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Saúde e poder: a emergência política da Aids/HIV no Brasil

Health and power: the political emergence of AIDS/HIV in Brazil

Resumos

O artigo analisa a construção das respostas políticas à Aids no Brasil. A pesquisa pautou-se pelo estudo da epidemia desde seu surgimento articulado com a história das políticas de saúde nas últimas décadas no país, dos movimentos sociais emergentes nesse período, e dos dados sobre a evolução da Aids/HIV. As fontes orais constituíram parte fundamental da pesquisa, somadas a documentos produzidos no período. O resultado revelou que a evolução das respostas oficiais à Aids, desde sua emergência política no Brasil, configurou-se em diferentes estágios e estabeleceu, com dificuldades e limites, uma forma de responder a políticas cuja característica principal está na participação da sociedade.

Aids e HIV; políticas de saúde; história do presente; Programa Nacional de Aids; saúde pública


This analysis of the construction of political responses to AIDS in Brazil is grounded on a study of the epidemic since its first appearance, against a backdrop formed by the recent history of Brazilian health policy, the period's emerging social movements, and data on AIDS/HIV evolution. Together with period documents, oral sources constitute a fundamental part of the research. The article sees official responses to AIDS from the time of the disease's political emergence in Brazil as evolving through different stages and eventually - after some problems and not without certain limitations - becoming characterized first and foremost by society's participation.

AIDS and HIV; health policies; history of the present; Programa Nacional de Aids; public health


ANÁLISE

Saúde e poder: a emergência política da Aids/HIV no Brasil

Health and power: the political emergence of AIDS/HIV in Brazil

Maria Cristina da Costa Marques

Doutora em história social - Universidade Estadual de Maringá - Rua Bragança, 258/302 - 87020-220 Maringá - PR Brasil - mccmarques@uem.br

RESUMO

O artigo analisa a construção das respostas políticas à Aids no Brasil. A pesquisa pautou-se pelo estudo da epidemia desde seu surgimento articulado com a história das políticas de saúde nas últimas décadas no país, dos movimentos sociais emergentes nesse período, e dos dados sobre a evolução da Aids/HIV. As fontes orais constituíram parte fundamental da pesquisa, somadas a documentos produzidos no período. O resultado revelou que a evolução das respostas oficiais à Aids, desde sua emergência política no Brasil, configurou-se em diferentes estágios e estabeleceu, com dificuldades e limites, uma forma de responder a políticas cuja característica principal está na participação da sociedade.

Palavras-chave: Aids e HIV, políticas de saúde, história do presente, Programa Nacional de Aids, saúde pública.

ABSTRACT

This analysis of the construction of political responses to AIDS in Brazil is grounded on a study of the epidemic since its first appearance, against a backdrop formed by the recent history of Brazilian health policy, the period's emerging social movements, and data on AIDS/HIV evolution. Together with period documents, oral sources constitute a fundamental part of the research. The article sees official responses to AIDS from the time of the disease's political emergence in Brazil as evolving through different stages and eventually — after some problems and not without certain limitations — becoming characterized first and foremost by society's participation.

Keywords: AIDS and HIV, health policies, history of the present, Programa Nacional de Aids, public health.

Introdução

Duas décadas após o relato dos primeiros casos de Aids/HIV no Brasil,1 1 O primeiro caso diagnosticado de HIV positivo no Brasil, segundo dados do Ministério de Saúde, ocorreu em 1980, no município de São Paulo. Buchalla (1995) refere-se aos primeiros casos de Aids no Brasil surgidos no início da década de 1980. os sentimentos de medo, pânico, negação e preconceito que acompanharam a epidemia em seu início parecem acomodar-se em um passado distante, presente apenas na memória de quem conheceu o mundo sem a Aids e estava seguro de que epidemias faziam parte de histórias de sociedades antigas. Atualmente, com a distância dos vinte anos que nos separam do início da epidemia de Aids/HIV, podemos, ainda que em meio aos acontecimentos, iniciar tentativas de reconstrução e análise deste período nos diversos espaços nos quais essa epidemia moderna revelou limites, ações, comportamentos e tantas outras respostas e reações ainda a serem avaliadas.

Rosenberg (1995) argumenta que uma epidemia, entendida como fenômeno social, mobiliza comunidades a revelar comportamentos que incorporam e reafirmam valores sociais e modos de compreensão do evento. Seu caráter público e sua intensidade dramática fazem com que as epidemias, antigas e modernas, constituam-se em um espaço de entendimento das relações entre ideologia, estrutura social e a construção de respostas ao fenômeno. Aos cientistas sociais as epidemias revelam-se como importantes espaços de pesquisa na reconstrução e análise de valores sociais e práticas institucionais em diferentes sociedades.

Considerando estes aspectos sobre uma epidemia, a Aids/HIV como objeto de pesquisa em diferentes disciplinas tem sido enriquecedora: pode revelar como a sociedade moderna tem construído suas respostas políticas, sociais e morais, entre outras, ante um problema de saúde pública que demonstrou claramente suas contradições.

Nas últimas duas décadas, os diversos campos de conhecimento estiveram envolvidos na pesquisa sobre a Aids/HIV, construindo um arcabouço teórico que nos permite hoje um entendimento, embora ainda incompleto, da epidemia em suas dimensões sociais, antropológicas, biológicas, psicológicas, entre outras. No campo da história, pudemos perceber um envolvimento tímido da disciplina, no Brasil, na pesquisa em relação à Aids/HIV, diferentemente do que ocorreu em outros países, como, por exemplo, na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos. Nesses países, tal envolvimento produziu uma historiografia significante sobre a epidemia até o presente e proporcionou, em alguns casos, a participação efetiva de historiadores na discussão de respostas políticas a serem adotadas nessa luta (Berridge, 1989).

Autores como Fee e Fox (1988) ressaltam que nenhuma outra doença moderna suscitou mais o interesse da história do que a Aids. Berridge e Strong (1991) analisam o fato de que o aparecimento da Aids, apesar da tragédia coletiva que se seguiu, permitiu ao historiador contemporâneo a oportunidade de demonstrar, nos diversos estudos sobre a doença nessa perspectiva, a importância da disciplina na discussão das políticas de saúde pública. Risse (1988) pontua que, enquanto a Aids destruía milhares de vidas, também forçou a história da saúde a estabelecer diálogo com a sociedade e as políticas públicas.

Parker (1997) mostra a complexidade e o dinamismo da epidemia da Aids/HIV no Brasil e no mundo, salientando as grandes mudanças epidemiológicas ao longo destes vinte anos, bem como a evolução das respostas sociais e políticas. Argumenta que, devido à urgência, as ações adotadas para responder à epidemia foram pouco avaliadas, apesar da tradição brasileira de análises críticas das políticas públicas em geral. Assim, a análise da construção das respostas políticas à epidemia da Aids/HIV no Brasil constitui-se em um espaço importante, abrangente e necessário de pesquisa.

A história tem-se ocupado da pesquisa de epidemias e respostas coletivas e políticas dadas a elas em sociedades do passado. Tais pesquisas têm contribuído para o entendimento de aspectos importantes da história da humanidade. Entretanto, acreditamos que a história contemporânea, ao se envolver com a pesquisa e análise das políticas públicas modernas, no caso no campo da saúde, pode contribuir e assumir papel importante também no diálogo efetivo entre a pesquisa e a construção dessas políticas.

Este artigo pretende analisar a emergência política da Aids/HIV no Brasil, recuperando historicamente a evolução das políticas públicas em relação à epidemia em seu contexto político e social, principalmente na primeira década de sua presença no país. Acreditamos que, ao compreender o contexto no qual a Aids foi assumida como problema de saúde pública pelo poder público e o modo como evoluíram as estratégias oficiais para o enfrentamento da epidemia, possibilitaremos uma compreensão melhor de como as políticas em saúde organizaram-se no Brasil a partir dos anos 1980.

