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“Agro é tudo”: simulações no aparato de legitimação do agronegócio

“Agribusiness is everything”: simulations in the agribusiness legitimating apparatus

Resumo

Este artigo analisa simulações relacionadas à proposição “agro é tudo”, estratégia destacada de legitimação de agentes do agronegócio. Elas são produzidas por meio de operações para que se confundam partes com totalidades, ou, mais especificamente, para que se tomem esses agentes pelo amplo perímetro de funções agroalimentares abrangidas no conceito de agribusiness. É por essa razão que essas operações são tão mais eficazes quanto mais indistintas as dimensões analíticas e políticas do campo do agronegócio. Contrastando o conceito, de um lado, e o conjunto de atores políticos desse campo, de outro, o texto analisa os agenciamentos e os efeitos dessas simulações em três casos empíricos envolvendo, a saber, a agricultura familiar, estatísticas macroeconômicas e campanhas midiáticas. As fontes são 35 entrevistas com atores relacionados ao agronegócio, obras contendo suas justificações, documentos com seus pleitos, peças publicitárias, materiais da imprensa e discursos presidenciais.

Palavras-chave:
agronegócio; simulação; legitimação; agricultura familiar

Abstract

This article analyzes simulations concerning the proposition that “agribusiness is everything”, a prominent strategy for legitimating agribusiness agents. These simulations occur through operations in the public sphere by which parts are used to refer to the whole, or, more specifically, by these agents being put for the broad perimeter of agrifood functions covered in the concept of agribusiness. It is for this reason that such operations function better when the analytical and political dimensions of the agribusiness field remain indistinct. By contrasting the concept, on the one hand, with the set of agribusiness political actors, on the other hand, the paper analyzes the mobilization and the effects of these simulations in three empirical cases involving family agriculture, macroeconomic statistics, and media campaigns. The sources are 35 interviews with actors related to agribusiness, books with their justifications, documents with their claims, propaganda, journalistic materials and presidential speeches.

Keywords:
agribusiness; simulation; legitimation; family farming

Introdução

Este artigo1 1 Este trabalho é financiado pela Fapesp (processo 2018/17886-5), à qual agradeço o apoio. Sou grato à professora Manuela Carneiro da Cunha e aos professores José Maurício Arruti e José Eli da Veiga pelas sugestões e críticas que me ajudaram a desenvolver o argumento contido neste texto. Falhas e omissões são de inteira responsabilidade minha. investiga simulações relacionadas à proposição “agro é tudo”. Fazendo confundir o conjunto de agentes do agronegócio com o perímetro de funções abrangido no conceito de agribusiness, essas simulações são tecnologias políticas operadas para superestimar a representatividade efetiva desses agentes e ampliar a eficácia de seus pleitos, o que tem resultado em sérias consequências para os direitos de agricultores familiares, povos indígenas e populações tradicionais (Almeida, 2010ALMEIDA, A. W. B. Agroestratégias e desterritorialização: os direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios. In: ALMEIDA, A. W. B et al. Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. p. 101-143.; Carneiro da Cunha et al., 2017CARNEIRO DA CUNHA, M. et al. Indigenous peoples boxed in by Brazil’s political crisis. HAU, v. 7, n. 2, p. 403-426, Autumn 2017.; Heredia; Palmeira; Leite, 2010HEREDIA, B.; PALMEIRA, M.; LEITE, S. P. Sociedade e economia do “agronegócio” no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 74, p. 159-176, 2010.; Pompeia, 2018POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Em cotutela com Harvard University. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332572/1/RibeiroNeto_CaioPompeia_D.pdf . Acesso em: 4 nov. 2018.
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bits...
; Sauer, 2008SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro. Brasília: Embrapa, 2008.).

Argumenta-se no texto que há notável diferença entre, de um lado, o conjunto de funções agroalimentares que são consideradas no conceito englobante de agribusiness/agronegócio e, doutro lado, a representatividade mais limitada dos núcleos políticos que agenciam a proposição e dela auferem benefícios. A despeito desse déficit, os líderes desses núcleos simulam, como mencionado, a representação de tudo que é incluído na noção de agronegócio.

Nesse sentido, o agenciamento da ideia de sinédoque política é instrumental. Como explica Cândido (2006CÂNDIDO, A. O estudo analítico do poema. 5. ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006., p. 132), a sinédoque é tropo “pelo qual fazemos conhecer mais ou menos do que significam as palavras em seu sentido próprio”. Segundo Rocha Lima (2011)ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa da língua portuguesa. 49. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011., um dos principais casos da sinédoque - que ele considera um tipo de metonímia - é o do emprego da parte pelo todo. Um exemplo desse caso é “completou 15 primaveras”, com essa estação remetendo a “anos” (Rocha Lima, 2011ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa da língua portuguesa. 49. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011., p. 603). Em caráter mais propriamente político, a sinédoque manifesta-se no campo do agronegócio quando se concebe uma “parte” (conjunto de agentes políticos do agronegócio) como se fosse o “todo” (amplo perímetro de funções contidas na noção de agronegócio).

Ao projetar na esfera pública indistinção entre as dimensões conceitual (totalizadora) e política (menos abrangente) desse campo, o que se procura fazer por meio da sinédoque, portanto, é simular uma representatividade ampliada aos olhos da opinião pública e do Estado. As simulações, que se iniciam com o agenciamento da sinédoque, desdobram-se no simulacro - ideia de núcleos do agronegócio com super-representação (Baudrillard, 1991BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.). Resulta, pois, da sinédoque, um hiper-real que se projeta sobre (ou antecede, nos termos de Baudrillard) a efetiva abrangência política dos agentes do agronegócio.

Esse hiper-real é componente essencial de um aparato de legitimação (Boltanski; Chiapello, 2005BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. The new spirit of capitalism. New York: Verso, 2005.), conjunto de proposições que, fundamentando imaginário relacionado ao agronegócio no Brasil, contribuem para justificar seus agentes e encorajam, por desdobramento, endosso de parcela da opinião pública às suas pautas políticas e apoio do Estado a elas.

Diversos pesquisadores têm chamado atenção para esse aparato. Sauer (2008SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro. Brasília: Embrapa, 2008., p. 15), Almeida (2010ALMEIDA, A. W. B. Agroestratégias e desterritorialização: os direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios. In: ALMEIDA, A. W. B et al. Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. p. 101-143., p. 101-113) e Delgado (2012DELGADO, G. C. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012., p. 117-127) abordam a importância de narrativas fundamentadas em ideias-força como “produtividade”, “eficiência”, “modernidade”, “competitividade” e “segurança alimentar”. Por outro lado, Heredia, Palmeira e Leite (2010HEREDIA, B.; PALMEIRA, M.; LEITE, S. P. Sociedade e economia do “agronegócio” no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 74, p. 159-176, 2010., p. 164, 173), Mendonça (2013MENDONÇA, M. L. R. F. Modo capitalista de produção e agricultura: a construção do conceito de agronegócio. 2013. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 53), Oliveira (2016OLIVEIRA, A. U. A mundialização da agricultura brasileira. São Paulo: Iãnde, 2016., p. 108) e Carneiro da Cunha et al. (2017CARNEIRO DA CUNHA, M. et al. Indigenous peoples boxed in by Brazil’s political crisis. HAU, v. 7, n. 2, p. 403-426, Autumn 2017., p. 405) aludem ao uso de estatísticas macroeconômicas relacionadas fundamentalmente ao Produto Interno Bruto (PIB), aos empregos e à balança comercial. Como também mostram esses autores, tal aparato tem - especialmente em situações de controvérsias públicas (Montero, 2012MONTERO, P. Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso. Religião e Sociedade, v. 32, n. 1, p. 15-30, 2012.; Montero; Arruti; Pompa, 2012MONTERO, P.; ARRUTI, J. M.; POMPA, C. Para uma antropologia do político. In: LAVALLE, A. G. (org.). O horizonte da política: questões emergentes e agenda de pesquisa. São Paulo: Unesp, 2012. p. 145-184.) - contribuído decisivamente para justificar (Boltanski; Chiapello, 2005BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. The new spirit of capitalism. New York: Verso, 2005.; Boltanski; Thévenot, 2006BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. On justification: economies of worth. New Jersey: Princeton University Press, 2006.) os pleitos e a agenda de líderes políticos do agronegócio.

A análise apresentada no artigo teve como principais fontes 35 entrevistas com agentes relacionados ao agronegócio, obras que estabelecem as justificações de seus líderes, documentos que apresentam seus pleitos, peças publicitárias, materiais da imprensa e discursos de presidentes da República.

O texto parte da desagregação entre o conceito e o âmbito político do agronegócio para, em seguida, concentrar-se em três casos concretos de simulações, relacionados respectivamente à agricultura familiar, a estatísticas macroeconômicas e a campanhas midiáticas. Tais simulações implicam dois procedimentos: (1) explorar os simulacros para, então, (2) lançar luz, em cada um deles, sobre a diferença entre noção e organização política do agronegócio. Dessa forma, inverte-se, para fins analíticos, a ordem temporal de mobilização metonímica, na qual o simulacro é consequência da sinédoque.

