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Barbeiros- sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28)

Bleeders and healers in Brazil (1808-28)

Resumos

Esta análise sobre os terapeutas populares baseia-se na documentação da Fisicatura-mor (1808-28). A partir, principalmente, de processos sobre oficializações de atividades médicas, abre-se acesso a categorias como sangradores e curandeiros, cujas atividades seriam cada vez mais perseguidas ao longo do século XIX. Na hierarquia das práticas de cura seguidas pela instituição, as exercidas por tais terapeutas eram menos valorizadas e, através da análise quantitativa dos dados, mostrou-se possível identificá-las com posições sociais desfavorecidas. Foram igualmente analisadas informações sobre o seu trabalho e sua aceitação fornecidas por alguns terapeutas populares e por sua clientela.

história da medicina; terapeutas populares; Fisicatura-mor


Based on documentation from the institution known as the Fisicatura-mor (1808-28), and mainly on proceedings involving its official ‘accreditation’ of medical activities, this analysis of popular therapists opens access to categories like bleeders and healers, who were persecuted for their activities down through the nineteenth century. The curing practices employed by these bleeders and curandeiros ranked low on the hierarchy of procedures acceptable by the Fisicatura-mor. Quantitative data analysis demonstrates a link between these practices and disadvantaged social positions. Also analyzed was information that popular therapists and their clientele provided on these practices and on how they are accepted.

history of medicine; popular therapists; Fisicatura-mor


Barbeiros-

sangradores e

curandeiros no

Brasil (1808-28)*

Bleeders and

healers in Brazil

(1808-28)

*Este artigo foi escrito com base em minha dissertação

de mestrado Artes de curar: um estudo a partir dos documentos

da Fisicatura-mor no Brasil do começo do século XIX. (T.S.P.)

Tânia Salgado Pimenta

Rua Sorocaba, 673/401

Rio de Janeiro — RJ Brasil 22271-110

Tels.: (021) 527-8727 (019) 254-5010

e-mail: spimenta@domain.com.br

Graduação e licenciatura em história na

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Mestrado em história social do trabalho

na Universidade de Campinas (Unicamp)

Doutoranda em história social

do trabalho na Unicamp

SALGADO, T. S.: ‘Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28)’.

História, Ciências, Saúde — Manguinhos,

vol. V(2): 349-72, jul.-out. 1998.

Esta análise sobre os terapeutas populares baseia-se na documentação da Fisicatura-mor (1808-28). A partir, principalmente, de processos sobre oficializações de atividades médicas, abre-se acesso a categorias como sangradores e curandeiros, cujas atividades seriam cada vez mais perseguidas ao longo do século XIX. Na hierarquia das práticas de cura seguidas pela instituição, as exercidas por tais terapeutas eram menos valorizadas e, através da análise quantitativa dos dados, mostrou-se possível identificá-las com posições sociais desfavorecidas. Foram igualmente analisadas informações sobre o seu trabalho e sua aceitação fornecidas por alguns terapeutas populares e por sua clientela.

PALAVRAS-CHAVE: história da medicina, terapeutas populares, Fisicatura-mor.

SALGADO, T. S.: ‘Bleeders and healers in Brazil (1808-28)’.

História, Ciências, Saúde — Manguinhos,

vol. V(2): 349-72, Jul.-Oct. 1998.

Based on documentation from the institution known as the Fisicatura-mor (1808-28), and mainly on proceedings involving its official ‘accreditation’ of medical activities, this analysis of popular therapists opens access to categories like bleeders and healers, who were persecuted for their activities down through the nineteenth century. The curing practices employed by these bleeders and curandeiros ranked low on the hierarchy of procedures acceptable by the Fisicatura-mor. Quantitative data analysis demonstrates a link between these practices and disadvantaged social positions. Also analyzed was information that popular therapists and their clientele provided on these practices and on how they are accepted.

KEYWORDS: history of medicine, popular therapists, Fisicatura-mor.

