Open-access LECHNER, Elsa (Ed.). Rostos, vozes e silêncios: uma pesquisa biográfica colaborativa com imigrantes em Portugal. Coimbra: Almedina, 2015. 332 p.

LECHNER, Elsa. Rostos, vozes e silêncios: uma pesquisa biográfica colaborativa com imigrantes em Portugal. 2015. Coimbra: Almedina, 332

O livro Rostos, vozes e silêncios: uma pesquisa biográfica colaborativa com imigrantes em Portugal aborda as dimensões subjetivas dos fenómenos migratórios em Portugal, a partir de um trabalho de campo realizado na cidade de Coimbra e enquadrado por um projeto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Para aceder às experiências dos seus interlocutores, os autores, com diversos percursos disciplinares (antropólogos, psicólogos, arquitetos, sociólogos, linguistas, entre outros) desenvolvem uma pesquisa colaborativa através da qual recolhem narrativas biográficas, recolhas essas realizadas em encontros coletivos designados “rodas de histórias”.

O livro é composto por uma introdução e 12 capítulos, distribuídos por três secções. Na introdução, a coordenadora do volume, e do projeto que lhe dá origem, enquadra e contextualiza-nos as problemáticas e as metodologias que estarão presentes ao longo da obra. A importância da dimensão experiencial e das narrativas biográficas, bem como a criação de metodologias adequadas, como a “roda de histórias”, são alguns dos temas abordados.

Em seguida, na primeira parte, encontramos textos de uma natureza mais teórica/epistemológica, sobre as condições de produção de conhecimento. Abordam-se nestes capítulos quatro temas centrais: a relevância das narrativas biográficas e autobiográficas, a produção de subjetividades, a complexidade das experiências migratórias e um transnacionalismo nostálgico. Os contextos aqui incluem refugiados em França, malaio-portugueses em Malaca (Malásia) e mulheres migrantes em Coimbra.

Os quatro contributos da segunda secção baseiam-se essencialmente nas rodas de histórias realizadas com migrantes em Coimbra. Nestes capítulos, os autores mostram como as narrativas biográficas: (i) desconstroem os discursos xenófobos sobre a imigração, (ii) negoceiam as categorias dominantes presentes nas formações discursivas associadas aos regimes de imigração em Portugal, (iii) contestam discursos normativos sobre religiões ditas “nativas” e “estrangeiras” ao mesmo tempo em que revelam as articulações entre experiências e pertenças religiosas e, (iv) finalmente, as narrativas biográficas nos permitem pensar sobre mobilidade estudantil.

Na terceira parte, e de certa forma em tom de balanço, os autores refletem sobre a pesquisa partilhada e colaborativa realizada não apenas ao longo do projeto, mas também em comparação com outros projetos de investigação. Os dois primeiros textos desta terceira secção abordam temas como a criação de uma “comunidade de práticas” entre investigadores e interlocutores e as múltiplas aprendizagens dos elementos envolvidos ao longo da investigação realizada em Coimbra. Os dois últimos capítulos, da autoria de consultores do projeto, são uma reflexão sobre metodologias visuais participativas, a partir de uma investigação sobre first nations, no Norte da Columbia Britânica, Canadá.

Assim, ao todo, temos 14 autores que, em 12 capítulos, mais uma introdução, se debruçam sobre a importância teórica/epistemológica e metodológica da análise biográfica e a pesquisa partilhada e colaborativa para estudar as experiências migratórias, ao mesmo tempo em que dão voz a múltiplas experiências de migrantes em Portugal.

Apesar de toda essa diversidade, um dos aspetos mais interessantes no livro é precisamente a sua coerência e a forma como os capítulos dialogam entre si, revelando um rigoroso trabalho de coordenação dos vários textos e contributos.

No seu conjunto, o livro Rostos, vozes e silêncios é um importante contributo para os estudos sobre migrações em Portugal porque, em primeiro lugar, realça a dimensão subjetiva e experiencial. Muitos estudos sobre migrações têm privilegiado as explicações macroestruturais, nomeadamente as lógicas de atração e de repulsão nos mercados de trabalho globais, silenciando, frequentemente, as dimensões subjetivas e experienciais. Contudo, e como vários textos neste livro salientam, a dimensão subjetiva é essencial para o conhecimento das realidades vividas pelos nossos interlocutores. Dessa forma, e ao longo do livro, vemos como as dinâmicas migratórias estão associadas a outras expectativas, que não uma mera racionalidade económica. As motivações, as aspirações e as expectativas dos nossos interlocutores estão muito para além de uma mera busca económica e incluem padrões de consumo e estilos de vida, lógicas familiares e de parentesco, procura de autonomia, acesso a projetos de “modernidade”, entre muitos outros – e isso é claramente visível ao longo de todo o livro. Esse contributo vem juntar-se a outros que no panorama editorial português têm vindo a chamar a atenção para o estudo das dimensões experienciais dos fenómenos migratórios contemporâneos (Dias; Dias, 2012; Mapril, 2012; Mezzadra, 2012).

