Resumo
O texto analisa a construção de uma linha científica pelo grupo dos geógrafos anarquistas ativos entre os séculos XIX e XX, cujos representantes mais célebres foram Elisée Reclus e Pëtr Kropotkin. Os membros dessa rede eram ao mesmo tempo intelectuais e militantes, e a originalidade da sua elaboração científica destaca-se em relação à ciência da época. Interessados também em disciplinas como a sociologia, a antropologia e a pedagogia, utilizavam as ferramentas científicas das maiores correntes intelectuais do momento, como o positivismo, e sobretudo o evolucionismo, tentando levá-las a conclusões diferentes, que não justificassem as desigualdades sociais, mas, ao contrário, fossem úteis para a construção de uma sociedade mais justa.
ciência; evolucionismo; positivismo; geógrafos anarquistas; cronologia
Abstract
This text examines the construction of a line of scientific thinking by a group of anarchist geographers who were active in the nineteenth and twentieth centuries, most famously represented by Elisée Reclus and Pëtr Kropotkin. The members of this network were simultaneously intellectuals and activists, and the originality of their scientific production stands out in comparison with the science of that time. They were also interested in disciplines such as sociology, anthropology, and pedagogy, and used the scientific tools from the leading intellectual trains of thought of that era (such as positivism and especially evolutionism) in an attempt to reach different conclusions that did not justify social inequalities, but rather could be used to construct a fairer society.
science and anarchism; evolutionism; positivism; anarchist geographers; chronology
O fato que Lubbock declarou que crê na harmonia entre religião e ciência não impede que sua célebre obra seja uma das fontes principais de onde os positivistas de todo o mundo derivam a convicção de que as religiões morrem à luz da ciência.
(Ursus, 15 jan. 1882, s.p.)1
No debate científico de hoje termos como “positivismo” ou “evolucionismo” não gozam de grande popularidade, porque são geralmente associados ao pensamento dominante da Europa burguesa da Idade dos Impérios e às justificações científicas do racismo, do colonialismo e das desigualdades sociais.
No entanto, existiram na Europa, entre os séculos XIX e XX, redes de intelectuais socialistas e anarquistas que aplicaram criticamente os instrumentos dessas tendências científicas para finalidades políticas e sociais completamente diversas: por um lado, eles se mantinham no padrão do debate da sua época; por outro lado, sua originalidade foi reverter alguns conceitos da ciência para chegar a conclusões diferentes, construindo saberes não dogmáticos e acessíveis às classes populares, cujo fim, contrariamente a outras interpretações, era mostrar a possibilidade de uma organização social diferente.
Elisée Reclus foi sem dúvida um dos cientistas mais célebres de sua época, inserindo-se na tradição geográfica de Alexander von Humboldt e de Carl Ritter (do qual foi aluno), inspiradora de seus trabalhos geográficos monumentais, como a Nouvelle géographie universelle (1876-1894) e L’Homme et la terre (1905-1908), que lidam com a relação diacrônica e dinâmica entre humanidade e natureza, antecipando tendências “geo-históricas”. Além disso, Reclus, exilado da Comuna de Paris e protagonista da fundação do movimento anarquista no seio da Primeira Internacional, foi fortemente influenciado pelo federalismo libertário de Pierre-Joseph Proudhon e de Mikhail Bakunin, que contribuiu também para sua geografia.
Sua recepção no Brasil teve grande importância, pois o capítulo da Nova geografia universal (Reclus, 1876-1894) sobre o país foi traduzido para português e publicado pelos barões do Rio Branco e de Ramiz Galvão como uma monografia sobre o Brasil (Reclus, 1900). Reclus foi também um símbolo das geografias críticas dos anos 1970 e 1980 nas áreas francófonas e anglófonas, e no Brasil também, onde lhe consagraram um livro organizado por Manuel Correia de Andrade (1985) e vários outros estudos, além do colóquio internacional “Elisée Reclus e a geografia do Novo Mundo” organizado em 2011 pelo Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo.
Com respeito a Kropotkin, apenas recentemente se começou a investigar de maneira sistemática suas contribuições à geografia, inclusive sua longa colaboração com Reclus (Ferretti, 2011a; Skoda, 2012), pois sempre foi mais conhecido como propagandista e teórico do anarcocomunismo do que como cientista. Kropotkin, exilado do império tzarista e refugiado na Grã-Bretanha e na Suíça – onde encontrou Reclus e James Guillaume, e tornou-se anarquista – era muito conhecido na sua época por seus estudos não somente de geografia, mas de história, biologia, sociologia. Se, de acordo com Michael Confino, ele não foi muito estudado como cientista (Confino, Rubinstein, 1992, p.243), é verdade, como defende Álvaro Girón Sierra (2010, p.122), que na sua época tinha uma influência que transcendia amplamente os limites do movimento libertário.
Uma de suas maiores contribuições no âmbito científico foi a sistematização da teoria da ajuda mútua, concebida como interpretação solidarista do evolucionismo em contraposição ao darwinismo social de Thomas Huxley. Como vários autores observaram, isso passava também pela utilização de um autor como Lamarck, que insistia não apenas sobre as características hereditárias, mas também sobre as características adquiridas (Girón Sierra, 2003), o que permitia a Kropotkin destacar as influências do meio na evolução humana, mesmo em contraposição às teorias racistas das diferenças entre os povos. Se, como observa David Livingstone (2006), muitas de suas ideias se inserem na “história nacional” da recepção do darwinismo na Rússia, Álvaro Girón Sierra (2010, p.137) também destaca o caráter conscientemente político de sua construção, afirmando que Kropotkin utiliza Lamarck, como veremos, “para afastar Malthus do coração do darwinismo”.