História e Aids/HIV

A Aids/HIV, epidemia que surgiu numa época em que as autoridades sanitárias mundiais acreditavam que as doenças infecciosas estavam controladas pela tecnologia e saber médicos modernos, suscitou comportamentos e respostas coletivos, nos quais estão inseridas as estratégias políticas oficiais em seus diversos contextos. No Brasil, como um problema de saúde que evoluiu demonstrando as contradições sociais, econômicas e culturais, a Aids/HIV constitui-se como um espaço metodológico relevante na busca de respostas sobre como o poder público brasileiro organiza e estabelece as políticas de saúde pública.

As respostas suscitadas a este evento de saúde pública são analisadas em uma perspectiva histórica relacional, reflexiva e interpretativa. Essenciais para o alcance dessa análise são os referenciais propostos pela história denominada do tempo presente — aqui resumidos nos enunciados de Le Goff (1999) : a) ler o presente e seus acontecimentos com suficiente e pertinente profundidade histórica; b) manifestar na leitura das fontes a criticidade necessária ao historiador segundo os métodos adaptados na análise; c) não apenas descrever ou recontar os acontecimentos, mas se esforçar para explicá-los; d) hierarquizar os acontecimentos, distinguir a periodicidade do fato significante e importante e integrá-lo em uma problemática reconhecida historicamente.

Lacouture (1990), Chauveau e Tétart (1999) e Rioux (1999) discutem a importância da história do presente acreditando que esta pode permitir o posicionamento social do historiador em seu tempo, mas advertem para as dificuldades dessa história na medida em que o pesquisador passa a ser sujeito de seu objeto, engendrado nos acontecimentos que estuda. A proximidade temporal é o argumento mais invocado como fator limitador à história do presente.2 2 Sobre o entendimento e a possibilidade da história do presente, Rioux (1999, p. 50) indica: "Um vibrato do inacabado que anima repentinamente todo um passado, um presente pouco a pouco aliviado de seu autismo, uma inteligibilidade perseguida fora de alamedas percorridas: é um pouco isto, a história do presente."

Tais considerações, ou provocações, suscitadas pelas discussões sobre a relevância e possibilidade do presente como objeto da história (Chaveau e Tétart, 1999) nos colocam questões importantes sobre a nossa análise. Pode a Aids/HIV ser objeto da história? A proximidade dos acontecimentos provocados pelo aparecimento desta epidemia moderna configura-se como obstáculo possível de ser transposto para uma investigação histórica com o rigor científico esperado?

A proximidade a que nos referimos diz respeito à questão do tempo, do distanciamento temporal tão discutido na história para uma análise desapaixonada do tema de pesquisa. Ousaríamos responder a essas questões remetendo-nos a dois pontos importantes. O primeiro diz respeito ao engajamento do historiador e às demandas da sociedade moderna cada vez mais ávida por respostas consistentes a acontecimentos, movimentos e fatos que ela produz. O segundo é a própria noção de tempo, a que nos remete a intensidade de significações que a Aids produziu nestas últimas duas décadas.

Em relação ao primeiro ponto, nos dirigimos a Chauveau e Tétart (1999, p. 17), quando discutem a evolução da história do presente a partir dos anos 1960. Os autores afirmam que "a demanda social é, portanto, um vetor central", para o reconhecimento e legitimação desse tipo de pesquisa. A Aids, como um dos acontecimentos cruciais do século XX, suscitou uma demanda social por respostas efetivas, mesmo que incompletas, das quais o historiador não poderia estar ausente, sob o risco de perder a oportunidade de participar da própria construção da história da sociedade atual.

Quanto à noção de tempo, a que nos referimos em relação ao nosso objeto de pesquisa, ressalta Ricoeur (1997, p. 406): "o tempo é dinamizado como força da própria história, essa que dá sentido ao tempo". Estas últimas duas décadas, vividas com a presença da Aids, superam, em nosso entender, em densidade de significações, as relações cronológicas.

Pensar o início dos anos 1980, ou mesmo a década anterior a esse período, nos remete a um tempo sentido como longínquo, quando questões como qual seria o comportamento coletivo ante uma epidemia não fazia parte da agenda científica da história do presente ou de outras disciplinas. Esse tempo sentido, que é o tempo da história da Aids na sociedade moderna, nos permite afirmar, ou pretender, que o distanciamento temporal em relação ao nosso tema de pesquisa o qualifica e o legitima como objeto da história.

Hobsbawm (1995) considera que o ponto de partida para a pesquisa na história contemporânea deveria ser a descoberta do engano, o senso de que talvez não tenhamos entendido algo na história da sociedade. O autor argumenta que os historiadores cujos objetos de pesquisa estão inseridos na história contemporânea devem olhar para o evento estudado com desconfiança, com a surpresa da descontinuidade em relação ao que parecia inevitável. Pensando o surgimento da Aids/HIV sob essa perspectiva, parece-nos que ela se insere nesse conceito, visto que a epidemia emergiu como uma descontinuidade em uma realidade histórica, na qual as doenças infecciosas pareciam estar dominadas pela ciência moderna, o preconceito em relação às pessoas infectadas seria um erro do passado, e as epidemias e pandemias podiam ser conhecidas apenas em trabalhos históricos.

A Aids/HIV, como evento que configura descontinuidade, tem sido ponto de discussão na historiografia dessa epidemia. Fee e Fox (1992) mostram que o conceito de descontinuidade utilizado nos trabalhos em história sobre Aids/HIV foi política e psicologicamente importante nos primeiros anos da epidemia. A descontinuidade, os autores analisam, foi usada para compreender perigos, desconfianças, preconceitos, medos e todo e qualquer aspecto relacionado à epidemia.

Passados os primeiros anos, quando a história da epidemia está sendo escrita em seus diversos aspectos, muitos trabalhos têm reconhecido que um importante aspecto da Aids/HIV é justamente sua continuidade com o passado recente da sociedade, e sua história está articulada com os comportamentos desta, coletivos, pessoais e institucionais.

Camargo Júnior (1994, p. 21) argumenta que um problema que se coloca de imediato no estudo da Aids/HIV é o da continuidade/descontinuidade em relação à história das doenças infecciosas e a respostas políticas dadas a elas. O autor, retomando alguns conceitos de Foucault, afirma que o "estatuto da ruptura é fortemente dependente daquilo que adotamos como unidade de análise, e a extensão e as conseqüências de eventuais rupturas dependerão, portanto, daquilo que se considera estar rompendo".

Ao pensar nosso objeto de pesquisa em relação às perspectivas de continuidade/descontinuidade no processo de construção das respostas políticas dadas a eventos de saúde pública na história recente brasileira, e sendo essa construção a nossa unidade de análise, consideramos como espaço metodológico fundamental as mudanças e possíveis rupturas no espaço de poder político e decisório no Brasil a partir da década de 1980. É em meio a acontecimentos importantes no cenário político brasileiro no início da década de 1980 e, por conseguinte, na saúde pública, que a Aids/HIV surge como um problema efetivo de saúde a ser respondido pelo poder público. As respostas políticas a esse problema emergente de saúde vão ser evidentemente influenciadas por esses acontecimentos. A questão que a história pode ajudar a analisar é se as mudanças na configuração dos espaços decisórios das políticas públicas no Brasil no período significaram também mudanças na forma de construção dessas respostas, tradicionalmente distantes da realidade social brasileira.

Fontes da análise

Fee e Fox (1990) analisam que o rápido acúmulo de fontes em história contemporânea tem tido papel importante e ainda desconhecido na historiografia da Aids/HIV. Ressaltam a importância de o pesquisador da história do presente estar atento à intensa produção de fontes, primárias e secundárias, em relação à epidemia, e alertam para o perigo de a análise cair no que eles denominam "presentismo", referindo-se ao uso dos dados sem a devida profundidade histórica. Berridge (1996) ressalta que o historiador do presente, especialmente quando o objeto de estudo é a Aids/HIV, nunca deve estar desligado da procura de novas fontes, já que estas estão sendo produzidas durante todo o tempo da pesquisa. Sugere ser essa uma das dificuldades de se trabalhar com a história do presente, mas também um de seus fascínios.

