LIVROS & REDES
Imperialismo & filantropia: a experiência da Fundação Rockefeller e o sanitarismo no Brasil na Primeira República
Imperialism and philanthropy: the experience of the Rockefeller Foundation and hygienism under Brazil's First Republic
Carlos Henrique Assunção Paiva
Historiador Rua Grajaú, 81/104, 20561-140 Rio de Janeiro RJ Brasil mors@ig.com.br
A Reforma Sanitária no Brasil, obra do sociólogo Luiz Antônio de Castro Santos e da historiadora Lina Rodrigues de Faria, lida de forma criativa e estimulante com um leque variado de questões que atravessam a história da saúde pública no nosso país, especialmente durante o período conhecido como Primeira República (1889-1930). Nessa fase, segundo os autores, desenvolveram-se não só instituições fundamentais neste campo, como também um arcabouço ideológico que favoreceu e sustentou o sanitarismo como resposta aos problemas que o país buscava superar, a fim de se enquadrar no rol das nações que, no dizer da época, eram modernas e civilizadas.
Há dois grandes blocos ou eixos interligados de debate na obra. De um lado, há uma forte discussão a respeito da relação entre ideologia, política e Estado, num intrigante jogo de interfaces em que nenhum dos elementos analíticos pode ser lido como uma conseqüência mecânica de outro. De outro, vê-se o papel da Fundação Rockefeller no Brasil, especialmente durante a primeira metade do século XX, justamente quando a instituição norte-americana se posicionava de maneira radicalmente diferente daquela em que se enquadraria no pós-guerra, no quadro da Guerra Fria, tomada pela ojeriza aos comunistas. O que se vê antes é uma Fundação estrangeira que, ao pretender intervir no ambiente científico brasileiro, que já gozava de importante tradição, foi conduzida a negociar a todo o momento, alterando, assim, muito de suas próprias diretrizes iniciais, num jogo também marcado pela interação e pela troca de argumentos e posições.
Antes de passar a comentar de forma mais detalhada a estrutura do trabalho de Castro Santos e Faria, é interessante observar que a obra é fruto de reflexão de longa data na trajetória intelectual de ambos os autores, cujos trabalhos publicados em diversos periódicos especializados se encontram já consagrados. Castro Santos, desde meados da década de 1980, tem publicado a respeito da Reforma Sanitária no Brasil. Assim, inaugurou um viés de análise em que se privilegia a Primeira República como período chave para a compreensão da história da saúde pública, sem deixar de atentar para os desafios da época subseqüente, a partir das primeiras gestões do presidente Getúlio Vargas (1930-1945). Isto sem desconsiderarmos a discussão acerca do papel do Estado na Reforma Sanitária brasileira, que antecipou, em boa medida, por meio de órgãos como o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), chefiado por Carlos Chagas, o ímpeto centralizador imputado ao governo Vargas. A discussão levada a efeito por Lina Rodrigues de Faria tem na atuação da Fundação Rockefeller seu objeto principal, tema ao qual vem se dedicando há anos, desde quando a autora era pesquisadora visitante da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e que irá aprofundar em sua tese de doutoramento, recentemente defendida no Instituto de Medicina Social da Uerj (Faria, 2003).
A Parte 1, assinada por Lina Rodrigues de Faria, está dividida em cinco capítulos que procuram discutir historicamente a evolução do sanitarismo como questão nacional e os aparelhos de Estado necessários ao amparo das intervenções. Assim, no capítulo 1, "A intervenção federal na saúde pública durante a Primeira República", a autora demonstra a incapacidade da monarquia em responder às demandas de um quadro endêmico e epidêmico que atingia a imensa maioria da população e colocava em xeque não só a visão que se "queria ter" do país de uma nação "civilizada" , como também desafiava a base da estrutura econômica, ao representar grande empecilho à imigração de europeus para as lavouras de café. Desse modo, o quadro não era favorável a ninguém, nem aos mais pobres, principais vítimas das doenças, nem aos mais ricos, estes, em certo sentido, vitimados duplamente pelo quadro epidemiológico, pois eram atingidos em seus interesses econômicos mais imediatos, como também não se encontravam biologicamente imunes aos males transmissíveis.
