Resumos
Este artigo analisa as relações entre malária e guerra, através das políticas de controle da doença executadas nas bases militares norte-americanas estabelecidas no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. O estudo de caso das três mais importantes bases, em Belém, Recife e Natal, mostra como a malária pode transformar-se numa questão de segurança político-militar. O caso de Natal permite-nos avaliar os preconceitos, desconfianças políticas e tensões nacionalistas entre brasileiros e norte-americanos.
história; malária; Segunda Guerra Mundial; Brasil; Estados Unidos
Malaria-control policies enforced at US military bases set up in Brazil during World War II serve as an example in this analysis of the associations between disease and war. Case studies of the three main US bases (located in Belém, Recife, and Natal) show how malaria can be transformed into a matter of political-military security. An examination of the Natal case allows the reader to perceive the prejudices, political mistrust, and nationalistic tensions marking relations between the Brazilians and Americans.
history; malaria; World War II; Brazil; United States
Combatendo nazistas e mosquitos: militares norte-americanos no Nordeste brasileiro (1941-45)
Fighting nazis and mosquitoes: US military men in Northeastern Brazil (1941-1945)
André Luiz Vieira de Campos
Doutor em história, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Campus do Gragoatá, Bl. O, 5º andar
24210-350 Niterói RJ Brasil
e-mail: camdrepo@cruiser.com.br
CAMPOS, A. L. V. de: Combatendo nazistas e mosquitos: militares norte-americanos no Nordeste brasileiro (1941-45). História, Ciências, Saúde Manguinhos, V(3): 603-20, nov. 1998-fev. 1999
Este artigo analisa as relações entre malária e guerra, através das políticas de controle da doença executadas nas bases militares norte-americanas estabelecidas no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. O estudo de caso das três mais importantes bases, em Belém, Recife e Natal, mostra como a malária pode transformar-se numa questão de segurança político-militar. O caso de Natal permite-nos avaliar os preconceitos, desconfianças políticas e tensões nacionalistas entre brasileiros e norte-americanos.
PALAVRAS-CHAVE: história, malária, Segunda Guerra Mundial, Brasil, Estados Unidos.
CAMPOS, A. L. V. de: Fighting nazis and mosquitoes: US military men in Northeastern Brazil (1941-45). História, Ciências, Saúde Manguinhos, V(3): 603-20, Nov. 1998-Feb. 1999
Malaria-control policies enforced at US military bases set up in Brazil during World War II serve as an example in this analysis of the associations between disease and war. Case studies of the three main US bases (located in Belém, Recife, and Natal) show how malaria can be transformed into a matter of political-military security. An examination of the Natal case allows the reader to perceive the prejudices, political mistrust, and nationalistic tensions marking relations between the Brazilians and Americans.
KEYWORDS: history, malaria, World War II, Brazil, United States.
1 Hudson ressalva que esta afirmativa só é válida, entretanto, para o exército japonês.
2 Este índice significa que, para cada mil soldados estacionados na área por um ano, todos eles tiveram malária pelo menos uma vez, conforme informação de Condon-Rall (1991). Os dados sobre as internações hospitalares gerais estão em Heaton (1963) e os dados sobre a campanha da Sicília estão em Russell (1963).
3 A atebrina é uma droga química que substitui o quinino na prevenção dos sintomas da malária. A droga já era produzida, desde a década de 1920, pela Bayer alemã. Quando, em 1942, os japoneses invadiram as colônias holandesas produtoras de quinino na atual Indonésia, os Aliados tiveram o fornecimento de quinino interrompido. Os norte-americanos, então, aperfeiçoaram e produziram maciçamente atebrina.
4 O sucesso do DDT no combate à malária levou a Organização Mundial de Saúde (OMS), na década de 1950, a acreditar que poderia erradicar a malária do mundo. A partir de 1962, com a publicação do livro Silent spring, cresceu a consciência ecológica sobre os efeitos nocivos do DDT.
5 As negociações para a instalação das bases estão descritas por Conn e Fairchild (1960).
6 O primeiro relatório foi executado exclusivamente por médicos americanos (Dunham, 1941), sendo o segundo produzido por uma equipe mista brasileira-norte-americana (Mixed Sanitary Commission, 1941).
