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A Estação Biológica do Alto da Serra: um “tesouro da natureza”, 1918-1938

Alto da Serra Biological Station: a “treasure of nature,” 1918-1938

Resumo

O artigo explora aspectos da história da Estação Biológica do Alto da Serra, de 1918 a 1938, quando esteve sob a gestão do botânico Frederico Carlos Hoehne. A perspectiva da história das ciências balizou a análise, que considerou as especificidades da Estação Biológica e as distintas formas de pesquisa, circulação e interação. O estudo indica que o propósito de proteção e guarda da natureza articulou-se a um projeto de Nação e vinculou-se a um debate crescente sobre a conservação de áreas verdes. Complementarmente, a análise das práticas científicas demonstra a importância das visitas ao local, estrategicamente divulgadas por Hoehne para conferir credibilidade e angariar apoio à iniciativa.

Frederico Carlos Hoehne (1882-1959; estação biológica; botânica; história

Abstract

This article explores aspects of the history of Alto da Serra Biological Station between 1918 and 1938, when it was under the management of the botanist Frederico Carlos Hoehne. Taking a history of science perspective, the analysis considers details of the biological station and the different forms of research, circulation, and interaction. The study indicates that the purpose of protecting and safeguarding nature was coordinated with a nation-building project and linked to a growing debate about the conservation of green areas. Additionally, the analysis of the scientific practices demonstrates the importance of visits to the site, which were strategically communicated by Hoehne to lend the initiative credibility and garner support.

Frederico Carlos Hoehne (1882-1959; biological station; botany; history

Os registros no livro de visitas da Estação Biológica do Alto da Serra – hoje conhecida como Reserva Biológica do Alto da Serra – iniciaram em 1926. Atualmente, o material compõe o acervo da sala Frederico Carlos Hoehne, do Instituto de Botânica de São Paulo, e está exposto numa vitrina em destaque, lado a lado com outras publicações desse botânico, que teve uma importante trajetória em instituições paulistas no decorrer da primeira metade do século XX. Se inicialmente a função do material era registrar o número de pessoas que frequentavam a Estação Biológica, o longo tempo em que cumpriu essa atribuição lhe agregou outro valor. Ao testemunhar, em 270 páginas, as pessoas que passaram por lá de fevereiro de 1926 a outubro de 1988, o livro alcançou status de objeto musealizável não só porque contém assinaturas de pesquisadores reconhecidos, mas também pelas centenas de outras assinaturas que mostram o interesse de professores, estudantes, jornalistas, grupos religiosos e pesquisadores que deixaram suas impressões e acompanharam as mudanças ocorridas.

O livro de visitas ajuda a dimensionar a importância da Estação Biológica e a atração que exerceu ao longo do século XX. As observações deixadas pelos visitantes ora mostram o encanto com o esplendor da natureza, ora a insatisfação com as transformações sentidas no local em decorrência da intensa industrialização e do descaso com o meio ambiente em Cubatão, município vizinho que conseguiu fama, em 1980, por ser um dos mais poluídos do mundo.

Ademais, o material chama a atenção para a história da própria estação e suscita uma reflexão sobre o reduzido número de pesquisas históricas dedicadas ao tema. Assunto central de um dos capítulos do livro organizado por Lopes e Kirizawa (2009)LOPES, Márcia I.M.S.; KIRIZAWA, Mizué. Reserva Biológica de Paranapiacaba, a antiga Estação Biológica do Alto da Serra: história e visitantes ilustres. In: Lopes, Márcia I.M.S.; Kirizawa, Mizué; Melo, Maria M. da R.F. de (org.). Patrimônio da Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba: a antiga Estação Biológica do Alto da Serra. São Paulo: Instituto de Botânica, 2009. p.20-37., publicado pelo Instituto de Botânica, a perspectiva não é privilegiada nas demais produções. No levantamento realizado por Melo, Moraes e Santos (2009) sobre as investigações dedicadas à Reserva Biológica, as autoras apontam que o grande número de coletas realizadas no local até a primeira metade do século XX não resultou em número proporcional de publicações. As expedições e os estudos divulgados foram menos intensos após 1920, e, a partir de 1960, observou-se uma mudança de interesse na comunidade científica em relação à Mata Atlântica da região. Do total de 210 trabalhos identificados no levantamento, apenas dois foram considerados sobre história: o artigo de Teixeira (1988)TEIXEIRA, Alcides R. Resenha histórica do Instituto de Botânica de São Paulo. Ciência e Cultura, v.40, n.11, p.1045-1054, 1988., que versa sobre a história do Instituto de Botânica, e o livro de Lamarca (2008)LAMARCA, Vicente. A história de Paranapiacaba. Santo André: Associação Ambientalista Mãe Natureza, 2008., cujo foco é a história de Paranapiacaba.

A origem da Estação Biológica também foi abordada em produções cujo foco tangencia a temática: nos trabalhos de Elias (1996)ELIAS, Maria J. Museu Paulista: memória e história. Tese (Doutorado em História) –Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996., Alves (2001)ALVES, Ana M. de Alencar. O Ipiranga apropriado: ciência, política e poder: o Museu Paulista, 1893-1922. São Paulo: Humanitas; FFLCH-USP, 2001., Gualtieri (2008)GUALTIERI, Regina C.E. Evolucionismo no Brasil: ciência e educação nos museus, 1870-1915. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2008. e Lopes (2009)LOPES, Margaret M. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Aderaldo e Rothschild; Brasília: Editora da UnB, 2009., interessados no Museu Paulista, e em outros de história ambiental, como os de Dean (1996)DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. e Franco e Drummond (2009)FRANCO, José L.A.; DRUMMOND, José A. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.. A nossa impressão, entretanto, é de que se trata de uma produção relativamente pequena, sobretudo considerando os textos que de fato focalizam a Estação Biológica. A disponibilidade de fontes e a preocupação crescente com a destruição da Mata Atlântica talvez sejam fatores que possam alterar tal quadro. Os arquivos do Instituto Butantan, do Museu Paulista, do Instituto Biológico e do Instituto de Botânica possuem documentos que podem suscitar novas discussões permeando a história ambiental, a história das instituições, da botânica e da produção científica em São Paulo.

Esperamos, com o presente artigo, contribuir com o debate, ao focalizar o período de 1918 a 1938, em que o local ficou sob responsabilidade de diferentes instituições: da Seção de Botânica do Instituto Butantan (1918-1922), da Seção de Botânica do Museu Paulista (1923-1927), da Seção de Botânica e Agronomia do Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal (1928-1934) e do Serviço de Botânica e Agronomia anexo ao Instituto Biológico (1934-1938). As mudanças ocorreram conforme as transferências do setor de botânica, inicialmente dirigido por Hoehne no Instituto Butantan. A permanência do estudioso como responsável pela Seção de Botânica ao longo desses vinte anos, entretanto, foi um contraponto às mobilidades e possibilitou a defesa do projeto.

Frederico Carlos Hoehne (1882-1959) ingressou na carreira pública em 1907, como jardineiro-chefe do Museu Nacional, função que possibilitou sua participação nas expedições coordenadas pelo marechal Cândido Rondon. Já em 1917, a convite do diretor do Serviço Sanitário do estado, mudou-se para São Paulo a fim de criar um horto botânico no Instituto Butantan, projeto que foi ampliado e originou a Seção de Botânica no local. As mudanças ocorridas nesse setor nos anos subsequentes foram importantes na institucionalização da botânica em São Paulo e deram visibilidade ao trabalho de Hoehne, que, em 1938, passou a ser o responsável pelo Departamento de Botânica do estado. Nesse contexto, a administração da Estação Biológica do Alto da Serra, entre 1918 e 1938, coloca-se como parte de um projeto mais amplo vinculado diretamente à atuação do botânico (Bocchi, 2020BOCCHI, Luna A. Frederico Carlos Hoehne e a Seção de Botânica: caminhos cruzados entre as ciências, os cientistas e as instituições (1917-1938). Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.).