Agribusiness: noção totalizadora

O caráter englobante da categoria agronegócio não é uma recente criação brasileira: o conceito de agribusiness já nasceu como conjunto totalizador nos Estados Unidos (EUA) dos anos 1950 (Davis, 1955DAVIS, J. H. Business responsibility and the market for farm products. Boston Conference on Distribution, 17 Oct. 1955, box 1, folder 2. John H. Davis Papers, Special Collections, National Agricultural Library, Beltsville, Maryland.). Instados na Harvard Business School por indústrias de alimentação que precisavam avançar na racionalização de suas crescentes relações com a agropecuária (David, 1950DAVID, D. K. Baker Library special collections. Boston: Harvard Business School Press, 1950.), os pesquisadores John Herbert Davis e Ray Allan Goldberg criaram o termo pensando em abranger e mensurar “todo o sistema de alimentos” (informação verbal, tradução minha).2 2 Ray Goldberg (entrevista em 16/03/2017). No original: “the whole food system”.

Efetivamente, o primeiro anúncio público do neologismo explicou-o utilizando os termos “todos”, “todas” e “total”:

[…] agribusiness significa a soma de todas as operações da fazenda, mais a manufatura e a distribuição de todos os insumos de produção agrícola providos pelos negócios, mais o total das operações realizadas em conexão com a manipulação, estocagem, processamento e distribuição de commodities agrícolas. Em suma, agribusiness refere-se à soma total de todas as operações envolvidas na produção e distribuição de alimentos e fibras. (Davis, 1955DAVIS, J. H. Business responsibility and the market for farm products. Boston Conference on Distribution, 17 Oct. 1955, box 1, folder 2. John H. Davis Papers, Special Collections, National Agricultural Library, Beltsville, Maryland., p. 5, tradução minha).3 3 No original: “[…] agribusiness means the sum of all farming operations, plus the manufacture and distribution of farm productions supplies provided by business, plus the total of all operations performed in connection with the handling, storage, processing, and distribution of farm commodities. In brief, agribusiness refers to the sum-total of all operations involved in the production and distribution of food and fiber.”

Como se pode notar, Davis e Goldberg foram muito além de focar as relações entre a agropecuária e as indústrias de alimentação, pois seu recorte compreendia amplo conjunto de funções situadas a montante e jusante4 4 As funções a montante da agropecuária são aquelas vinculadas ao fornecimento de máquinas e insumos para ela; as funções a jusante dela são relacionadas à armazenagem, ao transporte, à industrialização e ao comércio de itens com origem na agropecuária. da agropecuária, incluindo ela própria. Para isso, os criadores do conceito precisaram pressupor homogeneidade na base técnica da agricultura norte-americana (Muller, 1989MULLER, G. Complexo agroindustrial e modernização agrária. São Paulo: Hucitec, 1989.) - assumindo que todos os representantes dessas funções estariam razoavelmente conectados economicamente - e abstrair dos conflitos políticos e distributivos entre vários deles.

Sendo conceito que nascia com pretensões políticas, além de analíticas, a promoção inicial de agribusiness teve como primordial sua relação com a economia dos EUA, em termos das contribuições que esse subconjunto poderia oferecer para os “objetivos econômicos nacionais” (Davis, 1955DAVIS, J. H. Business responsibility and the market for farm products. Boston Conference on Distribution, 17 Oct. 1955, box 1, folder 2. John H. Davis Papers, Special Collections, National Agricultural Library, Beltsville, Maryland., p. 4, tradução minha).5 5 No original: “national economic goals”.

Não fortuitamente, estatísticas relativas à macroeconomia foram anunciadas desde o início ao lado do conceito. Logo após apresentar o termo ao público em 1955, Davis argumentou que o agribusiness seria o maior componente da economia dos EUA, responsável por 40% do PIB e pelo mesmo percentual dos empregos naquele país (Davis, 1955DAVIS, J. H. Business responsibility and the market for farm products. Boston Conference on Distribution, 17 Oct. 1955, box 1, folder 2. John H. Davis Papers, Special Collections, National Agricultural Library, Beltsville, Maryland.). Em trabalho posterior, Davis e Goldberg (1957)DAVIS, J. H.; GOLDBERG, R. A. A concept of agribusiness. Boston: Harvard Business School Press, 1957. dariam amplo destaque, por meio da mobilização da matriz insumo-produto de Wassily Leontief,6 6 Teoria do economista russo que foca as relações intersetoriais e possibilita a mensuração dos insumos de uma determinada cadeia produtiva até a constituição dos produtos finais. Para uma análise dessa teoria, ver Guilhoto (2009). ao trabalho com dados quantitativos relacionados às conexões entre a agricultura e a indústria.

A categoria totalizadora no Brasil

Após alguns anos de esforços isolados para chamar atenção, no Brasil, para a ideia de agribusiness, em 1990 uma empresa de genética animal e vegetal, a Agroceres, publicou a obra (Bittencourt de Araújo; Wedekin; Pinazza, 1990BITTENCOURT DE ARAÚJO, N.; WEDEKIN, I.; PINAZZA, L. Complexo agroindustrial: o “agribusiness brasileiro”. São Paulo: Agroceres, 1990.) que mudaria a história da mobilização dessa noção no país. Com o livro, influenciar-se-ia, de maneira decisiva, o que viria a se constituir, anos depois, naquilo que Delgado (2012)DELGADO, G. C. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012. caracterizou, com precisão, como pacto de economia política do agronegócio, ou seja, uma relação estratégica entre os agentes privados e o Estado nesse domínio.

Destacava-se no trabalho - em grande medida uma cópia da obra de Davis e Goldberg (1957)DAVIS, J. H.; GOLDBERG, R. A. A concept of agribusiness. Boston: Harvard Business School Press, 1957. - um projeto fundamentado na ideia de agribusiness. Esse projeto defendia a proposta de que a agropecuária não deveria mais ser vista de forma compartimentada, mas por meio de suas ligações com os outros setores da economia (Bittencourt de Araújo; Wedekin; Pinazza, 1990BITTENCOURT DE ARAÚJO, N.; WEDEKIN, I.; PINAZZA, L. Complexo agroindustrial: o “agribusiness brasileiro”. São Paulo: Agroceres, 1990.). Advogando essa perspectiva, apresentavam-se, de maneira articulada, números públicos (Neiburg, 2007NEIBURG, F. As moedas doentes, os números públicos e a antropologia do dinheiro. Mana, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 119-151, abr. 2007.). Segundo os autores escreveram, o PIB do agribusiness representaria aproximadamente 35% do PIB do Brasil (Bittencourt de Araújo; Wedekin; Pinazza, 1990BITTENCOURT DE ARAÚJO, N.; WEDEKIN, I.; PINAZZA, L. Complexo agroindustrial: o “agribusiness brasileiro”. São Paulo: Agroceres, 1990., p. XVII).

Essa divulgação, por meio de linguagem matematizada, do que seriam as contribuições do agribusiness para a economia nacional trouxe definitivamente ao país a forma totalizadora para contabilizá-lo. Tal característica englobante do conceito seria mantida quando ele passou posteriormente a constituir-se mais propriamente como uma categoria, dada sua adoção por um coletivo político que se fortalecia (Pompeia, 2018POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Em cotutela com Harvard University. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332572/1/RibeiroNeto_CaioPompeia_D.pdf . Acesso em: 4 nov. 2018.
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). Exemplos de agenciamento desse sentido amplo do termo não faltam. Citam-se abaixo três dentre os mais relevantes.

Ao ser fundada, em 1993, a então chamada Associação Brasileira de Agribusiness (Abag) deu destaque a esse traço totalizador, citando, para fundamentar suas proposições, a ampla definição original de Davis (Associação Brasileira de Agribusiness, 1993ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE AGRIBUSINESS. Segurança alimentar: uma abordagem de agribusiness. São Paulo, 1993., p. 9). Quando, no começo dos anos 2000, a Abag contratou pesquisadores de órgãos públicos para calcular o PIB do agronegócio, a metodologia empregada baseou-se na obra de 1957 de Davis e Goldberg (Rodrigues, 2001RODRIGUES, R. Introdução. In: NUNES, E. P.; CONTINI, E. Complexo agroindustrial brasileiro: caracterização de dimensionamento. Brasília: Associação Brasileira de Agribusiness, 2001. p. 3-5.).

Atualmente, o exemplo mais importante dessa forma abrangente de definição da categoria é o do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Universidade de São Paulo), principal órgão de pesquisas quantitativas sobre o agronegócio no Brasil. O coordenador desse centro, Geraldo Sant’Ana de Camargo Barros, confirmou a utilização de noção totalizadora para os cálculos.7 7 Informação verbal de Geraldo Sant’Ana de Camargo Barros, coordenador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (entrevista em 13/06/2017). Em detalhamento metodológico para sua quantificação do PIB do agronegócio, o Cepea explica que este abrange, sem distinguir volume de produção e uso de tecnologia, a

[…] renda gerada de forma sistêmica na produção de insumos para a agropecuária, acrescida da renda gerada na produção primária e se estendendo por todas as demais atividades que processam e distribuem o produto ao destino final. (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, 2017CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA. Metodologia: PIB do agronegócio brasileiro: base e evolução. Piracicaba, 2017., p. 4).