Mas como se constroem esses saberes? Qual é o papel deles no debate científico dessa época? Vamos nos ocupar disso abordando um caso específico, nomeadamente a rede dos geógrafos anarquistas (Ferretti, 2017).
O socialismo como ciência da evolução humana
Essa rede, que é igualmente o centro da construção da concepção política do comunismo anarquista no âmbito da Fédération jurassienne (1872-1882), começa a formar-se nas décadas de 1860 e 1870, quando os irmãos Elie (1827-1904) e Elisée Reclus (1830-1905) conhecem os companheiros de militância que serão também seus colegas (ou os irmãos, como eles gostavam de se chamar reciprocamente) no trabalho científico, como o cartógrafo suíço Charles Perron (1837-1909), os exilados russos Léon Metchnikoff (1838-1888) e Pëtr Kropotkin (1842-1921), o ucraniano Mikhail Dragomanov (1841-1895), o geógrafo húngaro Atila de Gerando (1848-1898). Eles trabalharam juntos na redação da “Nova geografia universal” e nas principais investidas reclusianas, como o projeto do Grande Globo para a Exposição Universal de Paris de 1900 e a fundação da Universidade Nova em Bruxelas, envolvendo outros intelectuais de diferentes origens linguísticas ou disciplinares, como Patrick Geddes (1854-1932) ou Paul Reclus (1858-1940).
O fato de se tratar de um grupo de intelectuais é já um elemento de originalidade no interior do movimento anarquista, posto que esse movimento se caracteriza mais que todos os outros pela composição social quase completamente proletária de seus quadros militantes, demonstrada por importantes publicações como o Dictionnaire biographique du mouvement ouvrier français (Maîtron, 1964-1985) e o Dizionario biografico degli anarchici italiani (Antonioli et al., 2003-2004).
Naquela época era difícil encontrar cientistas de profissão num movimento cujos membros, em sua maioria proletários autodidatas, tinham orgulho da sua aplicação do princípio da integração entre os trabalhos manual e intelectual. Tais cientistas nunca foram “intelectuais orgânicos” no sentido gramsciano e nunca quiseram ser uma “vanguarda”, porque a característica do anarquismo é exatamente recusar a direção política da revolução. A tática anarquista implica a tomada de consciência dos que estão nas camadas sociais inferiores, o que levaria à revolução social: nesse sentido, a função da organização revolucionária não é a de guiar as massas, mas de acompanhá-las sem reproduzir novas classes burguesas, nem ditaduras proletárias (Malatesta, 1989; Tragtenberg, 2009).
O principal exemplo histórico dessa tendência é a revolução espanhola de 1936-1939, na qual ideias levantadas pelos geógrafos anarquistas, como a descentralização produtiva, tiveram um papel direto na construção das coletividades agrícolas e operárias, conforme demonstrado em teses recentes (Rodrigues, 2011).
O caráter proletário do movimento foi destacado também por um intelectual acadêmico, que no entanto demonstrou na sua juventude algum interesse pelo socialismo libertário, Lucien Febvre (Ereño Altuna, 1994). Febvre ressaltou a composição social diferente, eminentemente proletária, dos quadros anarquistas militantes e de sindicalistas revolucionários em comparação com os dirigentes de extração burguesa dos partidos socialistas e comunistas, admirando particularmente o exemplo do “filho do povo” Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Nesse sentido, destaca como exemplar o comportamento de um dos representantes mais célebres do anarquismo “clássico”, o militante italiano Errico Malatesta (1853-1922), que durante a campanha de 1877 dos Internacionalistas, para estimular a insurreição dos camponeses do Matese, região rural do sul da Itália, explicou os princípios da revolução no dialeto local concluindo com a exortação: “Se vocês quiseram, a façam, se não quiserem, se vão” (se vulite, facite, sennò ve futtite) (Berti, 2003, p.72). Uma interpretação bem rigorosa do princípio comunista da Primeira Internacional, pretendendo que a revolução será a obra dos trabalhadores mesmos ou não será.
No caso dos geógrafos anarquistas, uma das passagens fundamentais pelas quais transitam seus saberes e ideias é a educação popular, à qual o movimento atribui grande importância exatamente no sentido de tornar iguais os militantes, sem que os intelectuais constituíssem um grupo dirigente. Por isso, os intelectuais anarquistas tentaram desenvolver um discurso que pretendesse o desenvolvimento das liberdades e lutas sociais: nem vanguardistas, nem orgânicos; são organizadores culturais no sentido da difusão do conhecimento por meio de três formas de vulgarização: a construção de escolas modernas, a imprensa popular e a organização de uma educação popular e laica (Rosa, 2013).
Se do ponto de vista político a principal diferença com o marxismo é a recusa da tomada do poder, do “período transitório” e da ditadura do proletariado, do ponto de vista científico o importante não é construir uma ciência de partido, mas um meio de experimentação intelectual livre, considerado em si mesmo um projeto de libertação. Não se trata de guiar as massas populares, mas de favorecer a tomada de consciência de cada um dos membros dessas massas, proporcionando os instrumentos para o desenvolvimento intelectual individual e coletivo.