7 Existem evidências biológicas e históricas que sugerem que a malária é originária da África e não existia no continente americano antes de 1492. Para uma discussão sucinta, ver Dunn (1993).
Vários historiadores já apontaram para a íntima relação entre interesses militares e avanços na área do conhecimento médico. McNeill (1989) chamou a atenção para as relações entre novas descobertas médico-sanitárias, a expansão imperialista e a construção de uma racionalidade administrativa nos exércitos, na saúde pública e em outras instituições dos Estados modernos. McNeill afirma, por exemplo, que o imperialismo europeu no século XIX só pôde penetrar no interior do continente africano depois que os holandeses organizaram comercialmente, em Java, a produção de quinino, a droga usada para prevenir os efeitos da malária. Ainda nesta perspectiva, argumenta que a pesquisa sobre a febre amarela, entre o final do século XIX e início do XX, mereceu mais investimentos norte-americanos do que a pesquisa sobre malária, em parte porque a primeira doença revelava-se mais ameaçadora para a expansão dos Estados Unidos no Caribe do que a segunda.
Outros historiadores chamam a atenção para a importância das doenças infecto-contagiosas como agentes dizimadores de exércitos nos cenários de batalha. Até pelo menos o início do século XX, as baixas causadas por doenças nos exércitos em luta eram maiores do que as provocadas pelos combates. Hudson (1983) afirma que a guerra entre Rússia e Japão (1904-05) foi a primeira na qual o número de soldados mortos em combate superou o número de mortos em decorrência de epidemias.
A equipe mista de brasileiros e norte-americanos encarregada de preparar o Plano de Defesa do Nordeste recomendou as cidades de Belém, Recife e Natal como sede das mais importantes bases militares a serem instaladas no país pelos norte-americanos. A capital do Pará era estrategicamente importante por uma dupla razão: era a porta de entrada para a rica área de produção de borracha do vale amazônico e abrigava um dos aeroportos militares mais importantes na rota Estados Unidos África Ásia, por onde transitavam tropas e equipamentos militares. A importância militar de Belém pode ser avaliada pela presença da base militar de Val de Can, construída pelo exército norte-americano na periferia da cidade. Belém foi também a primeira cidade brasileira a receber militares norte-americanos na Segunda Guerra Mundial: o primeiro grupo de marines ali chegou em dezembro de 1941.
Entre meados da década de 1930 e início da de 1940, malária e tuberculose eram as principais causas de morte entre a população adulta de Belém, sendo a mortalidade infantil, entretanto, a que registrava o maior índice no cômputo geral de óbitos. Como nem mortalidade infantil nem tuberculose ameaçavam a saúde das tropas norte-americanas na cidade, não é de se surpreender que a malária fosse a principal preocupação sanitária para os estrangeiros em Belém. As peculiaridades do meio ambiente faziam da capital do Pará uma cidade bastante suscetível às epidemias de malária. Belém está localizada no delta do rio Amazonas e seu clima é quente e úmido. Além disso, no início da década de 1940, existiam sete grandes vales pantanosos nos arredores da cidade, locais propícios para reprodução de anofelinos.
Os índices de incidência de malária não eram cuidadosamente computados pelos serviços sanitários da cidade, mas um médico norte-americano que serviu em Val de Can contabilizou trinta casos na base, entre maio e junho de 1942, registrados em uma população militar de apenas seis oficiais e 105 recrutas. Os casos de malária entre soldados norte-americanos continuaram a ocorrer durante aquele ano, mesmo fora da estação das chuvas, entre agosto e novembro. No acampamento brasileiro, localizado a pouco mais de dois quilômetros da base norte-americana e onde as medidas de prevenção inexistiam, grassava uma epidemia. Entre abril e julho de 1942, o índice de malária na tropa brasileira em Belém era de 506 por mil; e o índice isolado de abril foi de 910 por mil (West, 1963).
