Open-access A arte de partejar um programa de pós-graduação em história: os 20 anos do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde: entrevista com Margarida de Souza Neves

Resumo

A entrevista aborda a participação de Margarida de Souza Neves, professora emérita da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na criação do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz. Para celebrar os 20 anos de existência do PPGHCS, professores que passaram pela coordenação se reúnem com a entrevistada para refletir sobre os significados da formação de um programa na área de história especializado em pesquisas sobre ciências e saúde no Brasil.

programa de pós-graduação em história; história das ciências e da saúde; memória; Margarida de Souza Neves (1945

Abstract

This interview explores the participation of Margarida de Souza Neves, professor emeritus at Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, in the creation of the Graduate Program in the History of the Sciences and Health at Casa de Oswaldo Cruz. To celebrate the twentieth anniversary of this graduate program, professors who have served as coordinators met with Professor Neves to reflect on the meanings of shaping a program in the area of history specializing in research on science and health in Brazil.

graduate program in history; history of science and health; memory; Margarida de Souza Neves (1945

Na tarde do dia 26 de outubro de 2021, os pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz (COC) Maria Rachel Fróes da Fonseca, Luiz Otávio Ferreira, Gilberto Hochman, Kaori Kodama e a cineasta Cristiana Grumbach se reuniram por meio remoto com Margarida de Souza Neves, professora emérita da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). A entrevista teve por objetivo celebrar os 20 anos da criação do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS), da COC, para a qual a professora Margarida contribuiu enormemente, dando sugestões, auxiliando na formulação de uma proposta de curso novo na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ministrando a aula inaugural do PPGHCS, em 14 de setembro de 2001, logo após o atentado ao World Trade Center, em Nova York. Mas, também, foi um momento de reencontro com professores, entre os quais alguns ex-alunos, que puderam se rever virtualmente, nesse longo interstício da pandemia, em uma conversa carregada de afetos. Em sua cabeceira, estavam as flores e a placa feita em sua homenagem para a comemoração dos 20 anos. Margarida, ou simplesmente Guida, como prefere ser chamada por alunos e amigos, tem uma longa e prestigiada trajetória como professora. Formou-se pela PUC-Rio e possui doutorado pela Universidad Complutense de Madrid. Foi professora em diversas universidades no Brasil e no exterior, incluindo a Universidade Federal Fluminense (UFF) entre 1976 e 1999; a Université Catholique de Louvain, na Bélgica; a University of Illinois; a Universidade Estadual de Campinas; e a própria PUC-Rio, onde coordena hoje o Núcleo de Memória da instituição. Tendo como temas principais a memória, a cultura e a literatura – que marcaram tanto sua docência como suas pesquisas –, Guida conversa com os ex-coordenadores do programa a respeito do momento de sua criação e da realidade das pós-graduações ao longo do tempo, refletindo sobre o presente e o futuro.

Maria Rachel: Margarida, você teve um papel relevante como consultora e interlocutora em um momento muito especial de criação do PPGHCS, em 2001, pensando junto conosco, de uma forma bastante importante, os objetivos centrais, a estrutura curricular e as temáticas desse programa. O que representava naquela ocasião a proposição de um programa que privilegia a conjugação de estudos históricos e sociais da ciência com a saúde pública, e como pensar, então, a criação de um curso de história das ciências e da saúde na área de história?

