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Fato e ficção na obra de Euclides da Cunha

Fact and fiction in the works of Euclides da Cunha

"O mundo inteiro tinha simpatizado com a libertação dos escravos, porque era uma medida progressista. Canudos teve repercussão por causa disso."

"Aquela guerra deixou Euclides tão nervoso que ele foi estudar feito um louco para ver se entendia o que tinha acontecido. Todo o pensamento social existente na época..."

"De meu ponto de vista, o mais importante em Os sertões é a literatura. Trata-se de uma obra literária dificilmente justificável de outros ângulos."

"Tem-se então uma contradição brutal: uma monarquia absolutista, escravocrata, numa colônia atrasadíssima, onde funciona uma escola da Revolução Francesa."

"Então, esse pessoal ficou com a cabeça completamente diferente da do resto do país, claro."

"Euclides, até a morte, deseja ter algum poder, ser candidato a deputado... Quer participar, mas não deixam. Não deixam mesmo."

"Ele se queixa da saúde o tempo todo, dando a impressão de ser um malade imaginaire. Sofre de tudo: maleita, tuberculose, beribéri, febre terçã."

"O movimento dos sem-terra é ativo, invade as fazendas. Canudos recolheu-se e desapareceu. Eles não queriam contato com o mundo."

"...na China, o Antônio Conselheiro deve ser considerado precursor do líder da Grande Marcha,

Mao Tsé-tung."

Fato e ficção na obra de

Euclides da Cunha

Fact and fiction in the works

of Euclides da Cunha

O depoimento que apresentamos a seguir traz a este número a enriquecedora contri- buição da professora Walnice Nogueira Galvão, que não pôde participar do seminário realizado no Museu da República em virtude de compromissos com outros eventos comemorativos do centenário da guerra de Canudos. Professora titular de teoria literária e literatura comparada na Universidade de São Paulo, dedicou grande parte de sua carreira acadêmica ao estudo da obra de Euclides da Cunha, tendo publicado, entre outros importantes trabalhos, No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais, 4a expedição (São Paulo, Ática, 1977); a edição crítica de Os sertões (São Paulo, Brasiliense, 1985) e, em co-autoria com Oswaldo Galotti, a organização de Correspondência de Euclides da Cunha (São Paulo, Edusp, 1997).

Na conversa que manteve conosco, Walnice enfatizou a força e a qualidade literárias de Os sertões. Em sua opinião, são elas que efetivamente fazem do livro uma obra-prima, sobrepondo-se aos aspectos historiográficos da narrativa. Foi construindo um estilo marcado pela ‘retórica do excesso’, pelo trato barroco dos elementos narrativos, que Euclides expressou as tensões presentes no drama social que se desenrolava no sertão da Bahia, bem como as contradições que abalavam sua própria identidade de intelectual cindido entre a crença nos ideais de progresso e a perplexidade diante do massacre que a ‘civilização’ promovia em Canudos.

Outro aspecto interessante do depoimento é a análise da repercussão que sua obra alcançou em diferentes países, em função dos contextos histórico-sociais em que se deram as ‘leituras’. Walnice também enfatiza o impacto de Os sertões sobre outros escritores brasileiros, em particular João Guimarães Rosa, em cuja obra identifica influência literária significativa de Euclides da Cunha.

Os comentários sobre a organização da correspondência deste autor, último trabalho a que Walnice se dedicou, mostram-nos aspectos pouco conhecidos dele. Igualmente enriquecedores são suas apreciações sobre as perspectivas dos estudos sobre a obra de Euclides da Cunha e sobre a história da guerra de Canudos a partir do que aflorou durante o centenário. Estas e outras questões que Walnice aborda, de forma inteligente e bem-humorada, formam o arremate que faltava ao conjunto de trabalhos reunidos neste número. Convidamos então os leitores a nos acompanharem nesta conversa que tanto prazer nos proporcionou. No ano de 1997 ocorreram diversos eventos concernentes aos cem anos da guerra de Canudos, que contaram com sua ativa participação. Chamou-nos a atenção um congresso sobre o tema realizado em Colônia, Fortaleza e Bahia. Como se deu esta programação?

Na Alemanha, dei um curso sobre a linguagem e a temática do sertão, tanto em Guimarães Rosa quanto em Euclides da Cunha. Então falei para o chefe do departamento: "Olha, está chegando o centenário. Por que não fazemos um congresso simultaneamente em Colônia, Fortaleza e Bahia?" A essa altura, eu sabia que a Universidade de Colônia tinha um convênio com a Universidade Federal de Fortaleza e que a Bahia ia comemorar. Um ano depois, quando me achava em Paris, recebi do pessoal do Ceará um fax nervoso indagando onde eu estava, o que tinha em mente. Eu não sabia que a idéia tinha evoluído. Reuniram as três cidades e fizeram um congresso conjunto. Foi ótimo. Os brasileiros foram para Colônia, depois os alemães vieram para o Ceará e a Bahia.

Como você vê esse interesse dos alemães por um episódio do Brasil do fim do século XIX?

Eles tomaram conhecimento do episódio de Canudos quando saiu, pela primeira vez, a tradução do livro de Euclides da Cunha. Não tinham noção do que havia ocorrido. Foi uma grande falha nunca ter sido feita a tradução para o alemão. Na França, por exemplo, já existiam duas traduções. Mas na Alemanha, a tradução de Berthold Zilly saiu em 1994 (Krieg im Sertão, Berlim, Suhrkampf Verlag, 1994). Eles caíram de costas! Assisti a alguns eventos, participei de mesas-redondas em Berlim, por exemplo, e era curiosíssimo ver a chegada de Os sertões influenciando a crítica literária alemã. Ouvi mais de um professor de literatura dizer, "Mas eu pensava que o livro do Vargas Llosa fosse bom!" Ficaram espantadíssimos.

O que os espantava mais? A qualidade literária?

A qualidade e a força literária. O episódio em si pareceu-lhes, eu reparei, insignificante. "Aqui já tivemos uma guerra em que morreram 25 milhões de pessoas!", disseram. Escutei isso na França também. Com esse tipo de experiência, diziam, "Uma ‘coisinha’ dessas render tanto..." Ficaram espantados, eu expliquei, "Bom, mas para nós foi muito significativa a guerra". Se não fosse ela, não se consolidaria a República, não se extinguiria o fantasma da restauração monárquica. Então para a nossa história foi um evento pequeno, restrito, mas que virou símbolo depois de cumprir a função que acabei de definir.

Ao apresentar a versão alemã do livro de Euclides, Zilly enfatizou o modo como a imprensa alemã acompanhou a guerra, com um rigor, inclusive, bastante grande na cobertura dos eventos. Ele chama a atenção para a importância do telégrafo.