Na primeira parte do texto, abordaremos a origem da Estação Biológica e as discussões sobre a proteção da natureza no início do século XX; na sequência, discutiremos as atividades desenvolvidas durante a gestão de Hoehne e nos deteremos às visitas de estudo realizadas no local, argumentando que foram estrategicamente divulgadas para conferir credibilidade e angariar apoio à iniciativa.

A perspectiva da história das ciências balizou a análise e contribuiu para redimensionar o “lugar” de produção do conhecimento científico. Como já problematizado pela historiografia, entende-se que o conhecimento científico tem caráter local em qualquer lugar, sendo central na maneira como as alegações científicas passam a ser consideradas verdadeiras, em como as teorias são estabelecidas e justificadas, e nos meios pelos quais a ciência exerce o poder no mundo (Raj, 2007RAJ, Kapil. Relocating modern science: circulation and the construction of knowledge in South Asia and Europe, 1650-1900. Houndmills, NY: Palgrave Macmillan, 2007.; Livingstone, 2013LIVINGSTONE, David N. Putting science in its place: geographies of scientific knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2013.). Nesse sentido, os laboratórios, museus, jardins botânicos e, no caso, as estações biológicas – só para citar alguns – têm especificidades e ensejam distintas formas de se produzir conhecimento científico, de circulação e de interação desse conhecimento. Na pesquisa, a aproximação com o cotidiano do trabalho científico foi possível por meio de diversas fontes que incluíram, além do já mencionado livro de registro dos visitantes, os relatórios das diferentes instituições às quais a Estação Biológica esteve vinculada, publicações de seus responsáveis, notícias em periódicos e fotografias, que nos permitiram explorar momentos do passado, percepções do entorno e pontos de vista das pessoas diretamente envolvidas com o local.

A proteção e guarda da natureza

O texto introdutório do livro de visitas que esclarece a finalidade da Estação Biológica também aparece no Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista, obra de autoria de Hoehne (1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.13) escrita para celebrar o oitavo aniversário da Seção de Botânica, com o propósito de despertar o interesse e o amor do público e dos governantes para as ciências biológicas e, em especial, para a botânica. A explicação, seguida do adendo “Nesta reserva florestal todas as plantas e animais devem ser respeitados. Nada pode ser tirado e nada introduzido”, indicava a importância de se manter a área conservada tal como estava, especialmente tendo em vista as mudanças ocorridas após a chegada dos europeus no território que viria a ser o Brasil. O ponto de vista parece coincidir com o que Diegues (2001)DIEGUES, Antonio C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2001. chamou de mito moderno da natureza intocada, ideia que concebe o homem como destruidor da natureza e que embasou a criação de áreas naturais protegidas, política conservacionista implementada primeiramente nos EUA em meados do século XIX e, mais tarde, transposta para os países de Terceiro Mundo, como explicita o autor.

Na história da destruição da Mata Atlântica escrita por Dean (1995DEAN, Warren. A conservação das florestas no Sudeste do Brasil: 1900-1955. Revista de História, n.133, p.103-116, 1995., 1996DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.), o autor ressalta o uso do machado de ferro e de queimadas realizadas para o proveito máximo dos cultivos, práticas que, juntamente com a produção de gêneros para exportação, o crescimento das cidades e a expansão das ferrovias, culminaram com a devastação de incalculável riqueza da floresta original. As transformações acentuadas ocorridas no final do século XIX e início do XX correspondem ao período apontado como o início das preocupações conservacionistas no Sudeste do Brasil. A criação do Parque Cajuru, em 1909, coincide com a importância da temática e remonta ao interesse e à iniciativa de Hermann von Ihering, zoólogo e diretor do Museu Paulista. A área, localizada no município de Santo André (SP) e adquirida por Ihering com recursos próprios e com ajuda de amigos, é considerada a primeira estação biológica da América do Sul. Foi Mathias Wacket, antigo morador da região, quem chamou a atenção do zoólogo para o local (Lopes, Kirizawa, 2009).

O projeto de estabelecer uma área de conservação e pesquisa não foi isolado. De acordo com Drummond, Franco e Oliveira (2010DRUMMOND, José A.; FRANCO, José L.A.; OLIVEIRA, Daniela de. Uma análise sobre a história e a situação das unidades de conservação no Brasil. In: Ganem, Roseli S. (org.). Conservação da biodiversidade: legislação e políticas públicas. Brasília: Câmara dos Deputados; Edições Câmara, 2010. p.341-385., p.343-344), a “partir da segunda metade do século XIX, a criação de UCs [Unidades de Conservação] firmou-se, no Brasil e no mundo, como a principal e mais amplamente disseminada estratégia de proteção da natureza”. As categorias distintas (entre elas, as reservas biológicas) tinham objetivos variados de preservação, conservação e de controle da exploração dos recursos. No Brasil, antes da aprovação do Código Florestal de 1934, havia, além da Estação Biológica do Alto da Serra, a de Itatiaia, estabelecida em terras adquiridas pelo governo federal por conselho do botânico Alberto Löfgren (Figura 2). Já os primeiros parques nacionais foram criados na década de 1930: o de Itatiaia, em 1937, os de Iguaçu e da Serra dos Órgãos, em 1939 (Dean, 1996DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.; Drummond, Franco, Oliveira, 2010DRUMMOND, José A.; FRANCO, José L.A.; OLIVEIRA, Daniela de. Uma análise sobre a história e a situação das unidades de conservação no Brasil. In: Ganem, Roseli S. (org.). Conservação da biodiversidade: legislação e políticas públicas. Brasília: Câmara dos Deputados; Edições Câmara, 2010. p.341-385.).

Figura 2
: Capa do Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista, com destaque para uma imagem da Estação Biológica do Alto da Serra (Hoehne, 1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925.)

A iniciativa de criação da Reserva Biológica do Alto da Serra foi tema de palestra proferida por Ihering na Universidade Popular de Piracicaba e depois foi noticiada na Revista do Museu Paulista, em artigo assinado pelo próprio estudioso. O texto, sobre a devastação e conservação das matas, elogiava a legislação protetora da flora e da fauna nos países “de civilização adiantada”, como os EUA, e opunha-se à ausência de leis federais brasileiras relativas a caça, pesca e proteção das aves. Em São Paulo, alertava o autor, a existência de algumas leis municipais de caça não era acompanhada de fiscalização, colocando em risco o funcionamento do mecanismo “delicado” e “sutil” da natureza viva. O mais sério dos prejuízos foi atribuído à derrubada das matas, embora não faltassem no país pessoas e corporações científicas que se empenhassem em favor da conservação, sendo o próprio Ihering (1911IHERING. Hermann von. Devastação e conservação das matas. Revista do Museu Paulista, v.8, p.485-500, 1911., p.488-489) um desses exemplos, conforme ressaltado:

O primeiro passo de propaganda prática, no interesse do estudo e da conservação das matas, foi dado por mim com a fundação da Estação Biológica do Alto da Serra. O estabelecimento, situado a 20 minutos da estação do Alto da Serra, consiste em vários edifícios, entre os quais o principal, circundado por um largo alpendre, contém laboratórios, biblioteca, coleções e dormitórios. O inspetor, cuja família se encarrega da pensão, já abriu bons caminhos pela mata e organizou plantações de árvores, sementeiras etc. O estabelecimento, que há mais de um ano está funcionando perfeitamente, foi por mim oferecido no ano passado como presente ao governo do estado, para ser anexado ao Museu. Como até agora nada foi resolvido sobre o assunto, as despesas de custeio correm todas por minhas contas.