Essa rede ocupa uma posição original na história da cultura, porque esses geógrafos não estão quase nunca inseridos no mundo acadêmico: no entanto, eles participam em posição central em importantes agências de produção do saber dessa época, como sociedades científicas e casas editoriais. Estão portanto no interior do campo científico, porque, como explica Pierre Bourdieu (1975, p.92-93), “o campo é um lugar de lutas ... espaço objetivo de um jogo em que ficam implicadas postulações científicas, que não precisa distinguir entre determinações propriamente científicas e definições sociais de práticas sobredeterminadas”.
As lutas que se travam nesse lugar, segundo Don Mitchell (2000, p.3), são denominadas culture wars: as lutas sociais passam também pela ocupação dos espaços onde se constroem as representações sociais, nomeadamente as dos produtores de cultura: “A cultura é a política sob um outro nome”.
Explicar as lutas culturais, segundo Mitchell (2000, p.14), significa então compreender a gênese do mundo que habitamos, que é o produto histórico de batalhas que as minorias e as classes subalternas podem entabular também no nível da cultura, porque “as guerras culturais são guerras como todas as outras”. A rede dos geógrafos anarquistas travou essa batalha construindo teorias sobre a solidariedade e o federalismo, difundindo os ideais da tolerância e um saber não dogmático, organizando a propaganda de ideais avançados e mobilizando esses conceitos no âmbito da instrução e da educação popular.
É preciso destacar que nessa época todo o mundo socialista era muito sensível no que dizia respeito à ciência. Se muitos intelectuais socialistas aderem à dita “ciência positiva”, existem outros, ditos “darwinistas sociais”, que acreditam nas mesmas bases científicas porém se colocam em posição oposta, o que significava que a ciência moderna, demostrando as bases biológicas das desigualdades sociais, poderia acabar com o socialismo.
Entre os numerosos exemplos possíveis dessa guerra cultural, partimos dos artigos escritos por Ursus (pseudônimo do jovem Camillo Prampolini) num jornal socialista publicado na década de 1880 na Reggio Emilia, Lo Scamiciato (O Descamisado). Se Prampolini é um dos representantes principais do socialismo reformista italiano, essa publicação tenta reunir todas as tendências do socialismo, desde os republicanos até os anarquistas. A série de artigos sobre ciência e socialismo pretende demonstrar que, se os cientistas que se declaram socialistas não são muito numerosos, a “luz da ciência moderna”, desmentindo as superstições, levará a humanidade até o socialismo. Consoante Ursus (15 jan. 1882, p.3): “enquanto nos outros partidos nem mesmo se fala em ciência, os socialistas, ao contrário, se consagram agora ao positivismo, com um entusiasmo tal que consideram o mesmo Spencer entre seus autores”.
Os socialistas, então, não se opõem ao darwinismo: ao contrário, as ideias darwinistas lhes permitem conceber uma evolução social progressiva da humanidade. Se a referência do jovem Prampolini ao positivismo e a Spencer pode parecer ingênua a um olhar atual, ela é muito indicativa desse clima cultural. Do ponto de vista da ciência, Lo Scamiciato critica de um lado os cientistas antissocialistas como Ernst Haeckel e do outro lado cita como exemplos da sua estratégia científica os anarquistas, de Proudhon e Bakunin até “Elisée Reclus, o maior dos geógrafos vivos” (G.N., 1883b, p.2).
Nesses anos, são os anarquistas que trabalham mais sobre afirmações como aquela dos Scamiciati: “nós somos revolucionários porque nós somos evolucionistas: a revolução só é uma fase da evolução” (G.N., 1883a, p.2). Foi o geógrafo anarquista Elisée Reclus (1880), numa palestra feita em 1880 em Genebra, quem lançou essa ideia, que vai desenvolver no seu mais célebre trabalho de propagada libertária, Evolução, revolução e o ideal anarquista (Reclus, 2002). Reclus (1898, p.2-3) defende a coerência recíproca das ideias de revolução e de evolução, estabelecendo uma clara ligação entre a ciência evolucionista e a propaganda socialista, e definindo a evolução da seguinte maneira:
Em comparação com esse fato primordial da evolução e da vida universal, que são todos os pequenos acontecimentos que chamamos evoluções astronômicas, geológicas ou políticas? Nada mais são que vibrações imperceptíveis, aparências. As revoluções se sucedem por miríades na evolução universal; mas mesmo sendo mínimas, elas são sempre parte desse movimento infinito. Por isso, a ciência não vê oposição nenhuma entre essas duas palavras, evolução e revolução, que se semelham muito, mas na linguagem comum são utilizadas de maneira completamente diferente do seu significado original. [Elas se diferenciam] só pela amplitude de seu movimento.
Como observa Regina Horta Duarte (2006, p.22), de acordo com Reclus, “no grande salto a ser feito, na explosão vulcânica da ação de novos homens, completar-se-ia o movimento de uma longa evolução, configurando uma revolução e a vitória dos ideais anarquistas de uma nova vida e da criação de uma sociedade diversa, na expectativa de grandes dias, acalentada por grandes esperanças”.