A segunda razão pela qual este livro é um excelente contributo para a literatura sobre migrações em Portugal é que ao dar essa relevância à dimensão experiencial, ele dá voz ao “subalterno” – migrante/mulher – e, portanto, atribui-lhe o direito de enunciação; de construção do seu próprio lugar no espaço público. Isso é tanto mais importante quanto esse direito de enunciação é-lhe frequentemente negado pelos discursos dominantes sobre os fenómenos migratórios, que, nas suas lógicas de conduta da conduta, ou seja, de governamentalidade das migrações, organizam essas populações com base na sua pertença nacional, linguística e religiosa, silenciando as complexidades, as ambiguidades e as dimensões processuais do quotidiano vivido por pessoas concretas. As versões demóticas (como as designava Baumann, 1996) aqui analisadas contestam precisamente esses retratos homogéneos e dominantes sobre a imigração, introduzindo complexidade e ambiguidade. Nesse sentido, as narrativas biográficas podem ser vistas como atos de resistência ou pelo menos de contestação aos regimes biopolíticos das migrações, como aliás vários autores argumentam ao longo da obra, na medida em que dão um retrato bem mais complexo dos fenómenos migratórios do que aquele que nos é apresentado pelos discursos normativos e institucionais. Por exemplo, a leitura de vários segmentos do livro mostra como a imigração pode ser interpretada como uma condição experiencial comum a pessoas com origens nacionais muito diversas, e nesse sentido, é possível falar da emergência daquilo que autores como Sandro Mezzadra e Brett Nielsen (2013) designam por subjetividades políticas de fronteira, subjetividades essas que questionam os modelos hegemónicos de construção dos regimes migratórios baseados na pertença nacional. Isso é especialmente verdade no caso português, onde a ideia de cidadania centrada na interculturalidade veicula um modelo de organização das populações imigrantes com base na ideia das comunidades nacionais, representadas pelas suas associações (Oliveira, 2015). Este livro questiona precisamente essas visões de comunidades nacionais homogéneas mostrando as outras faces das experiências migratórias e, simultaneamente, é um exercício em torno do direito de enunciação.

Finalmente, e em terceiro lugar, este livro mostra de forma clara como as próprias construções narrativas biográficas são, por vezes, objeto de disciplina e controlo no contexto das politicas de asilo e dos regimes de imigração, em vários países europeus. Veja-se, a título de exemplo, a necessidade de construir uma narrativa que obedeça aos requisitos das políticas de asilo ou de imigração – aprendendo “factos” sobre o chamado país de acolhimento – para requerer a naturalização. Este livro mostra uma tendência crescente nos vários regimes de cidadania europeia que estão centrados naquilo que muitos autores designam como a culturalização da cidadania, ou seja, um processo que atribui cidadania de acordo com a prova da incorporação de determinados valores e ideias, numa lógica assimilacionista clara. Nesses casos, a cidadania seria menos o acesso a direitos formais e mais a incorporação de determinadas ideias e padrões de comportamento. Para pensar a pertinência desse tema basta lembrar a forma como para muitos movimentos políticos na Europa contemporânea, por exemplo, o islão é visto como uma religião “estrangeira”, de “imigrantes”, em face de outras religiões ditas “nativas” ou “autóctones” e que, na melhor das hipóteses, tem que ser disciplinado. Assim, este livro faz-nos pensar como as narrativas biográficas são também campos de disciplina e de controlo e onde emergem, de forma clara, as lógicas de culturalização de diferentes regimes de cidadania europeia.

Em suma, ao enfatizar a dimensão subjetiva e experiencial, as suas ambiguidades e contra-hegemonias, bem como os seus processos de disciplina e controlo, este livro constitui-se como um valioso contributo para o estudo dos contextos migratórios em Portugal. Esse contributo é especialmente importante porque nos últimos anos têm-se multiplicado os estudos e as publicações sobre a “nova” emigração portuguesa, ao mesmo tempo em que as discussões públicas parecem ter passado a ignorar a imigração em Portugal. O que seria interessante, pelo contrário, seria procurar revelar as articulações entre os vários regimes de mobilidade que atravessam Portugal – aqueles que saem e aqueles que chegam – para pensar questões mais vastas como a economia política das migrações na Europa contemporânea. Este livro é publicado precisamente num momento onde essas reflexões assumem um carácter de urgência.

Referências

  • 1 BAUMANN, G. Contesting culture: discourses of identity in multi-ethnic London. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
  • 2 DIAS, B.; DIAS, N. (Ed.). Imigração e racismo em Portugal: o lugar do outro. Lisboa: Edições 70, 2012.
  • 3 MAPRIL, J. Islão e transnacionalismo: uma etnografia entre Portugal e o Bangladesh. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2012.
  • 4 MEZZADRA, S. Direito de fuga Lisboa: Unipop, 2012.
  • 5 MEZZADRA, S.; NIELSEN, B. Border as method, or, the multiplication of labor Durham: Duke University Press, 2013.
  • 6 OLIVEIRA, N. Repertoires of diversity and collective boundaries: diverging paths between Portugal and Brazil. Working paper. Gottingen: Max Planck Institute for the Study of Religious and Ethnic Diversity, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2016
location_on
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Acessibilidade / Reportar erro