Nos primeiros três anos de existência da estação, algumas pesquisas foram desenvolvidas pelo Museu Paulista. O local, referido como o “laboratório do museu”, também foi visitado por inúmeros naturalistas, e, a despeito do desejo de seu criador de que o governo do estado passasse a mantê-lo, Ihering seguiu custeando os gastos necessários até 1913, quando o parque foi cedido ao governo e confiado ao Serviço Florestal da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio (Ihering, 1914IHERING. Hermann von. O Museu Paulista nos anos de 1910, 1911 e 1912. Revista do Museu Paulista, v.9, p.5-24, 1914.; Lopes, Kirizawa, 2009). Em 1918, a Seção de Botânica do Instituto Butantan, dirigida por Hoehne, passou a ser responsável pelo local. O botânico foi defensor do estabelecimento de estações biológicas e reservas florestais, sendo um dos primeiros brasileiros a indicar a necessidade de reservas genéticas (Dean, 1996DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p.273). Bastante crítico quanto à destruição da natureza pelos seres humanos, defendia que os bens naturais deviam ser usados racionalmente, pois o zelo ocasionaria equilíbrio e a todos beneficiaria.

A natureza traria não só benefícios de ordem prática, mas também era vista por seu valor estético, conforme salientado por Franco e Drummond (2009)FRANCO, José L.A.; DRUMMOND, José A. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.. Para os autores, a preocupação de Hoehne com a exploração dos recursos naturais foi marcada em suas obras por um tom objetivo e pragmático; entretanto, afirmam que sua “base estava em uma percepção estética do mundo natural, segundo a qual os seres humanos são parte da totalidade, e cada uma das outras partes, todas inter-relacionadas, vale por si própria e por ser parte do todo” (p.183).

De acordo com o botânico (Hoehne, 1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.82), tanto as estações biológicas quanto os parques nacionais e as reservas florestais tinham a mesma finalidade: “proteger e guardar documentos da natureza para os filhos e gerações futuras”. As funções de tais locais seriam prevenir e amparar, e eles não deveriam ser confundidos com os hortos, os jardins botânicos e os hortos florestais, que tinham como objetivo remediar o mal já praticado. As reservas florestais deveriam ser confiadas a pessoas interessadas e dedicadas, de maneira que se tornassem úteis e aproveitáveis para as ciências, constituindo-se em campos de pesquisa e de estudo. Deveriam, além disso, ser utilizadas regiões com natureza ainda virgem, cujos custos não seriam altos e poderiam ficar a cargo dos estados e do governo federal, proposição que ia ao encontro do projeto estabelecido no Alto da Serra.

A proteção da natureza foi amplamente abordada nas publicações de Hoehne. A temática atrelava-se aos ideais de nacionalismo e de intervenção do Estado na proteção do patrimônio natural do país, e era vista como central na elaboração de um projeto de nação. As posições do botânico, entretanto, não o colocavam como um preservacionista stricto sensu: “Defendia o uso dos recursos naturais, desde que previdente, bem como a fruição estética e a pesquisa científica, que deveriam ser garantidos pelo artifício humano em consórcio com a natureza. Ele estava, portanto, longe de uma posição estritamente ‘preservacionista’, ‘anti-humana’”, ponderam Franco e Drummond (2009FRANCO, José L.A.; DRUMMOND, José A. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009., p.172).

Ao longo de sua trajetória, Hoehne atuou na organização e manutenção da Estação Biológica, de hortos botânicos, do Orquidário e do Jardim Botânico de São Paulo, delimitando as especificidades de cada um deles. Ao assumir a administração do Alto da Serra, diferenciou-a do trabalho que acontecia no horto Oswaldo Cruz, localizado no Instituto Butantan e também sob seus cuidados. Enquanto este se destinava ao cultivo e estudo de plantas medicinais ou tóxicas, a estação representava mais uma reserva florestal, com “grande área de terreno coberto de matas virgens e campos perfeitamente cercados, destinados a documentar aos nossos descendentes o estado primitivo da nossa terra e dar aos cientistas ocasião de estudar as nossas plantas daquela região” (Hoehne, 1918, p.200).

Quando a estação esteve vinculada ao Instituto Butantan, ao Museu Paulista e ao Instituto Biológico, entre 1918 e 1938, não foram poucos os pedidos de Hoehne de verbas destinadas à manutenção do local. A extensa área, guardada inicialmente por apenas dois funcionários, era constantemente invadida ou requeria cuidados com mais frequência do que a da realização dos trabalhos. Os relatos de depredações, invasões e roubo de lenha, palmito e plantas eram regularmente acompanhados de solicitações de construção de cercas, colocação de placas, limpeza das picadas, contratação de funcionários e construção de casas ou manutenção das existentes, que serviam de moradia para o guarda e para a recepção de pesquisadores e visitantes.

A casa-sede foi descrita por Hoehne (1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.102) como velha, feia e suja, necessitando de reformas e pintura. Com cinco amplos cômodos e rodeada por varanda, tinha o indispensável, assim como uma pequena biblioteca e material para o trabalho em biologia. As críticas do botânico, no entanto, devem ser vistas com ressalvas e podem ser interpretadas como uma estratégia para reforçar o pedido que havia feito de uma nova casa no local. Até porque a impressão contrasta com as opiniões positivas emitidas pelos visitantes no livro de visitas, especialmente com o relato de Isabel von Ihering, nora de Hermann von Ihering, que retornou ao local em 1930 e expressou “intenso prazer” ao constatar “que tudo aqui foi bem cuidado, mesmo a roupa de cama e mesa que ainda [são] as mesmas com o monograma de minha sogra” (Livro de visitas, 1926, p.19).

Nos primeiros anos em que esteve subordinada à Seção de Botânica do Instituto Butantan, o trabalho na Estação Biológica consistiu basicamente na conservação e fiscalização do terreno. Muitas necessidades foram apontadas, incluindo a da melhoria do transporte e da comunicação, pois não havia estrada carroçável partindo da Estação de Campo Grande, tampouco um aparelho telefônico, o que impunha distanciamento e ritmo de trabalho mais lento do que o que ocorria na sede do Butantan.

Embora a estação estivesse sendo conservada como reserva florestal, Hoehne (1920HOEHNE, Frederico C. Relatório anual apresentado ao diretor do Instituto Butantan por F.C. Hoehne (referente ao ano de 1920). Relatório do Instituto Butantan (Arquivo do Instituto Butantan, São Paulo). 1920., p.78) tinha planos de transformá-la “no mais aprazível e instrutivo Jardim Botânico da América do Sul”. Considerado o melhor ponto nas proximidades de São Paulo para o projeto, defendia que fossem priorizados os cultivos de espécies endêmicas, entre elas Bromeliaceae, Lycopodiaceae, Orchidaceae e palmeiras. Com mais recursos e melhoria da comunicação, o local poderia ser transformado não só num jardim para os interessados em botânica, mas também em um logradouro público, onde o estrangeiro poderia observar a beleza e a pujança da flora brasileira.

Apesar dos planos, os comentários feitos por Hoehne nos relatórios institucionais sugerem que pouco foi feito na Estação Biológica em decorrência da falta de verba. Priorizaram-se a manutenção e a segurança, tendo também ocorrido visitas do próprio botânico e de outros estudiosos. No final de 1922, a transferência da Seção de Botânica do Instituto Butantan para o Museu Paulista culminou na mudança da administração da Estação Biológica, que, embora continuasse sob responsabilidade de Hoehne, passou a ser subordinada ao museu localizado no Ipiranga, na época dirigido por Affonso Taunay (São Paulo, 29 dez. 1922). A alteração parece ter trazido perspectivas mais animadoras, e, no mesmo ano, além da construção de uma estrada para pedestres com extensão de sete quilômetros, foi autorizada por Washington Luís (presidente do estado) a construção de duas casas de madeira para os guardas e uma terceira mais ampla para a instalação de dois museus (de zoologia e botânica), com dois laboratórios e quartos destinados aos naturalistas e à direção. Orçado em sessenta contos de réis, o projeto apresentado por Hoehne trazia desafios adicionais devido ao difícil acesso e à necessidade de transporte do material (Hoehne, 1923, p.11-13). A verba, entretanto, não foi liberada, e o plano não chegou a se concretizar.

