RESENHAS
LIVROS & REDES
Nelson Sanjad
Pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi/MCT. nsanjad@museu-goeldi.br
O projeto Adolpho Lutz e a História da Medicina Tropical no Brasil, desenvolvido entre 2000 e 2007, foi um dos mais importantes projetos editoriais do Brasil, comparável a poucas iniciativas similares. Em um país sem tradição de publicação de fontes históricas e onde os arquivos públicos e privados lidam com dificuldades de toda ordem, conseguiu um feito extraordinário: simultaneamente, ajudar a descrever o fundo Adolpho Lutz, pertencente ao Museu Nacional/UFRJ; traduzir e publicar a correspondência e os trabalhos científicos do pesquisador, na maior parte escrita em alemão; divulgar amplamente informações, documentos e imagens relacionados à vida e obra de Lutz, por meio da Biblioteca Virtual em Saúde Adolpho Lutz (www.bvsalutz.coc.fiocruz.br); articular e treinar uma equipe de estudantes, pesquisadores, revisores, tradutores e colaboradores diversos; e incentivar o desenvolvimento de pesquisas e estudos sobre a enorme variedade de assuntos aos quais Lutz se dedicou, como clínica médica, dermatologia, bacteriologia, helmintologia, veterinária, protozoologia, malacologia, micologia, entomologia, herpetologia e zoologia médica - unindo, em um mesmo conjunto cognitivo, a história das doenças e a história das políticas e instituições de saúde no Brasil, no final do século XIX e primeira metade do XX (Benchimol, Sá, 2003; Benchimol et al., 2003). Os resultados podem ser aferidos nos 12 livros publicados pela Editora Fiocruz entre 2004 e 2007, organizados em três volumes, cada um deles trazendo ensaios, bibliografias, sumários, glossários e índices, além da edição crítica dos textos do próprio Lutz.
O trabalho foi coordenado pelos historiadores Jaime Larry Benchimol e Magali Romero Sá, da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz. O primeiro já vinha se dedicando ao assunto desde o final da década de 1980, quando começou a produzir estudos sobre a história da bacteriologia e da medicina tropical no Brasil (Benchimol, 1990, 1999, 2001, 2003; Benchimol, Teixeira, 1994). Nos seus textos, publicados ao longo da coleção Lutz, ecoam muitas de suas pesquisas pretéritas, regularmente acessadas como base e estofo para um desafio que lhe deve ter parecido mais difícil que os anteriores: a partir da visão de mundo de Adolpho Lutz, unir idéias, contexto e trajetória de vida. Por sua vez, Magali Romero Sá tem uma experiência profissional distinta. Além dos trabalhos sobre medicina e saúde pública, seus textos tratam de viagens, viajantes e cientistas que se notabilizaram pelos estudos e pelas coleções de história natural, abordando questões de ordem política, social e institucional (Sá, 1998, 2001, 2008, 2009; Sá, Domingues, 1996; Sá, Noronha, Muniz-Pereira, 1999).