Essa é uma pergunta muito bonita, mas, antes de respondê-la, eu gostaria que constasse o meu agradecimento, não só por esses vinte anos de parceria e de cumplicidade, mas muito especialmente pela delicadeza que vocês tiveram de me mandar hoje essas flores lindas e uma placa de carinho. Eu, na verdade, não fiz mais do que partejar o programa. Tem um texto muito bonito do Henri Lefebvre (1962) que fala da maiêutica, da arte e da ciência de fazer nascer, mas na verdade quem gerou o programa foram vocês. A minha participação se deu num quadro muito particular. Na época eu estava no Fórum Nacional de Pró-reitores de Pesquisa e Pós-graduação, estava na diretoria,1 e nós decidimos que daríamos assessoria (sem remuneração) àqueles programas de universidades com perfil de pesquisa. E um desses programas, que eu assessorei, foi justamente o de vocês. O programa estava mais do que maduro. Mas eu acho, Maria Rachel, que sua pergunta tem uma brecha para além de um simples pensar no significado desse programa, que não foi só o de inaugurar de alguma maneira uma linha de produção acadêmica e de pós-graduação reconhecida no país e fora do país – a história das ciências e da saúde. É muito importante lembrar o que isso significou dentro da própria Fiocruz. A Fiocruz sempre se caracterizou, e este ano nós estamos vendo isso de uma maneira muito particular, por uma competência extraordinária, por uma exigência de qualidade em todos os campos, por uma postura de valorização da ciência e de produção de ciência e de cientistas – acho que isso é um traço de identidade da Fiocruz. E o Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde inaugurou uma linha que combinava essa exigência das ciências da saúde com a exigência das ciências sociais. Isso em algum momento pode ter sido menos fácil do que deveria, isso certamente explica que o programa já começasse tão maduro. Digo com grande tranquilidade que foi o programa que eu conheço que começou os seus trabalhos tendo uma maturidade acadêmica e científica indiscutível. Acho que esse é o significado fundamental: coerência com a instituição, resposta à necessidade de um diálogo entre as ciências sociais e as ciências da saúde e a ciência da biologia e da saúde pública. E uma exigência também de serviço ao público – é direito de cidadania conhecer e aprofundar na memória daquilo que se constitui como um dos pilares da vida social. E acho que o programa faz isso de forma excelente.

Luiz Otávio: Margarida, outro momento importante da sua “arte de partejar” o nosso programa foi a sua participação na aula inaugural. A primeira aula inaugural foi proferida por você, e, por essas coincidências da história, essa aula inaugural foi no dia 14 de setembro de 2001, apenas três dias após o atentado do World Trade Center, em Nova York, e nessa aula (intitulada “História e memória das ciências e da saúde”) você destacou os papéis das ciências e das técnicas na história da humanidade. Eu acho que, por mais uma coincidência, estamos aqui vinte anos depois num momento em que as ciências e as técnicas de novo se apresentam como um elemento importante, como você acabou de dizer, não só da organização da sociedade, mas também desse momento em que a própria vida social foi colocada em risco. Então, gostaríamos de relembrar e retomar o fio da meada de 14 anos atrás. Não, mais! Vinte anos atrás, eu estou perdido nas contas...

Eu me lembro muito de ter começado a falar nesse dia, na primeira aula inaugural do programa, com muita emoção, muita emoção de ver o programa iniciar os seus trabalhos, muita emoção no reencontro com muitos ex-alunos e todos os amigos que eu tenho na instituição. Mas também com uma enorme comoção com o acontecido três dias antes. Eu me lembro muito disso, me lembro muito de ter começado falando nisso. Era impossível dizer o que quer que fosse sem levar em conta aquilo que nós estávamos vivendo – aquela ferida aberta no coração do mais poderoso dos países, aquelas cenas terríveis dos corpos voando pelas janelas. Eu me lembro de ter começado muito emocionada a falar com vocês e não me lembro absolutamente de nada do que eu disse! A memória, como sabemos, é feita de lembrança e também de esquecimento. Faz parte de uma e do outro. O esquecimento não se opõe à memória, o esquecimento é parte da memória. O que ficou daquele dia foi a emoção, a múltipla emoção, que eu estava sentindo e que todos nós sentimos. Eu me lembro da Nísia [Trindade Lima] me dar um abraço apertado e não dizer nada, pois não precisava. Mas eu não me lembro de que eu tenha falado sobre memória, história e saúde, não me lembro de nada disso. Agora, acho que aquela emoção tem um nexo com a indignação que nós brasileiros vivemos hoje, com essa emoção também de impotência, essa sensação terrível de que nós somos impotentes ou de que ainda não conseguimos encontrar o caminho de uma ação eficaz que reverta esse quadro lamentável que nós, todos os brasileiros, vivemos hoje e que tem muito a ver, não só com essa cidadania sempre incompleta em sua configuração na sociedade brasileira, mas também com a dificuldade que nós temos, como acadêmicos e como cientistas, de dialogar com o grande público. E penso que se alguma instituição conseguiu furar essa barreira de silêncio e de opressão nesse 2020-2021 foi a Fiocruz. Certamente outras também, mas eu acho que a Fiocruz teve um desempenho não só cientificamente relevante, oportuno e necessário, mas ela teve, nas falas institucionais, nos pronunciamentos dos seus cientistas, nos seus silêncios, uma importância muito grande para mim e para todos. Em muitas situações, o que a Fiocruz disse institucionalmente, o que os seus cientistas falaram, o que a Fiocruz fez e faz nos ajudam a acreditar na esperança de futuro. Eu acho que isso é muito bonito, e é importante dizer isso e sublinhar isso nesse momento em que o programa de pós-graduação completa 20 anos. Acho importante demarcar isso na memória da instituição, na memória da ciência desse país. E é importante ter coragem de dizer que nós estamos num momento em que há um esforço malévolo em desacreditar a ciência e os cientistas, e é fundamental que uma instituição da estatura da Fiocruz nos dê essa esperança teimosa de que um dia nós vamos conseguir dar aos nossos filhos e aos nossos netos um país melhor, e a nós mesmos a certeza de que nós, de alguma maneira, contribuímos para isso. A Fiocruz, certamente, teve um protagonismo ímpar nesse momento, e eu agradeço por isso a cada um de vocês e à instituição como um todo.