Um aspecto positivo provocado pela presença militar na Amazônia durante a guerra foi o avanço no estudo sobre os anofelinos da região. Em 1940, Evandro Chagas e seus auxiliares haviam, pela primeira vez, completado uma pesquisa sistemática sobre a malária em 49 municípios da Amazônia, mas os resultados desta pesquisa ainda não tinham sido publicados em 1942 (Deane, 1947). O governodo estado do Pará, então, transferiu para o Sesp, em 1942, a administração do Instituto Evandro Chagas em Belém, que iniciou um sistemático estudo dos anofelinos do vale. Os pesquisadores do Sesp identificaram, entre 1942 e 1946, diversas espécies de Anopheles na Amazônia, concluindo que apenas duas, o darlingi e o aquasalis, eram importantes vetores. Ambas eram encontradas em Belém, sendo o darlingi, o principal vetor, encontrado nas áreas mais altas da cidade, onde se reproduzia em "águas límpidas e banhadas pelo sol, principalmente na estação chuvosa, quando a umidade é maior" (U.S. Naval Observer at Belém, 1943, p. 1). O vetor secundário, Anopheles aquasalis, que se reproduzia em águas salobras ou influenciadas pela maré, era o principal transmissor nos distritos mais baixos da cidade, onde as águas da maré encontravam o rio Guamá.
Os programas antimalária variavam de acordo com as características dos vetores e das condições ambientais locais. Localizada nos terrenos baixos da periferia de Belém, a base militar de Val de Can era banhada pelos rios Pará e Val de Can. A região era influenciada pelas marés de água salobra do rio Pará, o que favorecia a reprodução do Anopheles aquasalis, enquanto águas de chuva, estagnadas, facilitavam os focos de reprodução de Anopheles darlingi. Havia muitos pântanos nas terras baixas ao redor da base, enquanto a área mais alta era coberta por uma densa floresta. Estas condições, aliadas a muita chuva e umidade, propiciavam excelentes condições de reprodução de mosquitos. As primeiras medidas para eliminar mosquitos consistiram em aspersão de químicos em águas estagnadas, pequenas obras de drenagem e um programa de tratamento das populações vizinhas. Entretanto, tais medidas não foram bem-sucedidas. Uma densa vegetação impedia medidas de drenagem mais eficazes, e a região era tão inacessível que a aplicação de agentes larvicidas tornou-se muito dispendiosa e freqüentemente impossível de ser realizada. As políticas de combate à malária em Val de Can exigiriam outras estratégias.
Para controlar a transmissão de malária em Belém, o Sesp conduziu um estudo para proteger a cidade contra as marés, possibilitando a drenagem dos terrenos baixos. Um extenso programa de engenharia foi empreendido, onde um complexo sistema de diques, canais e portões de controle de marés foi construído para prevenir o constante fluxo de água. Inaugurado em setembro de 1942, o dique de Belém foi a maior obra de engenharia realizada pelo Sesp na Amazônia. Em maio de 1943, já se registravam melhorias nos índices de incidência de malária na cidade. A construção do dique foi acompanhada pela distribuição diária de atebrina aos soldados. Como resultado deste esforço conjugado, os casos de malária entre as tropas norte-americanas caíram a partir de 1943, para atingir, entre julho de 1944 e agosto de 1945, a marca de cinco casos no período de um ano. Em 1945, pela primeira vez no Brasil, o Sesp utilizou o DDT através de uma experiência-piloto em Breves, um povoado na ilha de Marajó. Ainda em 1945, aviões militares foram utilizados para aspergir DDT sobre a cidade de Belém.
O controle de malária em Recife
Recife, a terceira maior cidade brasileira em 1940, sediou um dos aeroportos militares norte-americanos por onde passaram milhares de soldados a caminho da África, da Ásia e da Europa. A presença norte-americana cresceu com a chegada dos primeiros marines em dezembro de 1941. Em abril do ano seguinte, o governo brasileiro autorizou a marinha norte-americana a patrulhar as águas do Nordeste com aviões anfíbios, baseados em Recife e Natal. Em novembro de 1942, a capital de Pernambuco tornou-se ainda mais importante, quando a sede do exército norte-americano para o Atlântico Sul foi transferida da Guiana para Recife, decisão seguida por uma grande concentração de tropas e equipamentos militares na cidade. Uma outra razão para a importância de Recife estava no fato daquela capital ser o centro do comando militar brasileiro no Nordeste e também o quartel-general das operações da marinha norte-americana no Brasil (Conn et al., 1960).