Parece que a cobertura teve a ver com a simpatia não tanto pelo regime republicano mas sobretudo pelo fim da escravidão. O mundo inteiro tinha simpatizado com a libertação dos escravos, porque era uma medida progressista. Canudos teve repercussão por causa disso. Não muita. O próprio Zilly mostra isso. Na Alemanha saiu pouquíssima coisa. Ainda assim, é interessante que tenha havido alguma repercussão. Era a primeira vez que isso acontecia na história do Brasil.

Minha pergunta remete a comentários na imprensa a respeito do papel da tradução de Os sertões. Em artigo ‘Retardatários e degenerados’ no ‘Idéias’ do Jornal do Brasil (18.7.1997), Rouanet chamou a atenção para a crítica à modernidade como uma das possíveis leituras de Os sertões. Ele mostrou que as ambivalências dessa leitura despertaram o interesse dos alemães. Você acha que Os sertões e Canudos podem ser pensados nessa chave?

O Rouanet apresentou esse trabalho na mesa-redonda de Berlim. Em minha opinião, Os sertões são uma reflexão não sobre a modernidade, mas sobre a modernização, reflexão que olha para o avesso dela. No Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, todo mundo encarava com entusiasmo a modernização das instituições, do país, de tudo, enfim, que fora posto em questão pela abolição da escravatura e a implantação da República. Mas Euclides estava vendo o que isso significava para os pobres. Já eram excluídos e, agora, eram mortos, massacrados. O que dá força trágica ao livro é isso, a visão do lado dos pobres. Pobres-diabos até, porque eram menos que pobres. Foi a modernização que fez isso com eles. E quem era a vanguarda da modernização no Brasil? O exército. Aqueles que estudaram na Escola Militar foram lá para defender a modernização. Você vê isso em Os sertões. Mas não é só nesse livro. Em qualquer outra obra literária, nos jornais. Eles iam lá para combater a ignorância, o obscurantismo, o monarquismo... O que mais? Tudo aquilo contra o que se fazia a modernização no país. E foram entusiasmadíssimos, porque o exército acreditava piamente que era o braço armado do terceiro estado. Estavam ali para fazer a revolução francesa, a revolução burguesa, digamos assim. E, de repente, Euclides viu que não era nada daquilo, nada. Daí provém o espanto, a tragédia de Os sertões.

Porque ele também havia sido formado por aqueles ideais, também acreditava no progresso.

Acreditava. E, de repente, cai em si e diz, "Meu Deus! Está tudo errado!" Por isso o livro é trágico.

Acho muito interessante o seu argumento sobre a tensão entre o Euclides defensor da modernização, dos ideais de progresso, e o Euclides perplexo com o ‘crime da nacionalidade’.

Ele passa a admirar os pobres-coitados de lá.

Muitas vezes colocam essa questão a Os sertões: afinal, de que lado estava Euclides? Seu argumento é que isso acaba sendo resolvido, de alguma maneira, pelas figuras literárias que constrói, pela própria trama do texto, o uso dos oxímoros, das contradições... Você acha que no plano analítico, consciente, ele não teria conseguido resolver a contradição? Teria permanecido, não diria ambíguo, mas perplexo, dividido?

Dividido, dilacerado. Com certeza! Acho que ele nunca conseguiu resolver essa contradição. Você lê outros livros que foram escritos desde então sobre a guerra de Canudos, e eles não têm graça porque falta esse aspecto fundamental.

É bom você falar de outros livros e outras fontes porque este foi um tema muito discutido durante o centenário de Canudos ao se falar da importância de se superar a interpretação de Euclides da Cunha e de se rever o ‘falseamento’, vamos dizer assim, contido em Os sertões. A necessidade de rever a versão de Euclides do episódio Canudos deu a tônica a muitos debates.

Factualmente, o livro está cheio de erros, mas não têm a menor importância. Isso é que é engraçado.

Que tipo de erro?

De informação, mesmo. Números errados, nomes errados. Depois que saiu a primeira edição, ele recebeu cartas corrigindo-o: fez milhares de correções, de estilo, de informações não.

O que, aliás, é significativo!

Muito significativo. O estilo, ele corrigiu obsessivamente, em todas as edições tiradas enquanto viveu. Acho que se não tivesse morrido, teria continuado a corrigir. Mas há muitos erros de informação sobre a própria guerra e muito erro de interpretação, também, de leituras. Aquela guerra deixou Euclides tão nervoso que ele foi estudar feito um louco para ver se entendia o que tinha acontecido. Todo o pensamento social existente na época, o pensamento do imperialismo clássico do século XIX, feito pelos europeus que repartiam o mundo entre si, para provar que eles tinham direitos porque eram superiores àquelas raças de cor que povoavam o resto do mundo, pretos, mestiços, amarelos, vermelhos e o que mais fosse. Eles estavam produzindo pensamento social para justificar o seu direito de dominar e repartir o mundo. Qual era a ciência de que dispunham as pessoas daqui para pensar a si mesmas? Esta. Então achavam-se inferiores. Creio que o Manoel Bonfim foi o primeiro a não se achar. O Euclides da Cunha se achava. Está escrito no livro que o povo mestiço é inferior, que o resultado da mestiçagem é inferior ao elemento branco. Então, os instrumentos que ele utilizava para pensar eram de uma ciência que conspirava contra ele. Sílvio Romero também; todo mundo. Eles esperneavam para ver se se libertavam dessa fatalidade. Afinal conseguiram. Levou muito tempo, mas hoje ninguém mais pensa assim no Brasil, ninguém mais se acha inferior. Pelo menos nos livros. Era uma coisa muito atormentada. Sílvio Romero, que era um sujeito extraordinário, escreveu muito sobre mestiçagem, achando que era uma solução para o Brasil. Via nisso algo de positivo. Mas na hora em que um português contestou e disse que ele defendia a mestiçagem em causa própria, por ser mestiço, Sílvio Romero publicou sua árvore genealógica para mostrar que nela só havia português, só branco, não tinha preto. O pessoal era muito vulnerável a essa questão. Quando Euclides fala de si mesmo — "eu sou um misto de celta, de tapuia e grego" — a gente pensa: onde está o negro? Seqüestrou, todos seqüestravam. Aliás, seqüestram até hoje. Existe por aí, difusa, uma ideologia da mestiçagem, achando que ela é positiva, mas eu tenho a impressão de que as pessoas são capazes de publicar sua árvore genealógica para provar que ‘todo mundo é, mas eu não’.

Euclides valorizava a raiz indígena.

Ele não queria ver negros em Canudos, queria uma mistura de bandeirantes paulistas, brancos portanto, quase portugueses àquela altura, com índios, os elementos ‘nobres’ de nossa formação. Pretos, ele afirma que não havia, ou que havia pouquíssimos. Às vezes, quando narra a guerra, ele se refere a "um preto alto...", "um titã acobreado e potente..." Porque havia muitos ex-escravos lá. O Calazans, que é a pessoa que mais entende de guerra de Canudos, escreveu mais de um trabalho em que ele identifica a presença de muitos ex-escravos valentões, desaforados, os menossubmissos, que por isso ganharam o apelido de os ‘treze de maio’. Mas o Euclides fazia questão de não enxergá-los. Se você comparar a paisagem humana do Rio de Janeiro com a do sertão, encontra menos cor preta no sertão, menos mestiços, mas encontra. Não tanto quanto no Rio, que era uma das maiores cidades africanas do mundo.