As fontes utilizadas para essa análise foram aquelas necessárias ao alcance do objetivo do trabalho: 1) Entrevistas realizadas com: a) profissionais da área de saúde, ou não, envolvidos na assistência e construção da resposta oficial à epidemia no Brasil, b) militantes de organizações não-governamentais (Ongs) que se formaram no período, c) profissionais da imprensa que acompanharam o evento na mídia. 2) Relatórios da Assembléia Geral e Boletins da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de 1985 a 1995. 3) Notícias de periódicos relacionadas à epidemia no Brasil, de 1985 a 1999. 4) Material de campanhas do Ministério de Saúde relativas à prevenção e educação da Aids/HIV (1985 a 1997). 5) Documentação fornecida por alguns entrevistados, como atas de reuniões, relatórios pessoais, propostas iniciais de intervenção etc. 6) Dados epidemiológicos sobre a doença no período do estudo.

O uso de fontes orais na presente pesquisa é entendido tendo como referencial a preocupação de Frank (1999, p. 107): "se há contemporaneidade entre a testemunha e o historiador, existe em compensação uma distância temporal entre a ação de testemunhar e a ação contada pela testemunha". Pressupõe-se, então, a solicitação da memória, que, embora rica e insubstituível em muitos casos, também é geradora de erros, de mitos, silêncios, provocados ou não, que exigem do pesquisador uma crítica constante. O uso de outras fontes documentais é igualmente importante, no sentido de comprovar, cotejar e auxiliar o testemunho oral.

Ressaltamos, apesar das indicações mencionadas, a importância, para este trabalho, das fontes orais, lembrando novamente Frank (1999, pp. 110, 111): "a vantagem fundamental e central, as fontes orais revelam melhor do que as fontes escritas a complexidade dos mecanismos da tomada de decisão", e ainda: "as fontes escritas não bastam para reconstituir a rede de pressões, a meada de influências e a cadeia de decisões".

Ao escolhermos as fontes orais para a pesquisa, procuramos, através de uma análise prévia em documentos de arquivos institucionais, material produzido pela mídia e bibliografia sobre o nosso objeto, priorizar atores que estiveram envolvidos na discussão e construção da resposta oficial à Aids no Brasil em suas diversas dimensões. Salientamos que, ao darmos início à coleta de depoimentos, estes nos indicavam outros atores relevantes, os quais, por sua vez, nos apontavam documentos e outras fontes necessárias à pesquisa. A linha central de escolha de depoentes foi aquela referente à inserção desses no processo dinâmico de decisões e influências para uma ação política ante a construção de respostas à Aids no Brasil.

A "fala" escolhida foi, ou tentou ser frente às limitações do processo intenso e dinâmico em que se constitui a formulação e implantação de políticas públicas, aquela de quem "participou" como indivíduo mobilizado por uma realidade modificada — pessoal ou coletiva — por um fenômeno inusitado, ocupando ou não nesse período o espaço privilegiado de poder decisório.

A emergência política da Aids/HIV no Brasil

A evolução das políticas de saúde em relação à Aids/HIV no Brasil caracterizou-se por fases distintas considerando-se o desenvolvimento dos conhecimentos científicos em relação à doença, a participação de diferentes segmentos sociais e institucionais na construção das respostas à epidemia e as articulações que permearam o espaço de organização dessas ações oficiais.

As pesquisas realizadas por Parker (1997) apontam quatro fases na história da Aids/HIV no Brasil, as quais, segundo o autor, cruzaram-se de inúmeras formas com a história mais ampla da vida política no país. A primeira fase de resposta política à Aids/HIV no Brasil começou, segundo o autor, em torno de 1982, quando os primeiros casos foram notificados e um programa inicial de mobilização foi estabelecido no estado de São Paulo, até 1985. Esse período também se caracterizou pela formação das primeiras Ongs de serviços relacionados à doença, negação e omissão por parte das autoridades governamentais e uma onda moral de pânico, medo, estigma e discriminação.

Com o surgimento de uma resposta no nível federal, iniciada, segundo Parker (1997) pela pressão de um número crescente de programas estaduais e municipais de Aids, a segunda fase da resposta política à epidemia no Brasil parece estender-se aproximadamente de 1986 até o início de 1990, quando a liderança do Programa Nacional de Aids (PNA) mudou pela primeira vez os seus dirigentes, seguindo as mudanças políticas no período do governo Collor.

A terceira e a quarta fases na evolução da resposta política à epidemia de Aids/HIV, ainda segundo o autor, no Brasil correspondem respectivamente aos períodos de 1990 a 1992, quando ocorreu um antagonismo crescente entre o Programa Nacional e todos os outros setores envolvidos com a resposta à epidemia, e de 1992 até o presente momento, período que se caracteriza pela reorganização do PNA no Ministério da Saúde e pela efetivação da política de controle da epidemia.

Por sua vez, Galvão (2000) apresenta, tendo como referencial a periodização sugerida por Parker (1997), uma proposta igualmente relevante de identificação de diferentes fases na evolução dessas respostas no Brasil, dando ênfase às da sociedade, ou seja: 1981 a 1982, quando a Aids era conhecida no Brasil apenas pela imprensa; 1983 a 1984, quando a Aids tornou-se uma realidade para o Brasil; 1985 a 1989, período denominado pela autora como "anos heróicos", por envolver diferentes iniciativas no confronto com a Aids, muitas delas mais pessoais do que institucionais; 1990 a 1991, fase marcada por modificações no cenário brasileiro de respostas à epidemia, com mudanças no Programa Nacional; e 1993 a 1996 (ano do término de sua análise), fase marcada pela implementação de um novo modelo de gerência da epidemia de HIV/Aids, com os empréstimos do Banco Mundial ao governo brasileiro.

Com base nas fases caracterizadas por Parker (1997) e Galvão (2000) na evolução das respostas políticas à Aids/HIV no Brasil, estabelecemos como período de análise principal de nossa pesquisa a primeira década dessa evolução, ou seja, de 1982 até 1992, considerando os seguintes aspectos: a primeira década da presença da Aids/HIV no Brasil foi o período mais intenso de definição da epidemia em seus aspectos epidemiológicos, sociais e políticos; e as respostas políticas estabelecidas nesse período compreendem, em nosso entender, um espaço metodológico importante e intenso na análise da emergência política da epidemia, nas articulações que permearam as decisões oficiais para assumir a Aids/HIV como problema de saúde pública, e o estabelecimento de um espaço decisório definitivo para a construção das políticas na luta contra a epidemia.

Nesta configuração de análise, e tomando como marcos importantes na história social da Aids no Brasil os trabalhos desenvolvidos pelos autores citados neste trabalho, ao desenvolver nossa pesquisa e ao trabalhar as fontes documentais e orais, outras fases foram se configurando, demonstrando os diferentes estágios na evolução das respostas políticas brasileiras no confronto com a epidemia, principalmente em sua primeira década, objeto maior de nosso estudo.

Assim, entendemos que a evolução das políticas de saúde em relação à Aids/HIV no Brasil foi se estruturando em estágios que classificamos em cinco períodos, referidos a seguir e após caracterizados: meados da década de 1970 até 1982; 1983 a 1986; 1987 a 1989; 1990 a 1992; e 1993 até o momento. Nossa análise está estruturada, como já referido, nos quatro primeiros períodos aqui configurados.

Pré-história da Aids/HIV no Brasil

A primeira fase, que diz respeito ao período compreendido entre meados da década de 1970 até 1982, caracterizamos como sendo a "pré-história" da Aids no Brasil. Emprestamos esse termo de Berridge (1996), que denomina "pré-história da Aids" o período em que estão presentes os aspectos políticos, sociais e culturais nos quais a doença se inseriu e foi construída. Esse período, para a nossa análise, é aquele que antecede no Brasil o conhecimento público e institucional sobre o HIV/Aids, mas ao qual confluem todos os aspectos para o início da epidemia e construção das respostas políticas diante dela. A provável chegada do vírus da Aids no Brasil em meados da década de 1970, o fortalecimento e a intensificação de uma pressão social por mudanças políticas no país, representada no campo da saúde pelo movimento pela reforma sanitária, e as articulações de forças democráticas que ocuparam posteriormente importantes posições de poder, essenciais na configuração da mudança da assistência à saúde no Brasil, foram os fatores que, ao se articularem nesse período, estabeleceram o cenário inicial para a construção das respostas políticas à epidemia.