No início da década de 1940, a malária não era tão ameaçadora em Recife como em Belém, mas estava presente em diversas partes da capital e do estado. Recife localiza-se num delta e existiam condições ambientais para a reprodução de mosquitos. Dunham (1941, p. 15), enfatizou que boa parte da cidade estava construída sobre terrenos baixos, com rios e riachos cortando sua área urbana e "muitos pântanos ao redor e mesmo dentro da cidade". A malária não era, entretanto, a principal causa de morte de adultos em Recife; a prioridade pertencia à tuberculose, um testemunho das más condições de vida da população. Mesmo o câncer naquela época mais comum entre as populações idosas de países desenvolvidos matava mais adultos em Recife do que a malária; o câncer estava em quarto lugar e a malária em quinto como causa de mortes entre 1938 e 1942 naquela cidade (U.S. Naval Observer at Recife, 1944).
A região onde os norte-americanos construíram o aeroporto militar de Ibura era formada por terrenos baixos e pantanosos e, portanto, potencialmente maláricos. Ibura ficava a cinco quilômetros ao sul de Recife, a dois quilômetros para o interior da praia de Boa Viagem. O efeito das marés, combinando águas límpidas e salobras nos pântanos, e as altas temperaturas registradas criavam condições ideais para a reprodução de mosquitos, quer na estação das chuvas, entre março e agosto, quer na estação da seca, de setembro a fevereiro.
As primeiras notícias alarmantes referentes a casos de malária entre soldados no campo de Ibura foram registradas em julho de1942, quatro meses antes de o exército norte-americano decidir transferir a sede do comando do Atlântico Sul para Recife. Até então, os casos da doença eram episódicos, porém os 12 casos registrados em julho entre os marines traduziam um alto índice, uma vez que menos de cem indivíduos haviam sido expostos. Entre a tropa brasileira aquartelada próximo a Ibura, os números de doentes aumentaram também. De junho a setembro de 1942, trinta casos de malária foram registrados entre os brasileiros, o que equivalia a uma taxa de infecção de dez por cento. Logo descobriu-se que o aumento dos índices da doença entre os militares correspondia a uma epidemia entre a população civil de seis vilarejos vizinhos: Boa Viagem, Prazeres, Piedade, Imbiribeira, Venda Grande e Candeias. Somente em dezembro de 1942, os médicos do Sesp diagnosticaram 1.276 casos de malária entre a população destes povoados, o que representava 27 por cento de todos os casos médicos tratados nesta população.
A epidemia na área periférica ao aeroporto militar significava que "em praticamente todas as casas havia um ou dois casos de malária" (Silva et al., 1942, p. 3). A doença se havia tornado um sério perigo para as tropas e exigia um imediato programa de combate. O Sesp enviou a Recife o médico Oswaldo Silva, que avaliou a situação e propôs medidas de controle: providências eram urgentes numa conjuntura que combinava uma epidemia entre a população vizinha com o aumento do número de tropas estacionadas na área. Ibura preparava-se para receber mais seiscentos soldados norte-americanos e um número ainda maior de soldados brasileiros.
Mesmo depois de terem sido acionados dispositivos de combate à doença, os casos de malária entre o pessoal militar continuaram a aumentar. Em março de 1943, irrompeu uma epidemia entre as tropas norte-americanas. A explicação encontrava-se, provavelmente, no reservatório de indivíduos infectados que viviam nas aldeias próximas ao campo de Ibura. Esta população era composta, em geral, "por trabalhadores que vieram do interior, do litoral e mesmo de estados vizinhos, atraídos pelas oportunidades de trabalho geradas pela presença do aeroporto militar. Estes trabalhadores construíam barracos nas vizinhanças com incrível rapidez e, na medida em estas moradias eram usualmente localizadas em áreas insalubres, seus moradores estavam sujeitos a epidemias" (Report for the Brazilian Field Party for December, 1942, p. 4).