Sem resvalar para uma visão evolutiva e linear, a autora mostra bem o campo das marchas e contramarchas deste processo histórico de negociação, que vai desembocar em um novo arranjo institucional do Estado brasileiro para as questões sanitárias. Desde a criação da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), em 1897, dirigida por Oswaldo Cruz, até a concepção do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), com Carlos Chagas, em 1920, o aparelho estatal torna-se mais interventor e centralizador. Nas palavras da autora, "não só políticos, mas médicos e higienistas clamavam pela organização de um aparelho administrativo na área da saúde e pela participação mais ativa do estado nesta área" (p. 21).
No entanto, como considera a autora, durante os primórdios ou a primeira fase do movimento sanitário, quando o movimento circunscreveu seu foco essencialmente ao ambiente urbano, o ímpeto centralizador estava longe daquele que se desenvolveria na década de 1920, quando o quadro epidemiológico se agravou com a gripe espanhola que atingiu a capital federal (1918), e, particularmente, com a dimensão ideológica que ganharia o tema saúde, para além das fronteiras das faculdades de medicina e congressos médicos. Trata-se de uma nova fase, como considerou Lina Faria, cujo foco se estenderia além do ambiente urbano e se projetaria na figura do caboclo, modelo de habitante do sertão brasileiro, considerado doente e em condição de abandono pelas instituições do Estado (ver p. 28).
O capítulo 2, "A Reforma Sanitária e o pensamento social brasileiro na Primeira República", mostra essencialmente que questões fundamentais do pensamento social daquela época eram inseparáveis das discussões travadas no campo médico. Assim, nas palavras da autora, os caixeiros viajantes da saúde, médicos como Carlos Chagas ou Belisário Pena, ao desenvolverem forte discussão a respeito da higiene pública, especialmente do interior do Brasil (a partir de 1920), se colocavam também como intérpretes privilegiados da construção da nacionalidade brasileira. Seja pela via da "europeização", que rejeitava, de diferentes formas, o estoque racial nacional; seja pela via de construção da nação pelo saneamento do interior, a saúde estava sempre em primeiro plano, pois, de um lado, seria mesmo necessária uma infra-estrutura mínima que permitisse a imigração de europeus para os trópicos; como de outro, impunha-se a evangelização do habitante do hinterland, de acordo com os preceitos da saúde e da higiene.
Tanto uma via como outra não representaram setores ou atores sociais de contornos ou perfis muito nítidos, pois aquele ambiente de idéias, marcado pelo forte tom ideológico dos discursos, se serviu como elemento de unidade, também significou um fator de clivagem na elite médica e intelectual do país. Assim o trânsito de intelectuais, tanto por uma via como por outra, era algo relativamente recorrente naquele contexto.
O capítulo 3, "A Fundação Rockefeller: objetivos, ideologias e utopias a ação educativa", busca resolver, com êxito, um (falso) dilema na historiografia sobre a presença da agência norte-americana no Brasil. Numa imagem de água e óleo, construíram-se dois modelos de interpretação em nossa produção intelectual: de um lado, uma historiografia com inspiração supostamente marxista, que busca compreender a presença da Rockefeller no país como um manobra do imperialismo e do capitalismo norte-americano. Assim, toda a atividade da Fundação é lida em seus sentidos ocultos, não manifestos, eminentemente calcada na idéia de dominação e instrumentação política e econômica. O que está em xeque, parece-nos, é antes o modo equivocado com que os interesses econômicos são interpretados nessa corrente. Não há aqui, a rigor, uma historiografia: os acontecimentos são moldados por uma pré-noção ingênua e esquemática, já que não se conhece ninguém que seriamente tenha escrito sobre a ausência de interesses na presença dos norte-americanos no país. Uma outra vertente procura agregar outras dimensões a um processo que de fato não pode ser compreendido somente de acordo com os eixos econômico e político. (Aliás, cabe aqui lembrar o esforço em rediscutir a dádiva nas sociedades modernas, pelo grupo canadense liderado por Jacques T. Godbout (Godbout, 1999; Paiva, 2001).