O final dos anos 1970 e o começo dos 1980 constituíram-se como um marco na política brasileira em torno do processo de redemocratização do país. Inúmeras forças sociais, representadas por sindicatos, entidades profissionais, associações de bairros, movimentos contra a carestia, minorias excludentes e partidos políticos empreenderam uma luta política, formando um bloco expressivo de pressão para exigir do governo militar mudanças estruturais importantes. A sociedade brasileira mobilizou-se em vários grupos no país a favor da democratização. Essa luta constituiu-se como saída política à ditadura militar, que anunciara a proposta de estabelecer um abertura lenta, gradual e segura (Gerschman, 1995).

O governo militar respondeu às crises econômicas e às pressões populares, estas cada vez mais freqüentes, com ajustes e programas, visando uma estratégia política de abertura controlada, ou de liberação tutelada das instituições políticas. A extinção do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em 1978, como exemplo dessa estratégia, foi um importante passo à frente para a sociedade brasileira, conquista das pressões políticas.

Entretanto, entre 1979 e 1982, o fracasso da reforma partidária promovida pelo governo e a divisão interna do bloco político de apoio ao regime militar abriram uma ampla comporta, por onde avançaram as forças políticas de oposição, represadas desde sua vitória eleitoral de 1974. Esse período, segundo Fiori e Kornis (1994), no qual se deslanchou a crise econômica, transformou-se qualitativamente na crise política do regime militar no Brasil.

A vitória democrática da oposição em 1982 nos principais estados brasileiros abriu espaço para que representações das forças sociais, que se fortaleceram ao longo da década de 1970, ocupassem posições estratégicas nos setores decisórios do cenário político do país, fato que foi fundamental para a discussão e implantação de políticas públicas reformadoras, ainda que no primeiro momento estas estivessem circunscritas a alguns estados brasileiros.

No caso da saúde previdenciária em âmbito nacional, segundo Escorel (1989), alguns intelectuais do movimento pela reforma sanitária, claramente identificados com este projeto, foram chamados a exercer altos postos na burocracia estatal, na tentativa de solucionar o impasse enfrentado pela política de saúde e também como mais uma estratégia política do governo para a manutenção de sua posição.

O mesmo ocorreu em alguns estados, o que foi decisivo para a implantação de programas de saúde baseados nos princípios norteadores do projeto já então delineado pelo movimento sanitário brasileiro, ou seja, eqüidade, universalidade e saúde como um direito e dever do Estado.

Ao se articularem, os crescentes movimentos sociais, os princípios e diretrizes que marcaram, ainda que com dificuldade de implantação, uma mudança de sistema de saúde no Brasil, e o início do processo de redemocratização, formaram o pano de fundo para que os sujeitos dessa história dessem início à construção da política de enfrentamento à Aids/HIV no país.

É nesse cenário político, social e cultural que a Aids chega ao Brasil. Os primeiros casos de Aids oficialmente registrados no país ocorreram em julho de 1982, no estado de São Paulo. Mais tarde, um estudo retrospectivo indicou uma ocorrência de Aids em São Paulo ainda em 1980, ano que passou a ser referido em todas as análises epidemiológicas sobre o HIV no Brasil como o marco inicial.

Ressaltamos que, mesmo tomando como essenciais as conjunturas aqui expostas, entendemos que intrincadas a elas estão todas as metáforas e sentidos que a própria Aids carrega desde seu aparecimento, sendo seu significado encontrado além da doença física. Com a chegada do vírus ao Brasil, também, desembocaram, atreladas a ele, todas as metáforas, transformadas em preconceito, moralismo, medo, entre outros, metáforas essas presentes, às vezes nas dobras, às vezes bem aparentes, na evolução das respostas à epidemia no país.

1983 a 1986: a Aids/HIV torna-se uma realidade brasileira

Como segunda fase, consideramos o período de 1983 a 1986, propondo como elementos norteadores as seguintes questões: reconhecimento da Aids pelo público e aumento de casos da infecção em diferentes estados brasileiros; instalação das primeiras respostas oficiais à Aids nos estados, tendo como exemplo pioneiro o Programa Estadual de São Paulo; reconhecimento oficial da Aids, pelo governo brasileiro, como um problema de saúde pública, mas sem articular uma resposta nacional de peso à epidemia e indo a reboque dos estados; e articulação das forças sociais e políticas para pressionar o Estado e participar na construção de políticas à Aids/HIV.

A partir de 1982, os primeiros casos de Aids começaram a ser oficialmente reconhecidos em São Paulo e pouco mais tarde no Rio de Janeiro. Em 1983, dez casos surgiram: quatro casos notificados à Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e seis outros noticiados pela imprensa, mas não oficialmente comunicados. O sistema formal de vigilância epidemiológica em relação à Aids em âmbito nacional iniciou suas atividades em agosto de 1985. Até janeiro de 1986, ou seja, apenas cinco meses depois, já eram registrados 1.012 casos em vinte estados. Esses dados apresentavam a realidade do rápido crescimento da epidemia no Brasil (Informe Técnico, 1983; Ministério da Saúde, 1987).3 3 Documentos obtidos na Biblioteca e Centro de Documentação do Centro de Referência e Treinamento (CRT, 1998), São Paulo, cedidos pelo dr. Paulo Roberto Teixeira.

Segundo dados do Ministério da Saúde (1998), com os estudos retroativos produzidos no decorrer da evolução da Aids no Brasil, em 1983 o estado de São Paulo já contava de fato com 26 casos, número que continuou em franco crescimento nos anos seguintes.

Assim, os dados dos estudos retroativos sobre a epidemia demonstram que a realidade da Aids — que passou a ser visível e discutida por alguns grupos sociais e instituições de saúde em 1983 em São Paulo — era bem mais grave do que os dados disponíveis na época indicavam. Esse aspecto, em nosso entender, outorga, tanto aos grupos que se mobilizaram inicialmente para pedir uma atuação do Estado ante a chegada da Aids, como aos profissionais e instituições que se organizaram no primeiro esboço de uma política pública de enfrentamento da epidemia, uma ação responsável e articulada com as idéias de direito à saúde discutidas na época, portanto de compromisso político, visto que souberam entender a seriedade do problema, ainda que sob a luz da epidemiologia este parecesse não ser importante diante de outros problemas de saúde pública no país.

As primeiras mobilizações de grupos sociais, bem como as primeiras iniciativas e articulações oficiais para enfrentar a Aids, aconteceram, portanto, em São Paulo. Os motivos para esse pioneirismo na história política da Aids no Brasil são referidos na historiografia da epidemia como sendo: o aparecimento dos primeiros casos nesse estado e o significante crescimento do número de casos; a Secretaria da Saúde, como outros cargos estratégicos no âmbito da saúde pública sendo confiados a profissionais identificados com os princípios da reforma sanitária a partir de 1982; e as pressões sociais exercidas pelos grupos, nesse momento classificados como os mais vulneráveis à contaminação, tornando-se mais definidas e articuladas (Teixeira, 1997; Camargo Júnior, 1999; Galvão, 2000).

Nas fontes que utilizamos para este trabalho, podemos aferir esses aspectos. Através, principalmente, das fontes orais e de alguns documentos, também podemos verificar que esse pioneirismo no estado de São Paulo não foi possível sem problemas e lutas, enfrentando não só o pouco conhecimento que se tinha sobre a Aids, mas reações adversas vindas de setores da saúde, acadêmicos e da população, sem contar a falta de recursos para o empreendimento de ações contra o avanço da epidemia.

Quase que paralelamente aos primeiros casos diagnosticados em São Paulo, a Aids também ocorria em outros estados brasileiros. O Rio de Janeiro apresentava-se desde o início da epidemia no Brasil, como o segundo estado em número de casos e essa realidade logo demonstrou a necessidade de uma resposta ao problema por parte do Estado.

