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A construção histórica do conceito de enzima e sua abordagem em livros didáticos de biologia

Historical construction of the concept of the enzyme and approaches in biology textbooks

Resumo

O uso de história e filosofia da ciência no ensino-aprendizagem é comumente negligenciado, linear e/ou descontextualizado nos livros didáticos. Isso aconteceria com a história do conceito de enzimas? Este trabalho busca investigar essa questão. Para a fundamentação teórica, foi realizada breve revisão bibliográfica, investigando-se como o conceito de enzimas é apresentado em nove livros didáticos, seguindo três categorias de análise. Encontrou-se, de forma geral, falta de interconexão nos assuntos de bioquímica, sendo as enzimas usualmente apresentadas apenas pelo modelo “chave-fechadura”, que hoje não é representativo da complexidade do fenômeno. Além disso, foram observados limites conceituais decorrentes da ausência ou deficiência na contextualização histórica presente no material didático.

bioquímica; ensino de biologia; enzimas; livro didático; história e filosofia da ciência

Abstract

The use of the history and philosophy of science in teaching and learning is commonly neglected, linear, and/or out of context in textbooks. This article investigates whether this also occurs with the concept of enzymes. A brief review of the literature establishes the theoretical foundation to investigate how the concept of enzymes is presented in nine textbooks, following three different lines of analysis. A general lack of interconnection was seen in biochemistry topics, with enzymes usually only presented via the “lock-and-key” model, which does not best represent their complexity. Furthermore, conceptual limitations resulting from a lack of historical contextualization (partial or complete) were also observed.

biochemistry; biology teaching; enzymes; textbook; history and philosophy of science

A história da ciência é considerada fundamental no ensino de biologia ( Martins, 1998MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira. A história da ciência e o ensino da biologia. Ciência e Ensino , n.5, p.18-21, 1998. ), permitindo uma integração entre os conteúdos de forma interdisciplinar ( Cicillini, 1992CICILLINI, Graça Aparecida. A história da ciência e o ensino de biologia. Ensino em Re-Vista , v.1, n.1, p.7-17, 1992. ). Essa preocupação já era percebida nos anos 1960, uma vez que o livro Biological Sciences Curriculum Study (BSCS, 1967), de forma seminal, ressaltava a contextualização histórica dos conteúdos no ensino de ciências nos EUA (Carneiro, Gastal, 2005). No entanto, é a partir da década de 1990 que se verifica de modo mais recorrente a aproximação entre a história da ciência e o ensino de ciências em vários países ( Matthews, 1995MATTHEWS, Michael. História, filosofia e ensino de ciências: a tendência atual de reaproximação. Caderno Catarinense de Ensino de Física , v.12, n.3, p.164-214, 1995. ). No Brasil, por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) apresentam diretrizes sobre o uso da história da ciência no ensino de ciências da natureza nos segmentos fundamental e médio, ressaltando a importância da contextualização histórica para revelar a ciência como um movimento não linear e, muitas vezes, contraditório (Brasil, 1999, p.19).

Para Matthews (1995)MATTHEWS, Michael. História, filosofia e ensino de ciências: a tendência atual de reaproximação. Caderno Catarinense de Ensino de Física , v.12, n.3, p.164-214, 1995. , o ensino da história da ciência é a forma de humanizar as ciências, aproximando-as dos interesses pessoais, éticos, culturais e políticos da comunidade. Além disso, a perspectiva histórica deve permitir ao estudante vislumbrar a construção permanente dos conceitos e metodologias, influenciando o entendimento da gênese do processo de produção do conhecimento como uma construção dinâmica, e não realizado por descobertas incontestáveis feita por cientistas idealizados ( Martins, 1998MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira. A história da ciência e o ensino da biologia. Ciência e Ensino , n.5, p.18-21, 1998. ). Para Carneiro e Gastal (2005)CARNEIRO, Maria Helena da Silva; GASTAL, Maria Luiza. História e filosofia das ciências no ensino de biologia. Ciência e Educação , v.11, n.1, p.33-39, 2005. , a abordagem histórica no ensino deveria centrar-se em rupturas epistemológicas. No entanto, é importante ressaltar que não é simples tratar a história da ciência no ambiente escolar, exigindo um esforço além do mero resgate de nomes e datas ( Martins, 1998MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira. A história da ciência e o ensino da biologia. Ciência e Ensino , n.5, p.18-21, 1998. ). Além disso, a dificuldade é aumentada pela estrutura cartesiana do sistema educacional, pois mesmo com a atuação docente comprometida com a contextualização histórica, os discentes terão acesso, na maioria das vezes, a uma bibliografia fragmentadora dos conteúdos e descontextualizada historicamente (Santos, Silva, Franco, 2015).

A história da bioquímica pode ser contada a partir do desenvolvimento do conceito de enzimas ( Kohler, 1973KOHLER, Robert E. The enzyme theory and the origin of biochemistry. Isis , v.64, n.2, p.181-196, 1973. ; Ventura, Freitas, Freire, 2008). De fato, a construção histórica desse conceito, bem como sua natureza química, é rica em informações que abrangem várias áreas das ciências naturais, permitindo abordagens integradoras no ensino-aprendizagem. No entanto, não foram encontrados na literatura trabalhos envolvendo a construção histórica do conceito de enzima ou sua abordagem no ensino de biologia. O presente trabalho busca colaborar no preenchimento dessa lacuna e investigar como o conceito de enzima é apresentado e como se organizam os conteúdos relativos a esse conceito em livros didáticos de biologia.

A escolha pela análise de livros didáticos é decorrente da importância desse material no ensino-aprendizagem, sendo muitas vezes os únicos referenciais teóricos para os professores e os principais norteadores de atividades em sala de aula e abordagens de ensino (Francisco Jr., 2007). Além disso, a análise do livro didático permite identificar, por exemplo, o uso de linguagem e terminologia adequadas ao nível de ensino ( Lopes, 1992LOPES, Alice R.C. Livros didáticos: obstáculos ao aprendizado da ciência química. Química Nova , v.15, n.3, p.254-261, 1992. ), o uso de analogias (Giraldi, Souza, 2006), a qualidade geral de impressão e diagramação (Megid Neto, Fracalanza, 2003) e, sobretudo, os limites conceituais ( Fracalanza, 1993FRACALANZA, Hilário. O que sabemos sobre os livros didáticos para o ensino de ciências no Brasil . Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993. ) e a falta de conexão entre conteúdos interrelacionados (Santos, Silva, Franco, 2015). A análise desse material tem sido amplamente utilizada na pesquisa sobre ensino-aprendizagem de biologia, a fim de diagnosticar os limites e possibilidades dos principais livros adotados no ensino médio (Santos, Silva, Franco, 2015; Giraldi, Souza, 2006).

