Resumos
O artigo analisa o desenvolvimento, no Chile, da doutrina de medicina social das esquerdas que influenciou a construção do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em 1952. Salienta-se a centralidade de um sistema de partidos abrangente de todo o espectro ideológico para o funcionamento do regime democrático (até 1973), e para a livre discussão pública de projetos nacionais socializantes. Ressalta-se a pioneira criação do Seguro Social Operário, em 1924, e a emergência de propostas transformadoras do modelo de assistência à saúde, gerando-se conflitos superados no pós-guerra, sob a influência do National Health Service inglês. A cultura política chilena permitiu a consolidação de concepções de medicina social, mas impôs limitações ao arrojado projeto de construir um sistema médico sanitário universal, destinado a prover cuidados integrais a todos os cidadãos.
Chile; desenvolvimento político-institucional; políticas de saúde; medicina social; seguro social; Serviço Nacional de Saúde
The article examines the conditions in Chile that fostered development of a social medicine doctrine defended by the left. This doctrine influenced the legal, institutional, and technical construction of the Serviço Nacional de Saúde (SNS) in 1952. Central to the workings of the democratic regime (up until 1973) and to the free and open public discussion of national projects of a socializing nature was a party system that encompassed the entire ideological spectrum. The pioneering creation of Workers Social Security in 1924 is underscored. Likewise of import was the emergence of transformational proposals regarding the health-assistance model that it consolidated. Ensuing conflicts were finally overcome following World War II, under the influence of England’s National Health Service. Chilean political culture yielded the consolidation of lasting concepts in social medicine but created barriers to the project to build a universalized sanitary-medical system, intended to provide integral care to all citizens.
Chile; political-institutional development; health policies; social medicine; social security; National Health Service
Política e medicina social no Chile: narrativas sobre uma relação difícil
Politics and social medicine in Chile: narratives concerning a difficult relationship
Este artigo tem como base a tese de doutoramento da autora, que contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Maria Eliana Labra
Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz
labra@ensp.focruz.br; elianalabra@openlink.com.br
LABRA, M. E.: Política e medicina social no Chile: narrativas sobre uma relação difícil. História, Ciências, Saúde Manguinhos, VII(1): 23-47, mar.-jun. 2000.
O artigo analisa o desenvolvimento, no Chile, da doutrina de medicina social das esquerdas que influenciou a construção do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em 1952. Salienta-se a centralidade de um sistema de partidos abrangente de todo o espectro ideológico para o funcionamento do regime democrático (até 1973), e para a livre discussão pública de projetos nacionais socializantes. Ressalta-se a pioneira criação do Seguro Social Operário, em 1924, e a emergência de propostas transformadoras do modelo de assistência à saúde, gerando-se conflitos superados no pós-guerra, sob a influência do National Health Service inglês. A cultura política chilena permitiu a consolidação de concepções de medicina social, mas impôs limitações ao arrojado projeto de construir um sistema médico sanitário universal, destinado a prover cuidados integrais a todos os cidadãos.
PALAVRAS-CHAVE: Chile, desenvolvimento político-institucional, políticas de saúde, medicina social, seguro social, Serviço Nacional de Saúde.
LABRA, M. E.: Politics and social medicine in Chile: narratives concerning a difficult relationship. História, Ciências, Saúde Manguinhos, VII(1): 23-47, Mar.-June 2000.
The article examines the conditions in Chile that fostered development of a social medicine doctrine defended by the left. This doctrine influenced the legal, institutional, and technical construction of the Serviço Nacional de Saúde (SNS) in 1952. Central to the workings of the democratic regime (up until 1973) and to the free and open public discussion of national projects of a socializing nature was a party system that encompassed the entire ideological spectrum. The pioneering creation of Workers Social Security in 1924 is underscored. Likewise of import was the emergence of transformational proposals regarding the health-assistance model that it consolidated. Ensuing conflicts were finally overcome following World War II, under the influence of Englands National Health Service. Chilean political culture yielded the consolidation of lasting concepts in social medicine but created barriers to the project to build a universalized sanitary-medical system, intended to provide integral care to all citizens.
KEYWORDS: Chile, political-institutional development, health policies, social medicine; social security, National Health Service.
1 Sobre esses temas, ver Scully (1992) e Illanes (1993; 1990).
22. As repercussões sociais foram enormes: generalizaram-se o desemprego, a fome, a miséria, o amontoamento em cortiços insalubres, os despejos e o sofrimento das classes populares, aumentado pela tenaz repressão e pelas doenças contagiosas. As divergências entre os notáveis da política de salão quanto às soluções para enfrentar a crise econômica e aceitar o conflito social marcam o fim da experiência parlamentarista. Para as eleições presidenciais de 1919, ganha por estreita margem o candidato da Aliança Liberal, Arturo Alessandri Palma, de cujo programa faziam parte a modernização das instituições públicas (nova Constituição), a regulação das relações industriais (Código do Trabalho), a justiça tributária (Imposto de Renda) e a proteção social (Seguro de Doença, Invalidez e Acidentes do Trabalho). Embora Alessandri fosse o primeiro presidente a contar com apoio popular, este foi insuficiente para levar adiante as reformas sociais, cujos projetos de lei foram bloqueados no Legislativo. Os confrontos governo-parlamentares e a miopia das oligarquias resultaram em paralisia decisória rompida com um putsch militar apoiado pelo presidente, em setembro de 1924 A crise do salitre foi provocada pela invenção alemã de um sucedâneo sintético. No imediato pós-Primeira Guerra, as exportações chilenas do produto baixaram em mais de 75%, acarretando abrupta desvalorização da moeda, perda da capacidade de importar, bancarrota fiscal, endividamento externo e descalabro de toda a economia nacional. Ver Pinto (1962).