A concertação política do agronegócio: parte do “tudo”

Para delimitar o perímetro dos agentes políticos do agronegócio, utiliza-se a noção de concertação política do agronegócio. Ela remete a uma arena de convergência intersetorial e privado-estatal consolidada durante os anos 2010 no campo do agronegócio.

Em âmbito privado, associativo e nacional, compõem o campo do agronegócio três formas principais de representação: (1) entidades por produtos agropecuários, (2) associações sindicais e/ou tradicionais da agricultura patronal e (3) núcleos intersetoriais envolvendo, além desses agentes do setor primário, representantes das indústrias a montante e jusante.

Quanto às entidades por produtos agropecuários, têm proeminência aquelas vinculadas às principais commodities, como a Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho), o Conselho Nacional do Café (CNC) e a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa). Elas abrangem, nacionalmente, os atores restritos à agropecuária em cada um dos produtos, nesses exemplos milho, café e algodão, respectivamente.8 8 Informações verbais de Alysson Paolinelli, presidente da Abramilho (entrevista em 09/10/2017); Silas Brasileiro, presidente do CNC (entrevista em 13/02/2019); Márcio Portocarrero, diretor-executivo da Abrapa (entrevista em 13/02/2019).

Dentre as associações sindicais e/ou tradicionais da agricultura patronal, destacam-se a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), associação que oficialmente responde pela agricultura patronal em âmbito nacional, e a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), na qual as grandes cooperativas agrícolas têm predominância. As demais entidades patronais, como a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e a Sociedade Nacional da Agricultura (SNA), têm atuação menos saliente, seja por meio de sua inserção em outros núcleos políticos ou da visibilidade de seus líderes na esfera pública. Além delas, vale chamar atenção para a União Democrática Ruralista (UDR), que recentemente conquistou relativa influência no governo.9 9 Informações verbais de Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas (entrevistas em 06/06/2017 e 04/10/2017); João Martins, presidente da CNA (entrevista em 13/06/2019); Marcelo Vieira, presidente da SRB (entrevista em 04/04/2019).

Em anos recentes, essas duas formas de atuação do setor primário solidificaram suas relações políticas com indústrias a montante e jusante, consolidando núcleos intersetoriais ampliados que constituem a manifestação por excelência da concertação política do agronegócio. Nessa terceira - e dominante - forma de representação, sobressai-se, com maior poder dentre todos os atores no campo, o Instituto Pensar Agropecuária (IPA), atuante na retaguarda da Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (FPA).

Além de agregar associações da agropecuária, o IPA abrange entidades a montante - como a Associação dos Misturadores de Adubos do Brasil (Ama Brasil), a Associação para o Fomento à Pesquisa de Melhoramento de Forrageiras (Unipasto) e o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal (Sindan) - e a jusante - a exemplo da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) e a Associação Brasileira de Laticínios (Viva Lácteos).10 10 Instituto Pensar Agropecuária e Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (2019); informações verbais de Carlos Eduardo Florence, diretor-executivo da Ama Brasil (entrevista em 05/04/2019); Pierre Patriat, presidente da Unipasto (entrevista em 05/04/2019); Élcio Inhe, presidente do Sindan (entrevista em 23/04/2019); Péricles Pessoa Salazar, presidente da Abrafrigo (entrevista em 21/03/2019); Marcelo Costa Martins, diretor-executivo da Viva Lácteos (entrevista em 22/02/2019).

Criado pela CNA com inspiração no IPA, o Conselho das Entidades do Setor Agropecuário (Conselho do Agro) também é intersetorial e bastante importante no campo - agregando inclusive algumas representações que não financiam o instituto, como a Federação dos Plantadores de Cana do Brasil (Feplana) -, embora, por outro lado, tenha participação menos representativa de indústrias.11 11 Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (2019); informações verbais de João Martins, presidente da CNA (entrevista em 13/06/2019); Alexandre Lima, presidente da Feplana (entrevista em 04/04//2019). Em seguida ao IPA e ao Conselho do Agro podem ser citados como fóruns intersetoriais relevantes a própria Abag e o Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.12 12 Informações verbais de Luiz Carlos Corrêa Carvalho, ex-presidente da Abag (entrevista em 30/06/2017); Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas (entrevista em 04/10/2017); Antonio Carlos Costa, gerente do Departamento do Agronegócio da Fiesp (entrevista em 04/12/2017).

Embora haja uma série de conflitos e competições no campo do agronegócio, dos quais devem ser salientados, por um lado, os intersetoriais - como aqueles distributivos entre pecuaristas e frigoríficos ou entre sojicultores e tradings - e, por outro, a concorrência entre a CNA e o IPA pela liderança na representação desse subsistema econômico diante do Estado, agentes do referido campo atuam de forma coordenada, como concertação, em inúmeras ações, e especialmente em questões políticas amplas, como a indígena e a ambiental (Pompeia, 2018POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Em cotutela com Harvard University. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332572/1/RibeiroNeto_CaioPompeia_D.pdf . Acesso em: 4 nov. 2018.
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).

Tal concertação será utilizada como padrão na análise dos casos concretos, cabendo sublinhar, entretanto, que as operações de sinédoque política nesse campo ganham tanto mais intensidade quanto mais baixa é a capacidade de representação dos atores que as agenciam em controvérsias na esfera pública (Montero, 2012MONTERO, P. Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso. Religião e Sociedade, v. 32, n. 1, p. 15-30, 2012.; Montero; Arruti; Pompa, 2012MONTERO, P.; ARRUTI, J. M.; POMPA, C. Para uma antropologia do político. In: LAVALLE, A. G. (org.). O horizonte da política: questões emergentes e agenda de pesquisa. São Paulo: Unesp, 2012. p. 145-184.). Por exemplo, sendo uma entidade como a UDR a fazê-lo, ganha maior relevo a disjunção entre sua representatividade e as informações que mobiliza com base na ideia de que o “agro é tudo”.

Antes de se iniciarem as análises dos casos empíricos, apresenta-se abaixo contraste mais detalhado entre as funções agroalimentares previstas na noção de agribusiness/agronegócio e o perímetro de representação da concertação.

No âmbito da agropecuária, as entidades vinculadas aos trabalhadores não participam da concertação; as indústrias processadoras integram-na de forma parcial, sobretudo por meio das corporações mais diretamente ligadas às commodities, como as de óleos vegetais, açúcar/energia, carnes e papel/celulose; na distribuição, afora algumas dessas empresas vinculadas às commodities, que também atuam nessa função, grande parte dos atores tampouco a integram; as redes de supermercados não se interessam em compô-la; finalmente, os restaurantes e outros estabelecimentos que preparam e servem alimentos definitivamente não estão relacionados à concertação (Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação, 2018ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DA ALIMENTAÇÃO. Relatório anual. São Paulo, 2018.; Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, 2019ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE BARES E RESTAURANTES. [website]. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.abrasel.com.br/ . Acesso em: 5 mar. 2019.
http://www.abrasel.com.br/...
; Associação Brasileira de Supermercados, 2019ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SUPERMERCADOS. [website]. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.abrasnet.com.br/ . Acesso em: 5 mar. 2019.
http://www.abrasnet.com.br/...
; Associação Brasileira do Agronegócio, 2019ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO AGRONEGÓCIO. Associados. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.abag.com.br/institucional/associados . Acesso em: 7 mar. 2019.
http://www.abag.com.br/institucional/ass...
; Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, 2019CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL. Conselho do agro. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.conselhodoagro.org.br/ . Acesso em: 11 jul. 2019.
http://www.conselhodoagro.org.br/...
; Instituto Pensar Agropecuária; Frente Parlamentar Mista da Agropecuária, 2019INSTITUTO PENSAR AGROPECUÁRIA; FRENTE PARLAMENTAR MISTA DA AGROPECUÁRIA. Carta ao Presidente da República Federativa do Brasil: apoio à Reforma da Previdência 2019. Brasília, 2 abr. 2019.).

Estando contrastados os perímetros dos dois conjuntos - categoria agronegócio e concertação -, passa-se à análise das simulações em três casos concretos. Como indicado acima, apresentar-se-ão os simulacros para então examinar as operações de sinédoque política que os engendram. Inicia-se pela agricultura familiar.

“Agricultura familiar é agro”: manipulação classificatória e favorecimento dos produtores patronais

Um dos mais relevantes desdobramentos da mobilização da proposição totalizadora do agronegócio relaciona-se aos pequenos agricultores. O argumento nesse caso é derivado do caráter englobante do conceito de agribusiness: sendo o “agro” “tudo” o que está ligado à agropecuária, ele inclui também a “agricultura familiar”. Entre os pesquisadores, Neves (2016)NEVES, M. F. Vai agronegócio!: 25 anos cumprindo missão vitoriosa. Sertãozinho: Canaoeste, 2016. tem sido um dos principais a defender esse posicionamento.

Mobilizando esse argumento por meio de sinédoque política (ação para fundir conceito e concertação), agentes políticos do agronegócio constroem um simulacro (imagem da concertação com super-representatividade), no qual envolvem, portanto, todos os tipos de produção agropecuária. Escamoteando que não há união política entre a concertação e a maioria da agricultura familiar, eles podem promover, valendo-se do prestígio social dessa categoria, ações políticas que, no entanto, frequentemente são prejudiciais à maior parte dos produtores não patronais.