Se pensarmos na formação positivista de Euclides, na missão que foi cumprir em Canudos, podemos ver a importância que dava à produção de um relato científico, objetivo. Daí a preocupação em descrever, por exemplo, a formação geológica do lugar. De repente, depara-se com um episódio que foge a esse tipo de relato.

Certamente.

E acaba construindo uma narrativa com marca pessoal tão forte. Uma questão muito discutida no seminário realizado no Museu da República foi essa dupla dimensão da obra de Euclides, com um pé na historiografia e outro na literatura. O seu comentário sobre a preocupação dele de corrigir o estilo mas não as informações objetivas é interessante para esta discussão. Você vê em Euclides essas múltiplas dimensões, a de historiador e escritor, a de cientista, a do engenheiro preocupado em descrever a natureza?

Olha, nesse caso eu tenho de ser discreta porque se não desagrado a "gregos e goianos", como dizia o Barão de Itararé. Os baianos, por exemplo, em geral detestam Euclides da Cunha porque acham que ele falsificou tudo, só contou mentiras. A guerra é um evento glorioso para a Bahia. As crianças aprendem isso na escola. Eles são propriamente conselheiristas. Já o pessoal de São Paulo, que promove a semana euclidiana em São José do Rio Pardo todos os anos, odeia Antônio Conselheiro e os jagunços. Acham que bom era Euclides da Cunha. É uma coisa louca, porque um é autor, outro é personagem. De meu ponto de vista, o mais importante em Os sertões é a literatura. Trata-se de uma obra literária dificilmente justificável de outros ângulos. Do ponto de vista científico, é muito contraditória. E do ponto de vista histórico, está repleta de falhas também. Mas literariamente, é grandiosa. Vamos dizer que ‘perdôo’ os deslizes de ciência e história por causa da literatura. Ele era tão dedicado que passou anos da sua vida corrigindo detalhes como um sufixo que se repetia muito no texto. Ele escrevia pleonasticamente, todos sabem. Era redundante, usava sempre uma retórica do excesso. Escrevia coisas como "progrediram para a frente", ou então "progrediram adiante". Tudo nele era assim, tendendo ao excesso, nunca para menos, para o enxuto. Então, ficou desesperado com o sufixo do particípio passado que tinha o hábito de repetir. Como ia acumulando adjetivos, de repente havia três terminando em ‘ado’ na mesma frase. Passou anos de sua vida trocando esse sufixo, botando um no particípio presente, convertendo outro numa forma analítica, para que não houvesse esse defeito do discurso que se chama eco. Ele se preocupava com o estilo. E o estilo de um livro já publicado! É impressionante.

É curioso que uma obra com essa força literária, unanimemente reconhecida, seja identificada como ‘número um’ de interpretação do Brasil, do pensamento social brasileiro, como foi apontado em sondagem feita pela revista Veja entre intelectuais de destaque. É uma obra que ‘inventa’, quase, o Brasil.

Sim. Mas tem muita gente que não gosta. Não pensem que é uma unanimidade. Tem gente que acha mal escrito, comum e pobre, como literatura. E até moralmente equivocado. O nosso gosto atual não é por esse tipo de literatura. Hoje em dia, preferem-se textos mais enxutos, mais despojados. Esse castelo de efeitos retóricos não é apreciado. É muito parnasiano, muito naturalista para o gosto atual. Mas é preciso lembrar que há fases, essas coisas vão e voltam. Não sei se foi por causa do centenário mas, de repente, saíram diversos trabalhos novos e interessantes sobre a guerra de Canudos ou sobre Euclides da Cunha.

Você acha que a comemoração do centenário acabou focalizando mais a figura de Euclides do que o próprio episódio?

Nos eventos de que participei, o que mais chamou minha atenção foi o aparecimento desses trabalhos. Muitos trabalhos de história, sem dar importância a Euclides da Cunha. Acusando-o, pelo contrário, de erros horríveis — e, de fato, ele cometeu erros terríveis. E muitos trabalhos sobre outras narrativas da guerra. O Berthold Zilly levou dez anos para fazer a tradução de Os sertões para o alemão, pensando que ia fazê-la em um ano ou dois. Ele não estava de olho no centenário. Há três anos foi publicada a segunda tradução na França que tampouco estava de olho no centenário. Talvez seja coincidência. Ano passado publiquei a correspondência de Euclides da Cunha. Passei sete anos preparando o material que ainda ficou quatro anos na editora. Estes três trabalhos que citei, perdoem-me por citar a mim mesma, nada tinham a ver com a celebração. No ano do centenário saíram ainda uma nova biografia de Euclides, uns três ou quatro livros sobre a guerra de Canudos. É bastante coisa! Tenho a impressão de que, independentemente do centenário, está em curso uma nova vaga de estudos euclidianos que, diga-se de passagem, estavam muito mal parados.

Por quê?

A meu ver, gosto e recepção estão mesmo sujeitos a modas. Logo o pessoal vai se cansar de Euclides, vocês vão ver. Há vinte anos, ninguém trabalhava com esse autor. Estava na moda o Guimarães Rosa. Agora, há mais trabalhos sobre Euclides. Acontece. É uma questão de oscilação pendular do gosto, para falar mais bonito e não dizer que é simples moda.

Você mencionou a disputa entre conselheiristas e euclidianos.

Os da Bahia não são euclidianos, não se dizem euclidianos.

Algumas pessoas chegam a insinuar pontos de contato entre a trajetória desse autor que é personagem também e a de Antônio Conselheiro, seja pelo lado da biografia, seja pelo lado das tensões.

Sendo que havia coisas que ele ainda não sabia: não podia saber àquela altura que ia morrer assassinado pelo amante da mulher. É impressionante a coincidência. Quando ele foi para Canudos, já havia começado sua "engenharia errante", como ele dizia, de cidadezinha em cidadezinha, no interior de São Paulo, sertão também, construindo pontes, cadeias, escolas, cemitérios, quartéis, igualzinho ao Conselheiro. É muito curioso. Eles têm diversos pontos de contato biográficos. Dá para especular se não haveria certa projeção e identificação dele com Antônio Conselheiro, porque essa parte da mulher infiel e da tragédia resultante, ele não podia adivinhar. Anão ser que Dona Saninha já estivesse aprontando antes, mas parece que não. Nunca conseguiram descobrir outro amante.

Você acha que as pessoas mitificam Euclides?