As respostas iniciais à epidemia vão ser diferentes nos diversos estados brasileiros, dependendo das possibilidades políticas que se instalaram no período nas esferas do setor saúde.

Importante ressaltar que o papel pioneiro do estado de São Paulo nas respostas à Aids/HIV vai além do fato de ter sido o primeiro a ter um programa estadual oficializado contra a epidemia. Ao serem definidos os referenciais éticos e políticos comprometidos com um pensamento social em saúde e que foram norteadores do discurso e de diretrizes do programa contra a Aids/HIV, primeiro em São Paulo e logo depois em outros estados da federação, estava referendado o caminho para a pressão política no encaminhamento desses referenciais, entre os quais a participação popular, que foi fundamental no alcance progressivo das conquistas nesse enfrentamento. Este pode ter sido o efetivo avanço no estabelecimento do primeiro referencial político para uma ação contra a Aids no período inicial: garantir que o ideário político do direito à saúde estivesse instalado, ao menos nas propostas oficializadas nos programas estaduais.

Em 1985, quando centenas de casos de Aids já tinham sido detectados no Brasil, o Ministério da Saúde finalmente veio a público reconhecer a gravidade do problema para a saúde pública brasileira. No dia 2 de maio daquele mesmo ano, através da portaria 236, o ministro da Saúde criou o Programa Nacional da Aids e estabeleceu as primeiras diretrizes e normas para o enfrentamento da epidemia no país, assumindo a Aids como um problema emergente de saúde pública.

Essa portaria4 4 Portaria nº 236 de 2 de maio de 1985, publicada no Diário Oficial da União, Seção I. Segunda-feira, 6 de maio de 1985, p. 6856, assinada pelo ministro da Saúde, Carlos Corrêa de Meneses Sant'Anna. atribuiu à Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária, da Secretaria Nacional de Programas Especiais de Saúde, a coordenação do Programa Nacional, estabeleceu normas e linhas para o combate da epidemia no Brasil tendo como alvo os chamados grupos de risco e apontau, como parte destes, três grandes grupos, os homossexuais e bissexuais masculinos, os hemofílicos e politransfundidos e os usuários de drogas injetáveis, institucionalizando assim esse conceito.

No período posterior ao reconhecimento oficial da Aids/HIV como um problema de saúde pública pelo governo federal, as ações em relação à epidemia crescente continuavam a ser articuladas pelos próprios estados brasileiros, sendo o estado de São Paulo reconhecido como centro de referência para os programas estaduais.

1987 a 1989: O programa nacional de Aids/HIV toma forma

A terceira fase, que entendemos ser de 1987 a 1989, foi aquela em que o Programa Nacional de Aids foi realmente instalado e configurado. A coordenação nacional centralizou as ações e afastou-se dos programas estaduais e Ongs. Estas, por sua vez, fortaleceram-se ao longo dos anos e exerceram papel importante na discussão e enfrentamento de questões importantes com o Programa Nacional.

A resposta oficial no nível nacional, no enfrentamento à epidemia de Aids, finalmente começou a ser construída, isso quase dois anos depois que o ministro da Saúde reconheceu-a como um problema de saúde pública emergente no país (maio de 1985).

Segundo Teixeira (1997, p. 59),

em 1987, a articulação com o Inamps, do Ministério da Previdência e Assistência Social, torna-se efetiva e significa um apoio importante para as atividades de prevenção, controle e assistência desenvolvidos pelo Programa do Ministério da Saúde. Esta articulação certamente é influenciada pelas decisões da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, onde são dados os primeiros passos em direção ao Sistema Único de Saúde.

Em 1987 a Divisão Nacional de Controle à Aids (mais tarde denominado Programa Nacional de DST/Aids) ressaltava: "A política de saúde, proposta pela 8ª Conferência Nacional de Saúde, prevê a unificação do sistema, bem como estadualização e municipalização dos serviços, universalização do atendimento, partindo do princípio de que a saúde é um dever do Estado e direito do cidadão", e manifestava: "É neste contexto geral que a Divisão vai procurar trabalhar as ações preventivas e controle da infecção pelo HIV" (Ministério da Saúde, 1987, p. 8). A divisão comprometia-se então, através desse relatório e planos de ação, a atuar mediante os princípios defendidos: da saúde como um direito do cidadão e da responsabilidade a ser assumida pelo Estado.

Esse comprometimento com os princípios que após foram referendados pela Constituição Federal em 1988 deveria ter feito toda a diferença na atuação da Divisão Nacional ante as ações no enfrentamento da epidemia. Entretanto, o que vamos observar, nas fontes documentais e nos depoimentos de nossos entrevistados, como na bibliografia produzida sobre o tema, é uma tendência à centralização de ações e afastamento da parceria dos estados e grupos organizados a partir desse momento, o que está na contramão dos princípios de descentralização de participação da sociedade civil nas formulações das políticas a serem implantadas.

Não podemos nos abster de mostrar que o nível central da política do país era marcado por uma estrutura centralizadora de decisões e que ainda, no setor saúde, apesar das mudanças que se avizinhavam, mas que tardariam a ser implantadas e consolidadas, as atuações dos dois ministérios, da Saúde e da Previdência e Assistência Social, um responsável pela coordenação da política de saúde e o outro pela assistência médica, compartimentavam as ações em saúde e dificultavam o desenvolvimento de programas efetivos de saúde pública.

Nesse sentido, parece ter sido contraditória a atitude do Programa Nacional de Aids, que, ao se afastar dos programas estaduais e das Ongs nesse período, dificultou ainda mais sua ação em face dessa realidade e preteriu parcerias importantes tanto no enfrentamento da epidemia como na abertura de um espaço para consolidação e fortalecimento, no Programa Nacional, dos princípios que defendia. Contudo, é também relevante frisar que o programa, ao se estruturar e institucionalizar na forma de princípios e diretrizes que havia muito já eram defendidos no combate à epidemia, contribuiu para a consolidação do espaço na esfera federal para a cobrança, pressão e participação da sociedade no cumprimento daqueles compromissos.

O cenário político brasileiro que emoldurou o contexto da consolidação do Programa Nacional de Aids no Brasil, neste período, caracterizou-se pela intensa mobilização política e social ante o processo de discussão e aprovação do texto final da Constituição Federal de 1988. Especificamente no setor saúde, o tema da organização do sistema de saúde e do sangue foram amplamente discutidos. O Sistema Único de Saúde (SUS) conseguiu ser aprovado, contemplando o sistema privado com a possibilidade de participar de forma complementar, mediante contrato de direito público ou convênio, em que o Estado passaria a impor as regras ao setor.

O SUS está baseado nos princípios de universalização, garantindo o atendimento à saúde a todos; a hierarquização, entendida como uma rede de serviços básicos, articulada a uma rede de serviços de maior e crescente complexidade e integralidade, pressupondo articulação entre as ações de âmbito federal, estadual e municipal; e, ainda, o cumprimento do princípio básico de saúde como um direito de todo cidadão e responsabilidade do Estado. Embora a implantação do SUS em sua íntegra esteja ainda em processo, constituindo-se como um desafio constante para a saúde pública brasileira, foi na efervescência política de discussão desse ideário que o Programa Nacional da Aids consolidou-se no Brasil, e certamente sua implantação foi influenciada por tais preceitos.

A era Collor

O período compreendido entre 1990 e 1992, no que se refere às ações contra a Aids no Brasil por parte do governo federal, é referido na historiografia existente sobre o tema como um dos mais obscuros e desastrosos nesses vinte anos da política de saúde no que se refere à epidemia no país. Em consonância com o desastre político e social pelo qual passou o país no período do governo Fernando Collor, as mudanças no Programa Nacional da Aids, tanto de sua equipe central como de ações programáticas no combate à epidemia, causaram, segundo as análises existentes e depoimentos coletados, um hiato no processo de construção de uma política nacional efetiva para a Aids/HIV. Entretanto, apesar de o referido período ser apontado como retrocesso na implantação de diretrizes e princípios importantes no combate à epidemia, foi nesse tempo também que a distribuição gratuita da medicação necessária ao portador de HIV e pacientes de Aids foi autorizada pelo governo federal, fato que significou um grande avanço.