Dentre os casos com maior impacto de utilização do argumento de que a “agricultura familiar” é “agronegócio” estão aqueles relacionados às disputas pelas prioridades de pesquisa na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) entre 2003 e 2005. Trata-se do período de gestão do então diretor-presidente Clayton Campanhola, que tinha assumido a posição procurando fortalecer, na empresa, pesquisas voltadas para parcelas da agricultura familiar pouco apoiadas no processo de industrialização da agropecuária (Kageyama et al., 1990KAGEYAMA, A. et al. O novo padrão agrícola brasileiro: do complexo rural aos complexos agroindustriais. In: DELGADO, G. C. et al. (org.). Agricultura e políticas públicas. Brasília: Ipea, 1990. p. 113-223. (Série Ipea, 127).), além de defender uma atitude mais cautelosa em relação aos transgênicos.13 13 Informação verbal de Clayton Campanhola (entrevista em 22/09/2017).

Houve uma reação contrária muito forte de atores centrais do agronegócio14 14 Embora a ampla arena de relações que aqui se define como concertação ainda não estivesse conformada nos anos 2000, os agentes que disputavam a orientação de tais pesquisas agropecuárias seriam, em grande parte, os responsáveis por consolidá-la na década seguinte. - principalmente da bancada ruralista, de entidades da agricultura patronal e de multinacionais de insumos, como a Monsanto - a essa nova orientação. A eles juntar-se-iam setores da grande imprensa, críticos aos novos rumos propostos pelo diretor-presidente.

No início de 2005, o que se pode chamar de projeto de democratização da pesquisa na Embrapa foi derrotado, com a destituição de Campanhola. O editorial de O Globo, por sua vez, anunciou um “fim do pesadelo” na empresa, que teria consistido na priorização da “agricultura familiar” em detrimento do “agronegócio” (Fim…, 2005FIM do pesadelo. O Globo, Rio de Janeiro, 25 jan. 2005. Editorial, p. 6.). Desautorizando essa classificação, o então ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues (2003-2006), apressou-se na ocasião para argumentar que a “agricultura familiar”, segundo ele inserida no “agronegócio”, continuaria tendo prioridade na empresa (Rodrigues, 2005RODRIGUES, R. Agricultura familiar mantém espaço. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 22 jan. 2005. Economia, p. B6., p. B6). Frise-se que, a partir da saída de Campanhola, a predominância da agricultura patronal na empresa foi aprofundada.

Rodrigues posteriormente inflexionaria essa linha classificatória. Ao deixar o Ministério da Agricultura no ano seguinte, após desentendimentos com a cúpula do governo, ele preferiu singularizar produtores não patronais, reclamando que “a agricultura familiar é a mais privilegiada pelo nosso governo” (Rodrigues, 2006RODRIGUES, R. Nem que a vaca tussa eu continuo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 maio 2006. Economia, p. B7., p. B7).

Quando atores dominantes no campo estavam lutando pelo orçamento público ou pelo direcionamento das pesquisas para os grandes empreendimentos, eles argumentavam que os agricultores familiares também estariam sendo beneficiados, pois os esforços seriam para contemplar o “agronegócio” como um todo, que incorporaria a “agricultura familiar”; quando os conflitos se agudizavam, com possibilidades de maior distribuição de recursos, no entanto, enfatizavam a especificidade da “agricultura familiar”, dizendo que não se deveriam privilegiar os produtores familiares, ou, ainda, preterir o “agronegócio”.

Recentemente, outro efeito relevante relacionado ao agenciamento da classificação que insere a “agricultura familiar” no “agronegócio” foi a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) - instância governamental específica para aquele público - pelo então presidente interino Michel Temer. Ele atendia à “Pauta Positiva” (Instituto Pensar Agropecuária; Frente Parlamentar Mista da Agropecuária, 2016INSTITUTO PENSAR AGROPECUÁRIA; FRENTE PARLAMENTAR MISTA DA AGROPECUÁRIA. Pauta positiva: biênio 2016/2017. Brasília, 2016.), documento de pleitos prioritários cobrados pelo IPA e pela FPA em troca de apoio a esse chefe do Executivo. Posteriormente, Temer acataria outras dessas propostas enquanto se equilibrava no mandato diante de grave denúncia da Procuradoria-Geral da República contra si. Com o governo Bolsonaro, a proposta discursiva de inclusão da “agricultura familiar” no “agronegócio” implicou a inserção subalterna da estrutura administrativa e técnica de políticas desenhadas para os pequenos produtores em ambiente ministerial de hegemonia da concertação.

Embora o conceito de agronegócio de fato abranja, em seu amplo modelo contábil, a agricultura familiar, a concertação política relaciona-se mais diretamente apenas a porção menor dos 4.367.902 estabelecimentos familiares identificados pelo Censo Agropecuário de 200615 15 Os resultados do Censo de 2017 para a agricultura familiar ainda não estavam publicados quando da elaboração deste artigo. (França; Del Grossi; Marques, 2009FRANÇA, C. G.; DEL GROSSI, M. E.; MARQUES, V. P. M. A. O censo agropecuário 2006 e a agricultura familiar no Brasil. Brasília: MDA, 2009.): justamente aqueles que estão mais bem inseridos nos complexos agroindustriais (CAIs) (Kageyama et al., 1990KAGEYAMA, A. et al. O novo padrão agrícola brasileiro: do complexo rural aos complexos agroindustriais. In: DELGADO, G. C. et al. (org.). Agricultura e políticas públicas. Brasília: Ipea, 1990. p. 113-223. (Série Ipea, 127).), sobretudo os contratados por indústrias (como a BRF) ou associados a grandes cooperativas agrícolas (a exemplo da Coamo).

Esse déficit de representação da concertação em relação aos produtores não patronais guarda coerência com a seletividade da narrativa que acompanhou o lançamento do conceito de agribusiness nos EUA e a promoção, no Brasil, de projeto político-econômico baseado na categoria. Isso porque Davis (1956)DAVIS, J. H. From agriculture to agribusiness. Harvard Business Review, n. 34, p. 107-115, Jan. 1956. lançara, ao lado do neologismo, uma proposta, copiada em larga medida pela Agroceres (Bittencourt de Araújo; Wedekin; Pinazza, 1990BITTENCOURT DE ARAÚJO, N.; WEDEKIN, I.; PINAZZA, L. Complexo agroindustrial: o “agribusiness brasileiro”. São Paulo: Agroceres, 1990.), de seleção entre family farmers16 16 Usa-se a expressão family farmer, em inglês, tratando do contexto norte-americano, para guardar as diferenças em relação à categoria “agricultor familiar” no Brasil, sobretudo no que se refere à limitação ou não do tamanho das unidades produtivas (Brasil, 2006; United States Department of Agriculture, 2019). que estariam aptos ou não a serem integrados nos CAIs - por conta do tamanho de suas áreas e da incorporação de avanços tecnológicos e gerenciais. Para aqueles produtores, Davis propunha apoio estatal; para estes, sugeria a procura por trabalho parcial ou integral em outras atividades fora das unidades agrícolas. Dessa forma, havia nas propostas originais de agribusiness não exatamente uma oposição entre “agricultores familiares” e “agronegócio”, e sim uma seleção entre distintos grupos daqueles agricultores, com vistas ao aprofundamento de um projeto excludente de desenvolvimento rural.

Não por acaso, a maioria dos agentes da concertação não atribuem prioridade às políticas para a agricultura familiar. Se tratam delas em suas cartas políticas e agendas, é antes de forma fragmentada, subsidiária à sua orientação principal de apoio à agricultura patronal e às indústrias, ou voltada especificamente aos estabelecimentos familiares mais bem soldados aos CAIs (ver, por exemplo, Instituto Pensar Agropecuária; Frente Parlamentar Mista da Agropecuária, 2016INSTITUTO PENSAR AGROPECUÁRIA; FRENTE PARLAMENTAR MISTA DA AGROPECUÁRIA. Pauta positiva: biênio 2016/2017. Brasília, 2016.; Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, 2018CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL. O futuro é agro: 2018-2030. Brasília, 2018.). Além disso, líderes patronais frequentemente disputam com agricultores familiares orçamento público e ações estatais, como bem mostra o exemplo da Embrapa.

Não é por outra razão que as instâncias mais representativas da agricultura familiar e de pequenos produtores, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil e o Movimento dos Pequenos Agricultores,17 17 Para uma análise sobre essas e outras organizações não patronais, ver Schneider e Cassol (2013). não participam de nucleações políticas do agronegócio. Trata-se, portanto, de sinédoque a mobilização, por líderes desses núcleos, da proposta classificatória que inclui a agricultura familiar no agronegócio, já que, se este conceito a inclui, a concertação apenas muito frágil e parcialmente a representa.

O próximo tópico aborda outra forma de manifestação das simulações, que ocorre por meio do uso de dados quantitativos.