Sem dúvida. Isso aparece na atribuição de demasiadas virtudes a ele: patriota, honesto, decente, corajoso... todas as virtudes cívicas possíveis. No fim, vira um santo. Mas essa hagiologia reflete um ideal extremamente pequeno-burguês, eu acho. Sou grande admiradora de Rimbaud, que era uma praga, não tinha virtude alguma. Mas admiro tanto a vida quanto a obra. No caso de Euclides, sobressai a imagem de um cidadão extremamente correto.

Acaba personificando um grupo de intelectuais que atribuía a si, naquele período, a missão de formular um projeto para a nação.

Quem já leu sobre a Escola Militar sabe que atribuíam.

Isso era muito forte no âmbito da engenharia.

Especialmente a engenharia, porque era coisa de elite.

Ela se adequava bem à noção de empreendimento, construção material de um novo Brasil.

Eram os agentes da modernização. Aliás, até há pouco tempo. O engenheiro só deixou de ser o agente da modernização, na cabeça das pessoas, quando o economista se apossou do papel.

Se, por um lado, Euclides reúne as virtudes do intelectual missionário do período da modernização, por outro, denunciou a crueldade desse projeto nacional, como nós comentamos. Ele voltou de Canudos muito decepcionado com esse projeto.

E com o exército.

Você acha que mesmo após a decepção, ele continua a se reconhecer como intelectual a serviço daquele projeto da modernização?

Sim. Crítico, mas não opositor. Pense nos outros: Rondon, Rebouças, todos da mesma escola. E foi uma geração formidável.

Você vê a obra de Euclides como visão de Brasil que aproxima litoral de sertão, que visa promover a integração nacional, a incorporação?

No sentido de pretender acabar com aquele fosso abissal entre litoral e sertão, de que ele tanto falava? Ele enxergava isso por um viés que eu chamaria de ‘ilusão ilustrada’. Achava que a educação acabaria com o fosso. Antonio Candido chama a atenção para isso, não só no caso de Euclides, mas no de outros intelectuais. Ele mesmo denominou ‘falácia ilustrada’ essa convicção de que no Brasil a educação acabaria com a diferença de classes. Está em seu trabalho intitulado Literatura e subdesenvolvimento. Em Os sertões, Euclides externa essa falácia ilustrada ao lamentar que não levassem cartilhas em vez de balas.

Você tocou num aspecto interessante: a formação na Escola Militar. Podia desenvolver um pouco o tema?

Deveríamos perguntar isso ao Celso Castro, que conhece a história da Escola Militar. D. João VI, quando chega a esta colônia remota, bruta, primária, vindo com a corte toda — o país dele fora ocupado —, teve de tomar algumas medidas. Trouxe duas mil pessoas em sua comitiva. Essanobreza precisava de recursos, mas aqui não havia nada. Ele teve que fundar o Jardim Botânico, importar franceses para ensinar pintura (a Missão Francesa), abrir o primeiro banco, com direito a cunhar moeda (Banco do Brasil), fundar a Imprensa Régia, porque antes era proibido imprimir coisas aqui. Além de fundar dois cursos superiores, em Recife e em São Paulo, que dariam origem aos cursos de medicina e de direito, D. João criou, ao lado da Escola de Belas-Artes, uma escola militar. Até então quem fazia carreira militar no Brasil ia estudar em Coimbra. Não era só advogado, militar também. D. João VI nomeou uma equipe para fazer o primeiro regulamento, escolher os manuais, fazer o currículo da Escola Militar. A educação portuguesa tinha passado pela reforma do marquês de Pombal, uma reforma ilustrada, inspirada no modelo francês. E que modelo francês? O da Revolução Francesa. Esta foi a maior revolução no ensino que já houve na história: instaurou a escola pública universal. Não é brincadeira! Então, a Escola Militar ao longo das décadas apoiou-se no modelo da Escola Militar francesa, que era cria da Revolução. Tem-se então uma contradição brutal: uma monarquia absolutista, escravocrata, numa colônia atrasadíssima, onde funciona uma escola da Revolução Francesa. Não dá para entender! Só podia dar no que deu. Os manuais que eles usavam eram os manuais revolucionários franceses. Levou algumas décadas até que a escola começasse a produzir seus manuais. Ciências, matemática avançada, ótica, mineralogia, tudo que está em Os sertões Euclides da Cunha aprendeu na Escola Militar, em manuais traduzidos do francês. Ele não saiu estudando sozinho. O título que obtinham quando se formavam na escola era o de "bacharel em matemáticas e ciências naturais". Olhem só! Não era soldado! O Euclides tinha cartão de visita impresso com esse título, o diploma dava direito a isso. Então, esse pessoal ficou com a cabeça completamente diferente da do resto do país, claro. Eles estudavam, por exemplo, que o soldado é um cidadão, tem obrigações: a defesa da pátria, a derrubada da aristocracia, a deposição do rei, tudo conforme a Revolução Francesa. Enfim, com o tempo, virou um foco de subversão. E a liderança do republicanismo e do abolicionismo coube ao exército e, no âmbito dele, à elite que dava aulas e a seus alunos. Deu no que deu! A escola acabou fechando pois se mantinha como foco de subversão. Foi fechada em 1904, com a Revolta da Vacina, porque os alunos aderiram ao povo. A Escola Militar foi transferida para Realengo, que era subúrbio. Tiraram-na do centro da cidade, porque era um foco de agitação, e a reformaram, não deixando mais o aluno pensar que era cidadão armado, que ia defender os pobres, que era contra os ricos, contra quem mandava. Nunca mais!

Na Revolta da Vacina influiu o positivismo.

Sim. O positivismo é herdeiro dos ideais da Revolução Francesa, principalmente a concepção do cidadão armado. Esta era uma noção muito cara a Benjamin Constant. Ele ensinava aos alunos que eram portadores da modernização, mas de uma modernização democrática, a serviço do povo e do país. Não era para servir patrão.

E Euclides era um intelectual diferente do tipo de intelectual tradicional desde o Império, o bacharel. Ele teve uma formação científica.

E a engenharia era a arma de elite da Escola Militar, como se não bas-tasse ser de uma escola de elite. Explico em que sentido digo isso, para não dar margem a confusão. As armas eram infantaria, artilharia e engenharia. Fazia-se o curso completo de infantaria para ter direito de cursar a artilharia. E era preciso fazer o curso completo de infantaria e de artilharia para ter direito a se inscrever no de engenharia militar. Acabava aí. Não tinha nada acima. Era o curso mais longo, durava sete anos, só passavam os melhores. Quando digo elite, é elite pensante, de classe. A Escola Militar pagava soldo. Era a única escola do Brasil que dava bolsa de estudo ao aluno. Soldo, pensão completa e lugar para morar, a caserna. Assim atraía os menos ricos. Os filhos das grandes famílias – dos aristocratas e da alta bur-guesia — continuavam buscando cursos de direito, muitas vezes fora do país. Ao passo que o pessoal sem dinheiro, que precisava de soldo desde os dezoito anos, porque não podia contar com o pai para se manter, ingres-sava na Escola Militar. São elite nesse sentido, não no sentido social. Pelo contrário, é a pequena burguesia que vai para a Escola Militar. Filhos de pequenos funcionários, pequenos comerciantes, sitiantes, esse tipo de gente.