O projeto dos edifícios elaborado por Joaquim de Toledo, responsável por outros projetos da Seção de Botânica, foi publicado no Álbum da Seção de Botânica (Hoehne, 1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925.): em um deles, o museu de zoologia e o laboratório ficariam lado a lado com o museu botânico e com o outro laboratório, sendo previstos também dois dormitórios, um escritório, uma sala de jantar, uma pequena cozinha e um toalete. O outro edifício, de menor dimensão, seria destinado à residência dos guardas e tinha a intenção de solucionar os problemas relatados sobre a má conservação da casa existente. Hoehne apresentou o projeto e relatou na publicação a aprovação da construção e a abertura de crédito pela Secretaria de Agricultura aprovada por Washington Luís, em 1923, no valor de sessenta contos de réis, com a observação de que, até aquele momento, não tinha sido aplicado. A menção parece expressar um incômodo com a não liberação da verba e joga luz sobre o discurso construído pelo botânico no qual a eficiência de seu trabalho nem sempre era acompanhada de ações governamentais.

No dia a dia, além da abertura de picadas, que garantiam o acesso dos estudiosos às diferentes áreas da estação, a identificação das plantas nativas foi outro trabalho realizado, que previa a inclusão de chapinhas numeradas nas espécies e a elaboração de um guia, onde se poderia saber mais sobre os números correspondentes – ao lado do nome científico, constariam os nomes populares e a indicação das utilidades das diversas espécies (Hoehne, 1924HOEHNE, Frederico C. Relatório da Seção de Botânica do Museu Paulista referente ao ano de 1924. Arquivo Permanente do Museu Paulista, Fundo Museu Paulista, livro 8 (Museu Paulista, São Paulo). 1924., p.4-5). Embora não tenhamos conhecimento a respeito da realização do guia, esse foi um recurso valorizado por Hoehne, que via vantagens para as exposições de botânica, fossem elas organizadas a céu aberto ou em ambientes fechados. O teor das informações disponíveis parece indicar um modelo já difundido nos guias da área: os nomes científico e popular, juntamente com a utilidade das espécies, o que priorizava o uso das plantas pelos seres humanos, em detrimento das informações técnicas que interessariam mais aos especialistas.

A planta da Estação Biológica, de 1924 (Figura 3), mostra uma área de três milhões de metros quadrados com regiões ocupadas por florestas e campos virgens. No desenho de Joaquim de Toledo, realizado a partir do levantamento feito por Hoehne, é possível observar ao sudeste, próximo da sede, o ponto em que se pretendia construir a nova casa com museus e laboratórios. A maioria das picadas abertas se encontra no entorno; já na região central e ao oeste, mais próximo da Estação de Campo Grande, havia o projeto para a casa do guarda e dois longos caminhos construídos na área, a picada Washington Luís e a Professor Carlos Frederico von Martius.

Figura 3
: Planta da Estação Biológica do Alto da Serra, 1924 (Hoehne, 1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.88)

Os nomes dos caminhos de acesso são homenagens aos homens ligados às ciências e à política, com destaque para o cenário político paulista. As escolhas foram assim justificadas:

A ‘Martius’ escolhemos por devermos a ele a melhor obra que possuímos da nossa flora; ‘Saint-Hillaire’, foi o grande propagandista das riquezas medicinais da nossa terra; ‘Barbosa Rodrigues’, o maior botânico patrício; ‘Hermann von Ihering’, o fundador do Museu Paulista, da Estação Biológica e do Horto Botânico anexo ao primeiro. ‘Washington Luís’, quando presidente do estado, tornou possível a abertura da mais bela e longa picada que é a mesma que recebeu o seu nome; ‘Oscar Rodrigues Alves’ com ‘Arthur Neiva’, anexaram a mesma estação à Seção de Botânica; ‘Jean Massart’, lá esteve e escreveu muito sobre a sua flora em sua obra: Une mission biologique belge au Brésil; ‘Wettstein’ foi um dos primeiros que ali trabalharam como naturalista botânico, quando veio ao Brasil com o ‘Dr. Schiffner’; ‘Günther’ lá esteve e tem feito uma série de conferências sobre a natureza brasílica e especialmente sobre esta estação; ‘Lutz’, o grande naturalista de Manguinhos, tem estudado a fauna batraquiológica local; ‘Wacket’ foi aquele que apontou as vantagens daquela região ao ‘Dr. Ihering’ e ‘Schwebel’ foi o primeiro encarregado e ali trabalhou durante nove anos (Hoehne, 1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.103-104; destaques no original).

Chama a atenção a nomeação das picadas Mathias Wacket e Ernesto Schwebel, que, embora desconhecidos nos meios científico e político, foram homenageados pela atuação que tiveram para a criação e manutenção da estação. Schwebel, além disso, foi mencionado como um dos guardas que se tornaram “merecedores de elogios”, apesar de sua saída controversa em 1918 em decorrência de “denúncias infundadas” que o apontaram como suspeito e até espião dos alemães – de acordo com Hoehne (1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.93), a acusação foi realizada por alguns moradores “despeitados” do Alto da Serra, que estariam incomodados com a ação e talvez “excesso” de zelo de Schwebel ao expulsar os últimos invasores da área, apontados como responsáveis pelo derrubamento da mata para obtenção de carvão e lenha. A menção ao episódio indica dois aspectos distintos: de um lado, o jogo de poder que comumente rendia homenagens aos homens mais influentes, não obstante, no caso em questão, também celebrou dois desconhecidos que muito provavelmente assim se manteriam, não fosse a menção de seus nomes nos caminhos abertos. De outro, a existência de conflitos entre os moradores da região e o aparato que garantia a própria Estação Biológica, que colocava os primeiros numa posição de invasores, adversos aos propósitos científicos traçados. Muito provavelmente, a narrativa dos moradores do entorno seria outra, já que, para eles, a natureza não era fonte de estudo e pesquisas, mas relacionava-se ao trabalho e à subsistência das famílias.

Em 1926, a área da Estação Biológica foi ampliada após longa negociação para a compra de 15 alqueires de terras cobertas de matas e campos naturais virgens, empreendimento defendido por Hoehne e aceito por Taunay e pela Secretaria do Interior, que forneceu a verba adicional de trinta contos de réis para que a Seção de Botânica adquirisse o terreno pertencente ao comendador Manuel Augusto Alfaya (Hoehne, 1926, p.4-6). De acordo com Hoehne (p.4):

Com esta aquisição cresceu a sua importância para as ciências, não somente porque aumentou em superfície, mas porque, ampliada esta, mais facilidades pôde oferecer para a vida e conservação de centenares [sic] de espécies animais, que, com a derrubada das florestas adjacentes, nela se refugiam e, assim, encontram um meio para fugirem à destruição, viverem e multiplicarem-se à vontade nesta reserva em que lhes são asseguradas todas as garantias de vida.

Apesar dos limites orçamentários, que inviabilizaram a transformação da área num jardim botânico ou num centro de pesquisa com novas instalações, a existência da reserva por si só constituiu um importante projeto para a conservação de espécies vegetais e animais.

