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Carta dos Editores

Carta dos Editores

H istória Ciências Saúde — Manguinhos dá início à publicação de números especiais reunindo nesta edição artigos originalmente apresentados no seminário ‘Canudos 100 anos’ e em mesa-redonda dedicada ao tema no XXI Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), ambos ocorridos em outubro de 1997.

A escolha do tema não poderia ser mais apropriada. O olhar para os sertões, para os contrastes do Brasil, faz parte da tradição dos intelectuais-cientistas que se dedicaram a pensar o país e a buscar na melhoria das condições de saúde e educação uma das respostas para o que historicamente tem sido focalizado como empecilhos à construção da nação. As viagens científicas do Instituto Oswaldo Cruz no início do século XX integram-se a este movimento mais amplo, trazendo à cena pública um país abandonado e esquecido onde, para usar a conhecida imagem de Euclides da Cunha, os brasileiros se sentiam como "estrangeiros em sua própria terra".

Os artigos revelam a natureza interdisciplinar e a riqueza dos debates ocorridos no centenário da guerra de Canudos. Profissionais de diferentes áreas — história, sociologia, literatura comparada, crítica literária, antropologia, ciência política, geologia — sistematizaram observações ou ensaiaram novas interpretações acerca do significado mais amplo daquele episódio dramático da história social, política e cultural brasileira. Os trabalhos aqui reunidos abordam temas da maior atualidade: as persistentes desigualdades sociais, o monopólio da terra, a violência e a exclusão da maioria dos brasileiros do mundo da liberdade e dos direitos. E fazem isto, é importante acentuar, evitando anacronismos e a imputação a outros contextos e atores sociais de experiências e questões contemporâneas.

A revisão historiográfica da guerra de Canudos ou, mesmo, da comunidade organizada sob a liderança de Antônio Conselheiro, não constitui a temática central da presente seleção de artigos. Outros eventos e publicações organizados no bojo do centenário dedicaram-se a isso, consolidando uma linha de investigações que tem no historiador José Calasans, nosso homenageado, a sua maior expressão. A idéia central que orientou o seminário ‘Canudos 100 anos’ consistiu em examinar esse episódio como dramática expressão dos antagonismos suscitados pelo encontro entre os valores civilizatórios preconizados pela República e a experiência diária dos sertanejos que, como afirmaram os sanitaristas Belisário Penna e Arthur Neiva, "só sabiam de governos porque lhes cobravam impostos de bois, de cavalos e de burros" (‘Viagem científica pelo Norte da Bahia, Sudeste de Pernambuco, Sul do Piauí e de Norte a Sul de Goiás’. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, vol. 8, no 30, p. 121, 1916). Canudos representou para os autores aqui reunidos um ponto de vista privilegiado para revisitar as interpretações de que o Brasil já foi objeto.

Paralelo interessante pode ser traçado com outros eventos. Antônio Conselheiro foi o grande personagem recuperado durante o ano de 1997, como atesta, por exemplo, o Caderno ‘Mais’ publicado pela Folha de S. Paulo na véspera do dia que marcou os cem anos da morte do líder de Canudos. Convergiam os artigos para a revisão dos estereótipos de loucura, fanatismo e sebastianismo, em grande parte derivados da interpretação de Euclides da Cunha em Os sertões. Já no seminário ‘Canudos 100 Anos’ privilegiou-se o diálogo com a contribuição tão importante desse intelectual à elaboração de uma teoria do Brasil. Como se sabe, ele foi uma espécie de marco inicial da interpretação dualista que deu origem à imagem de uma sociedade dividida entre um pólo atrasado, no sertão, onde poderia residir a base da nacionalidade, e o pólo ‘civilizado’, formado porém por ‘copistas’, por elites políticas e intelectuais que permaneciam com os olhos voltados para a Europa, de costas para a nação. Destaca-se aqui a importância de uma obra intelectual na (re)construção de um fato histórico e na interpretação de seu significado. Nessa perspectiva, vale lembrar que outras revoltas no período republicano, com características semelhantes às de Canudos, não alcançaram a mesma visibilidade, nem se tornaram marcos da história do país.

Resultado de um empreendimento coletivo que reuniu diversos profissionais e instituições, sob a coordenação da Casa de Oswaldo Cruz e do Museu da República, e com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), o seminário ‘Canudos 100 anos’ integrou o evento mais amplo ‘Brasil ser tão Canudos’, em que se deu rica associação entre atividades acadêmicas e artísticas. Cumpriu-se, mais uma vez, a tradição da cidade do Rio de Janeiro de promover o encontro de manifestações científicas e culturais, combinando, neste evento, palestras, exposição fotográfica, mostra de vídeo e cinema e apresentação da escola de samba ‘Em Cima da Hora’. Tivemos o prazer de dividir a responsabilidade pela organização do seminário com Maria Alice Rezende de Carvalho, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e Mario Chagas, do Museu da República. Contamos também com a participação de Anelise Pacheco, diretora deste museu, na coordenação geral de ‘Brasil ser tão Canudos’, e de Maria Ester Lopes Moreira e Ileana Pradilla Céron, na produção do evento.

O número especial de História, Ciências, Saúde — Manguinhos traz a seus leitores a maioria dos trabalhos apresentados no seminário ‘Canudos 100 anos’ e ainda os ensaios de Cícero Almeida e Berthold Zilly, elaborados para a seção ‘Imagens’, ambos concernentes ao trabalho de Flavio de Barros, o fotógrafo que integrou a última expedição militar a Canudos. Uma ausência marcante no seminário, a de Walnice Nogueira Galvão, é agora reparada com a publicação do depoimento que nos concedeu. Para ilustrar esta edição reproduzimos algumas das xilogravuras de Joel Borges.

Os artigos contemplam as relações entre história e ficção; o papel decisivo que a obra de Euclides da Cunha teve na conformação de uma imagem de Brasil; o modo como se deu a sua consagração; os vários significados atribuídos à palavra ‘sertão’ e as interpretações de que foi objeto no pensamento social brasileiro; e ainda o efeito de contraste que se obtém confrontando os sertanejos de Canudos com os conflitos subseqüentes do Brasil rural e com os novos personagens que hoje gravitam em torno da cultura country. Em seu conjunto, estes trabalhos focalizam as tensões constitutivas do processo de modernização da sociedade brasileira. Reafirmam a contemporaneidade e abrangência nacional da tragédia protagonizada no sertão da Bahia em fins do século passado, instigando os leitores a lembrar Canudos para melhor pensar o Brasil.

Nísia Trindade Lima

Simone Petraglia Kropf

Ricardo Ventura Santos

Editores convidados

As xilogravuras que ilustram esta edição compõem o álbum Via sacra de Antônio Conselheiro,

do artista Joel Francisco Borges, que autorizou sua reprodução.

Rua Galdino Gedeião, 25 — Bezerros, Pe 55660-000

Os originais foram gentilmente cedidos pelo Museu de Folclore Edison Carneiro/Centro Nacional

do Folclore e Cultura Popular/Funarte Rua do Catete, 179 — Rio de Janeiro RJ 22220-000

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Jul 1998
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