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Carta dos editores

CARTA DOS EDITORES

Com o título de Ciência, Saúde e Poder na América Latina e no Caribe temos a satisfação de apresentar este suplemento do volume 9 de História, Ciências, Saúde — Manguinhos inteiramente dedicado a história da saúde e da medicina da região. Os artigos que compõem este número especial se originam de alguns dos melhores trabalhos apresentados no Simpósio Ciencia, Salud y Poder na America Latina y el Caribe, e em outros importantes simpósios, durante o XXI Congresso Internacional de Historia da Ciência realizado na Cidade do México em julho de 2001. Todos os artigos foram submetidos ao processo de dupla revisão pelos pares e aos comentários dos editores convidados, componentes indissociáveis da garantia de qualidade e imparcialidade dos periódicos científicos.

A história da saúde e da medicina é uma atividade essencial tanto para a história social como para a saúde pública em nossa região. Para a saúde pública os estudos históricos podem servir para produzir identidade, compromisso e compreensão tanto da origem e evolução dos problemas que enfrenta assim como da complexidade dos processos de negociação, fragmentação e descontinuidade que se produzem no fenômeno saúde-doença. É uma história que pode contribuir para incorporar uma perspectiva social de longa duração na formação e nas atividades dos profissionais de saúde, transcendendo a formação biomédica tradicional e eventualmente oferecendo sugestões sobre os principais desafios e sobre as perspectivas da saúde coletiva e da medicina social na América Latina e no Caribe. A própria agenda sanitária latino-americana mais recente também deve ser alvo das análises históricas em todos os seus aspectos, destacando-se as políticas sanitárias nacionais, as campanhas de controle e erradicação de doenças, o papel dos organismos internacionais e intergovernamentais, a atenção primária da saúde, a promoção da saúde, a chamada emergência e reemergência de doenças infecto-contagiosas e as reformas do setor saúde.

Como parte integrante da história social, a história da saúde é um espaço vital para entendermos dimensões ainda pouco estudadas de nossos países tais como as interações entre os processos sanitários e os contextos sociais, culturais, econômicos e políticos; a continuidade e a mudança nas condições de saúde e de vida das populações urbanas e rurais; as relações entre o Estado e diferentes grupos sociais e étnicos no campo sanitário; as relações entre saúde, enfermidades e processos de construção do Estado e da Nação. Uma história social da saúde pode auxiliar na compreensão e elucidação das relações entre Estado, saúde e sociedade na América Latina e no Caribe, possibilitando comparações e indicando semelhanças, diferenças e aspectos distintivos no continente. Também nos permite inserir a experiência histórica latino-americana em contexto internacional e estabelecer um diálogo mais consistente com a também crescente produção em história social da saúde e doença em outros continentes. A história da saúde é uma perspectiva essencial para novas áreas de interesse da história e das ciências sociais tais como gênero, raça, nacionalismo; as tensões entre práticas de cura e discursos sociais; a herança das sociedades pós-coloniais; as experiências de adoecimento e da morte; as percepções populares da ciência e da natureza; os processos de profissionalização; a interação entre história natural e a construção social da doença e do conhecimento biomédico, a medicina e os aspectos da vida material da sociedade.

O simpósio reuniu uma série de trabalhos originais sobre a história social da saúde, da medicina e das ciência biomédicas na América Latina e no Caribe. Os estudos aqui reunidos assinalam a presença de características próprias de cada contexto local e sugerem a existência de tendências gerais que atravessam toda a região. Dois aspectos compartilhados pelos trabalhos apresentados no simpósio devem ser aqui ressaltados: a riqueza das idéias, práticas e programas de saúde combinada assim como sua complexa interação com processos sociais, culturais e políticos. O leitor terá a oportunidade de avaliar o que consideramos uma boa amostra do crescimento do campo da história da saúde, da doença e da medicina em nosso continente nos últimos anos. Crescimento tanto do ponto de vista da quantidade de trabalhos apresentados em reuniões científicas, livros, capítulos de livros e artigos em periódicos, além de instrumentos de pesquisa, como da qualidade dessa produção, de sua diversidade temática, metodológica e conceitual e abrangência regional e nacional.

Este número de História, Ciências, Saúde — Manguinhos é também resultado do esforço de um grupo de profissionais que, dedicados a pesquisa e a geração de conhecimento e informação nos campos da história social da saúde, da medicina e das ciências biomédicas, vêm buscando constituir uma rede de história da saúde pública na América Latina e Caribe que denominou-se de Rede Hispalc (Rede de História da Saúde Pública na América Latina e no Caribe). Os primórdios desta rede remontam a sessões organizadas dentro de diferentes eventos internacionais como os congressos organizados pela Sociedade Latino-Americana de História da Ciência e da Tecnologia, que se realizou pela última vez no Rio de Janeiro em julho de 1998, a reunião da International Network for The History of Public Health, realizada em Almuñecar, na Espanha, em setembro de 1999, o congresso da Latin American Studies Association em Washington, D.C. em setembro de 2001 e uma primeira reunião organizativa da Rede Hispalc, que ocorreu em Bogotá, em junho de 1999. Os objetivos dessa rede, por definição aberta e sem hierarquias, são a ampliação da comunicação entre os profissionais dedicados ao tema para o intercâmbio de experiências, técnicas e resultados de trabalhos; a promoção de estudos comparativos e a organização de reuniões, fóruns de discussão, bases de dados, biografias, publicações, exposições e de outras atividades acadêmicas. Nos últimos cinco anos observamos e participamos da formação de uma comunidade de pesquisadoras e pesquisadores de várias nacionalidades com interesse nos inúmeros aspectos históricos da saúde e das doenças que vem se comunicando virtualmente e se reunindo concretamente em vários fóruns na América Latina, no Caribe, nos Estados Unidos e na Europa, entre outras regiões, e participando de iniciativas editoriais.