Gilberto: Margarida, gostaria de registrar que eu não pude assistir a sua conferência, a sua aula inaugural. Estava exatamente em Washington e ia voltar para o Brasil para assistir a sua aula e fiquei preso porque o fechamento do espaço aéreo americano não permitiu que eu saísse. Então, não pude participar, mas me lembro dos colegas contando, e essa história é importante também e faz parte, um pouco, da nossa trajetória comum. Pensando na sua trajetória profissional, você talvez tenha sido uma das historiadoras/professoras que mais tenha formado pessoas, não só na orientação, mas na participação em bancas, e é um número extraordinário. Quais seriam as suas reflexões sobre o ofício do historiador nesses vinte anos, o que mudou? E como a história das ciências e da saúde foi incorporada a esse ofício, a esse processo?

A primeira coisa que eu acho é que nesses vinte anos nós aprendemos a conviver melhor com diferenças fundamentais de enfoque e de posturas teórico-metodológicas e com aproximações ao saber histórico. E aprendemos a fazer isso melhor, e, de alguma maneira, perdemos aquilo que Peter Novick (1988) chama do nobre sonho positivista de ancorar a verdade em história em algum solo positivo. Acho que, nestes últimos vinte anos, aprendemos que a fé inabalável na verdade em história repousando na documentação, na empiria, está saudavelmente balançada. A empiria é essencial. Mas os documentos não falam por si só, e é possível, com a documentação, construir leituras não apenas diferentes, mas, às vezes, divergentes. Então, a fé na empiria como solo positivo da história está meio abalada. Da mesma maneira, podemos dizer que a fé no método como solo firme da verdade em história também sofreu alguns abalos, até pela multiplicidade de possibilidades metodológicas hoje utilizadas pelos historiadores. E não digamos a fé na teoria como âncora da verdade em história, quer dizer, aprendemos que não existe verdade positiva em história, que a verdade em história é sempre uma construção in fieri, uma construção que está se fazendo, e que a história também é ela mesma “historicizável”. Essa, penso, é a grande descoberta que hoje é uma unanimidade. Hoje ninguém tem que justificar isso, mas, para os nossos alunos, descobrir que a história também tem história é uma grande descoberta.

A história que escrevemos, a história que pesquisamos, a história que ensinamos, ela mesma é histórica e pode ser objeto de investigação de história. Para mim esse é o grande movimento da história dos historiadores nesses vinte anos. Por outro lado, eu acho que, do ponto de vista da história das ciências e da saúde, especificamente, uma coisa muito interessante – e a produção de vocês é prova inconteste disso – é que a produção de história das ciências e da saúde deixou de ser o que era chamado de uma história especial, uma gavetinha absolutamente diversa de qualquer outro tipo de história, a partir da concepção de que a história das ciências, a história da arte, a história das instituições, a história da diplomacia são histórias encapsuladas. Vocês contribuíram muito, e quando digo vocês, digo o programa [de pós-graduação], que contribuiu muito para dar a entender que a história das ciências e a história da saúde e das doenças não são senão janelas distintas para aprofundar numa única e mesma história que é a história da cultura, da sociedade em que é possível ingressar por diferentes caminhos, mas sempre vai se chegar a um território que é o território das relações sociais, da história dessas relações e dos protagonistas dessa história de relações sociais, de sociedade ou, se quisermos, de cultura no seu sentido mais amplo. Não sei se vocês estão de acordo, mas eu acho que isso é muito importante.