“O PIB e os empregos do agronegócio”: legitimação do apoio estatal e justificações às críticas

A mobilização de estatísticas macroeconômicas agregadas relacionadas ao agronegócio tem tido implicações imprescindíveis para o aparato de legitimação a serviço de atores da concertação. Lançadas nos anos 1980, mas obtendo maior aceitação ao longo da década seguinte (Pompeia, 2018POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Em cotutela com Harvard University. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332572/1/RibeiroNeto_CaioPompeia_D.pdf . Acesso em: 4 nov. 2018.
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), essas quantificações com fundamento intersetorial têm sido empregadas para ampliar a importância atribuída aos agentes políticos do agronegócio. Ao evidenciarem a participação do agribusiness (como noção) na economia nacional, muito superior àquela da agricultura tomada separadamente, esses atores têm conseguido angariar credibilidade perante parte da opinião pública, e, com isso, obter maior potencial de convencimento e pressão sobre o Estado.

Entretanto, deve ser salientado que esse imaginário de agronegócio é um simulacro construído pela mobilização de sinédoques. Isso porque, se o “tamanho” do agronegócio na economia é medido com base no conceito, os dividendos dessa mobilização são auferidos, substancialmente, por núcleos da concertação, a qual, como manifestação política, inexiste com tal perímetro de funções previstas na noção. Se o agronegócio como conceito é “tudo”, sua dimensão política é somente parte dele.

Para funcionar, por conseguinte, a operação de sinédoque precisa fazer confundir a representatividade política da concertação com as funções abrangidas na categoria que as nucleações agenciam. Isto é, necessita que não seja percebida diferença entre as dimensões analítica e política no campo do agronegócio. Como estratégia de neorrealidade (Baudrillard, 1991BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.), essa operação de simulação tem influências poderosas.

Exemplo categórico dessas influências é seu uso por presidentes da República, que remetem a esses simulacros para justificar adesões de seus governos ao pacto de economia política do agronegócio. Em mensagem presidencial ao Plano Plurianual 2008-2011, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores, 2003-2010) argumentou que “a competitividade e sustentabilidade do agronegócio exigem investimentos contínuos” (Brasil, 2007BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos. Plano plurianual 2008-2011: mensagem presidencial: volume I. Brasília, 2007., p. 107). Logo antes dessa afirmação, ele tinha exposto sua justificação: o “agronegócio” corresponderia a “cerca de 28% do PIB” e a “37% dos empregos” (Brasil, 2007BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos. Plano plurianual 2008-2011: mensagem presidencial: volume I. Brasília, 2007., p. 107).

Em abril de 2017, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT, 2011-2016) declarou que o “agronegócio” seria “importantíssimo” para o país, dadas suas contribuições macroeconômicas (informação verbal).18 18 Dilma Rousseff (entrevista em 21/04/2017). Em suas gestões, houve, em determinadas áreas, aprofundamento do referido pacto, do qual uma das principais evidências foi a quase paralisação das demarcações de Terras Indígenas (Pompeia, 2018POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Em cotutela com Harvard University. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332572/1/RibeiroNeto_CaioPompeia_D.pdf . Acesso em: 4 nov. 2018.
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).

Em 2016, o presidente em exercício Michel Temer, do Movimento Democrático Brasileiro (2016-2018), afirmou que “O agronegócio aqui no Brasil responde por […] 25% dos empregos e por cerca de 20% do PIB” (Michel Temer…, 2016MICHEL TEMER: “Brasil deve muito ao agronegócio”. Brasília, 2016. Disponível em: Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/noticias/2016/07/temer-agronegocio-hoje-e-a-pauta-mais-importante-do-pais . Acesso em: 3 jan. 2018.
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). Seu governo, levando a relação estratégica público-privada a patamar ainda mais elevado, foi marcado pelo atendimento de uma série pleitos de núcleos da concertação, como a extinção do MDA (apontada acima), a redução de dívidas previdenciárias de empresários rurais e a tentativa de modificação do conceito de trabalho análogo ao de escravo (Pompeia, 2018POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Em cotutela com Harvard University. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332572/1/RibeiroNeto_CaioPompeia_D.pdf . Acesso em: 4 nov. 2018.
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).

No começo de 2019, o presidente Jair Messias Bolsonaro (então no Partido Social Liberal, 2019-) afirmou em evento da bancada ruralista que se sentia honrado por estar na presença de pessoas “em grande parte responsáveis pelo nosso PIB” (Discurso…, 2019DISCURSO do Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante a solenidade de posse do Senhor Deputado Alceu Moreira no cargo de Presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária e de sua Diretoria - Brasília/DF. 19 fev. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-durante-a-solenidade-de-posse-do-senhor-deputado-alceu-moreira-no-cargo-de-presidente-da-frente-parlamentar-da-agropecuaria-e-de-sua-diretoria-brasilia-df . Acesso em: 7 mar. 2019.
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). Dentre outras medidas em seu início de mandato, Bolsonaro atendeu a várias das principais reivindicações de atores políticos do agronegócio, com destaque para o desmonte de políticas ambientais e indigenistas (Brasil, 2019BRASIL. Medida Provisória Nº 870, de 1º de janeiro de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, p. 1-13, 1 jan. 2019.).

Efetivamente, o agenciamento de estatísticas sobre as participações do agronegócio no PIB e nos empregos se constituiu como um dos elementos-chave do que Almeida (2010ALMEIDA, A. W. B. Agroestratégias e desterritorialização: os direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios. In: ALMEIDA, A. W. B et al. Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. p. 101-143., p. 110) chamou de “visão triunfalista dos agronegócios”. Importante salientar que esses dados macroeconômicos são operados na esfera pública com base em convenções coletivas do bem comum (Thévenot, 2001THÉVENOT, L. Pragmatic regimes governing the engagement with the world. In SCHATZKI, T. R.; KNORR-CETINA, K.; SAVIGNY, E. V. (ed.). The practice turn in contemporary theory. London: Routledge, 2001. p. 56-73.), como se beneficiassem a toda a população. Nesse sentido, eles detêm grande potencial de legitimação. Perspectivas conservadoras têm-nos utilizado no âmbito de controvérsias públicas para argumentar que esses benefícios supostamente para “todo mundo” - ou, ainda, para o “Brasil” - superariam problemas causados pelo agribusiness, como aqueles relacionados ao meio ambiente e aos povos indígenas.

É precisamente no âmbito de controvérsias como essas que as justificações desses agentes desempenham seu mais relevante papel. Elas estão inseridas em situações específicas nas quais setores em disputa se veem provocados a fundamentar suas posições. Para argumentarem com eficácia, esses agentes precisam remeter a determinadas regras de aceitabilidade, chamadas pelos autores de ordens de grandeza, ou, ainda, lógicas (Boltanski; Chiapello, 2005BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. The new spirit of capitalism. New York: Verso, 2005.; Boltanski; Thévenot, 2006BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. On justification: economies of worth. New Jersey: Princeton University Press, 2006.).19 19 Há um distanciamento no artigo no que diz respeito à teoria das justificações, visto que aqui se remete antes ao conceito de “ordens de grandeza” e a seus possíveis desdobramentos analíticos relacionados ao agronegócio no Brasil que às seis ordens específicas que Boltanski e Thévenot (2006) criaram ao apresentá-lo. No domínio de controvérsias que envolvem o agronegócio, porta-vozes dos agentes patronais procuram responder a lógicas de justificação baseadas nos direitos humanos ou na distribuição fundiária, por exemplo, com agenciamento de simulacros macroeconômicos.

Dois exemplos são elucidativos: reagindo em 2004 a denúncias da Organização Internacional do Trabalho sobre trabalhos forçados na agricultura do país, João Almeida Sampaio Filho, então presidente da SRB, argumentou que o fundamental a ser levado em consideração no caso seriam as estatísticas do agribusiness, com destaque para os empregos criados. Segundo ele, o “agronegócio gera 18 milhões de empregos, o que corresponde a 30% da população economicamente ocupada do país”. Tais números deveriam, de acordo com Sampaio Filho (2004SAMPAIO FILHO, J. A. Campo, o grande empregador brasileiro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 dez. 2004. Opinião, p. B2., p. 21), ser suficientes para colocar “por terra as denúncias” realizadas. Em 2008, Cesário Ramalho da Silva, naquele momento presidente da SRB e diretor de agropecuária do Departamento do Agronegócio da Fiesp, contestou a política nacional de reforma agrária, afirmando que ela seria realizada para atrapalhar o “agronegócio”, que, segundo ele, “[…] segura as contas do País, com efeito multiplicador de gerar riqueza, emprego e renda para a indústria e os serviços” (Silva, 2008SILVA, C. R. Injustiça e desordem?! O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 jul. 2008. Fórum dos Leitores, p. A3., p. A3). Foi justamente ao longo da segunda metade dos anos 2000 que, em grande medida por pressão de atores patronais, a questão agrária foi perdendo centralidade na agenda do Estado brasileiro (Pompeia, 2018POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Em cotutela com Harvard University. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332572/1/RibeiroNeto_CaioPompeia_D.pdf . Acesso em: 4 nov. 2018.
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).

Em seguida se analisam as sinédoques relacionadas ao PIB e aos empregos. Para isso se remete, em parte, aos próprios números usados pelos agentes da concertação política do agronegócio.20 20 O intuito, nessa direção, é usar parte desses números agenciados por líderes da concertação para identificar a existência de sinédoques, e não os tomar como tradução objetiva dos fenômenos a que aludem. Para análises históricas críticas sobre relações de estatísticas com o mundo material e seu uso como tecnologia política, ver Mitchell (2002) e Hacking (2004).