Considerando a relevância da história e da filosofia da ciência no ensino, realizamos, para embasar nossa análise, um breve levantamento histórico da construção do conceito de enzimas, utilizando fontes primárias e, principalmente, secundárias de informação.

A construção histórica do conceito de enzima

Desde que o homem começou a deixar registros de seus atos, existem referências ao uso de processos que hoje são reconhecidos como enzimáticos ( Zimmer et al., 2009ZIMMER, Karine Rigon et al. Enzimas microbianas de uso terapêutico e diagnóstico clínico. Revista Liberato , v.10, n.14, p.123-137, 2009. ). O processo enzimático de maior difusão da história da sociedade humana é a fermentação. O emprego de processos fermentativos foi difundido entre os povos antigos, encontrando-se relatos no Ocidente e no Oriente, por exemplo, a descrição da fabricação de cerveja (ou vinho, ver Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ) apresentada no Código de Hamurábi,1 1 O Código de Hamurábi é um texto jurídico, com 282 artigos, organizado por Hamurábi, o sexto rei (1793 a.C.-1759 a.C.) da primeira dinastia da Babilônia. da antiga Babilônia, que data dos anos 1700 a.C. Nesse código, além da descrição da produção da bebida, havia leis sobre sua comercialização e seu consumo. Outras referências da época são à fabricação de vinagre e queijo ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ; Zimmer et al., 2009ZIMMER, Karine Rigon et al. Enzimas microbianas de uso terapêutico e diagnóstico clínico. Revista Liberato , v.10, n.14, p.123-137, 2009. ). Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) também escreveu diversas vezes acerca do ato de coalhar o leite, construindo, aliás, uma hipótese para a ação do coalho ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ).

Na bibliografia consultada, não foram encontrados registros sobre avanços substanciais nos estudos de processos fermentativos durante a Idade Média (476-1453). Porém, a partir da Idade Moderna (1453-1789), o interesse pelo reconhecimento de processos mediados por enzimas, como a fermentação e a digestão, foi aumentado. No século XVII, Jean Baptista van Helmont2 2 Era defensor da geração espontânea e acreditava que ratos poderiam ser obtidos de uma camisa suada, germe de trigo e queijo. (1577-1644), fortemente influenciado pelo vitalismo, recorrente nos séculos XVII, XVIII e XIX, foi o primeiro a considerar que os alimentos eram digeridos e quimicamente transformados pelos “fermentos” ( Heilbron, 2003HEILBRON, John L. The Oxford companion to the history of modern science . Oxford: Oxford University Press, 2003. ; Kieling, 2002KIELING, Dirlei Diedrich. Enzimas, aspectos gerais . Florianópolis: Editora da UFSC, 2002. ). Ainda no século XVII foi produzida a obra Cours de chymie ( Lemery, 1698LEMERY, Nicolas. A course of chymistry: containing an easie method of preparing those chymical medicins which are used in physick; with curious remarks and useful discourses upon each preparation, for the benefit of such a desire to be instructed in the knowledge of this art . London: Kettilby, 1698. ), do francês Nicolas Lemery (1645-1715), amplamente difundida na Europa (Leicester, Klickstein, 1968). Nesse livro, atribuía-se a fermentação da uva aos “espíritos de vinhos”, que se deixados agir por longo tempo produziam um ácido acetoso, ou “ácido de vinagre” ( Heilbron, 2003HEILBRON, John L. The Oxford companion to the history of modern science . Oxford: Oxford University Press, 2003. ). Outra explicação metafísica para a fermentação foi do químico alemão Georg Stahl3 3 George Stahl era um vitalista, tendo desenvolvido a famosa “teoria do flogisto”. (1660-1734), indicando que a fermentação exigia um agente, a água, para colocar as partículas individuais da substância fermentável em movimento, uma “transferência de energia de vibração” ( Heilbron, 2003HEILBRON, John L. The Oxford companion to the history of modern science . Oxford: Oxford University Press, 2003. ).

Nos séculos XVIII e XIX, os cientistas começaram a estudar experimentalmente processos enzimáticos, sobretudo o processo de digestão. Por exemplo, o francês Sieur de Réaumur (1683-1757) elaborou experimentos com aves que sugeriram ser a digestão um fenômeno químico. Para tanto, ele utilizou um tubo metálico com uma tela de arame na extremidade a fim de manter pequenos pedaços de carne imobilizados e protegidos da ação física do estômago (moela), verificando que a carne era digerida em 24 horas quando entrava em contato com o suco gástrico. Ao repetir os experimentos com fragmentos de ossos e vegetais, Réaumur observou que, embora o suco gástrico amaciasse o tecido ósseo, ele não tinha efeito sobre o tecido vegetal, sugerindo uma especificidade enzimática ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ). Além disso, o pesquisador percebeu que a digestão continuava no exterior do organismo, o que contrapunha a visão vitalista ( Friedmann, 1997FRIEDMANN, Hebert C. Friedrich Wöhler’s urine to Eduard Buchner’s alcohol. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.67-122. ). O trabalho de Réaumur foi expandido por Lazzaro Spallanzani (1729-1799), que realizou experimentos de digestão de carne em tubos metálicos colocados nos estômagos de uma grande variedade de animais, incluindo humanos ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ). Ele também promoveu testes de digestão da carne in vitro , permitindo conhecer algumas características críticas do então chamado “ingrediente ativo” do suco gástrico, como temperatura, especificidade e tempo de ação ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ; Friedmann, 1997FRIEDMANN, Hebert C. Friedrich Wöhler’s urine to Eduard Buchner’s alcohol. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.67-122. ). No entanto, os dados de Réaumur e Spallanzani não foram amplamente reconhecidos pela comunidade científica da época, em parte pela grande influência dos vitalistas ( Friedmann, 1997FRIEDMANN, Hebert C. Friedrich Wöhler’s urine to Eduard Buchner’s alcohol. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.67-122. ). Em 1836, outros estudos sobre a digestão no estômago levaram Theodor Schwann (1810-1882) ao reconhecimento de um “fermento” proteolítico, o qual ele chamou de pepsina ( Forbes, 1926FORBES, John Campbell. The purification of pepsin, its properties, and physical characters. The Journal of Biological Chemistry , v.71, n.3, p.559-585, 1926. ; Fruton, 2002FRUTON, Joseph. A history of pepsin and related enzymes. The Quarterly Review of Biology , v.77, n.2, p.127-147, 2002. ; Schlenk, 1997SCHLENK, Fritz. Early research on fermentation: a story of missed opportunities. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.43-50. ).