A Reserva Biológica do Alto da Serra como lugar de encontros e construção de sentidos

Ao longo dos anos, a Estação Biológica do Alto da Serra foi visitada por inúmeros estudiosos brasileiros e estrangeiros, e o interesse despertado foi usado por Hoehne como uma estratégia de divulgação e fortalecimento da iniciativa. O botânico procurava destacar nos relatórios destinados aos seus superiores o intenso contato e as trocas com instituições internacionais, de maneira a respaldar os pedidos de verba e agilidade para que suas reinvindicações fossem aceitas. A Estação Biológica tinha um diferencial: o contato se dava in loco e exigia medidas para receber os interessados e apoiar a pesquisa científica, tais como acessibilidade e acomodação. Essas providências, ao que Hoehne indica, não ocorriam sem dificuldades, e, em várias ocasiões, solicitações foram feitas com a justificativa de receber os pesquisadores.

Outro aspecto que chama a atenção é o empenho do botânico em divulgar as visitas, extravasando a burocracia dos relatórios de prestação de contas e dando repercussão a alguns desses encontros em artigos de jornal, revistas e publicações de sua autoria. A veiculação de notícias na imprensa paulista sinalizava, ao mesmo tempo, a boa relação entre Hoehne e certos veículos de comunicação. As visitas de estrangeiros tinham especial destaque, possivelmente por seu prestígio como pesquisadores e pelo vínculo que mantinham com entidades reconhecidas, somadas ao esforço adicional de longos deslocamentos para conhecer uma parte da flora brasileira.

Por diferentes motivos, a natureza e a cultura tropical ainda despertavam atração na primeira metade do século XX. Driver e Martins (2005DRIVER, Felix; MARTINS, Luciana. Views and visions of the Tropical World. In: Driver, Felix; Martins, Luciana (ed.). Tropical visions in an age of empire. Chicago: University of Chicago Press, 2005. p.3-20., p.3-4) pontuam que a ideia de tropical como um conjunto distinto de relações naturais e humanas assumiu diversas formas em diferentes contextos geográficos e intelectuais. Na literatura de história natural, viagens e explorações, por exemplo, a ideia de diferença tropical teve uma influência notável, mesmo quando a experiência real das viagens tropicais não correspondia às expectativas. Ao longo do período moderno, sua presença também pôde ser detectada em uma série de formas culturais, tais como poesias e pinturas, e, a partir do século XIX, à diferença tropical foi dada uma expressão institucional com o surgimento e desenvolvimento de especializações subdisciplinares, como é o caso da medicina tropical.

Se, em séculos anteriores, algumas das viagens de estrangeiros ao Brasil com o intuito de investigar a flora e apropriar-se dos recursos naturais tornaram-se notáveis e resultaram em publicações memoráveis, as viagens de estudo do século XX não foram menos importantes, embora seja possível presumir que as ideias em relação ao tropical e ao exotismo já não fossem mais as mesmas, ainda que guardassem um olhar para a pujança, a variedade da flora e a beleza do local. Os pesquisadores europeus Jean Massart e Konrad Günther conheceram a Estação Biológica acompanhados por Hoehne e chamaram a atenção para esses aspectos da Mata Atlântica. As visitas, noticiadas pela imprensa, também foram literalmente marcadas com a abertura de picadas na estação em homenagem aos estudiosos. O primeiro, Massart, professor e diretor do Instituto Botânico Léo Errera, da Universidade de Bruxelas, veio ao Brasil como coordenador de uma missão biológica belga que percorreu diversas regiões do país em 1922 e 1923. O grupo era composto por especialistas em botânica e zoologia vinculados à Universidade de Bruxelas e ao Jardim Botânico Léo Errera, e suas atividades previam o estudo da fauna e da flora, o recolhimento de objetos para demonstração nos cursos universitários, bem como de materiais de estudo para os laboratórios de zoologia e de botânica da Universidade de Bruxelas (Heizer, 2008HEIZER, Alda. Notícias sobre uma expedição: Jean Massart e a missão biológica belga no Brasil, 1922-1923. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.15, n.3, p.849-864, 2008.). A missão permaneceu 15 dias no Alto da Serra, acompanhada de Hoehne e de João Geraldo Kuhlmann, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde acamparam e recolheram cerca de duas mil espécies de plantas e quase mil qualidades de insetos, batráquios e ofídios (Missão..., 10 out. 1922MISSÃO biológica belga: excursão de estudos no Alto da Serra. Correio Paulistano, p.4, 10 out. 1922.).

A visita foi noticiada pelo jornal Correio Paulistano, juntamente com as impressões de Massart:

Eu não sabia que existia no mundo uma estação tão interessante como a do Alto da Serra. Eu trabalhei na reserva de Ijibodes, dependência do Jardim Botânico de Buitenzorg, em Java, e a sua flora parece-me hoje menos variada do que esta do Alto da Serra de S. Paulo. Esta região contém, com efeito, maciços florestais de pujança bem diversa, magníficos campos úmidos onde vivem os animais e os vegetais mais originais e interessantes do mundo (Missão..., 10 out. 1922MISSÃO biológica belga: excursão de estudos no Alto da Serra. Correio Paulistano, p.4, 10 out. 1922.).

O estudioso ainda assinalou que, se “os biologistas europeus soubessem que encontrariam aqui as necessárias instalações para os seus estudos, afluiriam em tão grande número como atualmente vão para os institutos de Peraneye, em Ceilão, e de Buitenzorg, em Java” (Missão..., 10 out. 1922MISSÃO biológica belga: excursão de estudos no Alto da Serra. Correio Paulistano, p.4, 10 out. 1922.). Além do relato de Massart ter sido publicado na imprensa paulista, a visita foi mencionada em artigo ilustrado sobre a Estação Biológica encaminhado por Hoehne à Revista Nacional e depois voltou a ser citado no Álbum da Seção de Botânica (Hoehne, 1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.118). Neste último, uma nota de Hoehne aponta que, graças ao estudioso belga e a uma carta de Massart enviada a Washington Luís, o político fez uma visita ao local e determinou a realização das obras relatadas anteriormente, o que reafirma a importância dos pesquisadores estrangeiros na valorização da Estação Biológica e o uso perspicaz que o botânico fez da atenção recebida.

Já Konrad Günther, professor da Universidade de Freiburg, na Alemanha, foi convidado pelo governo de Pernambuco para estudar os insetos prejudiciais à lavoura e resolveu estender sua estada ao Rio de Janeiro e a São Paulo para visitar os museus e os institutos, trocar ideias com os especialistas brasileiros e colher informações necessárias ao seu trabalho. A visita à Estação Biológica ocorreu em 13 de dezembro de 1923 e foi mencionada em um artigo de sua autoria em um periódico de língua alemã, da capital paulista, que depois foi traduzido e divulgado por Hoehne em texto publicado em O Estado de S. Paulo no mesmo ano e, posteriormente, no Álbum da Seção de Botânica (Hoehne, 1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.119, 121). Com o subtítulo que faz referência à Estação Biológica como sendo um “verdadeiro tesouro da natureza brasílica”, a publicação no jornal é iniciada com a menção à visita e com a justificativa de Hoehne de que a abalizada opinião do ilustre professor foi traduzida e divulgada, pois só poderia redundar em proveito de todos (Hoehne, 20 dez. 1923HOEHNE, Frederico C. Museu Paulista – A Estação Biológica do Alto da Serra: um verdadeiro tesouro da natureza brasílica. O Estado de S. Paulo, p.3, 20 dez. 1923.).