Produto Interno Bruto

De acordo com cálculos publicados pelo Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, 2018aCENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA. PIB do agronegócio brasileiro. 2018a. Disponível em: Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx . Acesso em: 27 fev. 2019.
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), o PIB-renda do agronegócio brasileiro, somando aproximadamente R$ 1,45 trilhão em 2017,21 21 Em valores de 2018, segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (2018a). compreenderia 21,6% do total do PIB do Brasil. Essa fração estava dividida entre 4,4% em “insumos”, 25,2% na “agropecuária”, 28,9% na “indústria” e 41,5% em “serviços”, conforme mostra o Gráfico 1.

Gráfico 1
Participação relativa dos segmentos no PIB-renda do agronegócio no Brasil.

Esta divisão quadripartite é inspirada no conceito original de agribusiness (Davis; Goldberg, 1957DAVIS, J. H.; GOLDBERG, R. A. A concept of agribusiness. Boston: Harvard Business School Press, 1957.), tendo apenas uma inflexão a jusante, isto é, dividindo-se esse segmento em dois: indústria (principalmente processamento, energia e papel/celulose) e serviços (sobretudo distribuição, comércio e estabelecimentos que servem refeições) (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, 2018aCENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA. PIB do agronegócio brasileiro. 2018a. Disponível em: Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx . Acesso em: 27 fev. 2019.
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).

O déficit de representatividade da concertação em relação às funções agrupadas pelo Cepea em “serviços” é o mais proeminente. De fato, no segmento que esteve relacionado, segundo o centro de pesquisa da Esalq, a 41,5% do PIB-renda do agronegócio em 2017, a representação da concertação é muito frágil, acima de tudo porque supermercados e restaurantes não querem aproximar-se de seus núcleos e grande parte dos atores de transporte estão em disputa distributiva pública com seus líderes.

No que tange à “indústria”, nota-se cenário marcadamente dividido: de um lado, os segmentos dela que atuam com as principais commodities, como óleos vegetais, carnes, açúcar, etanol, celulose e lácteos, estão inseridos na concertação; outros segmentos, a exemplo das massas, biscoitos e chocolates, estão mais bem representados em uma entidade que tem agenda própria, não se enxergando na concertação, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (2018)ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DA ALIMENTAÇÃO. Relatório anual. São Paulo, 2018.; por fim, as indústrias têxteis somente em sua minoria estão ligadas ao lobby do agronegócio. Resulta que os aproximadamente 29% do PIB do agronegócio na “indústria” decresceriam de modo expressivo se “descontadas” as indústrias que estão apartadas da concertação.

Com 25,2% do PIB do agronegócio, a produção da “agropecuária” identificada pelo Cepea leva em conta, com base no conceito de agribusiness, a participação tanto de unidades da agricultura familiar quanto da patronal. Segundo Guilhoto et al. (2006)GUILHOTO, J. M. et al. A importância do agronegócio familiar no Brasil. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 44, n. 3, p. 355-382, 2006., situa-se em torno de um terço a participação da agricultura familiar no PIB total do agronegócio. Esse um terço é representado apenas parcialmente pela concertação, pois, como mostrado anteriormente, os líderes políticos do agronegócio têm relação mais estreita apenas com parte específica (e menor) desses agricultores familiares.

O segmento “insumos”, amplamente representado em núcleos da concertação, tem, entretanto, pequena participação relativa - pouco mais de 4% - no PIB do agronegócio.

Embora não esteja nos objetivos deste artigo realizar cálculos sobre o PIB que estaria representado na concertação, pode-se, com base nas próprias quantificações do Cepea, e por cotejamento entre a noção de agronegócio e sua dimensão política, dizer com segurança que ele é substancialmente menor que os R$ 1,45 trilhões que foram anunciados para o ano de 2017 (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, 2018aCENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA. PIB do agronegócio brasileiro. 2018a. Disponível em: Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx . Acesso em: 27 fev. 2019.
https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do...
). Por último, é importante reforçar que, se levada em conta somente a CNA na mobilização desses números, entidade da agricultura patronal que financia essas quantificações do Cepea, a simulação é mais intensa, dada sua menor representatividade quando comparada àquela do conjunto de atores da concertação.

Empregos

Segundo o Cepea, havia entre abril e junho de 2018 um total de 18.093.831 empregos no agronegócio no Brasil, o que significaria, à época, 19,8% do total de pessoas ocupadas no país (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, 2018bCENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA. Mercado de trabalho do agronegócio brasileiro. 2018b. Disponível em: Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/mercado-de-trabalho-do-agronegocio.aspx . Acesso em: 27 fev. 2019.
https://www.cepea.esalq.usp.br/br/mercad...
). Diferentemente do caso do PIB, em que o segmento “serviços” é predominante, no que tange aos empregos, a “agropecuária” vem em primeiro lugar, com 45,8%, seguida de “serviços”, “indústria” e “insumos”, com respectivamente 31,7%, 21,3% e 1,2% (ver Gráfico 2). É com a “agropecuária”, portanto, que se começa a análise.

Gráfico 2
Participação relativa dos segmentos nos empregos do agronegócio no Brasil.

Para o Cepea, todas as famílias residentes em domicílios rurais, independentemente de suas relações com os CAIs, e desde que tenham alguma produção agrícola contabilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, são levadas em consideração no segmento “agropecuária”.22 22 Informação verbal de Geraldo Sant’Ana de Camargo Barros, coordenador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (entrevista em 13/06/2017). Levando em consideração que, de acordo com Mattei (2015)MATTEI, L. Emprego agrícola: cenários e tendências. Estudos Avançados, v. 29, n. 85, p. 35-53, 2015., aproximadamente 70% do emprego agrícola no país está relacionado à agricultura familiar, que, como analisado no artigo, está sub-representada na concertação, pode-se notar que a mobilização dos números desse segmento por líderes políticos do agronegócio ocorre como simulação. Um exemplo, dentre vários existentes, são as mais de 3,3 milhões de famílias que vivem em domicílios rurais na situação de extrema pobreza ou pobreza (Brasil, 2014BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Perfil das pessoas e famílias no cadastro único do governo federal - 2013. Brasília, 2014.), as quais, pouco ou nada ligadas aos CAIs, e não representadas na concertação, contribuem para dilatar os números de “empregos do agronegócio” agenciados por agentes patronais do campo do agronegócio, que o fazem em proveito próprio.

Para os “serviços”, responsáveis por 31,7% dos empregos do agronegócio segundo o Cepea, vale a mesma constatação realizada para o caso do PIB: há diminuta representatividade dessas funções nos núcleos da concertação. No que concerne à “indústria”, relacionada a 21,3% das ocupações do agronegócio, também cabe o raciocínio feito para o PIB, ou seja, há uma série de funções abarcadas na contabilização para esse segmento que não estão contidas no conjunto de nucleações políticas do agronegócio. Finalmente, o pequeno percentual em “insumos”, 1,2%, remete ao único segmento no qual a representatividade da concertação é mais ampla.

O próximo e último tópico trata de simulações em campanhas publicitárias.

De “tudo é agro” a “agro é tudo”: paroxismos nas sinédoques

Campanhas midiáticas idealizadas e/ou financiadas por agentes da concertação perfazem o terceiro caso empírico analisado neste artigo. Serão abordadas as duas principais propagandas responsáveis por anunciar, na televisão aberta, as proposições totalizadoras de que “tudo” seria “agro” (Sou agro), ou, inversamente, de que “agro” seria “tudo” (Agro: a indústria riqueza do Brasil) (Agro…, 2019AGRO: a indústria-riqueza do Brasil. G1, 2019. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/agro-a-industria-riqueza-do-brasil/playlist/videos-agro-a-industria-riqueza-do-brasil.ghtml . Acesso em: 5 mar. 2019.
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; Nova/SB, 2019NOVA/SB. Sou agro. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.novasb.com.br/trabalho/sou-agro/ . Acesso em: 3 mar. 2019.
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).23 23 Por estratégia de marketing, essas peças incorporavam uma modificação realizada na categoria agronegócio entre o final da década de 2000 e começo da seguinte, que consistia em priorizar, em agenciamentos na esfera pública, o termo “agro”, sem “negócio” (Pompeia, 2018). Mobilizadas por atores políticos do agronegócio para sedimentar imagem de super-representatividade deles próprios, essas peças publicitárias são ingrediente central da produção de hiper-realidade, e, por desdobramento, de influências materiais.

Figura 1
“Agro é tudo” na campanha Agro: a indústria riqueza do Brasil.