A indústria de cerveja desempenhava papel importante no desenvolvimento dos estudos a respeito da conversão de açúcares em álcool no século XIX. Nesse contexto, Gottlieb Sigismund Kirchoff (1764-1833) demonstrou a conversão do amido em açúcar pela ação de extratos de grãos de trigo ( Roberts et al., 1995ROBERTS, Stanley et al. Introduction to biocatalysis using enzymes and micro-organisms . Cambridge: Cambridge University Press, 1995. ). Em 1833, os químicos franceses Anselme Payen (1795-1871) e Jean-François Persoz (1805-1868) também observaram a capacidade do extrato de malte para converter amido gelatinizado em açúcares como a maltose, por exemplo, por meio de um composto ativo que foi denominado diastase4 4 Enzima hoje conhecida como amilase. (do grego, separação), cuja atividade se perdia quando o extrato era aquecido ( Roberts et al., 1995ROBERTS, Stanley et al. Introduction to biocatalysis using enzymes and micro-organisms . Cambridge: Cambridge University Press, 1995. ). Em 1828, Friedrich Wöhler (1800-1882) demonstrou que a ureia poderia ser sintetizada a partir de cianato de chumbo e hidróxido de amônia, provocando impacto negativo sobre as ideias vitalistas ( Friedmann, 1997FRIEDMANN, Hebert C. Friedrich Wöhler’s urine to Eduard Buchner’s alcohol. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.67-122. ). No entanto, alguns vitalistas alegavam que a “força vital” estava em ação, uma vez que o hidróxido de amônia e o ácido ciânico, derivado do cianato de chumbo, eram obtidos de fontes animais.

As pesquisas mais sistemáticas acerca do processo de fermentação se iniciaram ao redor de 1837, com Charles Cagniard-Latour (1777-1859), na França, e Theodor Schwann e Friedrich Kützing (1807-1892), na Alemanha. Seus estudos permitiram concluir que as leveduras eram vivas e necessárias para a fermentação ( Schlenk, 1997SCHLENK, Fritz. Early research on fermentation: a story of missed opportunities. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.43-50. ). Essas afirmações se contrapunham aos relatos anteriores de Joseph Louis Gay-Lussac (1778-1850), em 1810, e Nicolas Appert (1749-1841), por volta de 1835, de que o oxigênio seria o responsável pelos processos de fermentação e putrefação. Além disso, a concepção de células vivas envolvidas na fermentação foi questionada na obra Annalen der Pharmacie (1839), de Wöhler e Justus von Liebig (1803-1873), pois Liebig não acreditava que as leveduras fossem seres vivos ( Friedmann, 1997FRIEDMANN, Hebert C. Friedrich Wöhler’s urine to Eduard Buchner’s alcohol. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.67-122. ). Em sua opinião, a fermentação era causada por substâncias químicas (“fermentos”), constituindo reações químicas ( Kieling, 2002KIELING, Dirlei Diedrich. Enzimas, aspectos gerais . Florianópolis: Editora da UFSC, 2002. ). Liebig afirmava que as leveduras transferiam energia para o açúcar, uma ideia retomada de George Stahl (“transferência de energia de vibração”), postulada no século XVII. Nessa condição, a fermentação não dependia da aceitação da natureza viva das leveduras ( Friedmann, 1997FRIEDMANN, Hebert C. Friedrich Wöhler’s urine to Eduard Buchner’s alcohol. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.67-122. ). Apesar de ter estudado no laboratório de Liebig, Moritz Traube (1826-1894) considerava as teorias desse pesquisador “ofuscante aos eventos reais”, defendendo que os compostos responsáveis pela fermentação estariam localizados em elementos celulares, mas que não dependeriam necessariamente da vida ( Schlenk, 1997SCHLENK, Fritz. Early research on fermentation: a story of missed opportunities. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.43-50. ). A fermentação como evento fisiológico, e não químico, será ressaltada nos anos 1850 por Louis Pasteur (1822-1895), que concluiu que a conversão de açúcar em álcool era catalisada por “fermentos” inseparáveis das estruturas celulares das leveduras (Nelson, Cox, 2008). Dessa forma, Pasteur sugeriu que a “força vital” estaria envolvida no processo de fermentação, mas de forma diferente da ideia de “transferência de energia de vibração” ( Schlenk, 1997SCHLENK, Fritz. Early research on fermentation: a story of missed opportunities. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.43-50. ).

No entanto, o vitalismo vai perder poder explanatório alguns anos depois, sobretudo pela influência dos trabalhos dos irmãos Buchner (os bacteriologistas Hans Ernst Buchner, 1850-1902, e Eduard Buchner, 1860-1917) e de Rudolf Rapp, que casualmente demonstraram que a fermentação alcoólica podia ser realizada na ausência de células vivas de leveduras (Buchner, Rapp, 1898; Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ). Para conservação de extratos de levedura, Eduard Buchner (1907)BUCHNER, Eduard. Nobel lecture: cell-free fermentation, 1907. Disponível em: http://nobelprize.org/nobel_prizes/chemistry/laureates/1907/buchner-lecture.html. Acesso em: 27 set. 2010.
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experimentou incluir açúcar ao extrato, levando à observação posterior de bolhas de ar (gás carbônico) na solução, bem como a formação de uma grossa camada de espuma. Eram evidências da ocorrência da fermentação na ausência de células, e, portanto, um processo exclusivamente químico. Conclusões semelhantes foram alcançadas previamente por outros pesquisadores, como Marie von Mannasein (1848-1903), em 1872. Mannasein reivindicou os créditos pela descrição dessas evidências, mas Buchner e Rapp retrucaram questionando seus procedimentos metodológicos (Bohley, Fröhlich, 1997). De qualquer forma, os estudos dos irmãos Buchner permitiram importantes avanços na área, influenciando significativamente a bioquímica moderna ( Cornish-Bowden, 1999CORNISH-BOWDEN, Athel. The origins of enzymology. The Biochemist , v.19, n.2, p.36-38, 1999. ). Em 1907, após a morte do irmão, Eduard Buchner recebeu o prêmio Nobel de Química pelo estudo da fermentação livre de células.

No intervalo entre os trabalhos de Pasteur e dos irmãos Buchner foi cunhado, em 1876, o termo “enzima”, por Wilhelm Friedrich Kühne (1837-1900), que estudava a ação catalítica de extratos de leveduras. A justificativa para a criação do termo seria evitar confusões entre as categorias de “fermentos organizados” e “fermentos não organizados”, propostas por Theodor Schwann, os últimos passando a ser reconhecidos como enzimas ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ; Friedmann, 1997FRIEDMANN, Hebert C. Friedrich Wöhler’s urine to Eduard Buchner’s alcohol. In: Cornish-Bowden, Athel (ed.). New beer in an old bottle: Eduard Buchner and the growth of biochemical knowledge . València: Universitat de València, 1997. p.67-122. ). A etimologia de “enzima” deriva de enzymos , do grego medieval ( en , em ou dentro, e zymos , leveduras). Assim, Kühne quis indicar que a ação enzimática estava no interior das leveduras. Apesar disso, a palavra “enzima” foi mais tarde utilizada para designar os “dois tipos de fermentos” (o organizado e o não organizado).