Passeando pelos principais nomes de ambos os modelos interpretativos, Faria se coloca em uma via que procura aliar as duas imagens até então equivocadamente excludentes. Em suas palavras, no contexto de atuação da Rockefeller no Brasil os "interesses comerciais e atividades humanitárias não se excluíam nem se revelavam como dimensões antípodas" (p. 51). Em sintonia com a postura metodológica adotada, a autora constrói a historia da relação da Fundação com os governos brasileiros, em um rico debate em que prevalece menos a imagem de imposição da primeira sobre os segundos, e mais um ambiente de constante negociação, em que se desenvolve, de forma dinâmica, a ação da Rockefeller no nosso país. Debate que se desenrolará, inclusive, nos capítulos seguintes. Assim deparamos uma ação estrangeira que se desenrola em sintonia com o movimento sanitário encetado desde os inícios do século XX no Brasil, e cuja elite médica era atuante, pelo menos, desde meados do século XIX.
O capítulo 4, "A Fundação Rockefeller no Brasil: o saneamento (primeiros tempos, 1915-1920)", desenha o ambiente político, econômico e institucional que favoreceu a implantação dos programas sanitários apoiados pela Fundação, seja o combate à ancilostomíase, seja o combate à febre amarela.
Essa montagem de "parcerias", para utilizar expressão da autora, sugere, como dissemos, a instauração de uma negociação que se desenvolve no próprio curso dos acontecimentos, não se constituindo como um evento definido antes da chegada da agência estrangeira em solo nacional. Nesse contexto, segundo a autora, foi fundamental para a Rockefeller o apoio da corrente sanitarista ruralista, isto é, daqueles que viam no sertão o filão de construção da nacionalidade. Isto sem falar das estruturas políticas e de poder regional e local, em sintonia com as quais, ou contra as quais, por vezes se levantavam as vozes de sanitaristas e intelectuais, e que definiram a viabilidade do trabalho da Fundação em certas regiões e em outras não.
No Nordeste, por exemplo, onde os índices de infestação de várias doenças eram altíssimos, a adesão da Rockefeller não foi automática, pois muito dependeu da ação de um governo federal atuante e, como se vê na segunda parte do livro, dos contextos políticos e econômicos locais. Assim, nas palavras de Faria,
apenas em 1920 abriu-se um primeiro posto de saúde na periferia de Salvador para o combate à malária e à febre amarela. Isso só foi possível porque, a partir desse ano, o Governo Federal passou a responsabilizar-se pela maior parte dos encargos financeiros que complementariam as despesas da Rockefeller no Nordeste (p. 79-80).
Pernambuco é um exemplo. Segundo a autora, apesar da existência de um regulamento para o Serviço Sanitário do Estado, que, letra morta desde 1913, previa o combate às epidemias e endemias que atingiam a região, somente com as novas condições históricas que possibilitaram a intervenção da União na política dos estados é que as diretrizes da Rockefeller conseguiram encaminhamento. Estas condições, é interessante notar, estavam também relacionadas a pactos intra-regionais, entre as tradicionais oligarquias que controlavam o destino político-econômico de seus estados.
Nesse contexto o caso emblematicamente positivo é o paulista, que muito cedo reuniu condições sócio-históricas favoráveis aos programas da Rockefeller, graças, em última análise, à modernização capitalista que não só permitiu o acúmulo de recursos e divisas no âmbito do estado, mas também viabilizou consensos políticos entre as elites locais, muitos dos quais arranjados sob a esfera de atuação do Partido Republicano Paulista (PRP). Este ponto será discutido mais adiante.