8 A suposição de que parte destes migrantes estivesse contaminada por malária deve-se ao fato de a doença ser endêmica em Pernambuco e estados vizinhos.
9 O Sesp estava formalmente subordinado ao Ministério da Educação e Saúde, mas gozava de completa autonomia administrativa e financeira.
10 A Panair do Brasil era uma subsidiária da Pan Am Airways, empresa encarregada pelo governo norte-americano de construir os aeroportos militares no Brasil.
O extremo oriental do Nordeste brasileiro foi considerado pelos Aliados como de importância estratégica fundamental na defesa das Américas. Natal, por sua posição geográfica, foi a cidade escolhida para sediar o mais importante aeroporto militar construído pelos norte-americanos em território brasileiro. Josué de Castro (1969, p. 19) afirma que, durante um certo período de tempo, em Natal estava localizado "o maior aeroporto do mundo"; por lá transitavam soldados e equipamentos militares para a África, Ásia e Europa. O número de soldados norte-americanos estacionados em Natal era relativamente pequeno no início de 1942, mas cresceu bastante quando, em novembro daquele ano, o exército dos Estados Unidos estabeleceu na cidade uma agência subsidiária separada de Recife de seu quartel-general para o Atlântico Sul.
Ao contrário do que foi avaliado para Belém, a malária não foi considerada um perigo sanitário sério para as tropas norte-americanas estacionadas em Natal. Dunham (1941, pp. 30, 39) diagnosticou que a disenteria amebiana seria muito mais ameaçadora para as tropas do que a malária. Em contraste com os estados ao sul do Rio Grande de Norte e ao norte do Ceará, ele concluiu que "a incidência de malária em Natal e seus arredores é baixa". Dunham avaliava que o trabalho da Fundação Rockefeller e do Serviço de Malária do Nordeste na erradicação do Anopheles gambiae era responsável pelo baixo índice de incidência de malária no Rio Grande do Norte. E as medidas utilizadas para eliminar o gambiae teriam contribuído para a diminuição da incidência de outros vetores. Além deste fator, Dunham também responsabilizava o clima pelos números modestos da malária. Natal "está localizada numa área de grandes dunas, a região é relativamente seca, e seu clima, em decorrência de ventos marinhos, é comparativamente frio".
Apesar desta avaliação otimista, a importância militar da cidade não permitia descuidos, e o Sesp enviou um entomologista brasileiro e um engenheiro sanitário norte-americano a Natal. O objetivo dos técnicos era realizar pesquisas e produzir um relatório detalhado sobre as condições sanitárias da cidade e do campo de Parnamirim, onde se localizava o aeroporto militar. Os técnicos encontraram apenas uma área "potencialmente malárica" ao norte da cidade, mas também concluíram que a construção de um sistema de drenagem seria obra simples e eficiente. Nos limites oeste e sudoeste da cidade, eles detectaram ainda outra área potencialmente malárica. Lá, canais de irrigação transformavam-se em nichos potenciais para a reprodução de mosquitos e, num dos povoados da área, dez casos de malária foram registrados em 1941, para uma população de apenas 14 habitantes. Entretanto, o relatório dos técnicos confirmava a constatação do relatório Dunham de que não havia nenhuma ameaça grave na cidade, fato que foi comprovado pelos indicadoresde 1942. Neste ano, nenhum caso de malária foi registrado entre o destacamento de marines acampados em Natal (Silva et al., 1942).
A pesquisa feita pelo Sesp em Parnamirim concluiu que não havia perigo de uma epidemia em torno do aeroporto, localizado numa região de dunas. Segundo os técnicos, com exceção de duas pequenas lagoas próximas ao campo, que poderiam ser facilmente saneadas com larvicida, a área potencialmente malárica mais próxima estava dois quilômetros a noroeste do campo. Um rio, a quatro quilômetros de Parnamirim, não foi considerado ameaçador para o aeroporto, mas foi avaliado como um perigo potencial para pequenos destacamentos brasileiros acampados entre o rio e o litoral. Curiosamente, apesar dos 24 casos de norte-americanos tratados de malária em Parnamirim entre agosto e outubro de 1942, nenhum caso foi registrado entre os soldados brasileiros. Os médicos norte-americanos concluíram, contudo, que a maior parte dos casos de malária ocorreu entre militares em trânsito por Natal, vindos de Belém. Em dezembro de 1942, não havia nenhum caso de malária entre as tropas estacionadas em Parnamirim, norte-americanas ou brasileiras.