Na década seguinte, os trabalhos de Kropotkin são citados por outro socialista italiano, Napoleone Colajanni, que trabalha com a questão da aplicação do socialismo às diferentes tendências científicas da época. Ele faz também uma distinção entre biologia e sociologia: “Encontramos entre os homens a luta para a existência que Darwin encontra entre as plantas e os animais? Os discípulos do grande naturalista inglês, falsificando ou exagerando o seu pensamento, não hesitaram em transportar diretamente essa lei da biologia à sociologia” (Colajanni, 1898, p.31). Isso não implica, para Colajanni, a recusa do darwinismo. Ao contrário: “Darwin não é o responsável por essas enormidades, verdadeiras aberrações morais e intelectuais. A sociologia não tem que ocupar-se dos animais, ela tem que limitar-se ao estudo do homem” (p.33). Os âmbitos da sociologia e da biologia, segundo Colajanni, têm pontos de contato: o primeiro lhe parece ser uma consequência evolutiva do segundo, porque a luta pela existência é atenuada por uma atitude já descrita pelos cientistas socialistas: o altruísmo.
É nas obras de dois anarquistas russos que Colajanni encontra as indicações mais atualizadas sobre essa temática. No começo dos anos 1890 saem, na revista The Nineteenth Century, os primeiros artigos nos quais o “príncipe anarquista” Kropotkin expõe sua teoria da ajuda mútua.
É com razão que Kropotkin, segundo muitos dados biológicos e segundo a autoridade do darwinista Kessler, acha que os seres mais aptos para sobreviver e triunfar são os que se ajudam mutuamente; eles atingem o mais alto nível de inteligência e desenvolvimento ... A cooperação e a solidariedade constituem a verdadeira característica da vida social humana segundo Metchnikoff, que foi verdadeiramente genial na sua demonstração do fato de que as condições físicas contribuíram para causar os primeiros embriões da cooperação e da solidariedade (Colajanni, 1898, p.45).
Metchnikoff foi também um precursor da teoria da ajuda mútua como versão solidarista do darwinismo, nascida na atuação comum da rede dos geógrafos anarquistas trabalhando na casa de Reclus em Clarens nos anos 1880 (Ferretti, 2014). Essa rede elabora também uma crítica das teorias malthusianas (Ferretti, 2011b), partilhada por Colajanni (1898, p.95-96), que destaca a contradição entre a teoria socialista e a ideia do desequilíbrio entre recursos alimentares e crescimento demográfico: “São os socialistas que avançam a objeção mais séria contra a teoria maltusiana ... essa teoria é claramente falsa, porque muitos são excluídos da festa da vida, mesmo se existem vagas disponíveis”.
É Kropotkin que dá a definição mais explícita dessa luta cultural, numa série de artigos depois coletados no volume A ciência moderna e a anarquia (1924). O objetivo do autor é demonstrar que, já que no curso do século XIX a ciência tinha vencido os dogmas religiosos no âmbito das ciências naturais, a anarquia estava destinada a fazer o mesmo nas ciências sociais. “O desenvolvimento da ideia anarquista andou junto com os progressos das ciências naturais. Tentamos explicar como e por que a filosofia da anarquia ocupa um lugar de destaque nas tentativas recentes de elaborar a filosofia sintética, nomeadamente a compreensão do universo na sua complexidade” (Kropotkin, 1924, p.8).
A anarquia é considerada, portanto, uma ciência, com ambiciosas finalidades heurísticas: o método dela está na verificação contínua dos resultados e na aplicabilidade que envolve ao mesmo tempo o princípio da indução e o da dedução. Ela se distingue da filosofia metafísica por seu materialismo.
De acordo com Kropotkin, foi entre os séculos XVII e XVIII que as ciências naturais começaram a sugerir aos cientistas a possibilidade de explicar o mundo por leis mecânicas sem ter que postular uma intervenção divina. O naturalismo torna-se um estudo potencialmente antirreligioso, que se ocupa primeiro da materialidade terrestre: é assim que se explicam o interesse pelas ciências naturais e o “amor da natureza” que ainda no começo do século XX exprimem geógrafos como Reclus. Segundo Kropotkin (1924, p.28), o paralelismo entre a evolução da ciência e o desenvolvimento do pensamento revolucionário do século XIX é claro: “Agora que podemos fazer a história intelectual dessa época, é evidente que foi a propaganda das ideias republicanas e socialistas, entre 1830 e 1848 e nomeadamente na revolução de 1848, que ajudou a ciência a liberar-se dos impedimentos que a sufocavam”.
Segundo o “príncipe anarquista”, nessas décadas puseram-se as bases do “despertar científico” do período subsequente, quando os intelectuais encontraram, graças à nova situação social, a coragem para afirmar conceitos como o princípio da evolução, que não teriam ousado afirmar no século precedente, quando Buffon foi ameaçado por muito menos. “Mas desde 1848, Darwin e Wallace ousaram afirmar a mesma heresia ... todos sabem quantas maldições receberam Darwin e o seu inteligente e corajoso aluno Huxley, que reforçou as conclusões do darwinismo que espantavam os padres de todas as religiões. A luta foi terrível” (Kropotkin, 1924, p.40).
Se a ciência é uma luta, então a anarquia é a sua frente mais adiantada; aqui a originalidade dos geógrafos anarquistas está no fato de que a aplicação à sociedade dos princípios da ajuda mútua não implica uma ruptura entre biologia e sociologia, mas, ao contrário, a conexão entre elas: “A anarquia é uma concepção do Universo baseada na interpretação dos fenômenos que abraçam toda a natureza, incluindo a vida das sociedades. Seu método é o mesmo das ciências naturais, e segundo esse método cada conclusão científica tem que ser verificada” (Kropotkin, 1924, p.56).
Mas isso implica a queda dos dogmas, particularmente os que afirmam a perversidade natural do gênero humano, inspirada pela ideia hobbesiana de estado de natureza, a qual muitos cientistas positivistas aderiam na época de Kropotkin (1924, p.50): “Toda a filosofia do século XIX continuou a considerar os povos primitivos rebanhos de feras selvagens, vivendo em pequenas famílias isoladas e disputando a comida e as mulheres”.