No final do século XIX, com a aceitação de que a fermentação era um processo químico, os cientistas buscaram entender como ocorria esse processo. Em 1894, o “modelo chave-fechadura” foi proposto por Emil Fischer (1852-1919), sugerindo que as enzimas formavam complexos com seus substratos, similares a um conjunto de chave e fechadura, em que a chave (a enzima) se encaixaria perfeitamente na fechadura (o substrato) ( Kieling, 2002KIELING, Dirlei Diedrich. Enzimas, aspectos gerais . Florianópolis: Editora da UFSC, 2002. ). Esse modelo apresentou a relação tridimensional (estereoquímica) entre as enzimas e seus substratos, propondo um estado intermediário complexo enzima-substrato (complexo E-S) ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ).

Alguns estudos no final do século XIX e princípio do XX relataram evidências experimentais da formação do complexo E-S, como os conduzidos por Adrian Brown (1902)BROWN, Adrian. Enzyme action. Journal of the Chemical Society (Trans) , v.81, p.373-388, 1902. e V. Henri (1902)HENRI, Victor. Théorie générale de l’action de quelques diastases. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences , v.135, p.916-919, 1902. . Eles enfatizaram a velocidade das reações catalisadas por enzimas, indicando a existência da formação de um complexo E-S ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ). É importante ressaltar que, já em 1892, Brown havia sugerido que a cinética de reações catalisadas por enzimas poderia envolver a formação de um complexo E-S e que a velocidade da reação não dependeria da concentração do substrato (Laidler, 1997; Parenti, 2009PARENTI, Paolo. Il contributo di Victor Henri alla nascita della cinetica enzimatica , 2009. Biblioteca Digitale della Società Italiana di Biochimica e Biologia Moleculare/Sapienza Università di Roma. Disponível em: http://biochimica.bio.uniroma1.it/emichaelis.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010.
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). No entanto, suas observações cinéticas com leveduras vivas conflitavam com as de Cornelius O’Sullivan (1841-1907) e Frederick Tompson (1859-1930), feitas em 1890, sobre a invertase isolada em extratos. Dessa forma, Brown não estabeleceu sua incipiente visão a respeito da catálise enzimática ( Cornish-Bowden, 1999CORNISH-BOWDEN, Athel. The origins of enzymology. The Biochemist , v.19, n.2, p.36-38, 1999. ).

O estudo de O’Sullivan e Tompson foi o primeiro a analisar quantitativamente a velocidade de uma reação enzimática durante todo o curso da reação (Moore citado em Berkson, Flexner, 1927). Porém, segundo Parenti (2009)PARENTI, Paolo. Il contributo di Victor Henri alla nascita della cinetica enzimatica , 2009. Biblioteca Digitale della Società Italiana di Biochimica e Biologia Moleculare/Sapienza Università di Roma. Disponível em: http://biochimica.bio.uniroma1.it/emichaelis.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010.
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, eles chegaram a uma conclusão equivocada: a velocidade da reação não se altera com a concentração da enzima. Isso se deu, de acordo com o autor, pela falta de um experimento que avaliasse o efeito de várias concentrações de substrato sobre a velocidade da reação. De fato, experimentos posteriores realizados por Brown e conduzidos com diferentes concentrações de substrato resultariam na teoria da saturação enzimática diante de alta concentração de substrato: a necessidade de se passar pela fase de complexo E-S limitaria a velocidade da reação, uma vez que o complexo não poderia ser quebrado infinitamente para gerar os produtos da reação ( Cornish-Bowden, 1999CORNISH-BOWDEN, Athel. The origins of enzymology. The Biochemist , v.19, n.2, p.36-38, 1999. ; Parenti, 2009PARENTI, Paolo. Il contributo di Victor Henri alla nascita della cinetica enzimatica , 2009. Biblioteca Digitale della Società Italiana di Biochimica e Biologia Moleculare/Sapienza Università di Roma. Disponível em: http://biochimica.bio.uniroma1.it/emichaelis.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010.
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).

Observações como essas conduziram à derivação de equações das taxas enzimáticas, por meio de modelagens matemáticas com o envolvimento de um complexo intermediário E-S. Em 1903, baseando-se nas suposições de Brown acerca da existência do complexo E-S, Victor Henri (1872-1940) publicou o primeiro modelo matemático para descrever a cinética das enzimas ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ; Parenti, 2009PARENTI, Paolo. Il contributo di Victor Henri alla nascita della cinetica enzimatica , 2009. Biblioteca Digitale della Società Italiana di Biochimica e Biologia Moleculare/Sapienza Università di Roma. Disponível em: http://biochimica.bio.uniroma1.it/emichaelis.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010.
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). Henri formulou uma teoria geral a respeito da ação da invertase e de outras enzimas, construindo a base atual do estudo de cinética enzimática ( Parenti, 2009PARENTI, Paolo. Il contributo di Victor Henri alla nascita della cinetica enzimatica , 2009. Biblioteca Digitale della Società Italiana di Biochimica e Biologia Moleculare/Sapienza Università di Roma. Disponível em: http://biochimica.bio.uniroma1.it/emichaelis.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010.
http://biochimica.bio.uniroma1.it/emicha...
). Esse pesquisador demonstrou experimentalmente que: (a) a velocidade da reação aumenta com a concentração inicial do substrato até um valor máximo; (b) o aumento da velocidade é diretamente proporcional apenas em uma baixa concentração de substrato; (c) a velocidade da reação é diretamente proporcional à concentração de enzima; (d) os efeitos observados não se devem à perda de estabilidade da enzima; (e) o produto pode ter efeito inibitório sobre a velocidade da reação.

Os trabalhos de Brown e Henri, entretanto, estiveram sujeitos a críticas porque seus autores não tinham a compreensão da necessidade de controle do pH do meio. Além disso, deixavam as reações transcorrer durante horas, não levando em conta as possíveis alterações a que as enzimas sujeitas nem, tampouco, o efeito da mutarrotação5 5 Formação de isômeros de glicose, modificando a posição espacial dos grupos hidroxilas da molécula. do açúcar em solução ( Cornish-Bowden, 1999CORNISH-BOWDEN, Athel. The origins of enzymology. The Biochemist , v.19, n.2, p.36-38, 1999. ). Só após a introdução do conceito de pH, em 1909, pelo bioquímico Peter Sorensen (1868-1939) ( Cornish-Bowden, 1999CORNISH-BOWDEN, Athel. The origins of enzymology. The Biochemist , v.19, n.2, p.36-38, 1999. ; Usberco, Salvador, 2000) foi reconhecida a importância do meio para a ação enzimática. Dessa forma, em 1913, Leonor Michaelis (1875-1949) e Maud Menten (1879-1960) realizaram um novo trabalho com a invertase, controlando o pH com o uso de tampões de acetato. Além disso, expandiram o trabalho inicial de Henri e derivaram novamente a equação de taxa enzimática ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ), que ficou conhecida como equação de Michaelis-Menten, omitindo as contribuições de Brown e Henri. Essa omissão não pode, contudo, ser creditada a Michaelis e Menten, pois na publicação do trabalho em 1913 estão ressaltados os estudos de seus predecessores ( Cornish-Bowden, 1999CORNISH-BOWDEN, Athel. The origins of enzymology. The Biochemist , v.19, n.2, p.36-38, 1999. ). Apesar dessa controvérsia, a equação se tornou a base atual para muitas análises dos mecanismos de reação enzimática ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ).