Uma outra ameaça de epidemia, porém, trouxe ansiedade ao Nordeste e quase transformou-se num incidente diplomático entre o Brasil e os Estados Unidos. O grande movimento de tropas, aviões e navios vindos da África criou uma possibilidade ameaçadora: a reintrodução, no Brasil, do mosquito africano Anopheles gambiae. O gambiae, "o mais eficiente vetor de malária do mundo", é autóctone da África tropical e é um excepcional transmissor da doença "em função de seus hábitos domésticos e de sua preferência por sangue humano" (Soper, 1977, p. 201).
Em março de 1930, o entomologista norte-americano Raymond C. Shannon, que trabalhava no Brasil para a Fundação Rockefeller, surpreendeu-se ao encontrar alguns exemplares de Anopheles gambiae em Natal. Após exaustivo inquérito, concluiu que a invasão do Brasil por aquele mosquito se fizera através de navios de uma companhia francesa que operava, desde 1928, um serviço de correio entre a Europa e a América do Sul. Navios velozes eram capazes de cruzar o Atlântico sul, de Dakar, no Senegal, até Natal, no Brasil, em três dias.
As decorrências da presença deste anofelino para a população do Nordeste foram trágicas. Em junho de 1930, uma epidemia de malária irrompeu em Natal; porém, naquela ocasião, apesar da presença do gambiae ter sido denunciada às autoridades, nada se fez para combatê-lo. A Revolução de 1930, conjugada à chegada de uma estação particularmente seca no Rio Grande do Norte, fizeram da presença do gambiae uma questão secundária. Como conseqüência deste desleixo, uma segunda epidemia de malária irrompeu no primeiro semestre de 1931, nas cercanias do porto de Natal. Agudelo (1990) considera que o nível de violência desta epidemia não teve precedentes no Brasil, dado o grande número de pessoas doentes emortas. Nesta ocasião, o governo brasileiro organizou um serviço de combate à epidemia, e o mosquito foi eliminado da cidade. Mas, em junho do mesmo ano, um insólito surto de malária foi registrado a 180 quilômetros a nordeste de Natal. Pesquisas subseqüentes detectaram a presença do Anopheles gambiae em várias partes do Rio Grande do Norte e, em 1937, o gambiae foi identificado no Ceará. A espécie havia-se espalhado pelo Rio Grande do Norte e pelo vale do rio Jaguaribe, no Ceará, uma região ecologicamente mais propícia à sua reprodução.
Violentas epidemias irromperam no Ceará e no Rio Grande do Norte em 1938 e 1939, provocando mais de 140 mil casos de malária e um número de mortes estimado entre 14 mil a vinte mil. Como Soper apontou, a presença do Anopheles gambiae no Nordeste foi reconhecida pelas autoridades sanitárias como uma ameaça não apenas ao Brasil, mas ao continente americano, inclusive a porção sul dos Estados Unidos. O governo brasileiro contratou a Fundação Rockefeller para administrar um serviço especialmente criado para erradicar o gambiae do Brasil. Dirigido por Fred Soper, o Serviço de Malária do Nordeste (SMN) investiu dois milhões de dólares neste projeto e, no ápice do seu trabalho em abril de 1940, empregava quatro mil pessoas. O último gambiae foi identificado pelo serviço em setembro de 1940, porém a procura do mosquito continuou a ser feita no Ceará e no Rio Grande do Norte por mais 18 meses. A espécie foi erradicada através do esquadrinhamento de todos os seus focos de reprodução, nos quais se espargiu uma substância química chamada verde-paris.