No capítulo 5, "Frentes de atuação da junta sanitária internacional da Fundação Rockefeller (IHB) nos anos 20: a interiorização das atividades", a autora focaliza especialmente o contexto de criação e a atuação do Departamento Nacional de Saúde Pública, órgão criado em 1920, no quadro da expansão da autoridade política do governo federal sobre todo do país. O DNSP pode ser considerado o primeiro órgão de pretensão nacional a ser gestado no campo da saúde, mas o surgimento, cerca de dois anos antes, do Serviço de Profilaxia Rural, marca justamente um antecedente importante para a criação daquele órgão e sua regulamentação. No entanto, o DNSP, aparelhado legalmente (por conta do código sanitário implementado) e sob a direção de um médico de notável prestígio nacional, como Carlos Chagas, significou um salto em matéria de intervenção estatal nos assuntos públicos, especialmente regionais, como demonstra a autora.
Lina Faria retoma a discussão dos capítulos anteriores, ao mostrar o impacto positivo da criação do DNSP, do ponto de vista dos gestores da Rockefeller. Seus dirigentes viam com bons olhos a institucio-nalização do saneamento rural no âmbito do governo federal, em um órgão do DNSP, a Diretoria de Saneamento Rural, justamente nas mãos de Belisário Pena, personagem decisivo para os rumos da saúde pública desde a Primeira República.
Este é justamente o período de maior atuação da Rockefeller no nordeste do Brasil, não, como se disse, por uma disposição prévia da fundação norte-americana, mas pela atuação das lideranças políticas nacionais e pela eclosão de movimentos e "ligas" em defesa da saúde e do saneamento. Faria demonstra que os objetivos iniciais da Fundação foram amplamente alargados neste período, tanto territorialmente, com a inclusão de mais estados; como na ampliação das moléstias a serem combatidas, com a inclusão da malária e da febre amarela. E isto se deveu, especialmente, à pressão do forte movimento sanitário nacional, que, nesta época, já se encontrava em sua segunda fase, menos urbana e mais centrada nos problemas do interior do país.
O capítulo 6, "Poder, ideologias e saúde na Primeira República: ensaio de sociologia histórica", abre a parte dois do trabalho de Castro Santos e Faria, assinada pelo primeiro. Aqui, Castro Santos faz um rápido e interessante passeio pelos trabalhos mais recentes sobre a historiografia da saúde no Brasil, focalizando estudos de caso no nordeste do Brasil, região carente de análises a respeito do tema. Do Ceará, passando pela Paraíba até Pernambuco, apoiado na literatura, o autor procura mostrar que a ausência de uma oligarquia modernizante naquela região (os Acioli, no Ceará, foram um exemplo de oligarquia "retrógrada") foi o elemento político decisivo na falta de movimentos populares voltados para as questões sanitárias para travar a institucionalização de órgãos sanitários naqueles estados até pelo menos o ano de 1915. O termo "institucionalização" é importante, pois, como demonstra o autor, na letra da lei elas lá constavam, mas sem papel ativo em um cenário marcado por altos índices de infestação de doenças infecciosas, em alguma medida, controláveis.
O interessante é que o conceito de "região" não é compreendido de forma monolítica; ao contrário, as especificidades locais, moldadas pelas relações intra-elites, são elementos fundamentais que, em um e outro estado, vão conduzir de maneira diferenciada o processo decisório no campo das políticas públicas e das próprias relações dos governos estaduais com o executivo federal. Dessa maneira, a capital pernambucana se torna, de acordo com a perspectiva de Castro Santos, um caso emblemático no quadro geral da região nordestina, pois muito cedo conseguiu reunir condições políticas, via consensos políticos montados por uma elite local modernizante, que permitiu, desde a década de 1840, medidas de saneamento público incipientes, como a criação de uma rede de água e de reservatórios de abastecimento. Assim, nas palavras do autor:
Recife, com efeito, representava um caso em que certos fatores, entre os quais se destaca a atuação modernizadora de uma oligarquia politicamente coesa, atuavam com mais força do que o 'fator econômico' e a política imigratória [nos estados do sul] (p.107).