No início do século XX, o desenvolvimento do conceito de enzimas e seu papel no metabolismo era crescente. Esse período histórico também coincide com o reconhecimento, em 1900, dos trabalhos de Gregor Johann Mendel (1822-1884), que fundamentaram a genética moderna com a proposição da existência de fatores hereditários para a determinação das características de organismos posteriormente denominados genes. Curiosamente, em 1909, o primeiro conceito funcional do gene foi proposto pelo médico inglês Archibald Garrod (1857-1936) ao estudar a ocorrência familiar de doenças relacionadas ao metabolismo e sugerir que mutações gênicas levariam à formação de alelos incapazes de produzir enzimas funcionais, comprometendo as reações metabólicas. Garrod chamou então essas doenças de erros inatos do metabolismo e propôs o conceito de que cada gene seria responsável pela produção de uma enzima específica (“um gene, uma enzima”). Ao longo do tempo, esse modelo se mostrou insuficiente, e diversos outros conceitos de genes foram propostos (Joaquim, El-Hani, 2010), mas ele ilustra como o estudo sobre as enzimas também teve impacto na então incipiente genética.

O primeiro estudo estrutural de uma enzima (urease) publicado foi o de James Summer (1887-1955), em 1926, e constatou que os cristais de urease consistiam exclusivamente de proteínas, levando ao postulado de que toda enzima seria uma proteína. Até 1950, mais de 130 cristais de enzimas tinham sido documentados, reforçando o postulado de Summer ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ). A partir dos anos 1950, técnicas de difração de raios X passaram a ser usadas nesse tipo de estudo, colaborando para a descrição da estrutura tridimensional de diversas enzimas. No entanto, a questão de como as enzimas catalisam as reações químicas confundiu os cientistas até o desenvolvimento da teoria do estado de transição na primeira metade do século XX ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ).

A noção atual de catálise enzimática foi proposta primeiramente por Michael Polanyi (1891-1976), em 1921, e por John Haldane (1892-1964), em 1930 (Nelson, Cox, 2008). Haldane, em seu tratado Enzymes , de 1930, sugeriu que as interações químicas fracas entre enzimas e seus substratos poderiam ser utilizadas para catalisar as reações, o que constitui o cerne da compreensão atual sobre a catálise (Nelson, Cox, 2008), proposta em 1946 pelo físico-químico Linus Pauling (1901-1994). Pauling sugeriu que as enzimas teriam sítios ativos complementares ao estado de transição da reação que elas catalisam. Essa hipótese foi amplamente aceita e é apoiada por observações experimentais de que enzimas se ligam muito firmemente às moléculas desenhadas para imitar o estado de transição da reação. Essa é a compreensão atual da catálise enzimática (Nelson, Cox, 2008).

Em 1958, Daniel Koshland (1920-2007) postulou um mecanismo segundo o qual as enzimas sofriam mudanças conformacionais induzidas no sítio ativo pelas múltiplas interações fracas que os substratos estabeleciam ao nele se ligar (Nelson, Cox, 2008). Assim, mesmo que o substrato não fosse complementar ao sítio ativo de uma enzima, poderia induzir mudanças conformacionais que otimizariam seu encaixe (Ventura, Freitas, Freire, 2008). A esse modelo deu-se o nome de “ajuste induzido” (em inglês, induced fit ) ( Kieling, 2002KIELING, Dirlei Diedrich. Enzimas, aspectos gerais . Florianópolis: Editora da UFSC, 2002. ). Nos anos 1960, foi observado pelo químico Yeshayau Pocker (1928-2010) que algumas enzimas demonstram “promiscuidade” quanto aos seus substratos ( Yarnell, 2003YARNELL, Amanda. The power of promiscuity: enzymes’ ability to catalyze alternative reactions may provide a springboard for evolution. Science and Technology , v.81, n.49, p.33-35, 2003. ). Essa observação, juntamente com o modelo do “ajuste induzido”, levou à superação do modelo chave-fechadura, ao menos na academia.

Em 1965, Jacques Monod (1910-1976), Jeffries Wyman (1901-1995) e Jean-Pierre Changeux (1936- ) propuseram o modelo alostérico (modelo MWC) para explicar como as interações de pequenas moléculas, que se juntavam em sítios ligantes distintos em uma mesma enzima, poderiam agir sobre sua atividade, por meio de mudanças em sua estrutura tridimensional ( Kieling, 2002KIELING, Dirlei Diedrich. Enzimas, aspectos gerais . Florianópolis: Editora da UFSC, 2002. ), ressaltando o papel dos cofatores enzimáticos (coenzimas), conhecidos desde o início do século XX, como necessários para a atividade de algumas enzimas (Nelson, Cox, 2008). Na década de 1940, houve um grande empenho para se desenvolver um método de sequenciamento de proteínas e peptídeos (Miranda, Loffredo, 2005). O primeiro método bem-sucedido foi elaborado por Frederick Sanger (1918-2013) em 1945, utilizando compostos que se ligavam aos aminoácidos e em seguida eram hidrolisados, sendo posteriormente identificados (Miranda, Loffredo, 2005; Ventura, Freitas, Freire, 2008). O emprego de condições menos ácidas permitiu que nem toda a cadeia polipeptídica fosse hidrolisada. Assim, por meio da sobreposição de fragmentos peptídicos, foi inicialmente descrita a sequência completa das duas subunidades da insulina (Miranda, Loffredo, 2005). Esse trabalho envolveu a participação de diversos pesquisadores e rendeu o prêmio Nobel de Química a Sanger em 1958 (Nelson, Cox, 2008). Evidentemente, o aperfeiçoamento dos métodos de sequenciamento de proteínas, bem como inovações posteriores, como a proposição do código genético e o sequenciamento de DNA, favoreceu o desenvolvimento do conhecimento na área de bioquímica.