A política nacional contra a Aids, segundo a pesquisa, desarticulou-se no período, comprometendo a integração com os estados, as Ongs e outras instituições, o que fragilizou não só o próprio programa nacional como também, e mais importante, o processo de implantação e construção do combate à Aids no Brasil, enquanto a doença avançava. O governo Collor mostrou-se não apenas uma catástrofe nacional no aspecto político como também na gerência da saúde pública. Especificamente em relação à Aids, executou estratégias marcadas pela incongruência e voluntarismo, atingindo o Programa Nacional e sua evo-lução (Teixeira, 1997; Galvão, 2000; Camargo Júnior, 1999; Villela, 1999).

Nos depoimentos de nossos entrevistados, pudemos aferir a relação tumultuada instaurada nesse período entre a coordenação do Programa Nacional de DST/Aids no Ministério da Saúde do governo Collor e setores das organizações não-governamentais e programas estaduais de Aids. Em sua quase totalidade, as falas apontaram para ações centralizadoras e distantes de uma participação desses setores na discussão da política e das ações a serem implantadas no período, o que ia na contramão dos princípios e diretrizes até então reivindicados por todos os envolvidos no combate do HIV/Aids no país.

Como exemplo dessa atuação, escolhemos depoimentos de ativistas participantes de organizações ligadas à luta contra a Aids e que indicam os aspectos referidos anteriormente:

Nós ficamos (participantes das Ongs) felizes com a mudança da coordenação nacional. Nós nos colocamos à disposição ... "conte com a gente, conte com as Ongs, ouça a sociedade civil". Ele vendeu aquela idéia da revolução da saúde pública, e nós ficamos esperando. E não aconteceu nada. Nada, quer dizer absolutamente nada, a não ser o desmantelamento do pouco que tinha. Tomamos isso como uma grande traição (ativista de uma Ong questões relacionadas com a volta para a Aids/HIV (v. l. 24) entrevista 23. 2. 2000).

Em outra memória do mesmo depoente, encontramos esta análise interessante do que significou, na sua visão, esse período na evolução da história das políticas de ações no combate à epidemia de Aids no Brasil:

É um período em que as Ongs não participam, ele (o coordenador do Programa Nacional no período) não faz nada, não ouve, não pergunta, não liga, entendeu? É um período negro, é um hiato mesmo. Se você analisar a política pública no nível federal, há uma primeira fase, um buraco, e a segunda fase. É um buraco mesmo. E a epidemia no seu ritmo alucinante, as ações ficam no nível local. Tudo no nível local, porque já têm outras secretarias de estados, outros estados se mobilizando etc. etc. Ongs já em vários estados brasileiros, mas enquanto política federal, nada. Um hiato.

A relação do Programa Nacional com os programas estaduais foi também um ponto de críticas abordadas em depoimentos coletados com profissionais e envolvidos no período com as atividades locais.

Houve uma mudança nas diretrizes do Programa Nacional, um afastamento dos programas estaduais, utilizando uma estratégia de esclarecimento à população sobre a Aids oposta às adotadas pelas Ongs e pelos programas estaduais. Criou as Comissões Municipais de Aids, que causou muita polêmica. Não se seguiram ações efetivas para a constituição dessas comissões locais e o projeto nunca saiu do papel (diretor do CRT/Aids de São Paulo, entrevista 25. 3. 1999).

Camargo Júnior (1999, p. 234) define o período de 1990 a 1992 como sendo o marco de "um interregno na trajetória das políticas públicas para o HIV/Aids". Com a derrocada dessa gestão e, depois, do próprio presidente Fernando Collor, houve uma reorganização e novas ocupações em postos na administração federal, incluindo o Programa Nacional DST/Aids. A fase que se seguiu foi vivenciada como uma nova perspectiva política em relação à retomada dos princípios e diretrizes que tinham caracterizado o combate à Aids desde seu início: a cobrança e participação dos grupos organizados, instituições e outras entidades ligadas à Aids na construção das ações governamentais ante a epidemia.

Teixeira (1997) indica que, além da rearticulação interna com os estados, Ongs e organismos internacionais, o novo período, que se iniciava, seria marcado pelo processo de elaboração e negociação com o projeto do Banco Mundial, o qual, concretizado em 1993, viria a mudar significativamente a organização do trabalho de todas as instituições nacionais envolvidas com a prevenção e controle de Aids no Brasil.

Com a concretização desse projeto, estava terminada uma década de combate à Aids no Brasil, cujas características foram basicamente aquelas baseadas na participação de atores envolvidos com a idéia de um "bom combate" à epidemia. Ou seja, aquele travado com um envolvimento pelo ideário da inclusão, do direito à diferença individual e igualdade de assistência, da cidadania sobretudo, e busca do espaço democrático de participação na construção de uma política de saúde ante uma epidemia que denunciou em sua evolução nossas desigualdades sociais e preconceitos.

A partir de 1993: uma nova era

Embora não sendo o objeto principal de nossa pesquisa, a fase final de 1993 até o momento, entendemos como aquela em que os acordos internacionais, principalmente aqueles com o Banco Mundial, firmados a partir de 1993, passaram a ser os grandes mantenedores das ações programáticas referentes ao confronto com o HIV/Aids. Estabeleceram-se nessa fase, em nosso entender, maiores recursos para a implementação de respostas e, ao mesmo tempo, a proposição de aspectos mais econômicos do que sociais na linha norteadora da política nacional contra a Aids.

Segundo Camargo Júnior (1999), com a saída do ministro da Saúde, Alceni Guerra, em 1992, e posteriormente com a do próprio presidente que o nomeou, Fernando Collor, período marcado por graves denúncias de corrupção, houve uma reorganização dos postos-chave na administração federal, incluindo o Programa Nacional DST/Aids. A coordenação nacional, junto com a rearticulação com as Ongs e programas estaduais, iniciou as negociações com a cooperação internacional, mais precisamente com o Banco Mundial.

O enfrentamento da epidemia de Aids/HIV no Brasil iniciou uma nova fase com um período marcado por formas diversas de cooperação entre as Ongs brasileiras e o Programa Nacional de Aids. O cenário nacional desse confronto teve, como um dos principais motivadores, o Aids I, projeto de empréstimo com o Banco Mundial para o financiamento de atividades de combate à epidemia (Galvão, 2000; Teixeira, 1997; Camargo Júnior, 1999).

A assinatura, em 1993, do acordo com o Banco Mundial viabilizou o projeto Aids I, com vigência de 1994 a 1998, o qual determinou o caminho das políticas de enfrentamento da epidemia a partir de então. Teixeira (1997) ressalta o tempo recorde entre o início das negociações com o Banco Mundial e a conclusão e implementação do acordo, o que demonstra uma vontade política firme e explícita do governo brasileiro, reconhecendo o problema sério de saúde pública que a Aids passara a representar.

Segundo Galvão (2000), que realizou importante trabalho de análise sobre esse período da última década do século XX na reconstrução e reestruturação do combate à Aids/HIV no Brasil sob a influência dos acordos com o Banco Mundial, a idéia de um empréstimo desse banco ao país para atividades junto a epidemia surgiu em 1992. A volta ao programa nacional da dra. Lair Guerra na coordenação, segundo a pesquisadora, foi decisiva para a condução das negociações com o Banco Mundial. E a formação de uma equipe de especialistas de reconhecida competência em diversas áreas deu credibilidade ao Programa Nacional e fortaleceu a idéia de o Brasil ter um projeto inovador no enfrentamento da Aids/HIV.