Lamentando a redução da fauna devida à destruição direta dos animais considerados inimigos do homem e em consequência da devastação das florestas, Günther, no artigo, contrapõe:

Existem, para felicidade nossa, ainda, alguns pontos no país onde se pode fazer uma ideia da riqueza e magnificência da natureza do Brasil, que é, incontestavelmente, uma das mais ricas e belas do mundo inteiro. Tais lugares são verdadeiros tesouros, porque, não somente podemos neles obter espécies de animais e plantas necessárias para beneficiar as zonas flageladas por insetos e animais daninhos, mas também os encantos mais puros, as mais agradáveis distrações podemos gozar ali. São redutos que se admiram com o coração enlevado e que nunca mais se esquecem (Hoehne, 20 dez. 1923HOEHNE, Frederico C. Museu Paulista – A Estação Biológica do Alto da Serra: um verdadeiro tesouro da natureza brasílica. O Estado de S. Paulo, p.3, 20 dez. 1923.).

E ressalta em seguida: “Um tal tesouro da natureza tem S. Paulo a felicidade de possuir nas suas imediações. É a Estação biológica do Alto da Serra ... Durante a minha vida tenho tido ensejo de ver muita cousa bela na Europa, África e Ásia, mas a floresta virgem e interessante do Alto da Serra a que me refiro é, incontestavelmente, uma das mais lindas que tenho visto” (Hoehne, 20 dez. 1923HOEHNE, Frederico C. Museu Paulista – A Estação Biológica do Alto da Serra: um verdadeiro tesouro da natureza brasílica. O Estado de S. Paulo, p.3, 20 dez. 1923.).

Konrad compara o local com o jardim botânico e o instituto localizados em Java, onde os europeus iam quase exclusivamente para estudar a flora tropical. Salienta, contudo, que, se soubessem da existência da reserva brasileira, poderiam auferir idênticas vantagens, desde que algumas providências fossem tomadas para facilitar o trabalho e o estudo. Nota-se que tanto Günther quanto Massart mencionam Java. Em Buitenzorg, atual cidade de Bogor, foi criado o primeiro jardim botânico do Sudeste asiático, em 1817, quando outras instituições similares foram estabelecidas nas colônias tropicais, numa relação que perpassava tanto o papel científico de coleta e classificação das plantas quanto a constituição de impérios coloniais e seu comércio (Headrick, 1996HEADRICK, Daniel R. Botany, chemistry, and tropical development. Journal of World History, v.7, n.1, p.1-20, 1996., p.4).

O interesse pela flora tropical manteve-se, e, aparentemente, alguns aspectos dos discursos concebidos sobre o “outro” também, já que as falas dos estudiosos europeus sugerem que o instituto em Java seria intercambiável pela Estação Biológica do Alto da Serra. Tal aspecto faz referência ao que Driver e Martins (2005DRIVER, Felix; MARTINS, Luciana. Views and visions of the Tropical World. In: Driver, Felix; Martins, Luciana (ed.). Tropical visions in an age of empire. Chicago: University of Chicago Press, 2005. p.3-20., p.5) problematizam a respeito de encontros e trocas culturais, em especial em relação ao modelo de projeção que impulsiona alguns relatos de discursos coloniais. Um risco óbvio, apontam os autores, é a elaboração de imagens concebidas já totalmente formadas; outro, é a representação dos mundos cultural e natural do Oriente, ou dos trópicos, como telas homogêneas nas quais essas imagens seriam retratadas. Embora a discussão esteja vinculada ao imperialismo dos séculos XVIII e XIX, parece-nos que a produção desse discurso sobre o “outro” não foi inteiramente rompida no início do século XX. Nesse sentido, as visitas dos estrangeiros, suas impressões e a mediação feita por Hoehne são particularmente ricas, pois abarcam o olhar para a flora tropical, as diferenças dos sentidos construídos e os possíveis desdobramentos dos encontros.

Um aspecto interessante é o valor simbólico dado aos pesquisadores estrangeiros e o status com que eram recebidos, algo que atribuímos a Hoehne, mas não unicamente, já que a repercussão era referendada pela imprensa paulista. A atenção recebida parecia vantajosa para todos os envolvidos, e o botânico brasileiro fez das relações internacionais algo proveitoso em termos científicos e políticos, já que as intensas trocas possibilitaram tanto a discussão e a construção do conhecimento botânico quanto o uso dessa rede para justificar a seriedade e a pertinência do que era desenvolvido na Seção de Botânica diante dos seus superiores, de cuja aprovação dependia a liberação de verbas e facilidades do trabalho. Em 1934, por exemplo, após sucessivas solicitações de construção de uma nova casa para receber os pesquisadores, o botânico escreveu no relatório a seu superior no Instituto Biológico:

Repetimos mais uma vez o pedido para que se providencie no sentido de ser construída uma casa ali. Temos recebido mais uma carta do Professor Vr. Verdoorn, de Leiden, Holanda, que pretende ficar trabalhando em assunto de hepatologia e briologia geral durante algumas semanas nessa dependência, mas seremos forçados a declarar-lhe, como o temos feito a tantos outros, que nas condições em que se acha a casa antiga, não podemos deixar ficar na mesma nenhuma pessoa durante a noite, porque ela ameaça ruína e não oferece conforto algum (Hoehne, 1934HOEHNE, Frederico C. Relatório mensal da Seção de Botânica e Agronomia do Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal, referente ao mês de fevereiro de 1934 (Arquivo do Instituto Biológico, São Paulo). 1934., p.3).

De forma complementar, o ponto de vista dos visitantes estrangeiros traz outras perspectivas que ajudam a compor a história e os significados construídos em torno da Estação Biológica. Martins (2013MARTINS, Luciana. Picturing a moral geography: Kenneth Grubb in Brazil. In: Martins, Luciana. Photography and documentary film in the making of modern Brazil. Manchester: Manchester University Press, 2013. p.71-99., p.13) contribui com a temática ao analisar o trabalho do missionário britânico Kenneth Grubb,1 1 Kenneth George Grubb (1900-1980), missionário anglicano, viajou por diversos países da América Latina, primeiro em nome da Worldwide Evangelization Crusade e depois pela World Dominion Press. A experiência contribuiu para que fosse nomeado diretor do setor latino-americano do Ministério da Informação, sendo depois promovido a superintendente do Ministério da Informação do governo britânico, posição que ocupou até 1946 (Grubb, s.d.-a). Martins (2013) destaca a relação entre o trabalho missionário e as explorações geográficas realizadas por Grubb, que também tinha vínculos com a American Geographical Society (EUA) e com a Royal Geographical Society (Reino Unido). que viajou por diversos países e “meticulosamente mapeou os ‘problemas espirituais’ da América do Sul em inúmeros diários de viagem e artigos”,2 2 Nessa e nas demais citações de textos em outros idiomas a tradução é livre. inclusive produzindo abundante material fotográfico no qual constam registros do Alto da Serra (Grubb, s.d.-bGRUBB, Kenneth George (1900-1980). Boston University/School of Theology. History of Missiology. Biographies, s.d.-b. Disponível em: http://www.bu.edu/missiology/missionary-biography/g-h/grubb-kenneth-george-1900-1980/. Acesso em: 7 jul. 2020.
http://www.bu.edu/missiology/missionary-...
).

O capítulo em que a pesquisadora se dedica ao tema compõe a obra Photography and documentary film in the making of modern Brazil, na qual põe em relevo fotografias e filmes produzidos nas primeiras quatro décadas do século XX no Brasil e os relaciona com a construção de uma cultura nacional:

Em contraste com as representações pictóricas da natureza brasileira do início do século XIX, que eram tantas vezes feitas para o público estrangeiro, imagens fotográficas e fílmicas documentando os povos e paisagens do Brasil circularam amplamente no país desde a inauguração do processo fotográfico moderno, notadamente em exposições, e por meio da ciência, comércio e cultura popular (Martins, 2013MARTINS, Luciana. Picturing a moral geography: Kenneth Grubb in Brazil. In: Martins, Luciana. Photography and documentary film in the making of modern Brazil. Manchester: Manchester University Press, 2013. p.71-99., p.3).