Nos anos 1980, a descrição de RNAs com atividade catalítica por Krueger et al. (1982), denominados ribozimas, viria a questionar o dogma de que toda enzima seria uma proteína (Soares, Lins, 1995). A primeira ribozima foi reconhecida a partir de estudos de processamento do RNA ribossômico do protozoário ciliado Tretrahymena thermophila (Krueger et al., 1982), e desde então outras foram descritas em diversos organismos, incluindo desde vírus até vertebrados (Soares, Lins, 1995). As ribozimas obedecem ao modelo cinético de Henri-Michaelis-Menten, apresentando grande especificidade pelos seus substratos e susceptibilidade à inibição competitiva6 6 A inibição competitiva ocorre quando moléculas, similares ao substrato, ligam-se ao sítio ativo da enzima, evitando sua atividade enzimática normal. A inibição competitiva pode ser revertida pelo aumento da concentração de substrato em solução (Martin, Hine, 2008). (Soares, Lins, 1995). A descrição das ribozimas culminou na hipótese de que o RNA foi a primeira molécula biologicamente ativa no surgimento da vida ( Gilbert, 1986GILBERT, Walter. Origin of life: the RNA world. Nature , v.319, n.618, 1986. ) e assim são mencionadas desde o experimento de Stanley Miller (1930-2007) em 1953, que simulou as condições da Terra primitiva, obtendo aminoácidos. Entretanto, as proteínas não podem se autorreplicar ou evoluir por si só, o que permite a especulação de que os ácidos nucleicos sejam as primeiras moléculas da vida.

Durante o século XX, foram realizados muitos estudos importantes sobre enzimas, vários deles voltados para a aplicação industrial e médica: produção de alimentos, bebidas, medicamentos, terapias, produtos de limpeza e higiene, biorremediação e tratamento de resíduos, entre diversos outros exemplos ( Copeland, 2000COPELAND, Robert A. Enzymes: a practical introduction to structure, mechanism, and data analysis . New York: Wiley-VCH, 2000. ; Illanes, 2008ILLANES, Andrés (ed.). Enzyme biocatalysis: principles and applications . London: Springer, 2008. ). Atualmente, as aplicações industriais representam 80% do mercado global de enzimas ( Illanes, 2008ILLANES, Andrés (ed.). Enzyme biocatalysis: principles and applications . London: Springer, 2008. ). No entanto, ainda existem questões fundamentais a respeito da atividade e da estrutura enzimática sobre as quais a comunidade científica tem trabalhado.

O Quadro 1 sintetiza os principais eventos relacionados à construção histórica do conceito de enzimas, evidenciando a relevância dos parâmetros históricos para a apreensão crítica e contextualizada da construção científica do conceito.

Quadro 1
: Resumo dos principais acontecimentos históricos que influenciaram a construção histórica do conceito de enzima

Metodologia

Para o entendimento de como a concepção histórica acerca do conceito de enzimas é apresentada em materiais didáticos, foi realizada uma análise documental ( Pimentel, 2001PIMENTEL, Alessandra. O método da análise documental: seu uso numa pesquisa historiográfica. Cadernos de Pesquisa , n.114, p.179-195, nov. 2001. ) em nove livros utilizados no ensino médio ( Quadro 2 ). Tais obras são do Programa Nacional do Livro Didático. Além disso, a escolha também levou em consideração a ampla circulação de alguns títulos (como Amabis, Martho, 2006; Jotta, Carneiro, 2009), que possivelmente contribuem para a introdução do conceito de enzima numa parcela significativa dos estudantes, bem como a amplitude temporal de publicação das obras (1967-2007), que permitiu entender como a temática vem sendo apresentada nos livros ao longo do tempo. A versão azul do BSCS ( Biological Sciences Curriculum Study ) foi escolhida porque enfatiza os conteúdos no nível molecular e bioquímico ( Lorenz, 2008LORENZ, Karl Michael. Ação de instituições estrangeiras e nacionais no desenvolvimento de materiais didáticos de ciências no Brasil: 1960-1980. Revista Educação em Questão , v.31, n.17, p.7-23, 2008. ).

Quadro 2
: Livros didáticos analisados neste estudo

A partir das orientações de Chizzotti (2006)CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais . Petrópolis: Vozes, 2006. , foi realizada uma análise de conteúdo nos textos em que se decompõem suas unidades léxicas ou temáticas, delimitando-se categorias para o estabelecimento de inferências generalizadoras. Essa forma de análise pressupõe que um texto possui sentidos e significados, evidentes ou não, que podem ser incorporados aos conhecimentos dos leitores. Os procedimentos para organização e análise dos documentos coletados foram baseados em Pimentel (2001)PIMENTEL, Alessandra. O método da análise documental: seu uso numa pesquisa historiográfica. Cadernos de Pesquisa , n.114, p.179-195, nov. 2001. .

A análise do material didático está apresentada em parâmetros predefinidos para caracterizar parâmetros históricos da produção do conhecimento científico sobre as enzimas, a saber: (1) se é feita a contextualização histórica das enzimas; (2) como os conteúdos de bioquímica relacionados ao tema estão organizados; (3) se existem limites conceituais decorrentes da falta de contextualização histórica.

A construção histórica do conceito de enzima

A primeira categoria definida nesse trabalho (contextualização histórica do conceito de enzimas nos livros didáticos) remete à importância da inserção da história e da filosofia da ciência no ensino de biologia, como recomendado pelos PCNs. Contraditoriamente, apenas nas obras anteriores a essas recomendações, como o BSCS (1967) e Fonseca (1995)FONSECA, Albino. Biologia . São Paulo: Ática, 1995. , foi identificada alguma historicidade referente à fermentação. Essas obras abordam a transitoriedade das hipóteses e citam a descrição das enzimas. Como exemplo, foram selecionados alguns trechos do BSCS (1967), cujo conteúdo histórico é praticamente igual ao que está presente em Fonseca (1995)FONSECA, Albino. Biologia . São Paulo: Ática, 1995.:

O fenômeno da fermentação já era conhecido pelos povos mais primitivos ... Na última metade do século XVIII, a química estava começando a se desenvolver ... Lavoisier notou que a fermentação da glicose produzia bióxido de carbono e álcool ... O século XIX assistiu a muitos debates acalorados sobre as relações entre reações químicas e os organismos vivos. Pasteur verificou que a fermentação estava associada com a atividade dos levedos ... Durante meio século houve discussões sobre os ‘fermentos’ (mais tarde chamados de enzimas) e se esses fermentos agiriam somente em seres vivos. Em 1897, Eduard Buchner ... encontrou acidentalmente a resposta para esta questão, ao acrescentar açúcar para preservar extratos de levedos ... Os extratos não continham células vivas, mas para surpresa de Buchner, começaram a fermentar o açúcar. Concluiu, então, que neles havia alguma substância (uma enzima) que permitia a fermentação (BSCS, 1967, p.88-89).

No entanto, esses conteúdos históricos do BSCS (1967) e de Fonseca (1995)FONSECA, Albino. Biologia . São Paulo: Ática, 1995. possuem algumas lacunas na apresentação das contradições existentes entre os pesquisadores em seus respectivos contextos históricos e não mencionam pensadores que elaboraram hipóteses precursoras de certos conhecimentos relevantes para esse histórico. Por exemplo, a ideia de fermentação na ausência de levedos vivos não foi uma proposta inédita de Eduard Buchner, tendo sido colocada alguns anos antes, embora ainda não adequadamente demonstrada. Além disso, nomes relevantes como o de Rudolf Rapp ou o próprio irmão de Buchner são ignorados na contextualização histórica.