Os acordos de empréstimos com o Banco Mundial, Aids I e Aids II5 5 Projeto elaborado em 1998 para continuidade de acordo com o Banco Mundial e segundo Galvão (2000, p. 158) com execução prevista até meados de 2002. "Em meados de 1997, o Ministério da Saúde começou a ver a possibilidade de um novo empréstimo do Banco Mundial para financiar o programa brasileiro de Aids, o Aids II. A carta consulta (primeiro passo para a formalização do pedido de empréstimo) foi encaminhada e aprovada pela Comissão de Financiamentos Externos (COFIEX) em 1997." determinaram, segundo a historiografia pesquisada, uma mudança também no perfil e evolução do trabalho de organizações não-governamentais que atuavam contra a Aids/HIV no Brasil. Houve uma ampliação no número de instituições que passaram a desenvolver projetos em HIV/Aids. E, ao mesmo tempo que incentivaram e financiaram projetos de diferentes entidades e segmentos da sociedade brasileira, os recursos disponibilizados por esses empréstimos ajudaram a estimular um novo perfil de relação com o Programa Nacional, sendo a partir de então o Banco Mundial o grande financiador dos projetos dessas entidades (Galvão, 2000; Camargo Júnior, 1999).

Segundo documento do Banco Mundial (1993) relatando sobre o projeto de empréstimo e objetivos do programa, a proposta de empréstimo por parte do Banco Mundial perfazia o montante de US$ 160 milhões, pagáveis em 15 anos, com uma contrapartida do governo brasileiro de US$ 90 milhões, somando o total de US$ 250 milhões a serem aplicados no combate à Aids/HIV. Esses valores, segundo o documento, deveriam ser comprometidos e utilizados ao longo dos cinco anos de duração do projeto.

Os principais objetivos do programa, apontados igualmente no documento citado, eram: reduzir a incidência e transmissão de HIV e Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs); fortalecer instituições públicas e privadas responsáveis pelo controle de DSTs e HIV/Aids no Brasil. Como estratégias para o alcance de tais objetivos, o projeto propunha definir um programa básico de prevenção para HIV e DSTs e identificar que intervenções nesse sentido seriam as mais eficazes; desenvolver um quadro de profissionais de saúde adequadamente treinados e equipados, capazes de diagnosticar, tratar e levar serviços importantes aos infectados pelo HIV e pacientes de Aids; estabelecer serviços de pesquisa e monitoramento do HIV/Aids e problemas de saúde conseqüentes (DSTs, tuberculose etc.); finalmente, o projeto apontava a necessidade de os municípios e estados brasileiros estarem envolvidos na execução do mesmo.

A análise de Teixeira (1997, p. 64), após alguns poucos anos da implantação do projeto no Brasil, revela que

a atuação do programa e suas relações com os governos estaduais e municipais, universidades e Ongs passam a se concentrar nas questões relativas à execução do Projeto Mundial. O volume de recursos envolvido, as novas possibilidades de trabalho criadas e o conjunto de normas introduzidas pelo projeto provocaram mudanças significativas na organização do trabalho de todas as instituições nacionais envolvidas com a prevenção e controle da Aids.

Encontramos em alguns depoimentos de ativistas de organizações não-governamentais ligadas ao HIV/Aids críticas interessantes sobre o que significou e vem significando para essas entidades a participação do Banco Mundial em suas atividades como o grande financiador via Programa Nacional.

Existe uma linha de financiamento específico para Ong no projeto do Banco Mundial, o que termina refletindo no que a gente está vivendo agora. Faz parte de uma lógica do Banco Mundial. A partir desse projeto boa parte das Ongs que trabalham com Aids no Brasil estão sendo financiadas pelo Programa Nacional, o que no meu ponto de vista criou quase que uma ausência de discurso crítico. Atualmente quase todo mundo recebe dinheiro do Programa Nacional, então se discute pouco o Programa Nacional, há um consenso de que o Programa Nacional está fazendo o melhor que pode fazer. Cada um faz o seu projeto, você tem os seus projetos, recebe o dinheiro para os projetos e pronto (ativista de uma Ong voltada para questões relacionadas com a Aids/HIV, entrevista 20. 6. 1999).

O depoimento ilustra com clareza uma das características apontadas também nas análises pesquisadas sobre o período, ou seja, na mesma medida em que os empréstimos do Banco Mundial vieram intensificar e financiar o combate contra a Aids/HIV no Brasil, também causaram uma vinculação maior das entidades não-governamentais ao Programa Nacional. Esses aspectos, se não avaliados com o devido cuidado, podem significar o enfraquecimento de uma das características mais presentes na primeira década da construção das respostas nacionais diante da epidemia no Brasil, a atuação das Ongs como canais constantes e consistentes de participação da sociedade na construção dessas respostas e de cobrança da responsabilidade governamental.

Conclusão

O risco maior para o historiador do presente, segundo Rémond (1999), é que não há o aval da seqüência. Não se sabe o que vem depois; não existe a vantagem de se conhecer a seqüência dos acontecimentos relativos ao objeto estudado. Não se trata, entretanto, de anular ou diminuir o valor dos estudos históricos contemporâneos; ao contrário, esse aspecto pode salvaguardar o historiador do presente da tendência de simplificação, que nos faz acreditar que as coisas deveriam necessariamente ocorrer como ocorreram.

No decorrer da elaboração desta análise, em diversos momentos nos deparamos com as dificuldades próprias de uma pesquisa histórica cujo objeto está presente em nosso cotidiano. Essas dificuldades apresentavam-se ora na forma de uma produção intensa e sucessiva de documentos, ora pela preocupação contínua de analisar esses documentos com a devida profundidade histórica, ora quando surgiam interrogações quanto à seqüência dos acontecimentos analisados, ora ainda quando a intensidade metafórica do tema se sobrepunha na discussão. O exercício do preconizado distanciamento em relação ao objeto de pesquisa, para não cair na armadilha da proximidade, colocou-se sempre como uma preocupação, justificando talvez as repetidas "voltas ao passado" na busca da profundidade histórica.

Esse exercício tornou-se árduo em muitos momentos, dada a gama de sensações que vinham acompanhando as nossas fontes. Por diversas vezes, por exemplo, envolveram-nos as emoções que nossos entrevistados relatavam e demonstravam em suas memórias sobre os primeiros períodos da Aids no Brasil. Da mesma forma, a indignação com os preconceitos vividos e presenciados; a tristeza ao falar dos amigos, companheiros e familiares acometidos e levados pela Aids; a felicidade ao rememorar cada conquista na construção das respostas à epidemia; as lembranças do medo, da surpresa, do trabalho árduo e coletivo; enfim, as emoções de tantas horas compartilhando memórias que davam a dimensão da proximidade e intensidade de nosso objeto. Aprendemos com o tempo a deixar que essas emoções se acalmassem, às vezes por dias, para voltar e trabalhar aquele depoimento.

A Aids, qualquer que seja o seu aspecto estudado, suscita mais do que as dificuldades já referidas; traz atrelados a ela todos os aspectos, muitos deles metafóricos, que socialmente foram construídos no decorrer destas últimas duas décadas. A produção científica sobre o HIV/Aids no mundo e no Brasil diz do volume de significações que essa epidemia trouxe a reboque do seu aparecimento. Os limites tecnológicos, as desigualdades sociais, a intolerância humana com as diferenças, e, em contrapartida, a capacidade de solidariedade de que homens e mulheres são capazes, tornaram-se transparentes desde então, e tais aspectos estão sempre presentes por trás de qualquer análise sobre a Aids/HIV.

Segundo Parker (1999, p. 13),

apesar da dimensão e do impacto da epidemia, e da significativa política de resposta que ela gerou, poucos estudos tentaram examinar o desenvolvimento de políticas e programas relacionados à Aids no Brasil. O HIV/Aids em geral não conseguiu ser incluído na agenda de pesquisa acadêmica relacionada à política social e de saúde pública no Brasil.

Parker, Galvão e Bessa (1999) e Galvão (2000) vieram a preencher em muito essa lacuna, constituindo marcos importantes no estudo relativo ao impacto social e à política de respostas à epidemia de HIV/Aids no Brasil.

Como elementos que emergiram da análise de nossas fontes pontuamos alguns fatores para as considerações finais desta análise, entendendo que tais fatores são mais norteadores de uma interpretação da história das respostas políticas à Aids no Brasil do que ponto final de uma interpretação.