Construída em 2011 pela agência Nova/SB sob encomenda da Fiesp, da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e da Bunge, e financiada por um conjunto mais amplo de entidades participantes de núcleos da concertação (União da Indústria de Cana-de-Açúcar, 2011UNIÃO DA INDÚSTRIA DE CANA-DE-AÇÚCAR. Movimento Sou Agro lança campanha e será “divisor de águas” para comunicação. 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.unica.com.br/noticia/855075992036979688/concertação-sou-agro-lanca-campanha-e-sera-por-centoE2-por-cento80-por-cento9Cdivisor-de-aguas-por-centoE2-por-cento80-por-cento9D-para-comunicacao/ . Acesso em: 5 mar. 2019.
http://www.unica.com.br/noticia/85507599...
), Sou agro teve como um de seus objetivos primordiais apoiar, como identificou Bruno (2014)BRUNO, R. Movimento ‘Sou Agro’. Marketing, habitus e estratégias de poder do agronegócio. Composição, Campo Grande, n. 14, p. 85-101, 2014., o lobby então em execução para debilitar instrumentos de proteção ambiental do Código Florestal. Já Agro: a indústria riqueza do Brasil foi criada em meados de 2016, dentro da Rede Globo - empresa associada à Abag (Associação Brasileira do Agronegócio, 2019ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO AGRONEGÓCIO. Associados. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.abag.com.br/institucional/associados . Acesso em: 7 mar. 2019.
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) -, como estratégia de negócio no ramo publicitário. Seus patrocinadores são a Ford e a JBS (Agro…, 2019AGRO: a indústria-riqueza do Brasil. G1, 2019. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/agro-a-industria-riqueza-do-brasil/playlist/videos-agro-a-industria-riqueza-do-brasil.ghtml . Acesso em: 5 mar. 2019.
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; Schmidt, 2017SCHMIDT, R. Campanha Agro: a indústria-riqueza do Brasil. 29 mar. 2017. Palestra. Global Agribusiness Forum, São Paulo, 2017.). Desde então, essa campanha da Globo tem operado para dar sustentação ideológica à intensificação do pacto de economia política do agronegócio nos governos Temer e Bolsonaro.

Ambas as campanhas procuram fortalecer a percepção intersetorial - baseada na noção original de agribusiness - de que alimentos, roupas e combustíveis, dentre outros produtos, fazem parte do agronegócio. Agentes da concertação esperam que, com base na ampla divulgação da proposição de que o agronegócio abrangeria esses produtos, eles possam comunicar com maior eficácia, para a opinião pública, a ideia de que seriam responsáveis por todo esse conjunto.

Levando-se em conta, portanto, que atores da concertação têm financiado propagandas que apresentam visões totalizadoras do agronegócio, e que, por meio de sinédoques políticas, procuram fortalecer um imaginário (simulacro) no qual se apresentam como encarnação desse agribusiness superabrangente, contrastaram-se os contornos dos “agronegócios” mostrados nas duas campanhas com a representatividade da concertação. Nessa direção, podem-se encontrar diferentes níveis de simulação.

Segundo um dos pôsteres de Sou agro, o agronegócio estaria “no papel, nos tecidos, na carne, leite, manteiga, queijo, margarina, sucos, saladas, frutas, no etanol do seu carro” (Nova/SB, 2019NOVA/SB. Sou agro. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.novasb.com.br/trabalho/sou-agro/ . Acesso em: 3 mar. 2019.
http://www.novasb.com.br/trabalho/sou-ag...
). Por cima de imagens ilustrativas, o narrador de Agro: a indústria riqueza do Brasil afirmava em parte de um de seus vídeos que o agronegócio se manifestaria

nas máquinas que colhem os grãos, que se transformam em ração, que alimenta animais, que geram leite, carne, lã. Lã e algodão geram roupa, roupa tá na moda. Moda gera lucro, que gera emprego e investimento, que volta para o campo, aumentando a produção de trigo, milho, cana. (Agro…, 2019AGRO: a indústria-riqueza do Brasil. G1, 2019. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/agro-a-industria-riqueza-do-brasil/playlist/videos-agro-a-industria-riqueza-do-brasil.ghtml . Acesso em: 5 mar. 2019.
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).

Com foco nas principais commodities agropecuárias, que, como se demonstrou, estão bem representadas em entidades componentes da concertação, pode-se afirmar que esses dois primeiros trechos das peças publicitárias operam apenas sinédoque menos saliente, relacionada sobretudo a tecidos e roupas (visto que as indústrias de têxteis são pouco ligadas aos núcleos políticos do agronegócio).

Todavia, pode-se perceber na campanha da Globo um segundo nível de sinédoque. Ao citar funções contidas no agronegócio, outro vídeo dessa empresa inicia com a agricultura para, em seguida, mencionar processamento, transportes, armazenagem e comércio (Agro…, 2019AGRO: a indústria-riqueza do Brasil. G1, 2019. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/agro-a-industria-riqueza-do-brasil/playlist/videos-agro-a-industria-riqueza-do-brasil.ghtml . Acesso em: 5 mar. 2019.
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). Conforme apresentado previamente no artigo, no conceito de agronegócio há a previsão de todas essas funções a jusante da agropecuária. Ocorre que a concertação está em larga medida distanciada politicamente da maioria delas: no processamento, ela engloba principalmente as corporações ligadas às commodities, tendo notáveis déficits no amplo leque de indústrias associadas à Abia; nos transportes, com a exceção de empresas que verticalizaram essa função, grande parte dos atores não a compõem; na armazenagem, ela detêm alguma participação, em especial por meio das tradings e grandes cooperativas; no comércio, seja o varejista ou o atacadista, a relação política é praticamente nula.

Há ainda um terceiro nível de sinédoque nas campanhas midiáticas no qual as estratégias publicitárias levam a narrativa do “agro é tudo” a paroxismos, extrapolando o sentido já abrangente do conceito criado na Harvard Business School e posteriormente adotado no país. No mesmo vídeo da Globo apresentado no parágrafo anterior, chega-se a mencionar o consumidor como parte do agronegócio. Em outra peça de Agro: a indústria riqueza do Brasil, o agronegócio “tá em tudo o que o Brasil faz. Tá em tudo o que o Brasil consome” (Agro…, 2019AGRO: a indústria-riqueza do Brasil. G1, 2019. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/agro-a-industria-riqueza-do-brasil/playlist/videos-agro-a-industria-riqueza-do-brasil.ghtml . Acesso em: 5 mar. 2019.
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). Ao aparecer em um dos vídeos de Sou agro veiculados na televisão aberta, a atriz Giovanna Antonelli lê discurso que sugere equivalência entre o “agro”, de um lado, e o Brasil e os brasileiros, de outro:

Você sabia que no Brasil todo mundo tem uma fazenda? É, uma fazenda. A minha fica bem aqui, na cidade, bem no meio da minha cozinha. É só abrir a geladeira. Lá eu tenho o meu pomar, o meu gado de corte, a minha soja. Aqui eu tenho a minha floresta plantada. Até a roupa que eu visto vem da minha fazenda. Da minha plantação de algodão. Na minha fazenda tem até canavial. E eu amo essa fazenda chamada Brasil. Sou agro. Agrobrasileira. (Nova/SB, 2019NOVA/SB. Sou agro. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.novasb.com.br/trabalho/sou-agro/ . Acesso em: 3 mar. 2019.
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).

Considerações finais

Este artigo analisa simulações relacionadas à proposição “agro é tudo”. Elas caracterizam-se como tecnologia política mobilizada para superestimar a representatividade efetiva de atores do campo do agronegócio e ampliar a eficácia de seus pleitos, o que tem resultado em sérias consequências para os direitos de agricultores familiares, povos indígenas e populações tradicionais.

Usando a noção de sinédoque política, o trabalho investiga modos pelos quais esses agentes operam para que se confundam totalidades com partes, ou, mais especificamente, para que prevaleça indistinção entre o amplo perímetro de funções agroalimentares abrangidas no conceito de agribusiness e a concertação política do agronegócio, que remete a um conjunto de núcleos que, a despeito de conflitos, atua frequentemente de modo orquestrado.

O produto das sinédoques, a ideia de nucleações do agronegócio com super-representação, é apreendido no texto como simulacro, uma hiper-realidade que se projeta sobre a efetiva abrangência política dos agentes do agronegócio. Esse hiper-real, por sua vez, é componente basilar de um aparato de legitimação mais extenso, um conjunto de proposições essencial para justificar e dotar de eficácia as reivindicações de líderes da concertação.

Contrapondo, portanto, a categoria agronegócio à concertação, o artigo aborda criticamente tais simulações em três casos empíricos, relacionados à agricultura familiar, a estatísticas macroeconômicas e a campanhas midiáticas.

No primeiro caso, trata-se do argumento de atores da concertação de que a “agricultura familiar” faz parte do “agronegócio”. Agenciando, pois, o caráter englobante do conceito de agribusiness (que, sendo totalizador, inclui os agricultores familiares), esses agentes inserem-se na esfera pública como simulacro que envolve todos os tipos de produção agropecuária. Ao esconder que não há união política entre a concertação e a maioria do público da agricultura familiar, esses líderes conseguem aproveitar-se do prestígio social dessa categoria para avançar ações políticas que frequentemente são prejudiciais à maioria dos produtores não patronais. Dentre efeitos materiais da mobilização desse simulacro, aponta-se para prejuízos aos pequenos produtores envolvendo pesquisas na Embrapa e às estruturas administrativas customizadas para eles.

No segundo caso, analisa-se o agenciamento de estatísticas sobre a participação do agronegócio no PIB e nos empregos do país. Chamando atenção para a importância do agribusiness (como noção) na economia nacional, muito superior àquela da agropecuária tomada separadamente, agentes da concertação têm conseguido obter maior eficácia em seus pleitos. Mostra-se que esse imaginário abrangente, mobilizado para justificar adesões ao pacto de economia política do agronegócio e para responder a críticas na esfera pública, é também um simulacro construído pela mobilização de sinédoques. Isso se dá porque o “peso” do agronegócio na economia é medido com fundamento no conceito, enquanto os dividendos dessa mobilização são capturados por núcleos da concertação, a qual, enquanto conjunto político, inexiste com tal perímetro de funções estabelecido pela noção. Se, por um lado, o agronegócio como conceito é “tudo”, por outro, sua dimensão política é somente parte dele.