Maria Rachel: Esse final da sua fala vai se concatenar de uma forma bem interessante com outros momentos em que você esteve muito próxima de nós. Além de todo esse processo da criação do programa, você esteve muito próxima de nossos trabalhos ao longo desses vinte anos, no nosso caminhar como professores e como pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz. Lembramos de suas várias reflexões sobre fazer ciência, sobre ciência e sobre progresso, sobre as arenas pacíficas presentes, por exemplo, no seu trabalho As vitrines do progresso (Neves, 1986), e também muito presente na curadoria da exposição “Imagens do progresso: os instrumentos científicos e as grandes exposições” realizada no Museu de Astronomia e Ciências Afins, em 2001 (Mast, 2001). Essa proximidade se deu no próprio campo da história da medicina, e aqui nos lembramos de seus trabalhos e estudos sobre a epilepsia, os seus diagnósticos, tendo como espaço o Hospital Nacional de Alienados, que foi objeto, inclusive, de um artigo publicado na nossa revista – História, Ciências, Saúde – Manguinhos (Neves, 2010). Vale lembrar também, falando da revista, que você teve um papel bastante importante, uma presença marcante ao longo desses anos, como editora adjunta. Então, gostaria que comentasse essa sua proximidade conosco e, especialmente, sobre o ofício da pesquisa histórica nessas temáticas.

Vou começar pelo final. Todo mundo fica muito surpreso quando descobre que a última pesquisa que eu fiz, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro foi sobre o pensamento médico brasileiro acerca da epilepsia. Não tem nada a ver com o que eu fiz durante a minha vida toda, quando trabalhei com outros temas, como você lembrou, as exposições internacionais, os intelectuais considerados os modernos descobridores do Brasil ou mesmo sobre a Guarda Nacional (Falcon et al., 1981), enfim, outros objetos de pesquisa. Mas eu nunca tinha trabalhado com o pensamento médico, e vou dizer para vocês porque resolvi fazer isso. Eu tinha plena consciência de que estava num momento de fechamento da minha carreira acadêmica tal como existiu durante mais de cinquenta anos. Eu ia me aposentar como professora, ia abrir mão dos projetos de pesquisa, para grande surpresa de todo mundo, mas chegou o momento em que eu disse para mim mesma: “Agora são outros que merecem o privilégio de uma bolsa de pesquisa, devem vir outros pesquisadores que tenham as mesmas oportunidades que eu tive”. Eu já tinha uma certa overdose de escrever relatórios e queria parar de fazer relatórios, sobretudo, achava que eu tinha que abrir espaço para as novas gerações. E pensando sobre como eu queria encerrar a minha carreira de pesquisadora – embora depois tenha descoberto que a gente não encerra nunca –, quis fazer algo completamente diferente de tudo que tinha feito e onde me sentisse uma aprendiz, algo no qual soubesse que não tinha os instrumentos e a facilidade para me mover dentro daquele tema e enfrentar novos problemas. Eu queria na verdade entender, ao trabalhar com aqueles cientistas que iam da metade do século XIX até 1918 – que é quando se descobre a rede neuronal – como aqueles cientistas, que escreviam teses, produziam artigos, publicavam livros e eram luminares da ciência dura no Brasil, deixavam que os preconceitos que cercam a epilepsia penetrassem seu fazer científico. Como era possível isso? Esses cientistas, e mesmo os seus antecessores desde a Antiguidade, conheciam as manifestações da epilepsia, que são inconfundíveis. Na verdade, a epilepsia é a primeira doença a ser descrita na história da medicina, lá com os gregos. É inconfundível. Mas se a manifestação era evidente, ninguém tinha a mais remota ideia de qual era a etiologia dessa doença, o que causava as crises, porque isso só seria possível depois da descoberta da rede neuronal e de como os neurônios funcionam. Antes ninguém sabia nada além das manifestações inequívocas da síndrome. O que não impedia que esses homens escrevessem, pretensamente, e fizessem teses, orientassem teses. Na verdade, no fazer ciência desses médicos, da metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX, ciência e preconceito – assim se chamava a minha pesquisa – não eram absolutamente distintos ou opostos. Ciência e preconceito se interpenetravam. Basta ler uma tese sobre a epilepsia, a primeira delas, que é de Pinheiro Guimarães (1859), da década de 1850, e vocês iriam pensar: mas como é possível escrever semelhantes despropósitos sobre o que causa a crise epilética? Nas teses que li, as causas das crises podem ser, por exemplo, comer aspargos ou beber algo muito quente ou muito frio, fazer esportes, rir muito, dançar, fazer sexo, porque, na verdade, tudo que fosse fonte de prazer parecia aos médicos de então motivar a crise.