33. O desfecho dessa intervenção foi decisivo porque abriu espaço à emergência do Estado social. Com efeito, o Congresso Nacional aprovou, ipso facto, um conjunto de leis, entre elas, o Código do Trabalho, o Seguro contra Acidentes do Trabalho, que não foi implementado, e o Seguro Social de Doença e Invalidez. Em resumo, o esgotamento do modus operandi das regras institucionais do processo decisório conduziu a um impasse político superado pela pressão militar. Como resultado, os parlamentares aprovaram, sem discussão, leis sociais consideradas pioneiras no continente americano. O projeto de lei relativo ao Seguro Social tivera origem em moção apresentada ao Parlamento pelo jovem médico e deputado Exequiel González Cortés, à revelia de seu partido, o Conservador, que postulava não intervir na questão social por ser a miséria "natural". No Legislativo, González Cortés defendeu o Seguro Operário, argumentando que era a forma mais racional de produzir a paz social e a concórdia entre o capital e o trabalho, além de neutralizar o ódio dos profissionais da revolução O fator desencadeante da insubordinação do oficialato foi a instauração da dieta parlamentar (o cargo era ad honorem), enquanto o Legislativo não aprovava o orçamento nacional nem o pagamento das remunerações do pessoal civil e militar do Estado.
44. Câmara dos Deputados, Boletín de Sesiones (25a Sesión Extraordinaria, 19.5.1922, pp. 687-91, Proyecto de ley que declara obligatorio el seguro de enfermedad e invalidez presentado por el sr. Exequiel González Cortés).
Introdução
As bases doutrinárias da medicina social chilena emergem na esteira da conjuntura crítica de 1920, quando se processam mudanças transcendentais para a vida nacional: a passagem do regime político parlamentarista oligárquico para a moderna democracia liberal pluralista; a estruturação de um sistema de partidos de amplo espectro ideológico; a emergência das classes populares e suas organizações no espaço público; e a fundação do Estado protetor com a criação do seguro social.
No bojo desse ativismo político-ideológico, grupos médicos de esquerda propõem ousado projeto de socialização dos serviços médico-sanitários, gerando-se prolongados confrontos com outras correntes, como a conservadora e a social-democrata. Embora na época os debates e antagonismos em torno da "socialização da medicina" fossem intensos, os desfechos quanto à configuração de sistema de proteção à saúde foram únicos em cada país. Assim aconteceu no caso do Chile, que se destaca no contexto da América Latina devido à marca positiva deixada pelo ideário da medicina social nas políticas de saúde e nas instituições que as materializaram ao longo do presente século.
No período estudado, a acomodação dos diferentes modelos assistenciais culmina em 1952, quando o Legislativo aprova a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Este artigo visa esquadrinhar as relações entre política e medicina, abordando, primeiro, aspectos muito gerais do desenvolvimento político e dos processos institucionais de decisão e, em seguida, os principais traços do projeto da medicina social e das propostas concorrentes, bem como uma sinopse da forma como elementos desses enfoques foram sincretizados no projeto do SNS.
Regime político e políticas de saúde
Afirmar-se como república soberana foi para o Chile, a colônia mais pobre e distante do reino espanhol, empresa difícil, porém pouco demorada. As conturbações do pós-Independência (1810-18) apaziguam-se quando as diversas facções em luta pelo poder concordam em acatar as regras da Constituição de 1833, que perdura até 1925. Essa primeira Carta foi eficiente instrumento na construção do Estado de direito, contornando-se com sucesso as duas grandes tendências que atravessaram o século XIX: a questão religiosa e a tensão centro-periferia, ambas resolvidas na década de 1920 com a definitiva secularização do Estado e a afirmação da república unitária.
Ao respeitar-se a sucessão presidencial pelo voto, foi possível organizar a administração pública e assentar as bases para a extensão e manutenção do regime democrático até 1973. Foi um período de 143 anos de notável estabilidade, embora conturbado entre 1924 e 1932 pelas graves crises econômicas e políticas que acompanharam o surgimento do moderno Estado desenvolvimentista e benfeitor.
O esquema contemplava o direito do segurado de escolher o profissional e o pagamento deste mediante honorários, conforme o postulado de que medicina é uma profissão liberal. Aliás, este ponto foi um dos mais polêmicos, devido à recusa dos médicos em aceitar a intermediação das caixas em questões de honorários e na sua relação com os pacientes. No caso do Seguro chileno, o regime de livre escolha comprovou-se inviável, assumindo a Caixa a remuneração dos profissionais, bem como o agendamento do atendimento. Esse desfecho deveu-se, em grande medida, a que os médicos encontravam-se desorganizados e, portanto, incapacitados para intervir corporativamente na implementação do Seguro, como aconteceu na Europa, ou para se opor a ele, como nos Estados Unidos.