Segundo Kropotkin, esse preconceito é uma herança da ideia de pecado original difundida pelas diferentes religiões, enquanto o estudo das sociedades primitivas, que envolve também Metchnikoff e Elie Reclus, demonstra que, apesar do que diz a educação religiosa e jurídica, o ser humano deixado sem regras não é uma fera pronta para devorar os seus semelhantes. Ao contrário, ele procura desenvolver estratégias de adaptação ao meio que passam também pela cooperação.
Assim, os autores que desenvolveram ideias antissocialistas partindo dos conceitos da “ciência positiva” podiam ser considerados úteis à causa, como foi o caso de Comte e Spencer. O primeiro, de acordo com Kropotkin, teve o mérito de abrir o caminho à ideia de um método científico incluindo todos os âmbitos do saber além de toda teologia; ele se equivocava, segundo o “príncipe anarquista”, na sua tentativa de fundar uma nova religião baseada na humanidade, sem considerar a questão da evolução das sociedades humanas. Depois, Kropotkin (1924, p.46) recusa os aspectos antissocialistas e antissolidaristas do Spencer “darwinista social”, que afirma o princípio da barbárie primitiva: “As ideias do direito, bem localizáveis nessas idades da história humana, escapam completamente a Spencer, que só vê ferocidade, barbárie e crueldade”.
A obra de Spencer, no entanto, é entendida como a primeira tentativa de “fazer um sistema do universo, dos organismos, do homem, das sociedades humanas e de suas concepções morais que seja completamente agnóstico, não cristão” (Kropotkin, 1924, p.261). Retirar a religião dos seus fundamentos é então a primeira passagem estratégica na qual ciência, anarquia e socialismo convergiram. O individualismo de Spencer, apesar de ser claramente burguês, interessava Kropotkin pela sua afirmação da independência intelectual do indivíduo e da possibilidade de organizar formas de cooperação não disciplinadas pelo Estado. Kropotkin (1924, p.277) conclui: “Se tentamos construir uma filosofia sintética do universo, incluindo a vida das sociedades humanas, chegamos direto não somente à negação de um Deus governando o Universo ... mas também a eregir o outro ídolo que se chama Estado, a dominação do homem pelo homem. Chegamos a antecipar a anarquia. Nesse caso, Herbert Spencer tem contribuído sem dúvida a fazer anarquista a filosofia do novo século”.
Tal filosofia anarquista, com seu método inspirado nas ciências naturais, recusa o princípio da dialética, não somente aquela de Hegel, mas também a de Marx, considerando-a uma abstração metafísica mesmo quando se aplica ao materialismo.
Ao mesmo tempo, Kropotkin desenvolve uma polêmica antikantiana, opondo à metafísica de Kant as abordagens mais pragmáticas dos enciclopedistas, embora apreciando, do mestre de Königsberg, a “Estética transcendental”, e isso não ao acaso, já que ela estabelece as categorias a priori de tempo e espaço, consideradas as bases da geografia moderna.
O método científico vai conduzir a conclusões anarquistas: aqui, o otimismo kropotkiniano parece lhe fazer ver embriões de anarquia um pouco em toda parte. Mas o importante desse discurso, achamos, é que, se a anarquia é uma ciência, então precisa construir os lugares da elaboração desse saber, nomeadamente para educar as pessoas que vão utilizar seus instrumentos. O exemplo mais emblemático dessa tendência é a dedicação dos geógrafos anarquistas à construção da educação libertária nas escolas modernas e universidades populares (Codello, 2005): isso significa que o projeto de construir um campo científico independente dos âmbitos estabelecidos pelo poder é ele também condicionado socialmente, porque se compõe de militantes e se apoia nas estruturas do movimento operário nascente.
Antropologia evolucionista, geografia e temporalidades do novo saber
A maior obra científica produzida nessa época por um grupo de anarquistas é sem dúvida a Nova geografia universal de Élisée Reclus (1876-1894). Assinada somente por ele, ela se revelou obra coletiva dos geógrafos anarquistas então exilados na Suíça (Ferretti, 2014) e constitui uma soma enciclopédica do saber geográfico elaborado por essa rede.
Essa obra foi editada pela casa Hachette. A relação entre Reclus e esse grande editor burguês, de ideias políticas mais conservadoras, mesmo se liberais, foi objeto de recentes pesquisas feitas nos arquivos dessa editora, que salientam uma relação complexa e muito estreita entre o geógrafo e seu editor (Ferretti, 2010). Tais pesquisas, mesmo se reconhecem o papel de Hachette no estabelecimento da Terceira República francesa, já bem conhecido pelos historiadores (Mollier, 1988), desmentem o lugar-comum da censura que teria sido efetuada pelo editor, defendendo que foi escolha de Reclus não propor uma obra explicitamente “politizada”, porque ele considerava útil para sua causa participar de um programa de difusão de uma ciência racional e laica que atingisse as classes populares. É com as mesmas finalidades pedagógicas que se explica então, no mesmo âmbito da editora Hachette, a colaboração entre anarquistas como James Guillaume e liberais progressistas como Ferdinand Buisson para o célebre Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire (Dicionário de pedagogia e instrução primária) (Ferretti, 2013c).