Qual é a origem social de Euclides?

É essa, pequeno-burguesa. Manoel Pimenta da Cunha, seu pai, era um baiano que possuía sítios mas nunca prosperava. Primeiro teve um sítio no interior do Rio de Janeiro, depois no interior de São Paulo, mas, até morrer, nunca foi para a frente. Era um pequeno fazendeiro malsucedido. Desse meio provêm os integrantes das primeiras manifestações, na história do Brasil, do que Antonio Candido chama de "radicalismo de classe média". Ele estuda o movimento de maio de 1968. E à época do João do Rio, que chamou de radical de ocasião. O pessoal da Escola Militar produz os primeiros sinais de um radicalismo de classe média. Porque precisa ser urbano, precisa haver cidade para que se desenvolva esse tipo de coisa. O Gilberto Freyre diz que já no Império o Brasil começa a se tornar uma civilização urbana. Foi um processo demorado, porque só em 1930 se deu a virada, em termos de proporção. Freyre estuda isso em Sobrados e mucambos. Fala no surgimento no Império e, avassaladoramente, na República, de uma "fulgurante plebe intelectual". É boa a frase! Em geral, mestiça, quase sempre, mulata, dela provieram políticos poderosíssimos, jornalistas, escritores etc.

Vou voltar a um ponto que considero importante. Você disse que os equívocos de Euclides não tinham a menor importância na avaliação de sua obra. Gostaria que falasse um pouco mais sobre isso, já que tem a ver com a qualidade literária e, também, com a admiração que sente por essa geração.

‘É melhor porque é equivocada. É mais ou menos assim: é como se Euclides descrevesse a contradição, a incorporasse como elemento de estruturação do livro e de seu pensamento. Todo esse pessoal era muito contraditório, não só Euclides. Eram, ao mesmo tempo, uma elite sem poder e uma elite pensante. O pessoal da Escola Militar vai adquirir poder com a proclamação da República. Quando isso ocorre, o que se instala no Brasil? A democracia? Não: a ditadura. Anos de uma tremenda ditadura. Numa movimentação interna aos próprios grupos do exército que fizeram a República, os mais radicais são alijados. Euclides, até a morte, deseja ter algum poder, ser candidato a deputado... Quer participar, mas não deixam. Não deixam mesmo. Outros tampouco. Então, é tudo muito contraditório. Os equívocos são numerosos. Acontecem as coisas mais impressionantes. O barão do Rio Branco que, na República, continuava sendo chamado de barão, reuniu no Itamarati o que se chamava de "círculo de sábios". Machado de Assis freqüentava-o, José de Alencar também. Todas as boas cabeças da época faziam parte do grupo. E Euclides trabalhava com ele. Nunca conse-guiu do barão uma definição quanto ao emprego, porque trabalhava comis-sionado. Reclama nas cartas. Ficava lá fazendo mapas para o barão mas não conseguia um emprego. No fim, desistiu e fez concurso para o Colégio Pedro II.

Foi alguém que sempre aspirou a um posto no interior daquele estado.

Porque acreditava, considerava sua obrigação. Queria interferir no processo, corrigir os rumos. E nunca deixaram, não teve a chance. Quem estudou isso muito bem foi o Sevcenko (Literatura como missão, São Paulo, Brasiliense, 1983). O grupo todo do barão do Rio Branco é muito interessante.

Com relação à correspondência que você reuniu, o que chamou mais a sua atenção nesse trabalho?

Passei sete anos nisso. Agora estou trabalhando com a correspondência passiva. Fazer edição crítica dá um trabalho infernal, consumiu nove anos da minha vida. Ninguém fazia, eu tive que fazer: se demorasse, desapareceria tudo venderiam para os americanos. É uma missão histórica par défaut, como dizem os desportistas, ou seja, quando o adversário não comparece, você ganha. Quando estava fazendo a edição crítica de Os sertões, precisei trabalhar com a correspondência: é útil ler as cartas para ver o que pensa o autor enquanto escreve. Quando terminei a edição crítica, estava com tantas cartas na mão que resolvi esgotar o campo, mas aí levei sete anos. Dobrei o número de cartas conhecidas. A última edição, que são as obras completas da Aguilar, tem cerca de 200 cartas de Euclides. Eu publiquei 400: cem, inéditas e cem, dispersas por jornais e revistas. Fiquei íntima.

Deve ser um trabalho fascinante.

É maravilhoso: ele escreve bem. Nelas, dá para ver muito bem sua relação com o mundo em que vivia, a sua inserção histórica como intelectual de vanguarda naquele momento da história do Brasil. Muito ressentido, sem dúvida, quase com mania de perseguição. Lá aparecem mais acentuados os traços psicológicos que a gente percebe, também, nos livros.

O que despertou o seu interesse pela obra de Euclides?

Foi Guimarães Rosa. Fiz tese de doutoramento sobre ele. E é inescapável, você não trabalha com Guimarães Rosa sem passar Euclides da Cunha. O próprio Rosa passou por ele para chegar à sua definição como escritor. Então, quando terminei a tese de doutoramento, tive vontade de pegar o Euclides à unha. Estou nele até hoje. No Guimarães Rosa também. Estudo os dois.

Mas a literatura ou algo específico em relação à temática o que a atraiu?

Ambas as coisas. Estávamos em plena ditadura militar quando fiz No calor da hora (São Paulo, Ática, 1974). Eu queria lidar com duas coisas. Uma era o Exército. Reinava a ditadura militar e eu precisava refletir sobre aquilo. A outra era a mídia, o papel que desempenhava. Isso me fascinava naquele momento.

No calor da hora é sobre a imprensa.

É sobre o modo como a imprensa cobriu a guerra de Canudos.

Você citou Antonio Candido. O ambiente da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo influenciou o interesse pelo tema do sertão?

Sim, claro. Antonio Candido é o autor de um dos primeiros e mais importantes trabalhos sobre Guimarães Rosa: O homem dos avessos. Trabalhei com ele a vida inteira. Sou sua primeira assistente: antigamente chamava-se assim. Mais de uma vez vi Antonio Candido, o Florestan Fernandes, Fernando Henrique e Ruth — que também eram meus professores — brincando de passar numa porta. Um dizia, "Você primeiro". E o outro, "Não, você primeiro". E Antonio Candido arrematava: "Você passa primeiro porque é o primeiro assistente; eu sou só o segundo." Florestan e Antonio Candido eram, respectivamente, primeiro e segundo assistentes de Fernando de Azevedo, na cadeira de sociologia. Isso não existe mais na faculdade. Enfim, eu sou primeira assistente de Antonio Candido. Tudo o que fiz foi sob sua orientação.