Nos anos subseqüentes, os médicos chilenos conseguem criar uma associação nacional, de afiliação voluntária, destinada a velar pelos interesses materiais da profissão. Almejavam, no entanto, adotar o modelo europeu de organização colegiada com status público, na medida em que assim se assegurava o monopólio da representação e o controle ético dos pares. Esse formato foi definido quando, por lei de 1948, criou-se o Colégio Médico do Chile, instituição que passou a ser ator decisivo na formulação das políticas setoriais.
destaca-se Abraham Horwitz, diretor da OPAS por longo período.
77. A direita, por sua vez, esfacela-se quando o médico Eduardo Cruz-Coke não consegue a indicação para se candidatar à Presidência. Cruz-Coke era um conhecido cientista e político conservador que, quando ministro da Salubridade e Previdência (1938), demonstrara preocupação pelas causas populares e desenvolvera uma teoria sobre a medicina preventiva. Nessas preocupações reflete-se a influência das encíclicas papais, que dividiram para sempre o Partido Conservador. De uma das divisões surgiu a Falange Nacional, que empreendeu messiânica campanha de moralização da política e de sensibilização social das oligarquias. A relevância da Falange é dupla: primeiro, porque seus deputados tiveram papel decisivo na criação do SNS; segundo, porque foi o embrião do Partido Democrata-Cristão (1957), de importância fundamental na história política do Chile. O mais famoso dos falangistas foi Eduardo Frei Montalva. Eleito senador em 1942, desempenhou importante papel, junto com Allende e Cruz-Coke, na legislatura de 1949-52, quando tramita a reforma social A proscrição do PCCH, que durou dez anos, além de seus efeitos repressivos, provocou o esfacelamento do sistema partidário.
88. Frei Montalva foi presidente da República entre 1964 e 1970. Seu filho, Eduardo Frei Ruiz-Tagle, também democrata-cristão, foi presidente do Chile até janeiro de 2000.
Nas eleições parlamentares de 1949, a Falange Nacional estréia no Congresso Nacional ao eleger deputados três jovens advogados: Tomás Reyes, Juan Coloma e Jorge Rogers. Na Câmara, esses parlamentares cumpriram papel crucial na veiculação de novas posturas frente à questão social, quando, em novembro de 1950, González Videla reitera a urgência do projeto de modificação do Seguro. Com agilidade e senso de oportunidade, esses deputados conseguiram incluir na reforma previdenciária um conjunto de artigos que unificava todos os serviços de saúde pública e assistência médica do país numa nova instituição que denominaram Serviço Nacional de Saúde, à semelhança do National Health Service inglês.
Trataremos de temas profundos e complexos que têm ocupado boa parte da história recente da medicina e da teoria do conhecimento. Isso porque envolvem uma revolução de paradigmas sobre o papel da medicina e do médico em relação aos problemas de saúde, ao se transferir conceitos desde a perspectiva que os considerava no plano puramente individual, para outra, na qual são parte dos fenômenos que acompanham a vida dos coletivos humanos, sendo objeto de preocupação, portanto, das ciências sociais. Com relação ao Chile, enfocaremos o exame das elaborações das correntes doutrinárias, em particular a da medicina social, que convergiram, de forma contraditória, na proposta que resultou no SNS.
Novos modelos de atenção à saúde para o Chile
O conceito de "medicina social" surge na Alemanha com Johann Peter Frank (1745-1821) e avança com Rudolf Virchow, que escrevia, em 1848, que "a medicina é uma ciência social" ou "a política não é mais do que a medicina em grande escala", lembrando aos médicos que, por terem contato tão estreito com o povo, eram os advogados naturais dos pobres, pertencendo os problemas sociais à jurisdição deles (Sigerist, 1987, p. 87). Na expansão do movimento da medicina social na Europa, a urbanização, a industrialização e as "chacinas de inocentes" fomentam o despertar de uma concepção de higiene e saúde pública sintetizada por Rosen (1994, p. 200) em princípios como a importância das condições sociais e econômicas no processo saúde-doença, a necessidade de submeter essas relações à investigação científica e a obrigação do Estado democrático de assegurar o direito do cidadão ao trabalho e a boas condições de saúde.
Essas características fazem parte dos grandes movimentos de reforma sanitária ocorridos em fins do século XIX em todos os países capitalistas centrais e influentes também na periferia. Para sua efetivação, no entanto, foram necessários avanços científicos e ações políticas que tornaram possível a crescente intervenção estatal no caótico mundo do proletariado urbano. Tal como na Europa, nas colônias americanas as preocupações oficiais com a saúde pública tinham três características básicas: careciam de base científica, visavam combater flagelos que atacavam coletivos humanos (e o gado) e eram responsabilidade das autoridades locais. Com as novas teorias do contágio e dos germes, no entanto, a medicina e a saúde coletiva sofreram mudança radical no século XX.