Uma grande parte da Nova geografia universal é reservada à antropologia e à etnografia, já que se trata de estudar todos os povos do mundo, incluindo os grupos que a ciência racista e eurocêntrica dominante considerava “primitivos” e “selvagens”, e já que geografia e antropologia partilhavam, nesse momento, de muitas fontes e lugares de produção do saber (Robic, 2004). Sobre esses assuntos, um dos informantes principais é o irmão de Elisée, Elie Reclus, cujas publicações sobre os povos primitivos saem nos mesmos anos nas revistas parisienses Revue d’Anthropologie e Bulletin International des Sciences Biologiques, e nas monografias Les primitifs e Le primitif d’Australie.
A abordagem antropológica dos geógrafos anarquistas está sempre num quadro evolucionista, do qual precisa destacar as originalidades em relação ao resto da ciência da época. Pelo lado dos geógrafos, um autor importante como Friedrich Ratzel se dedica nos mesmos anos à etnografia, sempre de um ponto de vista evolucionista, com obras como a Völkerkunde (Ratzel, 1887-1888). Mas é sobretudo no mundo anglo-saxão frequentado por Elie, presidente em 1878 do Royal Anthropological Institute britânico (Elie Reclus, 1878), que os irmãos Reclus se inspiram. Trata-se do movimento que historiadores da antropologia como Ugo Fabietti (1980) e George Stocking (1987) definem como a antropologia evolucionista da idade vitoriana. A ciência mais “humana” de todas se desenvolve então por meio de contaminações provenientes das ciências naturais, como a biologia de Darwin e a geologia de Charles Lyell, mas também a arqueologia pré-histórica de John Lubbock. Durante todo o século XIX, essas ciências questionam “a veracidade não somente da tradição bíblica, mas também a cronologia da história do mundo estabelecida pela Igreja” (Fabietti, 1980).
As ciências determinam então a crise do criacionismo, e o cruzamento delas permite a nomeada “equação paleolítica” de John Lubbock. De um lado, a teoria “uniformista” de Lyell, afirmando uma transformação gradual da superfície terrestre oposta às teorias “catastrofistas”, permitia a datação das diferentes camadas de solos nos continentes descobertas pela arqueologia. Por outro lado, as descobertas pré-históricas e proto-históricas, atestando a existência de culturas materiais comparáveis em diferentes épocas e diferentes regiões do globo, permitiam teorizar um progresso contínuo envolvendo toda a humanidade em diferentes fases.
Portanto, era possível comparar as condições materiais dos ditos “primitivos” com as condições vividas pelos povos da Europa alguns milênios antes. Paleolítico, Neolítico e idades dos metais seriam então fases presentes na história de todos os povos em épocas diferentes. Os primitivos da época estariam simplesmente atrasados num processo que teria que levá-los ao nível material do inglês vitoriano: “Pela fundamental identidade de suas faculdades mentais, o homem reproduz, no mesmo nível de maturidade intelectual, formas comparáveis de adaptação material” (Fabietti, 1980, p.18). O evolucionismo darwiniano e seu caminho progressivo de adaptação das espécies às condições do meio se conciliam bastante bem com essa equação.
Consoante os geógrafos anarquistas, o aspecto mais interessante dessa tendência é que ela se opõe aos achados da Igreja e dos meios mais conservadores, que acreditavam que os povos primitivos teriam sido criados por Deus separadamente dos “civilizados”: existiriam então várias humanidades e seria inútil dizer qual seria a “superior”. Além disso, os cientistas conservadores que não se reconheciam nesse “poligenismo”, como Joseph de Maistre, propuseram o dito “degeneracionismo”, considerando o progresso como
uma quimera, um fantasma gerado pela depravação humana, um desafio contra a única autoridade e seus representantes legítimos: Deus, a Igreja e a Monarquia ... Já que o homem foi posto por Deus numa condição original superior, os selvagens deviam necessariamente encontrar-se numa condição degradada, representando, segundo De Maistre, a objetivação do pecado original (Fabietti, 1980, p.36-37).
Nesse terreno, os adversários mais célebres dos evolucionistas anglo-saxões foram o arcebispo de Dublin, Richard Whatley, e o duque de Argyll. Eles achavam que ninguém tinha provado a passagem de um povo “selvagem” até formas mais altas de evolução material, prova da sua “inferioridade inata”. Mas os antropólogos evolucionistas foram muito determinados na batalha contra o criacionismo e o obscurantismo, que foi também a disputa da fração mais avançada da burguesia contra a aristocracia e o clero. Já que os geógrafos anarquistas consideram o princípio da unidade humana como um ponto fundamental da teoria deles, a antropologia evolucionista torna-se um instrumento para integrar o Outro na comunidade humana. “O primitivo, o Outro, encontra o seu lugar na história do gênero humano graças à ideologia progressista e otimista do Iluminismo: depois do seu declínio, o primitivo tornou-se excluído outra vez da história” (Fabietti, 1980, p.36).
Os contatos entre os irmãos Reclus e os antropólogos vitorianos são documentados pelo boletim do Anthropological Institute e pelas correspondências deles, como uma carta de 1875 onde Elie Reclus pede a John Lubbock que apoie seu ingresso no âmbito da antropologia: “Você é o juiz cuja aprovação seria especialmente preciosa para mim, e eu ficaria feliz de entrar nesse âmbito científico sob a sua proteção” (Elie Reclus, 1 mar. 1875).