Este cenário pernambucano, marcado essencialmente por uma oligarquia 'coesa' e 'modernizante', tem como desdobramento, segundo o autor, o fato de este estado ter respondido mais rapidamente, na década de 1920, à ideologia de construção nacional pela saúde pública, especialmente se comparado à Bahia, que já contava com uma faculdade de medicina desde a primeira metade do século XIX e com a decantada Escola Tropicalista Baiana. Desta forma, ele nos chama atenção para o fato de que o centro irradiador daquelas idéias sanitárias, a partir do Distrito Federal e de São Paulo, teve entrada bastante diferenciada em todo o território brasileiro, obedecendo assim a um esquema de interação, em que as possibilidades de desenvolvimento no contexto político e social local ou regional deveriam necessariamente ser levados em conta. Este é o passo que conduz o leitor ao caso paulista.
O caso de São Paulo é também emblemático, especialmente por conta de seu "sucesso". Esse termo relaciona-se à institucionalização do Serviço Sanitário e à queda dos casos de vítimas de doenças, diante da erradicação naquele estado de diversas epidemias que atingiam o restante do território nacional, particularmente os estados ao norte. Mais uma vez a chave da bem-sucedida reforma sanitária paulista parece residir em elementos histórico-estruturais, inerentes às relações intra-elites e ao desenvolvimento prematuro de uma estrutura capitalista ou próxima desta, que serviram de base à disseminação das idéias sanitárias, seja no ambiente urbano ou rural.
Nesse contexto pluridimensional, tanto a dimensão econômica do processo é considerada, como a necessidade de importação de mão de obra européia para as plantações de café, que preocupou amplos setores das classes dominantes; como também aspectos precisamente ideológicos, relativos a um ambiente intelectual favorável às novas idéias da bacteriologia e à intervenção do Estado na área da saúde. Essas condições permitem a formação de novos atores no campo médico, cujo padrão de comportamento vai se mostrar sensivelmente distinto daquele formado pela influência da clínica francesa. É o quadro de formação, por exemplo, de um Samuel Pessoa (1898-1976), que, à frente de inúmeros serviços sanitários no estado de São Paulo e, após a aposentadoria na década de 1950, por todo o Brasil, foi responsável direto pela constituição de uma importante escola de parasitologia no país (ver Paiva, 2004).
Mas, na prática, como esta elite dita modernizante possibilitou acordos no âmbito estadual? Para Castro Santos, a ação do Partido Republicano Paulista foi fundamental. Não que a agremiação representasse monoliticamente os interesses de determinado grupo ou classe, mas, ao contrário, o partido se constituía antes como um verdadeiro canal de negociações intra-elites. Foi ali que foi forjada a base política que se desdobrou no desenvolvimento de uma legislação e da administração para a saúde, na criação de instituições médicas e na realização de campanhas sanitárias entre os paulistas. Base que se estendeu mais tarde para outras regiões, não por um 'difusionismo' previsível, mas por circunstâncias históricas concretas, como revela o caso da Bahia.
Ainda a respeito da Bahia, Castro Santos demonstra que, apesar da existência de uma experiência de vanguarda no campo médico naquele estado, como a denominada Escola Tropicalista, a medicina naquele estado era essencialmente marcada por um certo tom conservador que, na prática, operou como obstáculo às idéias novas da bacteriologia e à atuação dos sanitaristas. A base política eminentemente fragmentada, na ausência de um partido 'forte' que funcionasse como canal de negociação diante de uma elite profundamente inorgânica, é o elemento analítico chave para a compreensão das dificuldades de inovação do tradicional campo da saúde baiano.
Se pensássemos para toda a América Latina, a matriz pré-capitalista, como diria o pensador marxista Agostin Cueva (1983), marcada por uma economia fragmentada, com baixa interação comercial intra-regional, assinala o nascimento de elites incomunicáveis que, historicamente, fizeram da região autênticos feudos. A eles se associa a imagem de 'balcanização', cuja maior conseqüência política foi a ausência de consensos políticos regionais que se desdobrassem em políticas continuadas para a região, quaisquer que fossem seus conteúdos ou propostas.