1111, no Velho Mundo a revolução industrial abria caminho para o progresso material e social. No Chile, porém, as oligarquias aferravam-se aos valores do universo rural, em que o fazendeiro submetia o peão a uma relação de servidão, cuja reprodução em fábricas e minas lhe parecia natural. De fins do século XIX em diante, as primeiras idéias sobre proteção social difundem-se no Chile sob a influência de variadas correntes, como o mutualismo operário, as encíclicas, a valorização do Homo economicus, o reformismo sanitário e a criação dos seguros sociais. Nessa direção formaram-se as associações de artesãos e as nascentes correntes políticas progressistas, a que se somam, posteriormente, o social-cristianismo, o trabalhismo de orientação marxista e grupos de estudantes e profissionais da medicina adeptos dessas tendências. Fundamental nessa virada socializante foi a pressão de grandes contingentes de trabalhadores que migram para as cidades com o declínio da exploração de minério na região Norte do Chile de 1910 a 1920, gerando a necessidade política de diminuir a agitação provocada pela grave situação do proletariado, que também começa a ser visto como massa de apoio eleitoral. Preocupações diversas vão convergir, enfim, no enfrentamento da questão social com as já mencionadas leis trabalhistas e previdenciárias de 1924. Junto com a implantação do Seguro Social, surgem vozes advogando sua extinção ou seu aperfeiçoamento. Das correntes em voga, mencionaremos três que, no nosso entender, são paradigmáticas das grandes polêmicas que acompanharam o desenvolvimento do welfare state no mundo contemporâneo: a liberal-conservadora, a social-democrata e a socialista. A afirmação é ilustrada com os seguintes dados de 1925 sobre mortalidade por tuberculose em crianças de nove a 15 anos em algumas cidades: Roma, 46%; Chile, 38%; Paris, 37%; Munique, 36%; e Londres, 23% (Boletín Médico, no 19, 1926).
1313. Essas proposições implicam limitar o Estado a cuidar apenas da saúde pública e dos pobres. A proposta social-democrata toma as idéias de seguridade social veiculadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e surge dos debates do Partido Radical, em 1926, através de dois porta-vozes, os médicos Julio Bustos e Isauro Torres, que era deputado, quando da avaliação do primeiro ano de funcionamento do Seguro chileno. Para Bustos, "o bem-estar público é objeto da Previdência Social e direito dos cidadãos", sendo seu princípio moral o da solidariedade, que implica prover ao mais modesto cidadão os elementos indispensáveis para suprir as necessidades da vida médico, farmácia, subsídios etc. (Boletín Médico, no 32, 1927). A proposta insere-se na visão nacionalista, eugenista e economicista característica dessa época, segundo a qual o alvo da função saúde é o capital humano, que deve ser valorizado, protegido e multiplicado pelo Estado para grandeza da nação. As implicações político-institucionais dessa proposta eram enormes, posto que significavam extinguir a Beneficência Pública, por se inspirar na religião e na caridade, destronando os notáveis oligarcas do manejo dos fundos e dos hospitais. Para Bustos, a Caixa do Seguro apresentava graves deficiências e dispendiosa rodagem, não compensando os sacrifícios feitos pela economia nacional. No lugar das contribuições tripartites, a solução seria o Estado financiar o Seguro com os impostos gerais e colocar a administração em um ministério ad hoc "segundo o sistema inglês" (referia-se ao Seguro Social criado em 1911 na Grã-Bretanha). Os promotores chilenos prenunciavam, assim, importante deslocamento do modelo alemão para o inglês, cuja efetivação implicava novo ordenamento institucional. Um projeto apontando nessa direção foi apresentado por Bustos e Torres, em 1926, que contemplava completo e inovador sistema de saúde da Previdência assessorado por um Conselho Superior integrado por médicos e autoridades. As atividades do colegiado, perfeitamente afinadas com a visão racionalista dos radicais, compreendiam diagnóstico da situação; planejamento das atividades; padronização dos hospitais; coordenação dos serviços públicos e privados; expansão programada da rede de atenção; divisão do país em zonas assistenciais e execução das ações com base em modernos sistemas de informação estatística. Note-se que, da nova arquitetura, não fazia parte a saúde pública, mesmo porque ainda predominava a noção de que esta só tinha a ver com a polícia sanitária. A semelhança em conteúdo ideológico com a "modernização" neoliberal da previdência chilena, de 1980, é surpreendente. O ministro do gabinete de Pinochet, José Piñera, defendia a reforma argumentando que a capitalização personalizada promove o interesse próprio e "pulveriza o gatilho da luta de classes". Assim mesmo, a rentabilidade projetada para os fundos de capitalização foi estimada em 4%. Ver Piñera (1991).
Avançando nos princípios do modelo de planejamento centralizado inaugurado na URSS, a fórmula dos médicos revolucionários chilenos compreende verdadeira "ditadura sanitária", capaz de impor princípios como: estatização de todos os serviços sob autoridade única forte; conversão dos médicos em funcionários públicos; visão integral dos problemas médico-sociais (todas as etapas da vida humana e os aspectos físico, moral e intelectual); controle do exercício privado entre outros (Boletín Médico, no 264, 1932).
Esses fundamentos inserem-se em um projeto maior de "socialismo de Estado", que promovia a medicina social, a fusão da Salubridade ou Saúde Pública, do Seguro e da Beneficência e financiamento com recursos do Tesouro Nacional.