Na França, é Pierre Paul Broca (1824-1880) que funda em 1859 a Société d’Anthropologie de Paris (SAP), onde se desenvolvia o debate darwiniano (Stocking, 1984), apesar de muitas diferenças com os debates anglo-saxões, que não podemos abordar aqui. O que nos interessa é que Broca é da mesma cidade e da mesma geração dos irmãos Reclus, tendo nascido em Sainte-Foy-la-Grande. As respectivas famílias têm ligações e pertencem aos mesmos âmbitos protestantes: um Pierre Broca é citado como testemunha na certidão de nascimento de Elisée (Brun, 20 set. 2014), e o mesmo Pierre Paul, durante o verão de 1860, participa com Elie e Elisée de uma viagem pelas montanhas do Pelvoux, feita para a redação dos guias Joanne (Nettlau, 1928, p.162). Broca, republicano opositor do Segundo Império como os Reclus, interessado pelos estudos pré-históricos, era conhecido por seus “desenhos de crânios” (Reclus, 1 mar. 1872) que Élisée planeja utilizar no seu projeto editorial da Nova geografia universal. Ele é também o fundador da Revue d’Anthropologie, publicada em Paris entre 1872 e 1888, na qual, apesar das tendências poligenistas e da sua preferência pela antropologia física, Elie Reclus tem um cargo de colaborador.
A originalidade dos geógrafos anarquistas em relação aos antropólogos vitorianos se deve, sem dúvida, ao fato de irem muito mais longe na negação da suposta inferioridade dos primitivos, que estava ainda presente na dita equação paleolítica (1885, p.XIII-XIV). Os irmãos Reclus reconhecem nesses povos a presença do sujeito do conhecimento científico, “o homem moral” (Elie Reclus, 1885, p.V). Mesmo guardando uma distância crítica em relação à ideia edênica do estado de natureza exposta por Rousseau, eles criticam radicalmente as matrizes etnográficas dos colonizadores, e principalmente suas fontes. Segundo Elie Reclus (1985, p.XIII-XIV), “não hesitamos em afirmar que nas tribos supostamente selvagens o indivíduo médio não é inferior, nem moralmente nem intelectualmente, ao indivíduo médio de nossos Estados supostamente civilizados ... esses povos foram descritos somente pelos seus invasores, e exatamente os que menos podiam compreendê-los”.
Com esse propósito, é preciso citar o debate que ocorreu, principalmente no mundo francófono, sobre a relação entre Reclus e o colonialismo. No período da “redescoberta” reclusiana, alguns autores, como Béatrice Giblin (1981) e depois Axel Baudoin (2003), mencionaram certa ambiguidade de Reclus perante a ideologia colonialista de sua época, por ter tratado com alguma simpatia a instalação de trabalhadores europeus na América Latina e na África do Norte. Pesquisas mais recentes consideram essa afirmação um anacronismo, porque esses autores consideraram só uma pequena parte da obra de Reclus, sem se preocupar com uma contextualização (Deprest, 2012), e porque naquela época era normal que os movimentos socialistas e anarquistas aprovassem o estabelecimento de colônias de trabalhadores em terras afastadas, para as quais levavam também as ideias socialistas, sem se ligar necessariamente às investidas coloniais dos Estados (Ferretti, 2013b). Além disso, fontes recentemente descobertas em arquivos franceses, particularmente as correspondências de Reclus com o cartógrafo francês Paul Pelet, demonstram a precoce e radical crítica anticolonial do geógrafo anarquista, sem dúvida um dos primeiros intelectuais franceses do período colonial a escrever claramente que os argelinos tinham o direito de “jogar fora” os franceses (Ferretti, Pelletier, 2013).
Parece-nos indispensável precisar o conceito de “raça”: nos últimos anos do século XX, a comunidade científica tem justamente afastado essa palavra do seu vocabulário, mas na época de Reclus ainda não existiam definições “politicamente corretas”, e vários estudos têm demonstrado que a utilização dessa palavra não implica a adesão a teorias racistas (La Vergata, 2009, p.138), ainda mais se falamos de autores como os Reclus, muito conhecidos pelas campanhas antirracistas e antiescravagistas. É exatamente nesse âmbito que se encontra uma crítica científica das teorias racistas da época, quando, por exemplo, Élisée Reclus auspicia repetidamente a miscigenação,2 a mescla universal de todos os povos, escandalizando os tenentes das doutrinas racistas, sempre espantados com a mestiçagem (Coquery-Vidrovitch, 2003). Léon Metchnikoff (1889, p.98) questiona mesmo o conceito de “raça”, achando que “nenhum antropólogo ainda chegou a definir uma raça humana”, e Reclus (1888, p.554), falando da África na Nova geografia universal, pede que os cientistas parem de falar de “raças supostamente inferiores”.
Entre os colaboradores dessa geografia enciclopédica encontramos outro antropólogo apaixonado pela pré-história, Gabriel De Mortillet (1821-1898), que se corresponde com Reclus sobre a França pré-histórica (Reclus, 1877, p.931) e participa na revisão da obra, como demonstram as correspondências entre Reclus e o responsável editorial pelo seu trabalho na Maison Hachette, Charles Schiffer (Reclus, 22 abr. 1878).
De Mortillet tinha participado da revolução de 1848, defendendo posições socialistas. Segundo ele, se a geologia e a arqueologia tinham demonstrado a falsidade das Escrituras, então era preciso levar até as últimas consequências suas descobertas e abolir a idade cristã. No seu curso de 1892-1893 na École d’Anthropologie de Paris e num debate na Société d’Anthropologie, ele expõe os resultados de uma pesquisa que conduziu junto com Élisée Reclus, membro, como Elie, da mesma associação (SAP, 1889, p.200).