Em 1942, Natal transformou-se num ponto crucial da rota de ligação entre os continentes, e o gambiae voltou a ameaçar o Brasil. Quando o primeiro avião da Panamerica, decolado na África ocidental, aterrissou em Natal em outubro de 1941, uma fêmea morta da espécie gambiae foi encontrada a bordo pelos funcionários do SMN. Entre outubro de 1941 e junho de 1942, membros do SMN identificaram vários exemplares de gambiae adultos em sete aviões que pousaram em Natal, provenientes da África. O perigo de reinfestação do Brasil era evidente.
As notícias da ameaça de reinfestação do Nordeste pelo gambiae chegaram ao conhecimento de autoridades militares norte-americanas. Em maio de 1943, o chefe do Serviço de Inteligência norte-americano na Flórida enviou um ofício ao escritório do Departamento de Guerra dos Estados Unidos, no Recife, solicitando informações sobre "rumores" da reintrodução do Anopheles gambiae em Natal. O coronel John Raymond (1943, p.1), comandante da base militar do Recife, consultou o médico-chefe da Força Aérea norte-americana em Natal sobre o assunto, mas este aparentemente não investigou a informação e limitou-se a responder: "não tenho conhecimento de que nenhum exemplar vivo ou morto deste mosquito tenha sido encontrado em Natal".
A troca de ofícios entre o coronel Raymond, em Recife, e o médico-chefe da Força Aérea, em Natal, mostra que, nos meandros da política antimalárica, existiam preconceitos e desconfianças entre norte-americanos e brasileiros. O médico-chefe da Força Aérea norte-americana em Natal parecia mais preocupado com espionagem de supostos simpatizantes nazistas do que com uma possível epidemia de malária. Em sua resposta ao coronel Raymond, o médico-chefe preocupava-se em informar detalhadamente que uma nova lei brasileira, de fevereiro de 1943, determinava ser o Departamento Nacional de Saúde Pública responsável pela desinfecção de todos os aviões que entrassem no Brasil. Para cumprir esta lei, um "certo dr. Martin", um médico brasileiro daquele departamento, alegando que a desinfecção não estava sendo executada adequadamente, "assumiu a responsabilidade pela desinfecção dos aviões norte-americanos". Porque o dr. Martin mantinha em seu poder uma lista com informações sobre estes aviões, o coronel Raymond informou ao Serviço de Inteligência norte-americano na Flórida que "o dr. Martin é definitivamente pró-nazista" e que havia ordenado o confisco da referida lista. O coronel Raymond (idem, pp. 1-2) concluiu, então, que era bastante provável que o médico brasileiro fosse o responsável pela origem dos rumores sobre a reintrodução do gambiae em Natal, e informou ao Serviço de Inteligência na Flórida que o "simpatizante nazista" havia plantado estes boatos em represália por ter sido proibido de entrar nos aviões norte-americanos.
12 A sugestão de desinfecção dos navios foi cumprida pela marinha norte-americana, que determinou ainda que, nos portos brasileiros, os comandantes de navios deveriam agir de acordo com as autoridades sanitárias locais.
13 A informação de que os brasileiros foram treinados para reconhecer exemplares de gambiae a olho nu é confirmada por Leônidas Deane (op. cit.) que conta, inclusive, que adolescentes locais foram contratados e treinados pelo SMN para identificar o mosquito.
O episódio da presença norte-americana no Norte e Nordeste do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e as políticas de controle de malária executadas nas cidades que acolheram as bases militares dos Estados Unidos mostram que, em situações extremas como a guerra, uma doença como a malária deixa de ser apenas uma doença de populações pobres para transformar-se em questão de segurança político-militar. O interesse político despertado pela necessidade de controle da malária pode também significar avanços no conhecimento médico-sanitário sobre a doença em questão. Este é o caso dos estudos dos anofelinos da Amazônia e do Nordeste realizados pelo Sesp e pelo SNM, como também da descoberta denovas drogas e técnicas de combate à doença e aos seus vetores, como a atebrina e o DDT. O episódio de Natal mostra também os conflitos entre brasileiros e norte-americanos, provocados por preconceitos, nacionalismos e desconfiança política.
Recebido para publicação em julho de 1998
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jan 2004 -
Data do Fascículo
Fev 1999
Histórico
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Recebido
Jul 1998