, pensava que a solução mais segura e definitiva só podia ser eugênica, em que o processo de branqueamento ofereceria o melhor caminho para aplacar, sem conflitos, a ameaça civilizatória que ela via na população negra e mestiça. “A elite brasileira, preocupada com a construção de uma unidade nacional, de uma identidade nacional, via esta ameaçada pela pluralidade étnico-racial. A mestiçagem era para ela uma ponte para a linha final: o branqueamento do povo brasileiro” (Munanga, 1999MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 112). A ideia da mestiçagem, nesse modelo, servia para afastar qualquer possibilidade de tensões raciais, pregando a paz social.

Ora, mas mesmo quando a mestiçagem é alçada à grande característica definidora da nação, num sentido positivo, a partir da obra de Gilberto Freyre nos anos 1930, ela o é sem contestar necessariamente a hierarquia racial do ideal de branquitude. “Pensada como uma categoria que serviria de base na construção da identidade nacional, a mestiçagem não conseguiu resolver os efeitos da hierarquização dos três grupos de origem e os conflitos de desigualdade raciais resultantes dessa hierarquização” (Munanga, 1999MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 121). Trata-se de um modelo de integração que, mais do que colocar as diferentes contribuições étnico-raciais em posições de igualdade, constrói um modelo identitário “universalista” que engloba essas contribuições em posições valorativas diferenciadas, mantendo a supremacia do ideal civilizacional calcado na branquitude europeia (daí a referência de Munanga ao “etnocídio”).

Em contraposição, em outros países do mundo, em particular na África do Sul e nos EUA, desenvolveu-se um modelo de racismo oposto ao do Brasil, que ele chama de “racismo diferencialista” (Munanga, 1999MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 114-115). Esse racismo, em vez de procurar a assimilação dos “diferentes” pela miscigenação e pela mestiçagem cultural, propôs, ao contrário, a absolutização das diferenças e, no caso extremo, o extermínio físico dos “outros”. A dinâmica do racismo diferencialista levou ao desenvolvimento de sociedades pluriculturais hierarquizadas, ou seja, sociedades desiguais e antidemocráticas (novamente, o apartheid e o sistema Jim Crow). Mas se, por um lado, esse tipo de racismo engendrou o segregacionismo, por outro lado sua dinâmica permitiu a construção de identidades raciais e étnicas fortes no campo dos oprimidos desses sistemas.

Para Munanga, assim como para Lélia Gonzalez, uma consequência direta dessa ausência de uma modalidade explícita de conflito racial no Brasil reside no não reconhecimento da própria existência do racismo. Ou, como diz o autor, “o Brasil criou seu racismo com base na negação do mesmo” (Munanga, 2006MUNANGA, K. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos. Revista USP, São Paulo, v. 68, p. 45-57, 2006., p. 43). É essa, segundo Munanga (2017MUNANGA, K. As ambiguidades do racismo à brasileira. In: KON, N. M.; SILVA, M. L. da; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 33-44., p. 37), a verdadeira “ambiguidade da expressão do racismo na sociedade brasileira”:

É sim e não. Mas o sim não é totalmente afirmativo, pois é sempre acompanhado de “mas, porém, veja bem” etc. O não também é sempre acompanhado de justificativas escapatórias. Mesmo pego em flagrante comportamento de discriminação, o brasileiro sempre encontra um jeito de escapar, às vezes depositando a culpa na própria pessoa segregada, considerando-a complexada.

Assim como para Abdias do Nascimento e Lélia de Almeida Gonzalez, para Kabengele Munanga (2017MUNANGA, K. As ambiguidades do racismo à brasileira. In: KON, N. M.; SILVA, M. L. da; ABUD, C. C. (org.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 33-44., p. 38) essa negação do racismo no Brasil também está associada ao mito da democracia racial:

Fugindo da banalização, onde está exatamente a dificuldade que se tem para aceitar, entender e decodificar o racismo à brasileira? Essa é a questão central da minha intervenção. A dificuldade está justamente nas peculiaridades do racismo à brasileira, que o diferenciam de outras formas de manifestações discriminatórias na história da humanidade, como o regime nazista, as leis de Jim Crow no sul dos Estados Unidos e o apartheid na África do Sul, apenas para citar as mais conhecidas.

Nesses modelos, o racismo foi explícito, institucionalizado e oficializado pelas leis daqueles países. Na Alemanha nazista e no regime do apartheid, praticou-se um racismo do Estado. No Brasil, ao contrário, o racismo é implícito, de fato, e nunca institucionalizado ou oficializado com base em princípios racialistas de pureza de sangue, de superioridade ou de inferioridade raciais. Por causa da ausência de leis segregacionistas, os brasileiros não se consideram racistas quando se comparam aos norte-americanos, sul-africanos e aos alemães nazistas.

Em outros termos, os brasileiros se olham nos espelhos desses países e se percebem sem nenhuma mácula, em vez de fitarem o próprio espelho. Assim, ecoa dentro de muitos compatriotas uma voz muito forte que grita: “Não somos racistas, os racistas são os outros!” Essa voz forte e poderosa é o que chamo de inércia do mito de democracia racial brasileira. Como todos os mitos, funciona como uma crença, uma verdadeira realidade, uma ordem. Daí a dificuldade para arrancar do brasileiro uma confissão de que também seja racista.