Queria ouvir você falar um pouco sobre essa relação entre sociologia e literatura na reflexão desses autores. Essa foi um influência importante para você? Você falou na questão dos temas da moda. Como eles marcaram a sua trajetória?

Tudo que estudei na faculdade dizia respeito sempre à teoria literária e à literatura comparada. Por exemplo, fiz um curso de um ano com Antonio Candido em que lemos os grandes romances da história universal. O curso começava com a formação do romance — o grande romance realista do século XIX — e terminava no século XX. Desde o começo, fiquei interessada por essa visão, digamos, comparatista, pelo estudo, não da literatura brasileira, mas de como as formas viajam, propagam-se, de onde surgem, para onde vão. Era uma preocupação teórica, estética, realmente com a forma. Afora isso, como estudante ou professor, você é obrigado a participar da história. Não tem jeito. Mesmo que queira escapar, não consegue. Também tive minha escola fechada, incendiada.

Refletir sobre Euclides enquanto intelectual ‘engajado’ é também uma forma de refletir sobre o papel social do intelectual.

Sem dúvida.

Você falou da chegada a Euclides a partir de Guimarães Rosa. Com que outros autores brasileiros estabelece não necessariamente analogias mas comparações, pontes?

Penso em dois grandes poetas, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Cada um à sua maneira, evidentemente. Embora na poesia seja mais difícil de notar o engajamento, porque não é narrativa, não é a expressão direta de idéias, ele existe sem dúvida nenhuma nas desses dois poetas. É extraordinário como o Mário é capaz de pensar em um projeto para o Brasil: político, artístico, institucional, de escrita, de fala. É um monstro! Ele fez até um Congresso da Fala Nacional Cantada. Quando ouço a Bidu Sayão, percebo que ela realmente não passou pela influência de Mário de Andrade, porque não se entende a dicção dela. Ela canta como quem estudou na Itália ou Alemanha. Não dá para você entender o português que ela canta. O Mário era um intelectual participante, engajado, militante, com boas posições progressistas. Ele não estava aliado com os piores, como é tão comum, ese metia em tudo. Além de escrever em jornal quase diariamente, produziu dez mil cartas. E as cartas de Mário não são como as que nós escrevemos. Eram para corrigir textos, criticar, analisar. Ele admoestava o interlocutor se estivesse fazendo bobagem. Dizia, "Corta essa palavra que você empregou mal". Fez isso com todos da geração dele e de quatro gerações.

Mário estipulou que só cinqüenta anos depois de sua morte fosse liberado o acesso a essa correspondência passiva o que aconteceu em 1995. Aí começou a ser organizada, catalogada e, ano passado, abriram para consulta. São oito mil cartas. Ele respondia a todas, não deixava correspondente sem resposta. Eram cartas sérias, profissionais, não meras lembranças.

Como eram as cartas de Euclides?

Eu escrevi só uma coisa de interesse anedótico: como se formaram os arquivos, onde foram parar, quem eram os principais correspondentes, onde estão os originais. Não entrei no conteúdo das cartas. Ainda não ousei. O que eu posso dizer, por ora, é que se nota logo um tipo curioso de carta que eu chamaria de ‘boletim de saúde’. Ele se queixa da saúde o tempo todo, dando a impressão de ser um malade imaginaire. Sofre de tudo: maleita, tuberculose, beribéri, febre terçã. Diz coisas do tipo, "Eu tive uma hemoptise ontem". Muitas vezes não dá para perceber se está doente mesmo ou só usando aquilo como desculpa porque não escreveu ou não compareceu a determinado compromisso. Há também cartas interessantíssimas, com análises da situação brasileira. O Calazans — que não é euclidiano, é conselheirista — me disse que não consegue parar de ler e reler a correspondência de Euclides, tão fabuloso lhe parece o material. Disse que daria para escrever uma nova biografia do Euclides só com base nessas cartas. Não sou só eu que estou entusiasmada com as cartas. O grande historiador conselheirista também.

Qual o período da vida de Euclides que essas cartas cobrem?

Todo mundo começou a guardar as cartas dele depois que ficou famoso, ou seja, de 1902, data de publicação de Os sertões, até 1909, ano de sua morte. Convém lembrar que as pessoas escreviam cartas abundantemente naquele tempo. Não havia outro meio de comunicação: telefones eram ainda uma inovação disponível para poucos. Há cartas desde o tempo em que cursava a Escola Militar. Quando saiu da escola, começam a se multiplicar. Como era costume naquele tempo, tinha correspondentes extremamente fiéis, para quem escrevia semanalmente. Sabe-se disso porque comenta, "Extraviou-se a sua carta da semana passada". Era sempre num dia certo da semana, sábado parece-me. É curiosíssimo. Todos esses correspondentes fiéis eram republicanos de primeira hora. Quase todos foram pessoas de grande influência mais tarde, antes ainda da publicação de Os sertões. É possível acompanhar o pensamento político de Euclides desde essa fase, quando sai da Escola Militar. Por isso tem interesse a correspondência passiva, para se saber o que os amigos diziam. A vida toda ele discutiu idéias e política com seus correspondentes de eleição. Um destes, nos últimos quatro ou cinco anos de sua vida, foi Oliveira Lima. Com ele discutia mais idéias e livros do que política. Com Francisco Escobar ele começou a se corresponder desde que o conheceu, em 1898, em São José do Rio Pardo, quando reconstruía uma ponte, até o fim da vida, e era assim: política, idéias e livros, o tempo todo. Raramente notas pessoais. Com aquele poeta de Santos, Vicente de Carvalho, se correspondia bastante?

Menos. O maior correspondente era Francisco Escobar, socialista, prefeito de São José do Rio Pardo e, depois, de Poços de Caldas. Era um sujeito cultíssimo, dono da maior biblioteca do interior. Emprestava livros para Euclides constantemente e parece que nem sempre os recebia de volta. Ele se correspondia também com Reinaldo Porchat, um desses amigos de juventude, republicano, que veio a ser primeiro reitor da Universidade de São Paulo. A maioria ficou importante depois que Euclides morreu, porque ele morreu muito cedo, com quarenta e poucos anos. João Luiz Alves foi senador, ministro da Justiça. Todos se envolveram com política mas Euclides não conseguiu. Escobar tentou viabilizar a candidatura dele em Minas, mas não deu certo. Houve várias tentativas. O pessoal do Estado de S. Paulo tentou colocá-lo na Constituinte do estado de São Paulo. E ele queria. O dr. Galloti, um grande euclidiano, observou certa vez: "Euclides sabia escolher os amigos!" Eu retruquei, "Não, os amigos é que sabiam escolher Euclides". Enfim, há pouca coisa de ordem pessoal nas cartas. Tirando as doenças, era muito discreto a respeito de sentimentos, emoções, aspectos da vida familiar.