Em resumo, a terceira proposta reconhece a saúde como parte da revolução socialista, enquanto as duas primeiras visavam modificar apenas o Seguro, e em direção oposta: uma, para a privatização e outra, para a socialização da assistência médica para os assalariados inseridos no mercado formal de trabalho, mantendo-se em ambos os casos a exclusão das funções de saúde pública.
No clima de intensa politização que toma conta do país em fins da década de 1930, recomeça o embaralhamento de propostas de mudança que espelham ora o sonho esquerdista do monopólio estatal na saúde, ora a modernização do Seguro. Tais iniciativas faziam parte da nova era do reformismo securitário e sanitário que se espalhara pelo mundo e que, no Chile, encontrara terreno fértil para se propagar no seio da profissão médica. De fato, esta passa a cumprir o papel de politizada intelligentsia, na medida em que estava em contato direto tanto com as esferas de poder quanto com as necessidades do proletariado doente.
Dois eventos amplificaram e assentaram as concepções relativas à medicina social chilena.
O primeiro deles foi o encontro, em 1935, dos médicos do Seguro, para avaliar os dez anos de seu funcionamento. Em particular, constatou-se a baixa cobertura do Seguro, o impacto quase nulo de suas ações médicas na melhoria dos indicadores biodemográficos dos segurados e a importância dos fatores ligados à morbidade. As recomendações inserem-se na concepção de que o Estado deve destinar as políticas sociais à melhoria da qualidade do "capital humano", devendo, para tanto, reorientar os fundos da Caixa para promover a medicina preventiva e coordenar os serviços de saúde do país.
O segundo evento, realizado também em 1935, foi a primeira Convenção da Associação Médica do Chile (Amech) criada em 1932 , considerada um marco histórico nos anais da medicina organizada nacional. As conclusões refletem a forte presença dos grupos progressistas e resumem-se em pontos tais como: unificar todos os serviços assistenciais, médicos, sanitários e previdenciários em um só ministério assessorado por um conselho técnico; orientar o ensino médico no sentido social; centralizar a luta contra os males de projeção social (tuberculose, lues, alcoolismo etc.); criar o Seguro Social Único. Além disso, o "grêmio médico" compromete-se com a defesa do equilíbrio na distribuição dos produtos do trabalho e com o apoio ao Estado interventor na produção, na distribuição e nos preços dos produtos de subsistência, bem como na melhoria das condições de vida do povo.
Em nova convenção, de 1936, a Amech transformou esses postulados em bandeiras de atuação política apresentadas à Frente Popular quando esta assume o governo em 1938. No Quadro I, sintetizamos as mudanças socializantes operadas no paradigma da medicina chilena:
Com esse arrojado projeto de transformação da saúde pública e da assistência médica, os socialistas passam a integrar a primeira Frente Popular, em 1938. No entanto, o confronto com outras propostas em debate paralisou a reforma por 11 anos, até, finalmente, se chegar a uma fórmula de consenso veiculada pelos social-cristãos falangistas.
Fundamentos doutrinários do SNS
Sintetizaremos as quatro posições que marcaram época devido à sua influência nas políticas de governo e no meio médico. As três primeiras tratam, respectivamente, do modernizado pensamento conservador, da teorização socialista e dos postulados social-democratas do Partido Radical. Já a quarta, defendida pelos falangistas, toma fundamentos do modelo inglês de Seguridade Social. A respeito das três primeiras correntes cabem duas observações. Em primeiro lugar, fazem parte do contexto anterior à expansão do welfare state no pós-Segunda Guerra, quando era hegemônico o modelo do Seguro Social centrado na recuperação da força de trabalho industrial. Em segundo lugar, os meios para atacar as doenças mais freqüentes eram muito limitados, porque ainda não existia a moderna terapêutica, inaugurada com a penicilina, em 1948. Com relação à quarta posição, corresponde às reelaborações políticas e doutrinárias da proteção social do pós-Segunda Guerra, englobadas no conceito de Seguridade Social ou conjunto de políticas econômicas e sociais envolvendo os direitos sociais inerentes à cidadania. Nessa época, também começara a comercialização universal dos antibióticos, o que permitiu debelar com eficácia os principais flagelos que afetavam a massa trabalhadora. Além disso, a realidade chilena tinha mudado substancialmente em função da industrialização, da urbanização e da extensão do trabalho assalariado, o que tornara imperativo modernizar e ampliar as estruturas, funções e cobertura da proteção social e sanitária.
O projeto conservador e o círculo vicioso "doença-pobreza"
Eduardo Cruz-Coke, quando ministro da Salubridade e Previdência Social, patrocinou a Lei de Medicina Preventiva (lei 6.174, de 1938), cujos princípios difundiu em livro (1938), de onde extraímos os principais argumentos.
Ao autor interessa o indivíduo concreto, de vida limitada, que produz e consome riqueza. Considera que a salubridade de um povo é função da economia privada, "já que os fenômenos de inadaptação do indivíduo ao meio em que se desenvolve governam toda a patologia social" (op. cit., pp. 12, 13-6, 17). Para Cruz-Coke, a insuficiência econômica individual traduz-se em crescente morbidade e, dado que afecções como a tuberculose dependem em grande parte do salário, a doença influi poderosamente sobre esse mesmo salário. O aumento de salário, porém, não é solução, porque não vai ao fundo do problema e fere o princípio de "não dar a um indivíduo mais do que ele produz". Além do mais, "o operário chileno nem sempre responde ao aumento de salário com trabalho mais intenso, e até trabalha menos". De conseqüências graves para a economia do país, esse fato coloca o problema da "passividade transitória" ou absentismo causado pela doença, cuja solução está prevista, em parte, na Lei de Medicina Preventiva. Trata-se de "política de salubridade" que impede que o indivíduo reaja com repouso sempre que possível, mas com sentido preventivo, como "verdadeira medicina social estabelecida sobre as bases técnicas do saneamento, da epidemiologia e da pesquisa oportuna da afecção precoce no homem supostamente sadio".