Os ventos de mudança, como considera o autor, vão se dar a partir de 1920, quando o governo federal, progressivamente, começa a se fortalecer diante dos interesses regionais. Há, especialmente, a partir de final da década de 1910, pouco a pouco, um verdadeiro clamor da intelectualidade a favor de reformas sanitárias, educacionais e políticas, pois o quadro caótico, expresso, por exemplo, no famoso relato da expedição científica pelos sertões do país, por Belisário Pena e Artur Neiva, tornava-se mesmo evidente. Trata-se da base ideológica que favorecerá a instância federal junto às regiões em considerável estado de abandono.
É nesse contexto que a Bahia e outros estados do 'Norte' sofrem seu processo de 'intervenção' federal, com a atuação de DNSP e da Rockefeller no combate à malária e à febre amarela. Foi um processo irreversível, em que gradualmente o governo central foi imprimindo as regras do jogo, seja pela criação de códigos sanitários estaduais nos moldes do federal (por sua vez, inspirado no dos paulistas), seja pela constante intervenção na economia e na política regionais.
No entanto, como demonstra Castro Santos, a política local também passava por transformações importantes. Nas palavras do autor:
À medida que as oligarquias estaduais chegaram a um acordo sobre a utilização dos escassos recursos públicos, as políticas de saúde tornaram-se menos sujeitas às disputas de facções no congresso estadual (p. 153).
Trata-se assim de uma via de mão dupla, quando esferas distintas, mas em constante processo de interação política, se lançam em negociação diante de recursos públicos. Este processo, que lançaria a 'modernização conservadora' em vários estados, não se realizou de igual forma em todas regiões. Sua realização tardia, por exemplo, no caso baiano, tem relação, como dissemos, com a dificuldade das elites locais estabelecerem consenso político mínimo para a realização de políticas. Esse consenso político mínimo, conquistado a partir de 1920, permitiu que a criação das secretarias de saúde tivesse justamente nos estados do 'Norte' sua instalação pioneira, mas não foi suficiente para um avanço significativo do ponto de vista das estatísticas vitais. Tal como aconteceria em outros estados, sugere o autor, a reforma sanitária baiana teve alcance limitado, apenas alcançando a capital e algumas poucas regiões do interior, ao contrário do que aconteceria em São Paulo, onde o tom ruralista foi intenso e mais abrangente.
Por fim, o trabalho de Castro Santos e Faria traz ainda um "excurso" sobre "Nacionalismo e internacionalismo em saúde: Brasil e China (fragmento)". Trata-se de um esboço de pesquisa em que Luiz Antonio de Castro Santos apresenta a China continental, pré-maoísta, como um exemplo para a compreensão histórico-comparativa das experiências da Rockefeller no mundo. Boa parte deste segmento volta-se para questões de ordem teórico-metodológicas, que atravessam toda a obra dos autores, especialmente a discussão em torno da interpretação da atuação da fundação norte-americana: 'imperialismo ou filantropia'? Sem se posicionar exclusivamente em um campo ou em outro, o autor os encara como eixos axiais distintos, mas igualmente atuantes. Pois, em seu ponto de vista, a existência de um não significa necessariamente a inoperância do outro. Assim a 'crença' na existência de um único eixo interpretativo conduz antes à adesão a pressupostos ideológicos do que à discussão teórica e à interpretação histórico-sociológica. Neste caso quem perderia é o leitor.
No início desta resenha comentamos a respeito da forma como esta obra lida com a história da saúde pública no Brasil. Como se viu, ela é uma contribuição importante para esse fórum de discussões, cujo interesse vem aumentando bastante no Brasil nos últimos anos. A Reforma Sanitária no Brasil é também um belo trabalho que, no terreno da ciência política, esclarece muito a respeito das relações intra-elites no nosso país, especialmente durante o final do século XIX e início do século XX, quando em maior ou menor grau, variando de região para região, determinados grupos agiram a favor de medidas modernizantes e reformistas. As bandeiras de reforma sanitária só se tornaram possíveis graças a um certo congraçamento político entre os grupos dirigentes que, tradicionalmente, de forma quase centrífuga, imprimiam profunda instabilidade política à história do país. Nessa história, como sugerem os autores, a Política é um elemento analítico chave para o desdobramento das políticas sanitárias no Brasil.