Os artigos aqui publicados em suas línguas originais compõem um intrincado panorama sobre os múltiplos aspectos — muitas vezes trágicos, por vezes até heróicos — das experiências de nascer, viver, adoecer, curar e morrer em nosso continente. Os artigos de Marcos Cueto e Maria Cristina da Costa Marques possibilitam ao leitor comprender e comparar histórias que nos são absolutamente contemporâneas em dois contextos nacionais: as histórias da epidemia de AIDS no Peru e no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, e das respectivas respostas e desafios da sociedade, das comunidades médicas e científicas e dos governos a esse fenômeno. Esses dois artigos nos instigam a refletir, inclusive, sobre como pensar uma história do tempo presente. Ana Maria Carrillo e Germán Yépez Colmenares nos ilustram com a complexa dinâmica das ações sanitárias respectivamente no México entre 1876 e 1910 e na Cidade de Caracas da década de 1870. Ana Maria analisa os principais elementos constitutivos do nascimento do que se considera a moderna saúde pública durante o governo de Porfírio Diaz e a relaciona com a crescente inserção do México no processo de desenvolvimento capitalista. De modo semelhante, Germán Yépez nos revela os esforços médico-sanitários do governo venezuelano no intuito de transformar a capital do país em uma cidade moderna, livre de epidemias e saneada, e integrá-la ao circuito econômico internacional, esforços comparáveis com os ocorridos em outras capitais e portos latino-americanos. Mais próximo de uma história do conhecimento biomédico, o artigo de Sandra Caponi analisa e compara o modo como pesquisadores argentinos e brasileiros, no final do século XIX e início do século XX, construíram agendas de pesquisa no campo das enfermidades tropicais, e busca compreender porque esses cientistas, herdeiros diretos do mesmo programa pasteuriano de pesquisa, produziram agendas diferenciadas.

Tema pouco presente em nossa historiografia, a educação médica no Brasil é o tema do artigo de Márcia Regina Barros da Silva que analisa os debates em torno da criação de faculdades de medicina em São Paulo. Nos mostra que esses debates estiveram associados a própria criação de um grupo profissional mais homogêneo, hierarquicamente superior a outras profissões do campo da saúde e interessado em associar pesquisa e ensino na educação dos médicos. Diana Obregón nos apresenta um extenso panorama da luta dos governos e dos médicos colombianos contra as doenças venéreas, em especial a sífilis, entre 1886-1951, com ênfase no combate à prostituição e ao alcoolismo, então considerados problemas sociais. A doença "venérea" é o ponto de encontro para uma reflexão que articula conhecimento científico, interesses profissionais, identidade nacional, políticas estatais, moralidade e controle social. Estreitando as relações entre doença, gênero e cultura urbana, Diego Armus analisa o amalgamar da tuberculose, as perspectivas de mobilidade social com o gênero feminino nas letras de tango. As narrativas trágicas das trajetórias das mulheres que saem da periferia rumo ao centro urbano em busca da ascensão social e são colhidas pela doença compõem a metáfora da feminização da tísica na Buenos Aires das três primeiras décadas do século XX. Revisitando a história da proteção social na Argentina da primeira metade do século XX, Maria Silvia Di Liscia nos apresenta as faces assumidas pela assistência social às mulheres e à primeira infância no período 1935-1948 analisando a construção e circulação de discursos sobre a maternidade e a natalidade em diferentes esferas sociais e as instituições e práticas sociais que surgiram diante do desafio do Estado Argentino em diminuir a mortalidade infantil e incrementar as taxas de natalidade.

A seção Imagens nos traz um conjunto inédito de fotografias sobre as ações e campanhas contra a málaria que fazem parte de três acervos pertencentes a Casa de Oswaldo Cruz que podem ser tomados como exemplares de momentos cruciais da história dessas campanhas no Brasil do século XX. Gilberto Hochman, Maria Teresa Mello e Paulo Roberto Elian dos Santos buscam relacionar as imagens de cada um dos acervos ao conhecimento, práticas e técnicas de combate à malária. Na seção Fontes, Maria Rachel Fróes da Fonseca oferece ao leitor um precioso roteiro para as fontes e para a bilbiografia relevante sobre a história da saúde, da medicina e das ciências biomédicas no Brasil de 1808 a 1930.

Finalmente queremos agradecer aos colegas e amigos, e muito especialmente a Emílio Quevedo, que participaram da convocatória e da realização do simpósio do México de onde se originou este número especial de História, Ciências, Saúde — Manguinhos e que têm ajudado a manter e intensificar o intercâmbio acadêmico e profissional no campo da história da saúde na América Latina e no Caribe. Obrigado a todos, e até o próximo encontro.

Rio de Janeiro, Lima e Cidade do México, dezembro de 2002

Gilberto Hochman, Marcos Cueto

Ana Maria Carrillo e Ana Cecília de Romo

editores convidados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2005
  • Data do Fascículo
    2002
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