É também um Euclides atormentado que se revela nas cartas?

É, muito atormentado. Coitado, até os filhos lhe davam um trabalho in-fernal, iam mal na escola, sofriam ameaças de expulsão, tiravam notas baixas.

E durante as viagens, mantinha a regularidade das cartas?

Mantinha, para com todos. Não havia outro meio de comunicação, para você se fazer presente, tinha de escrever cartas. Lá do Alto Purus ele escrevia para todo mundo.

Você chegou a se deter no trabalho dele sobre a Amazônia?

Menos. Não o considero tão interessante. Talvez porque sejam escritos esparsos. Há um ou dois que são realmente muito bons, geniais. Tem gente que já estuda Euclides na Amazônia. O Francisco Foot Hardman, por exemplo. Tem o Leandro Tocantins, de Belém, se não me engano, que escreveu um livro reeditado várias vezes: Paraíso perdido. O Euclides comentou nas cartas que pretendia escrever um livro com esse nome e o Leandro Tocantins tentou reconstituí-lo mais ou menos idealmente.

Gostaria de retomar uma questão anterior. Como você vê a possibilidade de comparação entre o sertão de Guimarães Rosa e o de Euclides da Cunha?

São tão diferentes, não sei se dá para comparar. O que sei é que Euclides da Cunha gerou Guimarães Rosa, mas são completamente diferentes. O sertão do Rosa é pura ficção, ou muita ficção. No Euclides, o peso do ficcional é muito menor. Aí não há, propriamente, um compromisso com a ficção.

O que tem de Euclides no Guimarães Rosa?

As galas do verbo. Os dois são uns neobarrocos desvairados!

Você falou que o Rosa é muito mais ficcional que o Euclides.

Nos livros dele pululam enredos.

Mas os dois estão falando de um sertão muito real. Como você vê a possibilidade de comparação entre essas duas realidades sociais do Brasil?

Geograficamente, esses sertões até encostam um no outro, mas não são os mesmos. Nem enquanto realidade geográfica, nem lingüisticamente. Mas

também não são completamente diferentes. Os dois autores optam pelo excesso. Linguagem excessiva, grande retórica, uma maneira antiquada de lidar com a palavra. Ambos ressuscitam um vocabulário e formas sintáticas já perecidos, que se usava em outros séculos. No caso de Guimarães Rosa talvez não seja só ressurreição. São talvez coisas que ficaram, porque o português que se fala no sertão é arcaico, não sofreu mistura, ficou meio fixo. Mas eles têm uma matéria semelhante: o sertanejo. Guimarães Rosa mais se aproxima de Euclides da Cunha quando se preocupa com a questão da religiosidade popular. No Grande sertão veredas: sobretudo, mas também em ‘A hora e vez de Augusto Matraga’, onde isso é tematizado. Os dois autores são capazes de mapear certas constantes sociais. Uma é a religiosidade popular; a outra é a questão da violência, muito presente em ambos. Refiro-me a esse espaço onde a violência campeia, onde não há normas regulando o seu uso porque não há instituições para tal.

E em que sentido você fala que Guimarães Rosa saiu de Euclides da Cunha?

Para ele produzir sua obra, primeiro leu Euclides: foi fortemente influenciado por ele. Mas Rosa partiu para a fabulação, para a multiplicação dos enredos. Como eu disse, em seu trabalho coexistem numerosos enredos, os mais incríveis e diferentes. Euclides não tem muitos, porque não está fazendo ficção, ou pensa que não está. Creio, também, que Rosa é mais dado a uma fantasma-goria, ao diabo, coisas assim. Euclides só quando se identifica com a cabeça dos conselheiristas. Aí ele é capaz de ver que o exército é o Anticristo. Não é brincadeira ser capaz disso! Consegue ver o Belo-Monte como uma nova Jerusalém. Ele tem acesso a uma transfiguração da realidade, do espaço social do sertão, porque em certos momentos consegue enxergar com os olhos daquelas pessoas, coisa que Guimarães Rosa também faz.

Você então ressalta na obra do Euclides, além do aspecto da ambiguidade, essa capacidade de se identificar, se não com o Antônio Conselheiro, com os jagunços.

Com o modo como eles viam a si mesmos e ao inimigo. Aconteceu uma coisa engraçada. Recentemente, um coronel do exército aproximou-se dos euclidianos e conselheiristas: o coronel Davis. Se fosse em outros tempos, ninguém gostaria, mas agora, tudo bem, estamos numa democracia. Então, num desses congressos ele se apresentou: "Eu sou o Anticristo!" Quase morri de rir! Ele está escrevendo um livro sobre Canudos.

Qual foi a participação dos militares nesses eventos de que você participou?

Não houve, só o coronel Davis. Não dá, é recente o trauma da ditadura. O coronel Davis, que é muito corajoso, sustenta um ponto de vista que não deixa de ser interessante, embora não seja inteiramente inocente. "O exército é ‘pau-mandado’", ele diz. "Quem mandou a gente fazer o que fez foram as autoridades civis." Não é bem verdade, porque o exército era atu-ante nessa época, fazia e desfazia. Fez a República, desfez o imperador, tentava a toda hora dar golpes.

Você viu o filme Guerra de Canudos?

Tenho um pouco de escrúpulos de ver filmes sobre Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. Por quê?

Fico triste: em geral não é muito bom, deforma-se a obra, e eu fico aborrecidíssima.

Embora não tenha visto o filme, gostaria de lhe perguntar uma coisa. O diretor optou por não colocar nele a figura de Euclides. Um jornalista chamado Pedro representa todos os que cobriram a guerra. De acordo com o diretor, Sérgio Rezende, o jornalista com quem ele se identificaria mais seria o Manoel Benício.

A reportagem dele é a melhor de todas.

O personagem Euclides da Cunha não aparece, mas muitas falas do jornalista são textos dele.

Trechos de Os sertões ou das reportagens?

De Os sertões.

Até nas falas de outros personagens, como a interpretada por Marieta Severo. A propósito: você é euclidiana ou conselheirista?

As duas coisas. Certa vez, o Calazans me disse, "Estou escrevendo um trabalhinho dedicado só aos conselheiristas. Vou lhe mandar um". Os baianos me consideram conselheirista, e os euclidianos, do bando deles. A não ser que seja o contrário. Vai ver que sou mal vista pelos dois partidos. Eu colaboro com ambos, sempre colaborei.

Como você definiria ser conselheirista hoje? Muitas pessoas aproximam Canudos e o movimento dos sem-terra. Como vê isso?