Nos demais livros analisados, o conceito de enzima é colocado sem contextualização. Evidentemente, seria útil fazer essa contextualização, uma vez que as discussões envolvidas na construção desse conhecimento abordam uma miríade de conceitos e conteúdos, além de aproximar a investigação aos problemas cotidianos dos alunos. Ao estudar a origem da vida, por exemplo, poderia ser trabalhado como teria sido a primeira enzima. A partir dessa questão, outros temas poderiam ser problematizados, como a replicação e o funcionamento do DNA, a formação das primeiras células, a primeira fonte de energia metabólica. Além disso, existe uma ampla possibilidade de intervenções interdisciplinares no ensino que são favorecidas pela contextualização histórica, como a formação do planeta Terra, as condições ambientais para o surgimento da vida (geografia) e o uso de armas químicas relacionadas às enzimas (química).

Os dados aqui apresentados concordam com Peduzzi (2001)PEDUZZI, Luiz Orlando de Quadro. Sobre a utilização didática da história da ciência. In: Pietrocola, Maurício (org.). Ensino de física: conteúdo, metodologia e epistemologia numa concepção integradora . Florianópolis: Editora da UFSC, 2001. p.151-170. , que sugere ainda ser negligenciado o uso da história da ciência de forma consistente em livros didáticos e em sala de aula. Muitas vezes esses livros fortalecem uma imagem idealizada de ciência: as histórias anedóticas, a linearidade dos episódios históricos, a consensualidade e a ausência de um contexto histórico mais amplo. Essa ausência de contextualização histórica nos livros confere à ciência um status adiabático, inerte à influência de aspectos socioculturais de sua época (Carneiro, Gastal, 2005).

A dissociação entre os conteúdos de fermentação e enzimas e de proteínas e enzimas

De certa forma, a fragmentação dos conteúdos nos livros facilita a omissão da história de certos conceitos. O conteúdo de enzimas, que em geral fica confinado ao capítulo de “química das células” ou “fisiologia da digestão”, dificulta a comunicação com outros conteúdos intimamente relacionados. A fragmentação de conteúdos relacionados no material didático compromete a realização de uma aprendizagem integrada e holística pelos discentes (Santos, Silva, Franco, 2015).

Na segunda categoria definida neste trabalho, foi verificada a coerência e respeito em relação a uma ordem histórica, já que os estudos sobre fermentação resultaram na proposição do conceito de enzimas e, consequentemente, na fundação da enzimologia. Assim, a conexão entre esses conceitos deveria ser algo esperado, evidenciando que a ciência não é feita de “descobertas” independentes de seus contextos históricos, mas sim construída historicamente. Estudos acerca de proteínas e enzimas foram paralelos até meados do século XIX, sendo importante a contextualização histórica desses conteúdos. No entanto, foi possível observar que na maioria dos livros didáticos o conteúdo sobre “enzimas” está dissociado de “fermentação”. Em Fonseca (1995)FONSECA, Albino. Biologia . São Paulo: Ática, 1995. , por exemplo, há menção histórica ao processo de fermentação no capítulo 28 (“Metabolismo energético das células”), porém o conceito de enzimas está apresentado no capítulo 23 (“A composição química da célula”). Esses conteúdos também não foram encontrados no capítulo sobre “A origem da vida”, apesar do papel das ribozimas no denominado “mundo do RNA” ( Gilbert, 1986GILBERT, Walter. Origin of life: the RNA world. Nature , v.319, n.618, 1986. ).

Entre os livros analisados, a sistematização desses conteúdos parece ter sido mais bem distribuída no BSCS (1967), pois foi o único a reunir os conteúdos de fermentação e enzimas no mesmo capítulo (“Energia química para vida”) e a abordar a fonte energética das primeiras formas de vida. De fato, o BSCS tinha como concepção ser um material didático organizado de acordo com temas unificadores, que apresentavam o método científico de investigação ( Lorenz, 2008LORENZ, Karl Michael. Ação de instituições estrangeiras e nacionais no desenvolvimento de materiais didáticos de ciências no Brasil: 1960-1980. Revista Educação em Questão , v.31, n.17, p.7-23, 2008. ). Em Amabis e Martho (2006)AMABIS, José Mariano; MARTHO, Gilberto Rodrigues. Biologia das células, v.1 . São Paulo: Moderna, 2006. a fermentação está incluída no capítulo de origem da vida, contudo de forma a-histórica. Um ponto notável desse livro é a apresentação das ribozimas no capítulo sobre origem da vida, ausente em outras obras. Com relação aos conceitos de proteínas e enzimas, a maioria das publicações analisadas trata os temas no mesmo capítulo, muitas vezes parecendo que os estudos sobre as proteínas levaram à descoberta das enzimas. Laurence (2007)LAURENCE, Janet. Biologia . São Paulo: Nova Geração, 2007. , Soares (1986)SOARES, José Luis. Biologia: biologia molecular, citologia e histologia, v.1 . São Paulo: Scipione, 1986. e o BSCS (1967) abordam esses temas em capítulos diferentes, porém apenas o último fragmenta os conteúdos com o cuidado de os contextualizar historicamente.

É importante ressaltar que a alocação dos conceitos de proteínas e enzimas em um mesmo capítulo favorece a perpetuação de um equívoco conceitual comum: a afirmação de que todas as enzimas são proteínas, que é quase unanimidade nos livros didáticos, forçando esses conteúdos a sempre estar juntos. Apenas Amabis e Martho (2006)AMABIS, José Mariano; MARTHO, Gilberto Rodrigues. Biologia das células, v.1 . São Paulo: Moderna, 2006. apresentam a ressalva de que existe um pequeno número de enzimas, denominadas ribozimas, que são RNAs com propriedades catalíticas, uma investigação feita no início dos anos 1980 ( Kruger et al., 1982KRUGER, Kelly et al. Self-splicing RNA: autoexcision and autocyclization of the ribosomal RNA intervening sequence of tetrahymena. Cell , v.31, n.1, p.147-157, 1982. ).

Limites conceituais decorrentes da ausência, ou deficiência, de uma contextualização histórica sobre o conceito de enzimas

Com exceção de Amabis e Martho (2006)AMABIS, José Mariano; MARTHO, Gilberto Rodrigues. Biologia das células, v.1 . São Paulo: Moderna, 2006. , os livros didáticos analisados afirmam incorretamente que todas as enzimas são proteínas, a despeito da descrição não tão recente das ribozimas, que são ácidos ribonucleicos. Isso demonstra a inércia encontrada em alguns conceitos nos livros didáticos de biologia, apesar de muitas vezes abordarem outros temas atuais, como os transgênicos, a clonagem e a biotecnologia. Parece também evidente o distanciamento entre a produção de conhecimento acadêmico e o ensino básico.