De acordo com os dois cientistas, os estudos pré-históricos utilizam principalmente uma cronologia relativa, enquanto desde a época da história escrita cada povo estabeleceu uma cronologia absoluta segundo os acontecimentos considerados mais importantes na sua história. Por exemplo, os romanos calculavam o tempo partindo da fundação da sua cidade, os muçulmanos partindo da Hégira, os cristãos partindo do nascimento de Jesus, definido como “ainda mais legendário que a fundação de Roma” (De Mortillet, 1893, p.748).
Conscientes do caráter sempre convencional e arbitrário dessas escolhas, De Mortillet e Reclus destacam que, em todo caso, o fato de adotar uma cronologia com um período ascendente e um período descendente (por exemplo antes e depois Cristo) implica vários inconvenientes, até considerá-la um método anticientífico. Eles consideram irracional que diante do nascimento de Jesus o começo de um século seja mais recente que o fim dele. “Atingidos por estes reais inconvenientes, Reclus e eu nos perguntamos se não seria possível obter uma cronologia mais simples e mais natural, que apresente uma única série descendente. Precisaria ter como ponto de partida um momento bem estabelecido anterior a todas datas históricas e a partir do qual se possa fixar a data segura por um cálculo” (De Mortillet, 1893, p.749-750).
Se Reclus é favorável à adoção de um fenômeno astronômico conhecido, De Mortillet preferiria adotar uma data convencional que não implicasse demasiadas dificuldades na conversão do sistema vigente ao novo sistema. Por exemplo, calculando que a primeira data histórica que se conheça seja por volta de 5.000 a.C., seria bastante adotar como ponto de partida o atual 10.000 a.C., para deixar espaço a novas eventuais descobertas pré-históricas sem complicar demasiado os cálculos. “Assim, em vez de estar no ano 1893, estaríamos no ano 11893. Teríamos desta maneira uma cronologia regular, completamente descendente ... Acho que isso seria um importante progresso!” (De Mortillet, 1893, p.751).
Estabelecer o tempo, exatamente como nomear e representar os lugares, significa exercer um poder: os autores conhecem bem o exemplo do calendário republicano de 1792 e o seu valor político revolucionário e emancipador na França da Revolução.
Reclus insiste sobre o mesmo ponto também depois do falecimento de De Mortillet, mas com um novo rumo: ele não se dirige mais a um círculo de intelectuais como a Société d’Anthropologie, mas aos leitores da revista anarquista Temps Nouveaux, confirmando sua preferência por públicos que não sejam exclusivamente de cientistas: “Em 1892 Gabriel de Mortillet, o excelente geólogo anticristão, propôs uma reforma cronológica um pouco diferente; no entanto, ele se dirigia a uma platéia de sábios, que se limitaram a sorrir de seu zelo iconoclasta” (Reclus, 1905, p.2).
Reclus (1905, p.1) insiste na sua ideia de utilizar um fenômeno astronômico, confirmando que o principal objetivo da sua nova cronologia universal é a abolição da era cristã: “Entre as eras que foram sucessivamente adotadas pelos povos, não existe uma que seja ao mesmo tempo assim ridícula e assim contrária a um estudo sério da história”. O ponto de partida proposto é o ano do primeiro eclipse conhecido: o 1905 tornaria-se 13447. Essa escolha lembra o princípio geográfico reclusiano que pretende basear-se sempre que possível sobre fatos naturais para produzir um saber livre de condicionamentos estatais ou religiosos, construindo, nesse caso, “um quadro científico depurado de todas as formas desatualizadas de religiões antigas” (Reclus, 1905, p.2), incluindo evidentemente o cristianismo.
Considerações finais
Podemos concluir, como defendem Planche e Delphy (2006), que o encaminhamento dos cientistas anarquistas se opõe ao dos aos darwinistas sociais, mas permanece ao mesmo tempo no interior do quadro científico darwiniano. Ademais, eles consideram o darwinismo um âmbito progressista para fazer avançar uma ciência laica, igualitária e racional. A diferença de muitos darwinistas, no entanto, não consideram os povos ditos primitivos pertencentes a um estado inferior da civilização, mas representantes de diferentes estratégias de adaptação ao meio (Ferretti, 2013a). Diferente de muitos positivistas, não assumem uma visão linear da história, porque sua ideia de evolução, trabalhando com a teoria dos cursos e recursos históricos de Giambattista Vico, não se representa numa linha, mas numa espécie de “espiral” de “forma muito pouco geométrica, já que cada acontecimento chega a modificar sua curva” (Reclus, 1905-1908, p.346).
Como recentes teses e dissertações brasileiras confirmam, essas ideias afetam várias ciências da época, desde a geografia física (Skoda, 2012) até a pedagogia (Rosa, 2013), e circulam amplamente nos circuitos científicos internacionais.
Podemos também afirmar que a proposta de reforma cronológica pretendia fazer com o tempo a mesma operação cultural que a geografia reclusiana pretendia fazer com o espaço: retirar a sua pertinência dos saberes dogmáticos, assim como o evolucionismo solidarista elaborado sobre bases científicas pelos geógrafos anarquistas pretendia combater em uma guerra cultural as ciências justificadoras das injustiças sociais e da exploração.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Maio 2018 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2018
Histórico
-
Recebido
21 Jun 2017 -
Aceito
01 Ago 2017