Enfim, me hipnotizava ver como é que se interpenetravam ciência e preconceito, não só para entender melhor aquele tempo, mas para pensar melhor o nosso tempo e a ciência que nós fazemos. A ciência que nós fazemos não é imune aos preconceitos da nossa época, da nossa sociedade, do nosso grupo social, aos nossos preconceitos pessoais. Trabalhar essa relação entre ciência e preconceito naquele tempo me fez pensar, criticamente, a ciência que eu faço. E essa foi uma boa despedida do mundo acadêmico. Essa consciência de que nós somos seres históricos feitos do mesmo frágil barro de todos os nossos contemporâneos e que a ciência que nós fazemos não se situa fora do tempo e da sociedade. Ela carrega em si tudo que o nosso tempo tem de potencialidade, de beleza, de justeza, mas também tudo o que o nosso tempo tem de limitação, de preconceito, de falta de capacidade de ver o outro e de valorizar a alteridade. Isso, por um lado. Por outro lado, vou repetir o que eu disse numa resposta anterior. Vejo como, ao trabalhar com um tema qualquer, é possível traçar – como se a gente jogasse cipós e se balançasse qual Tarzan nesses cipós, fosse para uma árvore que não é a nossa para ver melhor a nossa própria árvore – o próprio trabalho que nós estamos fazendo. Todas as vezes que eu fui à Fiocruz, aprendi muito sobre o que vocês fazem, mas também sobre o que eu faço. Eu me lembro de uma vez em que fui fazer uma palestra sobre o Santos Dumont. Era uma comemoração, e fui falar sobre a crença no progresso e de que maneira o Santos Dumont representava ou não o sonho do progresso associado à ordem. Fui falar com vocês sobre isso, e foram muito boas as perguntas e a interação. Não me lembro do que eu disse, mas me lembro do que vocês perguntaram, porque a troca entre especialistas e especialidades é um caminho muito rico para aprofundar o que cada um faz e abrir os olhos para o que não se faz, o que não se sabe fazer. E isso é muito bom.

Kaori: Margarida, você não só acompanhou a minha formação como a de muitos de nossos colegas, também alunos egressos. A “Guida” que conhecemos tem uma influência enorme nessa formação, até mesmo difusa, de tanto que a gente incorporou as coisas que aprendeu com você. Posso falar por mim, mas também falo no coletivo. Estou pensando na minha própria trajetória desde a UFF, passando pela PUC, e reencontrando você em diversas ocasiões, já profissionalmente. Dá uma emoção muito grande saber que você continua aqui conosco e com a inspiração que você nos dá. Acho, Guida, que temos muitos desafios neste momento. Estamos fazendo 20 anos, e são conquistas enormes: foram muitos os passos dados, de um crescimento rápido, vamos dizer, com muito esforço, mas rápido, sim, e posso dizer que, desde meus primeiros contatos, já acompanhava como referência a produção acadêmica do programa. Mas, de volta ao nosso presente, gostaria de ouvir um pouco sobre a sua percepção a respeito da nossa produção – temos uma produção variadíssima. Penso que hoje em dia, como você falou, a história das ciências e da saúde não é uma gavetinha ou um gavetão. Podemos dizer que é uma área que dialoga com as mais diferentes especialidades no domínio da história. Mas, também, vivemos agora num momento muito tenso em relação às perspectivas de futuro profissional, em relação à crise de financiamento, ao mesmo tempo que temos uma riqueza incrível que é de um alunado extremamente diverso, e acho que a PUC também se abriu para isso. Então, queria que você comentasse um pouco sobre esses nossos desafios e como é que fazemos para continuar caminhando e caminhando juntos.