O interesse de Martins pela maneira como alguns lugares e regiões ganham mais visibilidade que outros, e também pelas múltiplas conexões globais que ensejam, possibilita novos olhares para as paisagens do Alto da Serra. Ao se debruçar sobre o período em que Grubb passou no Brasil, a pesquisa abarcou os álbuns fotográficos existentes no Royal Anthropological Institute (RAI), em Londres, que registram a viagem do missionário e de sua esposa, Eillen Sylvia Grubb, a diversas regiões do país e da América do Sul. Os álbuns em questão apresentam a particularidade de ter sido produzidos para o âmbito privado, e ainda é incerto quando ou em que condições foram compilados ou adquiridos pelo RAI. Na análise realizada, a autora destaca:

Apesar das intenções humanitárias de Grubb, a distância entre observador e observados não poderia ser facilmente apagada. Essas imagens são intercaladas com imagens de paisagens, flora tropical, locais turísticos, cidades, aldeias, edifícios religiosos e os vários povos encontrados pelos Grubb, bem como seus anfitriões, como, por exemplo, na fotografia de Eileen acompanhada pelo professor Hoehne na Estação Biológica do Alto da Serra, no estado de São Paulo. O álbum é, em certo sentido, uma combinação de memórias familiares, diário de viagem e relatório de pesquisa, que pode ser visto como um meio ‘não apenas para mostrar, mas para contar sobre instantes passados’ (Martins, 2013MARTINS, Luciana. Picturing a moral geography: Kenneth Grubb in Brazil. In: Martins, Luciana. Photography and documentary film in the making of modern Brazil. Manchester: Manchester University Press, 2013. p.71-99., p.89).

Justamente no álbum de Grubb, que chamou a atenção da pesquisadora, encontramos um conjunto de 29 fotos da Reserva Biológica do Alto da Serra que registram a visita do casal ao local em 1928; nessas imagens, a natureza é realçada ora com planos gerais da mata, ora com foco nas espécies vegetais. Em três fotos é possível observar a presença de Kenneth Grubb, Eileen Grubb e Hoehne, pequenos diante das árvores e plantas frondosas que os cercam (Figura 4). Os traços humanos aparecem também de outra forma, nas imagens dos caminhos estreitos construídos para a passagem de pessoas, na foto de uma pequena casa (cuja legenda – Deserted cottage – indica que está vazia) e no registro em que o casal aparece diante de alguns degraus, em que há a indicação a rustic bridge. Essas duas imagens e suas respectivas legendas contrastam a grandeza da natureza com a simplicidade ou “rusticidade”, para usar o mesmo termo, das intervenções humanas. A contemplação da natureza é destacada, assim como a ligação do ser humano com o entorno – em uma das fotos, observa-se Eilleen ao longe, andando em uma das picadas, imersa na natureza a ponto de quase não ser notada. A legenda da foto, “Escutando” (Listening), sugere o aguçamento do sentido em meio às plantas, aos animais e aos sons característicos do local, diversos dos centros urbanos.

Figura 4
: Álbum fotográfico de Kenneth Grubb. Em destaque, ao centro, Eilleen Grubb e Hoehne na Estação Biológica do Alto da Serra (Royal Anthropological Institute; Coleção fotográfica Kenneth G. Grubb)

Vieira-Souza (2017)VIEIRA-SOUZA, Priscila. Entre imagens, modernidade e religião: a iconologia protestante no Brasil. Pragmatizes: Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, n.13, p.159-178, 2017., ao comparar os álbuns de Grubb com outro acervo, o do Centro Áudio Visual Evangélico (Cave), aponta que as imagens produzidas por protestantes de diferentes autorias, momentos, lugares e denominações religiosas apresentam semelhanças, das quais destaca duas: a preocupação em fotografar a natureza e a existência da oposição entre técnica rudimentar e técnica moderna. Em relação ao segundo aspecto, salienta: “Comumente, as técnicas ‘rudimentares’ locais são opostas às tecnologias ‘modernas’, incluindo a ciência. Na Coleção Grubb, isso aparece pelas sutilezas nas imagens e principalmente nas legendas” (Vieira-Souza, 2017VIEIRA-SOUZA, Priscila. Entre imagens, modernidade e religião: a iconologia protestante no Brasil. Pragmatizes: Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, n.13, p.159-178, 2017., p.174). Isso é exemplificado pelo contraste da ponte localizada no Alto da Serra, mencionada como rústica (a rustic bridge), com a foto de outra ponte na cidade de Florianópolis, considerada um marco de modernização no país e descrita somente como “ponte” (bridge).

A análise das fotos de Grubb e os trabalhos de Martins e Vieira-Souza sugerem que a preocupação de Hoehne com a visita de estrangeiros à Estação Biológica desencadeou resultados para além das práticas científicas esperadas – a relação estabelecida entre os visitantes e o local, assim como as representações e os significados construídos nesses encontros, extrapolaram as intenções do botânico brasileiro. Ainda que se argumente que o álbum de Eileen e Kenneth Grubb foi produzido para a esfera privada, ele foi um dos elementos, mas não o único, que retratou a experiência do casal no Brasil.

Posteriormente, Eileen Grubb participou de uma sessão na Linnean Society, em Londres, onde ministrou uma palestra sobre a Estação Biológica do Alto da Serra. A consulta aos anais da entidade revela que foram abordadas a origem da reserva e suas características, dentre as quais foi destacada a não interferência humana: “nada está sendo tirado e nada é plantado, e nenhuma derrubada ou limpeza acontece na área virgem além dos caminhos abertos que facilitam a pesquisa e a exploração” (Proceedings..., 1931PROCEEDINGS of the Linnean Society of London, 142nd session, Nov. 1929-May 1930 (Linnean Society of London, Burlington House, London). 1931., p.16) – aspecto também evidenciado nas fotografias. A apresentação foi seguida de comentários, e, a despeito dos elogios, Eilenn Grubb também recebeu críticas pelo excesso de cores nos slides projetados, com as quais concordou e afirmou já ter isso sido notado pelo marido. É difícil não se perguntar se o mesmo aconteceria se fosse um homem ou um membro (fellow) da sociedade apresentando – apesar da conjectura não trazer novas respostas, ao menos salienta a particularidade do lugar concedido à visitante na renomada sociedade de biologia.

Se, como vimos, aos pesquisadores estrangeiros era dado um tratamento diferenciado para a visita à Estação Biológica, muitos deles sendo acompanhados pelo próprio Hoehne, aos demais interessados os procedimentos de admissão eram outros. A ida ao local era possível com a apresentação de um cartão de ingresso obtido em São Paulo, medida justificada “para evitar a entrada de pessoas que ali vão sem interesse científico, só para passeio ou para fazer ‘pic-nic’ e que sempre são indesejadas por causarem danos à propriedade” (Hoehne, 1925HOEHNE, Frederico C. Álbum da Seção de Botânica do Museu Paulista e suas dependências, etc. São Paulo: Imprensa Methodista, 1925., p.93). Pela dificuldade de acesso para os residentes da capital paulista, parece que o desejo de que as visitas se restringissem aos indivíduos que desejavam “estudar a flora ou a fauna em seu estado virginal” foi atendido. O trajeto previa pegar o trem da São Paulo Railway até o Alto da Serra, considerando que a estrada de automóvel ainda não tinha chegado ao local, e, de lá, seguir um desvio que levaria até uma das casas.

Os comentários do Livro de visitas (1926) nos aproximam das impressões e sentimentos que os visitantes tiveram ao conhecer a Estação Biológica. Os registros ressaltam a riqueza e a grandeza da natureza, recorrentemente referida pela beleza, esplendor e pujança, assim como indicam uma vivência diversa da usual, com outras sensações e tempos experimentados: “Diante desse grandioso espetáculo da natureza fico emudecida e extasiada” (p.28); “A alma do visitante fica em êxtase” (p.9).