Por esse conjunto de reflexões em torno da particularidade do racismo no Brasil, já se nota que as formas de resistência não se colocam tão explícitas, e diante de uma realidade com identidades raciais ambíguas e fluidas, serão bem distintas daquelas realidades nacionais marcadas pelo racismo explícito. Se estas últimas são marcadas por análises-denúncias do sistema vigente, naquela, embora também possuindo formas racistas (Lélia Gonzalez cita explicitamente o caso de Abdias do Nascimento), a “força cultural apresenta-se como a melhor forma de resistência” (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 327). Embora, nesse particular, a autora afirme que continuamos “passivos em face da postura político-ideológica da potência imperialisticamente dominante da região: os Estados Unidos” (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 328).

Améfrica Ladina como (r)existência 4 4 Trata-se de referir como os conhecimentos produzidos a partir das lutas sociais contra as formas de opressão são formas de resistência e existência, gerando a (r)existência.

Tecemos nos tópicos anteriores conceitos importantes de Lélia de Almeida Gonzalez, explorando diálogos aqui construídos com Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Kabengele Munanga. Assim, a construção argumentativa à luz do pensamento intelectual da pensadora mineira/carioca nos permite ampliar a complexidade do mito da democracia racial e compreender o porquê de este ainda ser um discurso atual. Corrobora, ainda, a permanência de um projeto de nação racializado pautado na invisibilização da subalternidade das mulheres negras e em um racismo que é negado sua existência, mas constantemente praticado.

Todavia, a autora em questão não se restringe em apenas identificar e problematizar os elementos - a tripla discriminação e o racismo por denegação - que constituem e mantém o mito da democracia racial. Em seus escritos, Lélia Gonzalez aponta caminhos e possibilidades de (r)existir e desconstruir o discurso hegemônico racial e generificado; para isso, a importância em reconhecer e valorizar a memória e a consciência de lugar através da matriz sociocultural afro-brasileira.

Eu gostaria de colocar uma coisa: minoria cultural a gente não é não, tá? A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é português, é pretuguês. Se a gente levar em consideração, por exemplo, a atuação da mulher negra, a chamada “mãe preta” […] tem um papel importantíssimo como sujeito, suposto saber nas bases mesmo da formação da cultura brasileira. (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 289-290).

É por essa via que a autora começa a refletir sobre as expressões de autoidentificação (“afro-americanos”, por exemplo) enquanto expressão de uma consciência de si, e o que eles revelariam em termos de uma postura de submissão ao imperialismo. Ela chega, enfim, à proposição da categoria de “amefricanidade”.

As implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade (“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Em consequência, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria de Amefricanidade está intimamente relacionada àquelas de Pan-africanismo, “Negritude”, “Afrocentricity” etc. (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 329-330).

Na reflexão em torno dessa categoria é já possível compreender as inovações de Lélia Gonzalez no que concerne à análise sobre o mito da democracia racial. Fundamentalmente, essa inovação reside num novo enfoque - bastante original para sua época, e quiçá ainda hoje - acerca da formação histórico-cultural da sociedade brasileira. Por um lado, porque acentua pioneiramente o papel das mulheres negras nessa formação, apontando para uma tripla discriminação que ainda permanece no contexto social dessas sujeitas. Por outro, traz consigo, na busca no diálogo com matrizes culturais africanas e diaspóricas, o cerne da valorização da humanidade das populações negras, propugnando a criação de uma identidade étnica de resistência perante o imperialismo e o racismo dominante nessas sociedades.

Em outras palavras, perante um mito que acentua a harmonia e igualdade raciais, Lélia de Almeida Gonzalez mostra que a sujeição e violência das mulheres negras está no cerne dessa formação societária. Não há aqui nenhuma “mestiçagem harmoniosa”, ou “fábula das três raças”, que subsista diante de tal análise. Não incidentalmente, a autora se singulariza diante de outras críticas ao mito da democracia racial justamente pela sua análise pioneira em torno das intersecções entre raça, gênero e classe.

Similarmente, diante de um mito que propugna uma suposta miscigenação tão intensa que inviabilizaria quaisquer afirmações raciais particulares (e, consequentemente, quaisquer iniciativas visando combater o racismo), Lélia Gonzalez não só reconhece o impacto de matrizes de descendência africana para nossa formação sociocultural, mescladas com outras influências - “o termo amefricanas/amefricanos designa toda uma descendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro, como a daqueles que chegaram à AMERICA muito antes de Colombo” (Gonzalez, 2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p. 330) -, como vê nela um espaço de afirmação identitária e de resistência perante um racismo que se esconde, se disfarça e se intersecciona.

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  • 1
    Para reflexões da nossa autora nesse sentido, cf. Gonzalez (2018GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018., p.142), e Ratts e Rios (2010)RATTS, A.; RIOS, F. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010. para considerações sobre as relações de Lélia Gonzalez com o movimento negro. Acerca do movimento negro no Brasil, e em particular do MNU, cf. Pereira, A. M (2008)PEREIRA, A. M. Trajetória e perspectivas do movimento negro brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2008., Rios (2012)RIOS, F. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). Lua Nova, São Paulo, n. 85, p. 41-79, 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452012000100003&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 16 jun. 2020
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    e Pereira, A. A. (2013)PEREIRA, A. A. O mundo negro: relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas: FAPERJ, 2013..
  • 2
    Unesco é a sigla de Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.
  • 3
    Especialmente no comércio e em atividades mais burocráticas, como por exemplo a ocupação de secretária e vendedora.
  • 4
    Trata-se de referir como os conhecimentos produzidos a partir das lutas sociais contra as formas de opressão são formas de resistência e existência, gerando a (r)existência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2021
  • Aceito
    14 Fev 2022
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