Kaori, seria desonesta se dissesse que sei como se faz para caminhar, com que norte, com que bússola, com que mapa – eu não sei. Em todo o caso, acho que eu sei, se olho para a memória da minha vida como professora e pesquisadora. Vale dizer, se eu olho para você, se eu olho para a Maria Rachel, se eu olho para a Nísia, se eu olho para tantos dos colegas do programa de vocês que, num momento e no outro, foram meus alunos ou fui da banca ou fui orientadora e assim em diante... Eu me lembro Kaori de que você foi minha aluna de graduação, num curso de Brasil III, e que você fez um seminário inesquecível sobre Euclides da Cunha – sobre Os sertões –, é possível que você tenha se esquecido disso, mas eu não esqueci não, esses retalhos de memória – a Kaori aluna de graduação, a Kaori na pós-graduação, a Kaori na vida, dona do casamento mais bonito em que fui na minha vida, a Kaori na Fiocruz, a Kaori pesquisadora respeitada. Quando eu vejo isso, e posso dizer o mesmo de cada um que está aqui, isso me mostra que a vida nos surpreende, isso me mostra que a vida é mais forte do que as limitações do momento estreito que estamos vivendo. Eu, quando vejo os alunos que eu tenho hoje como bolsistas de iniciação científica do grupo de pesquisa sobre a memória da PUC-Rio, eu vejo algumas luzes nesse tempo de escuridão. A primeira delas é que são alunos que, como você disse, expressam uma mudança muito significativa no alunado da PUC. São alunos que vêm de latitudes sociais muito diferentes, são alunos que representam grupos sociais muito diferenciados, enfim, são alunos negros, alunos pobres, alunos de comunidades muito pobres, alunos que vêm de longe, alunos que vêm de escolas públicas, alunos com dificuldades financeiras maiores, alunos que não podiam seguir as aulas em regime remoto porque não tinham instrumentos, professores e alunos que propuseram um plano para que esses alunos tivessem computadores e chips de dados. Então, acho que essa é a primeira luz que vejo, esses alunos e meus colegas professores, eles me mostram essa vontade de sermos cientistas sociais, desejo que formou a todos nós porque queremos responder à pergunta da poesia do Affonso Romano de Sant’Anna – “Que país é este?”. E queremos responder a essa pergunta não com uma descrição fria e exata. Queremos responder a essa pergunta talvez com outras perguntas. Nesse momento que estamos vivendo, qualquer resposta positiva seria um risco enorme, não estamos vendo horizontes, sejamos honestos, nós não conseguimos ver. A cada dia nós acordamos e somos bombardeados com afirmações insólitas, com posicionamentos escandalosos, com realidades tristíssimas e nos perguntamos: qual é a saída? Qual é a saída? Eu acho que os cientistas sociais dificilmente poderão dizer – a saída é essa aqui –, uma única saída inequívoca, mas podem nos ajudar a pensar e a fazer do pensamento uma forma de resistência. Nós podemos nos ajudar a saber que a busca da saída já é o caminho, o não abdicar da busca em conjunto com as futuras gerações já é um caminho, o aprender dos nossos alunos é o melhor dos caminhos para nós, cientistas. O saber que somos professores porque queremos aprender com nossos alunos é um caminho, e aos poucos vamos descobrindo belezas nesse cenário inóspito, descobrindo possibilidades de alegria onde só vemos tristeza, descobrindo a força da vida nesse cenário de mortes, que nós não podemos deixar de denunciar, mas que não podemos também nos deixar aprisionar. Nós não temos o direito de nos fazer reféns desse mal que nos assola. Com as armas que tivermos, a da palavra, a da escrita, a da resistência, a do exercício da cidadania no pequenininho e no grande, vamos continuar procurando caminho, como diz a poesia do Antonio Machado: “Não há caminho. O caminho se faz ao andar”. Vamos embora porque tem muita gente conosco, muita gente conosco, vamos acreditar, e, aí, o acreditar é um verbo apropriado, porque a gente não vê, a gente acredita, e os que vêm depois de nós farão um mundo melhor, um país melhor porque a gente fez o que pôde, melhor ou pior, a gente fez o que pôde, vamos ter fé no futuro.