Considerando que a Aids/HIV aportou no Brasil no início da década de 1980, período de intensa mobilização política e social, as respostas iniciais à epidemia se deram de formas diversas em diferentes estados brasileiros. Nos estados, como São Paulo, onde as forças progressistas oriundas do movimento pela reforma sanitária assumiram as coordenadas das políticas de saúde nesse período, a resposta foi norteada segundo os princípios comprometidos com um pensamento social em saúde. Este parece ter sido o efetivo avanço no estabelecimento do primeiro referencial político para uma ação contra a Aids no período inicial: garantir que o ideário político do direito à saúde estivesse instalado, ao menos nas propostas oficializadas.

A tomada de decisão do governo federal em assumir oficialmente a Aids/HIV como um problema de saúde pública parece ter resultado de pressões de estados e municípios onde a epidemia crescia, da mídia nacional e de grupos militantes que se formaram, inicialmente, junto às respostas oficiais. Entretanto, essa tomada de decisão do governo federal, embora seja entendida como um marco importante na história social da Aids no Brasil, na prática só ocorreu tempos mais tarde com a efetivação do Programa Nacional.

A resposta do governo federal, que só aconteceu quando a epidemia de Aids já estava instalada no Brasil, foi tardia tanto pela ineficiência histórica ante os problemas de saúde pública como por influências internas e setoriais do Ministério da Saúde e de outras instituições de saúde pública, incluídas as escolas de saúde pública, que não souberam avaliar a magnitude do problema quando dos primeiros casos de Aids no país.

A sociedade, através das Ongs, Igreja, mídia e outros grupos organizados, considerando o período em análise, passou a exercer importante função na construção das políticas públicas em relação à Aids no Brasil. Esse perfil foi se fortalecendo na primeira década da epidemia no país, na medida em que a sociedade também se fortalecia diante do processo de participação, pressão e cobrança de seus direitos, embora ainda hoje não os exerça em sua plenitude.

As pesquisas realizadas sobre a Aids e as políticas públicas destinadas a ela no Brasil são unânimes em destacar as conquistas alcançadas nestas últimas duas décadas, servindo como exemplo a distribuição universal e gratuita de medicação anti-retroviral aos portadores do HIV. Esse direito foi uma conquista determinada pela luta incessante da sociedade diante do quadro que a epidemia alcançou no Brasil e constitui exemplo mundial de eficiência no combate à infecção.

A distribuição gratuita de medicação é também um desafio diante da disputa por parte da indústria farmacêutica mundial pelos mercados e consumidores. Galvão (2000, p. 222) menciona a lei de patentes sobre medicamentos e salienta que ela "expõe questões éticas que vão, ou pelo menos deveriam ir, além do mercado, e apresenta questionamentos específicos no caso da pandemia de HIV/Aids".

Sobre essa questão, a polêmica provocada — e com sucesso trabalhada pelo Programa Nacional de DST/Aids — recentemente pela alegação à Organização Mundial do Comércio (OMC), por parte dos Estados Unidos, contra o Brasil, para avaliar a lei nacional de patentes de medicamentos, nos permite afirmar que essa disputa realmente vai além das questões éticas. A lei de patentes do Brasil é peça-chave para o sucesso da distribuição de remédios contra a Aids no país por permitir a fabricação local de parte desses medicamentos, o que diminui seu custo.

Como desafios para o futuro das políticas públicas em relação à Aids no Brasil apresentam-se principalmente aqueles relacionados com a manutenção dos princípios éticos e de direito à saúde presentes nas propostas dessas políticas, igualmente frutos de incessante luta da sociedade brasileira através das Ongs, da mídia e de instituições públicas de saúde. O desafio da descentralização talvez seja o maior de todos, ou seja, que a luta contra a Aids/HIV através de programas e estratégias estaduais e municipais contemplem, além das diferenças culturais, regionais, sociais, a permanência dos princípios igualitários e a implantação desses.

Mais do que apontar a "ilha de excelência" em que se constitui hoje a política no combate à Aids/HIV no Brasil frente a outros problemas e programas nacionais de saúde pública, fato que comumente ocorre, é necessário entendermos sob que pilares políticos e sociais foi estabelecida essa política.

Ao final desta análise, pensamos ser possível concluir que a Aids/HIV inaugurou, considerando todas as questões apresentadas, uma nova forma de construir políticas públicas no Brasil diante de eventos de saúde coletiva. O desafio agora é como a política nacional de Aids implementada até hoje poderá influenciar a estruturação de respostas oficiais aos problemas emergentes e reincidentes de saúde pública.

O imaginário das epidemias, que recaiu sobre a Aids em seu início, nos remeteu às memórias coletivas de castigos, segregações, punições e, mais do que isso, deixou clara a nossa impotência pós-moderna diante do inesperado. Expôs nossa fragilidade, mais do que nossa força. E isso nos permite questionar, após esses vinte anos de epidemia no país: é possível a construção de políticas públicas mais justas e igualitárias, com a participação da sociedade nesse processo?

A trajetória da Aids/HIV até o perfil apresentado hoje no Brasil revelou-se cruel com aqueles segmentos que historicamente são as vítimas preferenciais das desigualdades sociais e por isso "porto final" de várias epidemias, passadas e presentes. O paradigma da doença crônica, tal como está estabelecido, e sob o qual repousam as análises sobre a Aids/HIV hoje, não contempla essas realidades, nas quais o "estilo de vida" na maioria das vezes não é opção, mas única possibilidade de sobrevivência. A doença crônica prevê a manutenção da assistência para evitar que a situação de cronicidade se torne aguda, ou ainda que orientações possibilitem a não alteração do quadro crônico, o que não parece possível em sociedades nas quais a falta de assistência e de orientação são igualmente crônicas.

Como destacamos no início destas considerações, talvez o grande desafio para o historiador do presente seja o fato de que não temos a seqüência dos acontecimentos. A história, ao se dispor a um diálogo maior com as políticas públicas de saúde, poderia, na pesquisa com outras áreas, auxiliar na análise dessa seqüência. Nesta finalização, o que podemos ressaltar é a expectativa de que a seqüência dessa história possa ser a de atitudes coletivas mais solidárias e de um compromisso político mais igualitário.

Recebido para publicação em janeiro de 2002.

Aprovado para publicação em outubro de 2002.

Este artigo foi extraído da tese de doutoramento A emergência política da Aids/HIV no Brasil, apresentada à Universidade de São Paulo, Departamento de História, defendida em abril de 2001.

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  • 1
    O primeiro caso diagnosticado de HIV positivo no Brasil, segundo dados do Ministério de Saúde, ocorreu em 1980, no município de São Paulo. Buchalla (1995) refere-se aos primeiros casos de Aids no Brasil surgidos no início da década de 1980.
  • 2
    Sobre o entendimento e a possibilidade da história do presente, Rioux (1999, p. 50) indica: "Um vibrato do inacabado que anima repentinamente todo um passado, um presente pouco a pouco aliviado de seu autismo, uma inteligibilidade perseguida fora de alamedas percorridas: é um pouco isto, a história do presente."
  • 3
    Documentos obtidos na Biblioteca e Centro de Documentação do Centro de Referência e Treinamento (CRT, 1998), São Paulo, cedidos pelo dr. Paulo Roberto Teixeira.
  • 4
    Portaria nº 236 de 2 de maio de 1985, publicada no
    Diário Oficial da União, Seção I. Segunda-feira, 6 de maio de 1985, p. 6856, assinada pelo ministro da Saúde, Carlos Corrêa de Meneses Sant'Anna.
  • 5
    Projeto elaborado em 1998 para continuidade de acordo com o Banco Mundial e segundo Galvão (2000, p. 158) com execução prevista até meados de 2002. "Em meados de 1997, o Ministério da Saúde começou a ver a possibilidade de um novo empréstimo do Banco Mundial para financiar o programa brasileiro de Aids, o Aids II. A carta consulta (primeiro passo para a formalização do pedido de empréstimo) foi encaminhada e aprovada pela Comissão de Financiamentos Externos (COFIEX) em 1997."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Recebido
      Jan 2002
    • Aceito
      Out 2002
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