Por fim, vale destacar ainda o rico repertório de fontes primárias utilizadas em todo o texto, muitas das quais fruto das visitas dos autores aos acervos do Rockefeller Archive Center, em Nova York. Documentos oficiais, relatórios, cartas e outros documentos compõem um acervo riquíssimo do arquivo da instituição.2 2 O Instituto de Medicina Social da UERJ possui arquivo, organizado pelos autores, com documentação proveniente da Fundação Rockefeller. Há ainda quatro publicações organizadas por Faria e Castro Santos, que, à maneira de um catálogo, reproduzem documentos originais, traduzidos e comentados pelos autores. Ver: Série Estudos de Saúde Coletiva, n. 114, 143, 207, 208. Acervo, cuja exploração e tratamento analítico naturalmente não se esgotam com o livro de Castro Santos e Faria, mas que constituem uma fonte pioneiramente utilizada no país. A Reforma Sanitária no Brasil: ecos da Primeira República representa um incentivo especial para aqueles que desejem desenvolver trabalhos de cunho histórico-comparativo sobre a saúde pública não só no Brasil, mas no continente latino-americano, sobre o qual estudos nacionais bastante importantes (como os do historiador Marcos Cueto3 3 Veja-se especialmente, do citado autor, El regreso de las epidemias: salud y sociedad en el Perú del siglo XX (Lima, Instituto de Estudios Peruanos, 1997). ) demonstram a possibilidade de estudos comparativos de fôlego internacional. O "excurso" da presente obra é uma proposta e um convite nessa direção.
Por fim, deve sublinhar-se que o trabalho dos autores está livre da camisa de força dos determinismos de toda sorte, cujo resultado mais grave para o tema tem sido uma percepção maquiavélica da atuação da agência norte-americana no Brasil. Tal percepção esclarece menos sobre a realidade histórica concreta e mais sobre a ideologia de quem a escreve. Com merecido louvor A Reforma Sanitária no Brasil inaugura uma nova fase nesta historiografia em efetiva construção, ao encarar a ideologia mais como objeto e não como ferramenta teórico-metodológica.
Referências bibliográficas
Cueva, Agostín 1983 O desenvolvimento do capitalismo na América Latina.Tradução de Carlos A. Machado. São Paulo, Ed. Global.
Faria, Lina Rodrigues de 2003 Ciência, ensino e administração em saúde: a Fundação Rockefeller e a criação do Instituto de Higiene de São Paulo. Tese de doutoramento em saúde coletiva, Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Godbout, Jacques T. 1999 (Com a colaboração de A. Caillé) O espírito da dádiva. Tradução de Patrice Charles F. X. Wuillaume. Rio de Janeiro, Ed. FGV.
Paiva, Carlos Henrique Assunção 2004 A utopia burocrática: um estudo histórico-comparativo das políticas públicas desaúde, Rio de Janeiro e São Paulo (1930-1960). Tese de doutoramento em saúde coletiva, Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Paiva, Carlos Henrique Assunção 2001 A política contra a dádiva. Resenha do livro O espírito da dádiva, de J. T. Godboud, História, Ciência e Saúde Manguinhos. Rio de Janeiro, v. VII, n. 3, p. 753-8.
1 O historiador e sociólogo marxista equatoriano Agustín Cueva, tal como Castro Santos, opera com a perspectiva de que a histórica fragmentação econômica da América Latina está associada ao surgimento de uma elite igualmente fragmentada, incapaz de tecer acordos políticos nacionais ou supra-regionais. Ver especialmente capítulo 2 "A problemática configuração dos estados nacionais".
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Jun 2007 -
Data do Fascículo
Abr 2005