Atualmente, o conceito de RNAs catalíticos é apresentado nos cursos de graduação em ciências biológica, geralmente em disciplinas de bioquímica ou biologia celular. Essa informação também está contida em livros clássicos de bioquímica, como em Lehninger principles of biochemistry , de Nelson e Cox (2008)NELSON, David; COX, Michael. Lehninger principles of biochemistry . New York: W.H. Freeman, 2008. . Além disso, iniciativas de publicação de material digital favorecem o ensino desse conteúdo. Por exemplo, o Howard Hughes Medical Institute, em Maryland, EUA, tem um programa educacional voltado para a divulgação científica que fornece vários materiais para o ensino, incluindo DVDs. Um desses vídeos consiste em uma palestra do doutor Thomas Cech, principal envolvido na descoberta das ribozimas, abordando esse tema ( The double life of RNA ). Outras fontes de informação sobre a questão são revistas e sites de divulgação científica que já abordaram a existência de RNAs catalíticos. Logo, parece injustificável que o conceito de ribozimas ainda seja incipiente em livros didáticos brasileiros.

Um limite conceitual comumente encontrado em todos os livros analisados foi a explicação sobre o funcionamento das enzimas a partir o “modelo chave-fechadura”, de Emil Fischer, que postula um “encaixe perfeito” das enzimas aos seus substratos, tal como uma chave (a enzima) em determinada fechadura (o substrato). Em termos bioquímicos essa ideia é equivocada, podendo oferecer um obstáculo à aprendizagem (Francisco Jr., 2007). Se as enzimas apresentassem um “encaixe perfeito”, o complexo formado entre a enzima e o substrato possuiria maior estabilidade do que os reagentes e os produtos da reação, sendo termodinamicamente desfavorável à realização da catálise (Francisco Jr., 2007). O “modelo chave-fechadura” deixou de ser aceito na explicação da interação de enzimas e substratos há mais de quatro décadas. No entanto, o uso desse modelo parece mais uma alternativa equivocada à facilitação do ensino da ação enzimática do que um mero desalinhamento histórico.

Uma consequência do ensino do “modelo chave-fechadura” é a afirmação de que as enzimas apresentam apenas um único substrato específico, o que é um equívoco, uma vez que existem diversas enzimas que podem catalisar múltiplas reações e, logo, associar-se a diferentes substratos (Khersonsky, Roodveldt, Tawfik, 2006; Nobeli, Favia, Thornton, 2009). Essa observação da “promiscuidade” enzimática foi feita na década de 1960, por Yeshayau Pocker, e é um fator relevante para o entendimento da evolução molecular das enzimas, uma vez que é esperado que as enzimas primitivas reajam com um amplo espectro de substratos ( Peretó, 2011PERETÓ, Juli. Origin and evolution of metabolisms. In: Gargaud, Muriel; López-Garcia, Purificación; Martin, Hervé (ed.). Origins and evolution of life: an astrobiological perspective . Cambridge: Cambridge University Press, 2011. p.270-287. Disponível em: https://www.uv.es/genevol/pdfs/2011_proofs_c18_p270-288.pdf. Acesso em: 23 maio 2021.
https://www.uv.es/genevol/pdfs/2011_proo...
). Portanto, esse conhecimento é relevante para apresentar tópicos importantes sobre a origem da vida.

A síntese dos resultados da análise documental é apresentada no Quadro 3 .

Quadro 3
: Síntese da análise do material didático em relação às categorias de análise predefinidas

Considerações finais

De forma geral, os dados apresentados aqui mostram que mesmo com a indicação nos PCNs sobre a importância de incluir a história e a filosofia da ciência no ensino de biologia, a perspectiva histórica é ausente ou bastante preliminar nos livros didáticos da área. Segundo Martins (1993)MARTINS, Roberto de Andrade. Abordagens, métodos e historiografia da história da ciência. In: Martins, Angela Maria (ed.). O tempo e o cotidiano na história . São Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1993. p.73-78. , umas das possíveis justificativas para se ignorar a história da ciência é a preocupação em ensinar os conhecimentos recentes, e não os mais antigos. De certa forma, os professores e alunos são formados para pensar os conteúdos de forma fragmentada, ou seja, com a contextualização histórica sendo em geral omitida, pois essa tende a fugir da lógica que prioriza apenas os conteúdos puramente teóricos no ensino.

É possível que o aumento do contingente de professores críticos ao conteúdo dos livros didáticos permita que muito dos equívocos conceituais, inadequações históricas e fragmentações indiscriminadas dos conteúdos sejam corrigidos. No entanto, isso só será possível por meio de mudanças nos cursos de formação de professores. A formação do docente é muitas vezes historicamente descontextualizada e fragmentada. Como ele aplicará algo que nem sabe como funciona ou com o qual nunca teve experiência? Concordamos com Carneiro e Gastal (2005)CARNEIRO, Maria Helena da Silva; GASTAL, Maria Luiza. História e filosofia das ciências no ensino de biologia. Ciência e Educação , v.11, n.1, p.33-39, 2005. , que defendem ser preciso, antes de afirmar a necessidade da história da ciência no ensino, reformular os cursos de formação inicial e continuada de professores, além de produzir materiais curriculares que os auxiliem a trabalhar com essa abordagem.

A história do conceito de enzima pode ser confundida com a própria história da bioquímica. Neste trabalho, corrobora-se que a ausência de uma contextualização histórica efetiva pode contribuir para a manutenção de limites conceituais nos livros didáticos. Embora o foco desta pesquisa tenha sido a bioquímica, isso provavelmente também deve ser encontrado em outras áreas da biologia, o que compromete de maneira significativa o acesso e a apreensão do processo de produção científica.

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NOTAS

  • 1
    O Código de Hamurábi é um texto jurídico, com 282 artigos, organizado por Hamurábi, o sexto rei (1793 a.C.-1759 a.C.) da primeira dinastia da Babilônia.
  • 2
    Era defensor da geração espontânea e acreditava que ratos poderiam ser obtidos de uma camisa suada, germe de trigo e queijo.
  • 3
    George Stahl era um vitalista, tendo desenvolvido a famosa “teoria do flogisto”.
  • 4
    Enzima hoje conhecida como amilase.
  • 5
    Formação de isômeros de glicose, modificando a posição espacial dos grupos hidroxilas da molécula.
  • 6
    A inibição competitiva ocorre quando moléculas, similares ao substrato, ligam-se ao sítio ativo da enzima, evitando sua atividade enzimática normal. A inibição competitiva pode ser revertida pelo aumento da concentração de substrato em solução (Martin, Hine, 2008).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2019
  • Aceito
    18 Nov 2019
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