Por fim, trata-se, no terceiro caso, de campanhas publicitárias as quais anunciam que o “agro é tudo”. Ao alimentarem, sob idealização ou financiamento de agentes da concertação, a imagem de um agronegócio totalizador, essas propagandas servem a eles em seu trabalho para apresentar como indistintas as dimensões analítica e política do campo do agronegócio. Por meio de sinédoques, esses atores fortalecem um imaginário (simulacro) no qual são encarnação de um agronegócio superabrangente. De suas consequências são indicadas a importância como sustentação ideológica para modificações legislativas caras aos interesses desses agentes e a relevância para o aprofundamento das relações estratégicas deles com o Executivo.

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  • UNIÃO DA INDÚSTRIA DE CANA-DE-AÇÚCAR. Movimento Sou Agro lança campanha e será “divisor de águas” para comunicação 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.unica.com.br/noticia/855075992036979688/concertação-sou-agro-lanca-campanha-e-sera-por-centoE2-por-cento80-por-cento9Cdivisor-de-aguas-por-centoE2-por-cento80-por-cento9D-para-comunicacao/ Acesso em: 5 mar. 2019.
    » http://www.unica.com.br/noticia/855075992036979688/concertação-sou-agro-lanca-campanha-e-sera-por-centoE2-por-cento80-por-cento9Cdivisor-de-aguas-por-centoE2-por-cento80-por-cento9D-para-comunicacao/
  • UNITED STATES DEPARTMENT OF AGRICULTURE. “Family farm” definition 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.ers.usda.gov/topics/farm-economy/farm-household-well-being/glossary/#familyfarm Acesso em: 5 mar. 2019.
    » https://www.ers.usda.gov/topics/farm-economy/farm-household-well-being/glossary/#familyfarm
  • 1
    Este trabalho é financiado pela Fapesp (processo 2018/17886-5), à qual agradeço o apoio. Sou grato à professora Manuela Carneiro da Cunha e aos professores José Maurício Arruti e José Eli da Veiga pelas sugestões e críticas que me ajudaram a desenvolver o argumento contido neste texto. Falhas e omissões são de inteira responsabilidade minha.
  • 2
    Ray Goldberg (entrevista em 16/03/2017). No original: “the whole food system”.
  • 3
    No original: “[…] agribusiness means the sum of all farming operations, plus the manufacture and distribution of farm productions supplies provided by business, plus the total of all operations performed in connection with the handling, storage, processing, and distribution of farm commodities. In brief, agribusiness refers to the sum-total of all operations involved in the production and distribution of food and fiber.”
  • 4
    As funções a montante da agropecuária são aquelas vinculadas ao fornecimento de máquinas e insumos para ela; as funções a jusante dela são relacionadas à armazenagem, ao transporte, à industrialização e ao comércio de itens com origem na agropecuária.
  • 5
    No original: “national economic goals”.
  • 6
    Teoria do economista russo que foca as relações intersetoriais e possibilita a mensuração dos insumos de uma determinada cadeia produtiva até a constituição dos produtos finais. Para uma análise dessa teoria, ver Guilhoto (2009)GUILHOTO, J. M. Leontief e insumo-produto: antecedentes, princípios e evolução. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 47, n. 2, p. 1-43, 2009..
  • 7
    Informação verbal de Geraldo Sant’Ana de Camargo Barros, coordenador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (entrevista em 13/06/2017).
  • 8
    Informações verbais de Alysson Paolinelli, presidente da Abramilho (entrevista em 09/10/2017); Silas Brasileiro, presidente do CNC (entrevista em 13/02/2019); Márcio Portocarrero, diretor-executivo da Abrapa (entrevista em 13/02/2019).
  • 9
    Informações verbais de Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas (entrevistas em 06/06/2017 e 04/10/2017); João Martins, presidente da CNA (entrevista em 13/06/2019); Marcelo Vieira, presidente da SRB (entrevista em 04/04/2019).
  • 10
    Instituto Pensar Agropecuária e Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (2019)INSTITUTO PENSAR AGROPECUÁRIA; FRENTE PARLAMENTAR MISTA DA AGROPECUÁRIA. Carta ao Presidente da República Federativa do Brasil: apoio à Reforma da Previdência 2019. Brasília, 2 abr. 2019.; informações verbais de Carlos Eduardo Florence, diretor-executivo da Ama Brasil (entrevista em 05/04/2019); Pierre Patriat, presidente da Unipasto (entrevista em 05/04/2019); Élcio Inhe, presidente do Sindan (entrevista em 23/04/2019); Péricles Pessoa Salazar, presidente da Abrafrigo (entrevista em 21/03/2019); Marcelo Costa Martins, diretor-executivo da Viva Lácteos (entrevista em 22/02/2019).
  • 11
    Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (2019)CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL. Conselho do agro. 2019. Disponível em: Disponível em: http://www.conselhodoagro.org.br/ . Acesso em: 11 jul. 2019.
    http://www.conselhodoagro.org.br/...
    ; informações verbais de João Martins, presidente da CNA (entrevista em 13/06/2019); Alexandre Lima, presidente da Feplana (entrevista em 04/04//2019).
  • 12
    Informações verbais de Luiz Carlos Corrêa Carvalho, ex-presidente da Abag (entrevista em 30/06/2017); Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas (entrevista em 04/10/2017); Antonio Carlos Costa, gerente do Departamento do Agronegócio da Fiesp (entrevista em 04/12/2017).
  • 13
    Informação verbal de Clayton Campanhola (entrevista em 22/09/2017).
  • 14
    Embora a ampla arena de relações que aqui se define como concertação ainda não estivesse conformada nos anos 2000, os agentes que disputavam a orientação de tais pesquisas agropecuárias seriam, em grande parte, os responsáveis por consolidá-la na década seguinte.
  • 15
    Os resultados do Censo de 2017 para a agricultura familiar ainda não estavam publicados quando da elaboração deste artigo.
  • 16
    Usa-se a expressão family farmer, em inglês, tratando do contexto norte-americano, para guardar as diferenças em relação à categoria “agricultor familiar” no Brasil, sobretudo no que se refere à limitação ou não do tamanho das unidades produtivas (Brasil, 2006BRASIL. Lei 11.326, de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, p. 1, 25 jul. 2006.; United States Department of Agriculture, 2019UNITED STATES DEPARTMENT OF AGRICULTURE. “Family farm” definition. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.ers.usda.gov/topics/farm-economy/farm-household-well-being/glossary/#familyfarm . Acesso em: 5 mar. 2019.
    https://www.ers.usda.gov/topics/farm-eco...
    ).
  • 17
    Para uma análise sobre essas e outras organizações não patronais, ver Schneider e Cassol (2013)SCHNEIDER, S.; CASSOL, A. A agricultura familiar no Brasil. Santiago: Rimisp, 2013. (Serie Documentos de Trabajo n. 145. Grupo de Trabajo: Desarrollo con Cohesión Territorial. Programa Cohesión Territorial para el Desarrollo)..
  • 18
    Dilma Rousseff (entrevista em 21/04/2017).
  • 19
    Há um distanciamento no artigo no que diz respeito à teoria das justificações, visto que aqui se remete antes ao conceito de “ordens de grandeza” e a seus possíveis desdobramentos analíticos relacionados ao agronegócio no Brasil que às seis ordens específicas que Boltanski e Thévenot (2006)BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. On justification: economies of worth. New Jersey: Princeton University Press, 2006. criaram ao apresentá-lo.
  • 20
    O intuito, nessa direção, é usar parte desses números agenciados por líderes da concertação para identificar a existência de sinédoques, e não os tomar como tradução objetiva dos fenômenos a que aludem. Para análises históricas críticas sobre relações de estatísticas com o mundo material e seu uso como tecnologia política, ver Mitchell (2002)MITCHELL, T. Rule of experts: Egypt, techno-politics, modernity. Berkeley: University of California Press, 2002. e Hacking (2004)HACKING, I. The taming of chance. Cambridge: Cambridge University Press, 2004..
  • 21
    Em valores de 2018, segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (2018a)CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA. PIB do agronegócio brasileiro. 2018a. Disponível em: Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx . Acesso em: 27 fev. 2019.
    https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do...
    .
  • 22
    Informação verbal de Geraldo Sant’Ana de Camargo Barros, coordenador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (entrevista em 13/06/2017).
  • 23
    Por estratégia de marketing, essas peças incorporavam uma modificação realizada na categoria agronegócio entre o final da década de 2000 e começo da seguinte, que consistia em priorizar, em agenciamentos na esfera pública, o termo “agro”, sem “negócio” (Pompeia, 2018POMPEIA, C. Formação política do agronegócio. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Em cotutela com Harvard University. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332572/1/RibeiroNeto_CaioPompeia_D.pdf . Acesso em: 4 nov. 2018.
    http://repositorio.unicamp.br/jspui/bits...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2019
  • Aceito
    24 Jun 2019
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