As referências religiosas reforçam a relação entre a natureza e o plano espiritual: “Positivamente a Estação Biológica do Alto da Serra é uma maravilha do Criador” (Livro de visitas, 1926, p.30); “A grandeza de Deus é infinita, o que ninguém deve duvidar, admirando a beleza esmerada da Natureza” (p.34).

Já outros visitantes reforçam o caráter patriótico da iniciativa: “Mais uma vez fiquei maravilhado pela sua benemérita e patriótica obra” (Livro de visitas, 1926, p.2); “Aqui deixamos os nossos votos de aplauso e de admiração ante a obra evidentemente patriótica, nacionalista e científica” (p.9).

E, em outros trechos, o papel científico é destacado: “O Brasil maravilhoso destas matas pitorescas é sempre engrandecido pela ciência bem aplicada dos seus homens que aqui abrem novas estradas nos estudos biológicos buscando o aperfeiçoamento e a grandeza da flora brasileira na fonte inesgotável da botânica (Livro de visitas, 1926, p.23).

As diferentes percepções indicam a variedade de experiências no local, mas também chamam a atenção para a particularidade do olhar de alguns dos visitantes brasileiros: a grandeza da natureza é reconhecida como um atributo do país, e o projeto da Estação Biológica é relacionado a um intento patriótico, de cuidado com a flora brasileira. Desse modo, parece-nos que o vínculo entre proteção da natureza e identidade nacional presente na atuação de Hoehne e de outros protetores da natureza, tal como destacado por Franco e Drummond (2009)FRANCO, José L.A.; DRUMMOND, José A. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009., ecoou nas iniciativas propostas e sensibilizou outros grupos para a questão.

Considerações finais: entre a proteção e o descaso

Na conclusão do artigo, optamos por retornar ao ponto inicial e focalizar, mais uma vez, o livro de visitas da Estação Biológica, dessa vez sem respeitar o recorte temporal da pesquisa ou pretenso distanciamento do objeto de estudo. Dos diversos encontros registrados no livro, também ocorreu o nosso, enquanto pesquisadoras. A primeira referência sobre a existência do material foi encontrada no livro de Warren Dean (1996DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p.338-339), em trecho no qual mistura as impressões da visita que realizou ao local às transformações da região:

Em seu centro [no Alto da Serra], em uma pequena elevação, situa-se um modesto alojamento de guardas. Dentro da casa, fria e vazia, há apenas algumas cadeiras e uma mesa, e sobre a mesa um grande livro de registros. O livro contém os comentários de visitantes do parque, com datas que começam nos anos 20. Em certa época, esse parque, doado ao estado por Hermann von Ihering, era uma estação intermediária da espetacular via férrea que sobe a escarpa costeira, obrigatória para os convidados mais famosos do estado. Ali se encontram, entre as primeiras assinaturas, a de Marie Curie e de famosos naturalistas da época – Auguste Chevalier, Konrad Gruenther, Jean Massart, Mulford e Racine Foster e o grande N.I. Vavilov. ... É extraordinário que o livro de visitas tenha sobrevivido aos pequenos ladrões que ao longo dos anos invadem o parque para levarem orquídeas e papagaios – jamais imaginariam o valor do autógrafo de Madame Curie. Tampouco os curadores recentes do parque parecem se importar. Encarando a inclemente luz solar, o visitante moderno é circundado por uma natureza moribunda. Árvores perderam as folhas e a casca de seus troncos empalideceu e se fragmentou. As encostas dos montes se erodiram e rebaixaram, perdendo árvores, arbustos e, com eles, os cipós.

A descrição do historiador evoca o descaso e o distanciamento do que era a Estação Biológica nos anos de 1920, ponto de parada para os “famosos naturalistas”. A menção ao livro de visitas logo chamou a nossa atenção, e, felizmente, não foi difícil localizá-lo. Diante das assinaturas e comentários, possibilidades de usos e análises vieram à tona, mas esse entusiasmo inicial foi diminuindo à medida que surgiram registros que não mais mencionavam o encanto com a natureza, mas as transformações ocorridas na Estação Biológica decorrentes da poluição excessiva na região. Para a nossa surpresa, entre os diversos comentários, lá estava o de Dean, que deixou registradas suas impressões quando foi ao local, em 1981: “Que tragédia que a floresta primária descrita nas primeiras páginas desse livro não possa mais ser vista! A reserva precisa ser protegida, para o bem das futuras gerações, mas eu receio que eles vão herdar um deserto...” (Livro de visitas, 1926LIVRO DE VISITAS da Estação Biológica do Alto da Serra (Arquivo do Instituto de Botânica, São Paulo). 1926., p.195).

O alerta vai ao encontro do que o autor posteriormente problematizou na obra A ferro e fogo, referência da história ambiental. A exploração econômica e a Mata Atlântica, atingida pelo “machado civilizador”, foram preocupações de Dean (1996DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p.378), ao apontar que a motivação para se defender a floresta devia ser desinteressada e se estender a todos os níveis da sociedade. Embora o comentário final deixado pelo pesquisador no livro de visitas não tenha chegado a se concretizar, continua sendo uma provocação importante: “Daqui a vinte anos, este pode ser um campo cheio de ervas daninhas – e então este livro será levado para o arquivo do estado – como uma última relíquia do que uma vez esteve aqui?” (Livro de visitas, 1926LIVRO DE VISITAS da Estação Biológica do Alto da Serra (Arquivo do Instituto de Botânica, São Paulo). 1926., p.195). O material, já sem cumprir a função que lhe cabia inicialmente, de fato foi incorporado ao arquivo do estado, mas não qualquer um: hoje faz parte do acervo do Instituto de Botânica, mesmo instituto que Hoehne ajudou a fundar e dirigiu entre 1942 e 1952. A existência do arquivo, a iniciativa de organização da Sala Frederico Carlos Hoehne e as ações tomadas para contornar o problema ambiental da região evidenciam a preocupação com a preservação da Mata Atlântica e com a memória da Reserva Biológica. Mas nos parece que a apreensão de Dean e dos outros visitantes continua presente. E daqui a vinte anos, como será?

Figura 1
: Explicação escrita e assinada por F.C. Hoehne na página inicial do livro de visitas da Estação Biológica do Alto da Serra (Livro de visitas, 1926)

AGRADECIMENTO

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – código de financiamento 001.

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NOTAS

  • 1
    Kenneth George Grubb (1900-1980)GRUBB, Kenneth George (1900-1980). Boston University/School of Theology. History of Missiology. Biographies, s.d.-b. Disponível em: http://www.bu.edu/missiology/missionary-biography/g-h/grubb-kenneth-george-1900-1980/. Acesso em: 7 jul. 2020.
    http://www.bu.edu/missiology/missionary-...
    , missionário anglicano, viajou por diversos países da América Latina, primeiro em nome da Worldwide Evangelization Crusade e depois pela World Dominion Press. A experiência contribuiu para que fosse nomeado diretor do setor latino-americano do Ministério da Informação, sendo depois promovido a superintendente do Ministério da Informação do governo britânico, posição que ocupou até 1946 (Grubb, s.d.-a). Martins (2013)MARTINS, Luciana. Picturing a moral geography: Kenneth Grubb in Brazil. In: Martins, Luciana. Photography and documentary film in the making of modern Brazil. Manchester: Manchester University Press, 2013. p.71-99. destaca a relação entre o trabalho missionário e as explorações geográficas realizadas por Grubb, que também tinha vínculos com a American Geographical Society (EUA) e com a Royal Geographical Society (Reino Unido).
  • 2
    Nessa e nas demais citações de textos em outros idiomas a tradução é livre.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    9 Jul 2020
  • Aceito
    31 Mar 2021
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