Cruz-Coke afirma que "a medicina social com características demagógicas, baseada em lamentações e de considerações econômicas vagas não é válida". Ao contrário, a Lei de Medicina Preventiva estabelece uma previsão biológica verdadeira, diminuindo a passividade transitória, e organiza o homem consumidor. Deseja-se que o Estado, por intermédio da medicina dirigida, atue sobre a "máquina", que deve ser urgentemente reparada, ou seja, o homem trabalhador, "ainda são, ainda recuperável de uma afecção que recém-começa, cuja saúde é o principal elemento positivo de riqueza de que podemos dispor". Como? Com três medidas principais: exame sistemático, periódico e obrigatório de saúde; repouso para tratamento da doença incipiente; remuneração desse repouso, garantindo o retorno ao trabalho, que é o objetivo da lei.
Quando a Frente Popular chegou ao governo, Allende assumiu a pasta da Saúde e apresentou um programa completo de recuperação da "salubridade nacional" (1939), do qual colhemos alguns aspectos que sintetizam a proposta da medicina social no país.
Trata-se, na verdade, de um conjunto de lúcidas análises, inspiradas no materialismo histórico, que abrangem todas as dimensões da vida nacional, desde a dependência econômica até o atraso cultural. O compêndio contém referencial conceitual, antecedentes geográficos e demográficos, crua exposição das condições de vida das classes trabalhadoras, dos problemas médicos, das doenças mais freqüentes e dos acidentes de trabalho, bem como impiedosa crítica à organização dos serviços médicos e sanitários e do Seguro Social, entre outros assuntos.
1616. Allende termina fazendo suas as declarações da Convenção Médica de 1936 e enfatiza que, para cumprir a imensa tarefa de melhoramento das classes operárias, de intensificação das medidas de profilaxia e saneamento e de ampla campanha de alfabetização, foi criada a Frente Popular. Esses objetivos foram cumpridos na seguinte ordem: Escola Nacional de Salubridade (1943), Colégio Médico (1948), Estatuto do Médico Funcionário (1951) e Serviço Nacional de Saúde (1952).
Quanto à angustiante condição do "capital humano", Allende considera que as massas populares devem reivindicar o direito de viver como povo culto, e a nação se mobilizar, com todas as suas forças, para sanear o país, lutar contra flagelos e vícios, e levar a engenharia sanitária e a medicina social aos recantos mais distantes do país. O capital humano, base fundamental da prosperidade econômica, tem sido abandonado à própria sorte, impedindo que a população se torne densa, sadia, capaz de produzir e de fazer florescer o desenvolvimento industrial e econômico. Os governos anteriores à Frente Popular consideraram postergáveis os gastos em saúde pública, sem jamais pensar que a preservação do capital humano constitui a mais alta responsabilidade de um Estado moderno (pp. 195-7).
Por último, Allende apresenta um Programa de Acción Médico-Social, que propõe uma "Grande Caixa de Previdência Nacional Única", reestruturação total do ministério, bem como a instalação de um "Conselho Nacional de Salubridade", encarregado de unificar e regulamentar todos os serviços e programas médicos e assistenciais, visando à criação de um "Serviço Nacional de Salubridade", que o Estado financiaria em 80%, destinado a atender "toda a população assalariada e suas famílias". A unificação dos serviços, diz Allende, "trará emparelhada a escala médica única e a criação do Colégio Médico, centrado na ação sindical do grêmio", além da fundação de uma Escola de Higiene para formar sanitaristas, administradores hospitalares, enfermeiras, visitadoras sociais e outros técnicos (pp. 207-8)
Essa corrente insere-se nas já mencionadas propostas da OIT, defendidas pelo médico Julio Bustos, diretor-geral da Previdência Social por muitos anos, e porta-voz das políticas do Partido Radical em matérias securitárias e médicas. Cabe salientar, no entanto, que, dessa vez, o projeto em discussão é menos ousado que o apresentado na década de 1920, o que refletiria a ambigüidade e moderação daquele partido tanto quanto sua dificuldade de abrir mão do controle do complexo institucional do Seguro.
Na perspectiva em análise, a categoria central é o trabalho assalariado. Portanto, a preocupação do Sistema do Seguro ou Previdência Social é com as forças produtivas inseridas no mercado formal, ou seja, com a manutenção da capacidade de trabalho do segurado e a proteção de sua família. Quanto ao financiamento, mantêm-se as contribuições tripartites porque fortalecem, no trabalhador, o reconhecimento de seus direitos; despertam o interesse do empregador por conservar e dispor de mão-de-obra de qualidade e promovem a solidariedade social (Bustos e de Viado, 1942, pp. 5-7).