Na Alemanha essa questão apareceu. Muito do interesse atual por Os sertões, inclusive pela tradução, deve-se ao fato de terem notícia do movimento dos sem-terra. A meu ver, são duas coisas completamente diferentes. O movimento dos sem-terra é ativo, invade as fazendas. Canudos recolheu-se e desapareceu. Eles não queriam contato com o mundo. Os sem-terra, pelo contrário, querem invadir o mundo, ambicionam a propriedade da terra. Embora sejam completamente diferentes, não posso deixar de pensar que os sem-terra têm um antecedente no movimento de Canudos, passaram por lá. Provavelmente foi uma etapa.

Na própria repercussão que o filme de Sérgio Rezende teve na mídia, essa relação está sempre presente.

Talvez seja inevitável hoje em dia ler Os sertões e pensar nos sem-terra. A história tem dessas coisas.

No centenário destacou-se também a figura de Antônio Conselheiro. A visão conselheirista acabou prevalecendo, tanto que jornais como a Folha de S. Paulo lançaram cadernos especiais chamando a atenção para o centenário da morte do Conselheiro. Foi realmente figura em evidência nas comemorações. O Jornal Nacional dedicou-lhe uma matéria. O dia da morte tornou-se um marco.

Quem diria! Eu estava trabalhando tanto que não vi quase nada disso. A propósito: Os sertões foram traduzidos na China na década de 1950, no Japão, o livro não foi traduzido. Dei tratos à bola para ver se conseguia entender por quê, na época em que muito brasileiro de esquerda ia à China para ver como era. Atinei com o seguinte: na China, o Antônio Conselheiro deve ser considerado precursor do líder da Grande Marcha, Mao Tsé-tung. É evidente. Quem liderou um monte de camponeses miseráveis para tomar o poder? Ambos. É um livro conhecidíssimo na China. Vejam só! Antônio Conselheiro precursor de Mao Tsé-tung!

Aqui no Brasil há muitas menções à relação de Luiz Carlos Prestes com os sem-terra, sobretudo agora que é o centenário do Prestes.

Claro, por causa da Coluna Prestes.

Mas não há muita reflexão sobre a ligação dele, militar também, com Rondon, Euclides, essa geração...

A geração dos tenentes é posterior, mas ainda está impregnada dos mesmos ideais.

A questão da liderança é muito presente.

Liderar uma insurreição de oprimidos!

Talvez a releitura do Conselheiro tenha atenuado a ênfase na imagem do louco, fanático, a imagem religiosa do beato, destacando a imagem do líder de um grupo.

Euclides dá as duas, como sempre, a positiva e a negativa. Dois historiadores marxistas estudaram insurreições camponesas e descobriram que não tem a menor importância ser ela religiosa ou não, porque não há a menor contradição nisso. Hobsbawm chamou-as de pré-políticas. Ernst Bloch escreveu uma obra imensa, em três volumes, sobre insurreições, sobretudo as religiosas. Chama-se Milenarismo e messianismo. Não é por ser religioso que o movimento deixa de ser revolucionário.

Voltando às traduções, em que países Os sertões foram traduzidos?

Nos Estados Unidos há a tradução do Samuel Putnam, da década de 1940, que serve também aos leitores da Inglaterra. Chama-se Rebellion in the backlands. É um problema traduzir o título. O Zilly botou Krieg im Sertão, ou seja, guerra no sertão. Fizeram uma capa em vermelho e preto que ficou uma beleza; e ainda vem dentro de uma caixinha. Há duas traduções francesas, uma de trinta anos atrás, outra da década de 1990. Há tradução holandesa, dinamarquesa, chinesa, espanhola... Devia haver uma russa, mas não há. Que bobos! Eram muito anti-religiosos na União Soviética. Para eles era importante destruir a religião, porque lá a Igreja realmente era a de tudo o que havia de pior. Era contra os pobres. Aqui não, pelo menos nos últimos tempos temos uma Igreja dividida.

A tradução de uma obra como essa deve ser um desafio.

O Zilly levou dez anos, que acompanhei. Ele trabalhou comigo. Eu queria que ele fizesse tese de livre-docência sobre a tradução, usando tudo o que teve a oportunidade de estudar e pensar sobre o que é traduzir.

Ele comentou que o alemão é uma língua especialmente adequada para traduzir Os sertões.

E Guimarães Rosa também. Engraçado, não é? É muito bonita a reflexão dele sobre a tradução. Daria um livro mais aprofundado sobre os aspectos da tradução propriamente dita.

Seria uma obra de referência.

Só para os euclidianos, não para os conselheiristas. (Risos.)

Para finalizar, como você avaliou as comemorações do centenário?

Fiquei com a impressão de uma enorme vitalidade nos estudos euclidianos, de uma revitalização, muito recente, coisa de uns dez anos para cá. Essa revitalização implica novas perspectivas, desde a biografia de Euclides, passando por novas traduções, novas versões da história da guerra de Canudos, que nada têm a ver com a de Euclides da Cunha, indo até o exame de outras obras contemporâneas à guerra. Vejo isso: vitalidade, revitalização e multiplicação de perspectivas. O que é sempre muito bom.

Você chamou a questão para aspectos pouco explorados da biografia de Euclides, fontes inéditas como a correspondência. Quais são as perspectivas dessa linha de trabalho?

Estão melhores do que nunca. Mais importante do que qualquer outra coisa foi o Renato Ferraz ter conseguido, recentemente, abrir os arquivos do exército na Bahia. Ele conseguiu algo que ninguém nunca havia conseguido, sobretudo por causa da ditadura: autorização para filmar os arquivos do exército referentes à guerra de Canudos. Tem muito ‘cascalho’ no meio, coisas que não têm relação direta, mas tem muita coisa boa . A meu ver, uma história da guerra de Canudos que não incorporar esse material novo não tem o menor valor. Existindo esse arquivo novo, não adianta fazer uma história sem passar por ele. Mas demanda enorme esforço, porque são milhares de fotogramas dos quais poucos concernem diretamente ao assunto. Tem que debulhar aquilo.

Esse trabalho já começou a ser feito?

Começou, mas muito devagar, porque o pessoal não tem recursos. É um projeto da Universidade Estadual da Bahia. Eles abriram um Centro Euclides da Cunha, na década de 1990. Na Bahia, hein! E lá eles são conselheiristas. Tem um ou dois funcionários. Tudo é feito de maneira precária, mas o trabalho é admirável. Está tudo lá no centro, tudo fotografado. Quando eu ouvi falar desse projeto, estava morando em Paris, em 1992. Fiquei tão louca que quase larguei tudo e vim embora para trabalhar com esse material.

Você se dedicou à obra de Euclides mas trabalhou com a cobertura da imprensa sobre Canudos.

Tudo me interessa, toda essa convergência de linhas. Mas estamos à espera de um historiador para trabalhar com esse material dos arquivos do exército.

Ficha técnica

Depoente: Walnice Nogueira Galvão

Entrevistadoras: Nísia Trindade Lima e Simone Petraglia Kropf

Edição de texto: Jaime Benchimol

Local: São Paulo

Data: 13 de abril de 1998

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Jul 1998
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