Essa soma de competências certamente favoreceu o projeto Lutz - pois talvez nenhum outro cientista tenha transitado com tanta eficiência, e por tanto tempo, no Brasil, pelos campos da história natural, da medicina e da saúde pública, aproximando problemas científicos comuns e métodos de pesquisa. Isso pode ser comprovado no segundo volume da coleção, que trata dos trabalhos sobre febre amarela, malária, protozoologia e entomologia. Na apresentação histórica aos dois livros de entomologia (livros dois e quatro), Benchimol e Sá (2006) demonstram como a obra de Lutz foi sendo construída, da década de 1880 aos anos 1930, em diálogo com o desenvolvimento da taxonomia e com as transformações no âmbito da etiologia de doenças infecciosas em humanos e animais. Os autores destacam, sobretudo, as pesquisas feitas com dípteros hematófagos (principalmente culicídeos e tabanídeos) e vetores de diversas doenças, em vários locais do Brasil, como a ilha do Marajó, Manaus, o rio São Francisco, o litoral e interior de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Nesse texto, publicado também em inglês e com dezenas de ilustrações, os autores exploram a correspondência de Lutz com habilidade, utilizando-a para pontuar a passagem do tempo e o contexto político e científico em que Lutz atuava. Iniciam com suas primeiras idéias sobre a relação entre insetos e doenças, formuladas a partir de seus estudos sobre a lepra, simultâneos às primeiras descobertas sobre o papel dos mosquitos na transmissão da filariose. Na década de 1890, os estudos sobre malária desenvolvidos pelos ingleses no seu império colonial levaram à proposição de uma nova especialidade médica, a medicina tropical - e também ao primeiro inventário global de mosquitos, organizado, entre 1901 e 1910, pelo entomólogo Frederick Theobald (1868-1930), comissionado pelo Museu Britânico. Lutz foi um dos mais importantes colaboradores de Theobald. Forneceu informações e espécimes, tendo sido reconhecido, em diversas ocasiões, por seus préstimos (inclusive com a criação do gênero Lutzia). Mas também demonstrava, nas suas cartas, cautela com questões de ordem política (como autoria e prioridade) e orgulho pelo próprio trabalho, que sabia bem feito e valoroso.
Lutz aglutinou, em um período de expectativas com relação ao papel da ciência para o progresso social, uma extensa rede de colaboradores e missivistas, que o mantiveram conectado aos debates que ocorriam não apenas nos livros e artigos, mas também nas cartas que trocavam. Por meio delas, Benchimol e Sá (2006) evidenciam as múltiplas influências que Lutz recebeu e também as que exerceu sobre outros cientistas, seus discípulos ou não. Vejam-se os casos de Leland Ossian Howard (1857-1950), chefe da Divisão de Entomologia do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, organizador da obra The mosquitoes of North and Central America and the West Indies, publicada entre 1912 e 1917; e de Frederick Knab (1865-1918), funcionário do mesmo departamento, curador de dípteros do National Museum of Natural History e colaborador de Howard na referida obra. Assim como fizera com Theobald, Lutz foi interlocutor privilegiado de ambos e severo crítico do espírito competitivo e da postura arrogante dos norte-americanos.
Entre os brasileiros, Francisco Fajardo (1864-1906), Oswaldo Cruz (1872-1917) e Arthur Neiva (1880-1943) aparecem como colaboradores e discípulos de Lutz, que os ajudou a direcionar e consolidar suas carreiras científicas orientando pesquisas, dando conselhos e provendo a ajuda necessária que apenas um cientista reputado poderia dar. Entre a análise de uma e outra correspondência, Benchimol e Sá (2006) introduzem conceitos, apresentam lideranças científicas, descrevem a genealogia do campo onde atuavam e posicionam brasileiros e estrangeiros (sobretudo Lutz) no panorama intelectual da época. Também fazem digressões sobre alguns acontecimentos que tiveram grande repercussão no início do século XX e que ajudam a balizar os interesses de Lutz, como os experimentos dos norte-americanos em Cuba, as expedições do Instituto Pasteur, da Liverpool School of Tropical Medicine e do Instituto de Manguinhos, a reforma urbana e a profilaxia da febre amarela no Rio de Janeiro.
As cartas permitem, inclusive, arriscar alguns traços da personalidade de Lutz, que pairava entre o rigor, a disciplina, a curiosidade e, em minha opinião, também entre a generosidade e a abertura ao diálogo com os que se mostravam sérios e atentos, independentemente da posição e da idade. Essas características, somadas a uma sólida formação em taxonomia e a qualidades que hoje parecem ser pouco valorizadas, como a honestidade e a independência intelectual, dão a Lutz um lugar especial na institucionalização da entomologia médica no Brasil. Ele não apenas contribuiu com a criação e o fortalecimento da identidade das instituições onde trabalhou, o Instituto Bacteriológico de São Paulo (atual Adolpho Lutz) e o de Manguinhos (atual Oswaldo Cruz), como também estabeleceu uma referência e ajudou a consolidar uma tradição de pesquisa nesse campo no país.