Fazendo eco da postura de Cruz-Coke, para esses autores a medicina social é ação vigilante sobre o indivíduo sadio, enquanto valor econômico a preservar. E deve ser social porque a doença é a causa primeira de incapacidades que convertem elementos ativos do processo econômico em cargas passivas para a coletividade e em fatores de degeneração da raça. Tal política não pode desenvolver-se por meio da medicina liberal, que se caracteriza pela ação individual e só se interessa pelo caso clínico e pela medicina dirigida (pelo Estado), o que envolve a idéia de um plano destinado a combater a gênese e manifestações dos fatores mórbidos que atacam a população.
Bustos (1939) enfatiza a distinção entre "assistência", "previdência social" e "sanidade" ou saúde pública. Argumenta que a assistência gratuita da Beneficência Pública para o indigente é etapa já superada no Chile. A previdência social, ao contrário, enquadra-se em nova corrente ideológica, introduzida no país em 1924, que propicia a intervenção do Estado por meio de uma instituição de natureza autônoma destinada à organização normal da vida dos trabalhadores na ordem sanitária, econômica, financeira, jurídica e moral e visa à eliminação dos fatores que determinam a existência de indigentes, constituindo instrumento de redistribuição da riqueza. Já a sanidade (salubridade ou saúde pública) trata da função sanitária "pura", ou seja, da profilaxia nacional e internacional contra doenças infecto-contagiosas, saneamento urbano e rural, higiene industrial, educação sanitária, demografia e bioestatística, produção de insumos e vacinas e polícia sanitária (fiscalização de produtos medicinais, dos alimentos, da prostituição e do exercício profissional).
Segundo Bustos, essas três lógicas, "são totalmente distintas e não podem ser confundidas". A questão tem a ver com propostas dos socialistas de unificar todos os serviços médicos em uma só instituição. Portanto, o objeto da dissensão está na definição de qual seria essa superorganização e a que autoridade ficaria subordinada (e qual partido a controlaria).
Essa discordância foi decisiva e explica os motivos que inviabilizaram no Legislativo harmonizar a reforma do Seguro, defendida pelos radicais, então no poder, com a unificação de todos os serviços de saúde, pretendida pelas esquerdas. De fato, Allende tinha enviado ao Parlamento um projeto criando o Serviço Nacional de Salubridade que fundia todas as repartições de saúde. Mas os radicais o consideraram "grave retrocesso" em relação aos progressos médico-sociais alcançados no país e no mundo europeu por meio dos seguros. Para Bustos (1939, pp. 29-31), enfim, a fusão da Beneficência, do Seguro contra a Doença e da Salubridade é "aberração" que deve ser impedida por razões de ordem doutrinária, técnica, social e moral. Em compensação, os parlamentares radicais apresentaram um projeto de modificação da lei 4.054, de 1924, prevendo um Programa Unificado de Protección a la Salud fundamentado em um Seguro Social unitário para cobrir todos os riscos, de vida e trabalho, e todas as categorias de operários e empregados. A proposta separava a saúde pública do resto, e transferia os hospitais da Beneficência para o Seguro Social, definindo, em conseqüência, duas grandes funções técnicas para o setor de saúde: a sanitária (saúde pública) e a previdenciária (assistência médica), enfatizando a criação de "carreiras de médico sanitário e de médico da previdência". Bustos e de Viado (1942, pp. 21-2) arrematam: "Somente uma medicina social e dirigida pode elevar o nível biológico do país." Faltou, porém, acrescentar: medicina dirigida, sim, mas pelo Seguro Social e não por uma instituição nova, distinta, como preconizavam Allende e seus seguidores.
1818. Sem qualquer retórica, Pinto refere-se ao "dever ser" da Seguridade Social, recorrendo ao caso da Grã-Bretanha como exemplo. Demonstra que no Chile é possível alcançar esse estágio superior de consciência dos direitos sociais, porque já existem os necessários elementos legais, institucionais e técnicos. A fórmula para transformar gradualmente o sistema de proteção social vigente, tão irracional, discriminatório e dispendioso, consiste no atendimento dos princípios gerais do modelo inglês, mas levando em consideração as limitações nacionais, os direitos adquiridos por determinados grupos e a necessidade de realizar ampla campanha de convencimento da opinião pública. Embora a Seguridade Social constitua uma política tanto econômica quanto social por compreender pleno emprego, salários, habitação e distribuição eqüitativa da renda nacional, Pinto adota definição "mais apropriada à realidade chilena", compreendida em três linhas de ação: prevenção dos riscos que afetam a capacidade produtiva (epidemiologia, saneamento, segurança do trabalho e salubridade), em coordenação com um plano de construção de moradias higiênicas; cura do indivíduo que adoece, incluindo exames periódicos gerais, diagnóstico precoce, tratamento clínico e reabilitação; subsídios pecuniários para o cidadão, quando privado de renda por doença, invalidez ou desemprego. Isso foi possível porque o procedimento legislativo permitia incorporar nova matéria desde que relativa ao assunto da lei, que, no caso, compreendia a assistência médica do Seguro.