Maria Rachel: Acho que a entrevista foi mais do que um depoimento, foi uma conversa de pessoas muito próximas ao longo da sua trajetória de vida, e isso é o que fica mais evidente na fala da Guida aqui conosco neste dia. E, nesse sentido, retomo um pouco o que escrevemos no cartão encaminhado a você com as flores. A sua presença na cartografia simbólica das nossas identidades, da nossa memória, não só do próprio programa da instituição, mas das nossas identidades individuais, tem uma marca muito forte. E acho que muito das falas que você apresentou hoje reforçam de que forma essa cartografia foi construída ao longo desses vinte anos. Faço um agradecimento, em nome de todos nós, expresso na gravação desse depoimento com as flores e a placa, para concretizar um pouco as nossas falas. Gostaria de pedir uma salva de palmas para você. Muito obrigada.

Para todos nós, para todos nós. Você sabe que o agradecimento diz muito de quem agradece. Então, essas flores, essa placa, esse encontro, essa conversa, essa sintonia, essa história de vida, porque são vinte anos de programa – a Maria Rachel foi minha aluna nos idos de nem digo quando... Então, são vidas, são vidas vividas de maneira generosa, e agradeço muito a vocês. Eu queria muito ser isso que vocês veem em mim, estou tentando, mas ainda não consigo. Gostaria muito de ser como vocês me veem. Vocês são muito generosos, a gente olha o mundo com os nossos olhos, e os olhos de vocês são muito generosos e muito capazes de fazer um mundo melhor e mais bonito. Muito obrigada.

Todos: Nós que agradecemos.

Cristiana: Será que eu poderia fazer uma pergunta a ela antes de terminarmos? Guida, eu estava outro dia fazendo uma filmagem com a Nara Azevedo sobre a mudança do acervo da COC para o Centro de Documentação e História da Saúde, que é o prédio que abriga, agora, a pós-graduação. E uma coisa que a Nara estava contando é que há 35 anos esse campo da história, da história das ciências e da saúde era um campo em formação. E aí ela disse uma coisa que eu achei muito bonita: “A gente se formava enquanto formava o campo, o campo de pesquisa”. Estou falando disso e sou uma pessoa de fora, não é? Mas, observando, fico pensando que a pós[-graduação] é uma continuação desse processo formativo do próprio campo. Não sei se eu estou fazendo uma colocação certa, mas queria saber o que você acha disso. Porque vinte anos é todo um processo, mas é um processo que surge num momento histórico que propiciou que esse campo também se apresentasse. O que você acha?

A primeira coisa que acho é que você não é de fora, ninguém é de fora do campo da história, menos ainda do foco da história das ciências e da saúde, basta ligar um telejornal diário de qualquer um dos canais de TV nos dias de hoje. Como as questões relativas à ciência, à saúde e a sua relação com a vida social e política estão em foco, então isso é seu, tanto seu quanto meu ou de qualquer um de nós: você não é de fora – e essa é a primeira coisa que um professor de história deve ensinar. Não tem ninguém de fora da história. Então, essa é a primeira coisa – você não é de fora, não.