A dimensão e riqueza do trabalho que Benchimol e Sá coordenaram, assim como a qualidade dos estudos que assinam ao longo da coleção Lutz, deixam no leitor a esperança de que o empreendimento seja finalizado com a publicação dos derradeiros livros planejados, o primeiro e o último livro (cinco) do volume três, que reuniriam, respectivamente, artigos com análises dos vários trabalhos de Lutz, o sumário e os índices. Também convém que a BVS Adolpho Lutz seja ampliada com a inclusão de mais documentos e dados, pois é um dos melhores instrumentos para a pesquisa histórica sobre a medicina no Brasil. A continuidade das pesquisas poderia, inclusive, explorar aspectos que Benchimol e Sá apenas sinalizam ao longo de seu texto sobre a entomologia médica, como as referências teóricas germânicas de Lutz, a biologia como campo de estudos (no sentido dado ao termo no final do século XIX), as preocupações e o uso de conceitos de ordem ecológica, no exato momento em que essa ciência ganhava autonomia.
O caminho percorrido até o momento é enorme e merece ser saudado como um marco para a história das ciências no Brasil. Que essa iniciativa inspire novos e velhos historiadores nos quatro cantos do país, com o fim de revelar vidas e obras que ainda permanecem conhecidas de poucos, ou completamente desconhecidas. Um inventário nacional, mesmo que limitado nos seus objetivos, mas abrangente o suficiente para compilar dados biográficos e produção científica, seria de grande valia para incentivar pesquisas e iniciativas editoriais semelhantes à coleção Lutz.
Referências bibliográficas
- BENCHIMOL, Jaime Larry. Adolpho Lutz: um estudo biográfico. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p.13-83. 2003.
- BENCHIMOL, Jaime Larry. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Bio-Manguinhos. 2001.
- BENCHIMOL, Jaime Larry. Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; UFRJ. 1999.
- BENCHIMOL, Jaime Larry. Manguinhos do sonho à vida: a ciência na Belle Époque. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. 1990.
- BENCHIMOL, Jaime Larry et al. Adolpho Lutz e a história da medicina tropical no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p.287-409. 2003.
- BENCHIMOL, Jaime Larry; SÁ, Magali Romero (Ed.). Adolpho Lutz e a entomologia médica no Brasil (apresentação histórica) Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. (Adolpho Lutz: Obra Completa, v.2, livro 3). 2006.
- BENCHIMOL, Jaime Larry; SÁ, Magali Romero. Memórias do presente: Adolpho Lutz e a história da medicina tropical no Brasil - o resgate da obra de um grande cientista. Insight Inteligência, Niterói, v.6, n.23, p.74-84. 2003.
- BENCHIMOL, Jaime Larry; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Cobras, lagartos & outros bichos: uma história comparativa dos Institutos jButantã e Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; UFRJ. 1994.
- SÁ, Magali Romero. A zoologia da Comissão Científica de Exploração. In: Kury, Lorelai (Org.). Comissão Científica do Império, 1859-1861 Rio de Janeiro: Andrea Jakobson, p.155-179. 2009.
- SÁ, Magali Romero. Scientific collections, tropical medicine and the development of entomology in Brazil: the contribution of Instituto Oswaldo Cruz. Parassitologia, Roma, v.50, p.187-197. 2008.
- SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.8, supl., p.899-924. 2001.
- SÁ, Magali Romero. James William Helenus Trail: a British naturalist in nineteenth-century Amazonia. Historia Naturalis, Seropédica, v.1, p.99-254. 1998.
- SÁ, Magali Romero; DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. O Museu Nacional e o estudo das ciências naturais no Brasil no século XIX. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v.15, p.79-88. 1996.
- SÁ, Magali Romero; NORONHA, D.; MUNIZ-PEREIRA, Luís Claudio. A contribuição dos naturalistas viajantes para a helmintologia brasileira: Natterer e as primeiras coleções de helmintos feitas no Brasil. Contribuições Avulsas Sobre a História Natural do Brasil, série História da História Natural, Seropédica, v.5, p.1-4, 1999.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Abr 2010 -
Data do Fascículo
Mar 2010