A grande contribuição de Pinto e Viel foi a reconceitualização das funções sociais do Estado de bem-estar moderno, de modo a abranger, sob um mesmo princípio, instituições interligadas, porém diferentes, que atendessem aos mesmos objetivos e funções que já vinham sendo realizados no país, mas de forma irracional
As formulações de Pinto configuram um todo coerente e bem fundamentado, que serve de substrato para Viel especificar sua proposta para a saúde. Com base na contribuição desse autor, relacionamos no Quadro III os princípios-guia de ambas as instituições, bem como, para a saúde, as repartições, já existentes, que integrariam o Serviço Nacional de Saúde e as características relativas à direção superior, organização e pessoal.
Com esses subsídios, e assessorados por Pinto, os deputados falangistas Rogers, Carmona e Reyes fizeram as indicações que permitiram, mediante acréscimo de um simples artigo à lei de reforma do Seguro Social, a criação do Serviço Nacional de Saúde, o segundo do mundo capitalista.
O formato aprovado para a saúde conseguiu incorporar praticamente todos os elementos e instâncias do Quadro III. Entretanto, a conjuntura política que configurou as regras do jogo decisório condicionaram o grande déficit que acompanharia, até nova mudança de 1968, o desenvolvimento do SNS: a não inclusão das categorias de empregados de empresas privadas e funcionários públicos civis e militares. Isso porque a reforma do Seguro Social manteve os benefícios apenas para os operários, ou seja, preservou a discriminação de 1924. Esse foi o preço pago pelas concessões feitas à reforma conservadora, unidas à impossibilidade política de as forças progressistas apresentarem um projeto em separado, independente da reforma do Seguro. Pelas mesmas razões, não vingou a concepção global de um Plano de Seguridade Social que vinculasse as políticas econômicas e sociais e unificasse em uma só instituição os regimes previdenciários.
Por último, das doutrinas referidas ressaltamos as noções de planejamento como instrumento da ação política que, desde a década de 1920, vinham se consolidando no país. Tais noções anteciparam em décadas o boom do planejamento na saúde que, de meados de 1960 em diante, vão preconizar as organizações internacionais, em particular a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).
2121. Embora no período aqui estudado essa ideologia conservadora tivesse ficado ofuscada pelos ímpetos da medicina socializada, voltou com força quando os neoliberais, sob a ditadura de Pinochet, adotaram tais orientações como dogma. Assim, a partir de uma perspectiva histórica, podemos afirmar que a evolução do sistema de saúde chileno resume-se no encadeamento de tentativas contrapostas entre tornar o acesso à medicina estatal um direito universal ou restringi-lo aos mais pobres. Senado do Chile (Diario de Sesiones, 7a Sesión Extraordinaria, 22.11.50, discursos do senador Cruz-Coke e do ministro Mardones Restat).
2222. Além disso, sob o fragor das lutas contra Pinochet, os já velhos princípios da medicina social ressurgiram como renovada fonte de inspiração e de força na defesa do patrimônio mais emblemático do passado democrático: o SNS. Até as reformas ditatoriais de 1979-81, o SNS prestava assistência médica hospitalar a cerca de 90% da população. Com a criação de seguradoras privadas, a cobertura estatal diminuiu para um patamar estimado em 75%. Ver Labra (1995).
No período estudado até aqui, não houve nenhuma proposta referente à medicina privada. Esta vinha crescendo devagar, com base em pequenas clínicas, consultórios médicos e laboratórios que satisfaziam parcialmente a demanda dos empregados, mediante convênios estabelecidos pelo Serviço Médico Nacional dos Empregados (Sermena), mas essa alternativa não ameaçava o monopólio estatal do atendimento médico, em especial o hospitalar.
Conclusão
Na literatura pertinente à evolução do sistema de saúde chileno, têm surgido versões segundo as quais o SNS foi produto da firme determinação dos médicos chilenos que, devido a seu compromisso moral com a medicina social, teriam aberto mão do exercício liberal privado, bem mais atraente do que o trabalho assalariado no Estado, instando os colegas parlamentares a aprovarem a iniciativa de criar o SNS.
Segundo outras versões, o SNS teria sido o resultado das demandas populares e das lutas dos sindicatos operários, canalizadas pelos partidos de esquerda, em favor do direito à saúde das grandes massas.
Como este artigo tentou demonstrar, as políticas de saúde e sua materialização jurídico-institucional não podem ser reduzidas aos voluntarismos dos atores envolvidos nem a determinismos históricos. Ao contrário, as transformações do sistema de saúde do Chile, no período estudado, foram produto do funcionamento da democracia política, das regras institucionais que emolduraram os processos decisórios, de influências externas, de decisões anteriores, de contingências internas e de complexa trama de negociações e consensos. E os acordos alcançados sempre foram imperfeitos devido à multiplicidade de interesses em jogo em cada conjuntura. Todos esses fatores e processos condicionaram os resultados das políticas a ponto de se afastarem, e muito, da "imagem-objetivo" dos revolucionários precursores da medicina social. Todavia, estes conseguiram impregnar as doutrinas sanitárias do Chile de concepções de medicina social até hoje prevalecentes.
Recebido para publicação em junho de 1999.
Aprovado para publicação em outubro de 1999.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Maio 2006 -
Data do Fascículo
Jun 2000
Histórico
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Aceito
Out 1999 -
Recebido
Jun 1999