A segunda coisa é a seguinte: o que a Nara disse vale para hoje também, ainda que em outro patamar. Nós nos formávamos enquanto formávamos o campo. No entanto, o campo, ao contrário do campo agrícola, a gente não acaba de arar e semear num determinado momento, ele é sempre arável e semeável, logo esse campo está em formação, em transformação, em nova configuração sempre e sempre. Aquele momento a que a Nara se referia era, digamos assim, um momento inaugural. Mas essa afirmação pode ser feita hoje, pode ser dita por mim hoje, esta senhora provecta de 76 anos, que pode dizer com grande tranquilidade: eu continuo a me formar, enquanto o campo da história, em particular o campo da história cultural, se forma. Esse nosso campo do conhecimento é sempre o mesmo e é sempre novo. Então, podemos nos apropriar dessa fala bonita da Nara para falar de hoje. Aí, o que vamos ver é o seguinte: – então, hoje, o que é que se transforma nesse campo? Quais são os desafios da história das ciências e da saúde hoje? Nada tão atual como os desafios da história das ciências e da saúde hoje. Com que instrumentos nós assumimos uma postura crítica em relação a determinadas afirmações da ordem da pior ficção, do tipo “a vacina provoca aids”? Com que instrumentos do nosso saber nós nos aproximamos criticamente disso? Naturalmente que não é para dizer como é que eu posso provar que a vacina não provoca aids. Mas o que eu posso fazer é discutir o significado de um enunciado como esse: hoje, aqui, agora, o que é que isso significa? Não [significa] que os pressupostos científicos não existem. Então, posso fazer algo que põe em xeque um suposto raciocínio, que é negar as suas premissas. Os escolásticos sabiam disso muito bem; quando você nega a premissa de um raciocínio acabou a conversa. Não temos que discutir despautérios cientificamente, porque esses enunciados não têm nada a ver com ciência, não tem nenhum substrato científico neles, nada. É apenas uma barbaridade, não só do ponto de vista científico, mas do ponto de vista humano. Mas o que eu posso fazer é dizer: bom, vamos lá, pensar o que significa isso dito por quem o diz e como o diz. Qual é o nosso veículo de indignação? Qual é a nossa posição politicamente mais fértil? É fingir que não ouvimos, para não dar importância? Vamos discutir isso. Nós nunca pensamos viver o que estamos vivendo agora, não sei vocês, mas eu nunca pensei na minha vida viver esse momento completamente fora de esquadro. Há dois anos que eu só saio de casa para ir ao médico, eu saí de casa exatamente três vezes em dois anos, o que seria absolutamente impensável há dois anos. E, ao mesmo tempo, isso para mim não é o mais complicado, o mais complicado é o que eu sou obrigada a ver, a ouvir, a presenciar. São os quase 700 mil mortos, as quase 700 mil famílias vivendo um luto sem possibilidade de luto real. É esse completo desconcerto, e a estreita faixa de possibilidade de um futuro melhor. Então, vamos trazer o que a gente tiver de melhor para que essa constituição do campo, que vai sempre se fazendo e se refazendo, tenha sentido e construa sentido para hoje e para o que vem depois. O tempo da memória e o tempo da história não é o passado, é o presente e o futuro.

Luiz Otávio: Eu gostaria de agradecer mais uma vez à Guida essa presença. Ela está presente na formação de gerações de historiadores, está presente na história do nosso programa, e a gente vai estar sempre presente, como ela disse, a história é um daqui para frente, e ela vai estar sempre presente. Muito obrigado, Guida.

Eu acho que hoje fizemos um lindo exercício sobre a construção do nós, essa nossa conversa foi um lindo exercício, um laboratório de construção do nós e do sentido da comemoração desses vinte anos. O sentido da comemoração desses vinte anos são os próximos muitos outros vinte anos, acho eu.

REFERÊNCIAS

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  • GUIMARÃES, Francisco Pinheiro. Algumas palavras sobre a epilepsia Rio de Janeiro: Tipografia de D.L. dos Santos, 1859. (Tese apresentada para o concurso a um lugar de opositor na Seção de Ciências Médicas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro)
  • LEFEBVRE, Henri. Introduction à la modernité: préludes Paris: Les Éditions de Minuit, 1962.
  • MAST, Museu de Astronomia e Ciências Afins. Imagens do progresso: os instrumentos científicos e as grandes exposições Rio de Janeiro: Mast, 2001. Disponível em: http://www.mast.br/images/pdf/publicacoes_do_mast/catalogo_exposicao_imagem_do_progresso.pdf Acesso em: 25 set. 2022.
    » http://www.mast.br/images/pdf/publicacoes_do_mast/catalogo_exposicao_imagem_do_progresso.pdf
  • NEVES, Margarida de Souza. O grande mal no “Cemitério dos Vivos”: diagnósticos de epilepsia no Hospital Nacional de Alienados. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.17, supl.2, p.293-311, 2010.
  • NEVES, Margarida de Souza. As vitrines do progresso Rio de Janeiro: PUC-Rio; Finep; CNPq, 1986.
  • NOVICK, Peter. That noble dream: the “objectivity question” and the American historical profession. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

NOTA

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    O Fórum Nacional de Pró-reitores de Pesquisa e de Pós-graduação foi criado em 1985, a partir do primeiro Encontro Nacional de Pró-reitores de Pós-graduação e Pesquisa das Instituições de Ensino Superior Brasileiras, para pensar a pesquisa e o ensino no país no contexto de redemocratização, formulando as necessidades nas áreas de pesquisa, inovação e pós-graduação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2022
  • Aceito
    25 Abr 2022
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