11 Os documentos produzidos por essa instituição encontram-se organizados no Arquivo Nacional num livro-índice de mais 15 livros, além de 51 pacotes com os papéis da burocracia. Este livro-índice guarda listas de nomes de pessoas, atividades, motivos dos processos e sua localização nos outros livros. Os ofícios mencionados logo chamaram a minha atenção: cirurgião, sangrador, boticário, parteira, curador de morféia, médico, curandeiro... Os pacotes não estavam diretamente relacionados ao livro-índice. Continham os mais variados documentos exigidos pela burocracia da Fisicatura-mor, enquanto os livros eram constituídos pelos registros das licenças e cartas que garantiam aos seus donos o direito de exercerem determinadas atividades. Em 1808, juntamente com

a Fisicatura-mor, foi criada

a Provedoria-mor de Saúde, responsável pela fiscalização da carga dos navios que chegavam, com especial atenção aos africanos, e da tripulação. Mas como os cargos de provedor-mor e

de físico-mor eram exercidos

pela mesma pessoa, havia

uma certa superposição de responsabilidades, e alguns documentos endereçados à Provedoria, ou que deveriam ser a ela endereçados, encontram-se em meio à documentação da Fisicatura-mor.

22 Diretamente relacionada com essa hierarquia estabelecida pela Fisicatura-mor estava a posição social ocupada pelos terapeutas. Escravos, forros e mulheres desenvolviam atividades menos prestigiadas, como os ofícios de sangrador, parteira ou curandeiro. A hierarquia adotada pela instituição reafirmava o lugar de cada um, confirmando a posição que tinham na sociedade. Os conhecimentos e as práticas de cura populares eram formalmente desvalorizados pela Fisicatura-mor. Por outro lado, durante os vinte anos de atuação da Fisicatura-mor no Brasil, os terapeutas populares foram reconhecidos como possuidores de um saber legítimo e autorizados a exercer as suas atividades. Esse reconhecimento era possível porque o propósito dessa instituição não era tanto reprimir, no sentido de eliminar as práticas médicas populares, mas incorporar os terapeutas, inseri-los em ligações de dependência pessoal, que seguiam a hierarquia social e a das práticas médicas. A Fisicatura-mor era instituição de uma sociedade na qual as relações sociais baseavam-se na construção e na reafirmação de dependências pessoais. A hierarquia social era reafirmada com a troca de favores, e benefícios por lealdade e obediência. E o modo como funcionava a Fisicatura-mor também fortalecia e deixava evidente essa hierarquia. Os médicos, cirurgiões e boticários consideravam o seu saber superior ao dos terapeutas populares, mas não os desqualificavam totalmente, pois o conhecimento destes sobre a natureza da região era valorizado. Durante o período de existência da Fisicatura-mor, o contexto não era de medicalização da sociedade, de imposição de padrões científicos, de higienização das cidades, de modificação e normalização de condutas, o que torna a documentação da Fisicatura-mor mais importante, vez que, depois de seu término, não se tem notícia de outro qualquer órgão público que tivesse o objetivo de fiscalizar e autorizar práticas médicas as mais variadas, registrando assim práticas populares de cura. A partir da década de 1830, a relação entre a medicina popular e a medicina acadêmica mudou paulatinamente: já não se tratava então de enquadrar minimamente as práticas populares nas concepções da medicina acadêmica, mas simplesmente de desautorizá-las. Embora tenham existido algumas exceções: uma

referia-se à carta de cirurgiã, relacionada ao ramo da obstetrícia, e as outras eram referentes às cartas de boticárias concedidas a três irmãs que moravam na Bahia.

33 Setenta e nove por cento dos pedidos para o exercício da arte da sangria provinham do Brasil, entre os quais a condição jurídica do sangrador foi explicitada como forro ou escravo em 84% (o que corresponde a 101 escravos e 63 forros em 193 pedidos) dos casos. Os sangradores podiam ser pessoas livres que, na maior parte das vezes, obtinham esta habilitação antes ou junto com a de cirurgiões. Mas os escravos e forros praticamente eram sempre sangradores, não podendo aspirar a nível hierárquico mais alto dentro dos princípios estabelecidos pela Fisicatura-mor. Nas petições e atestados dos suplicantes era bastante comum aparecerem juntos os termos sangrador e barbeiro: "barbeiro-sangrador". De hábito, a população percebia como associados esses ofícios, chegando mesmo a ser usual fazer-se referência a um sangrador como barbeiro, o que confirma serem tais ofícios com freqüência exercidos por uma mesma pessoa. Eram duas atividades distintas, mas realizadas com instrumentos semelhantes, tendo sido agrupadas ainda na Idade Média (Lyons et al., 1987, pp. 338, 355). Contudo, a função de controle da Fisicatura-mor, que nunca utilizava a palavra barbeiro nos documentos que emitia, nenhuma relação tinha com as habilidades de um sangrador para cortar barba e cabelo. Tal distinção servia também para deixar bem clara a diferença entre a arte da sangria e a atividade de barbeiro. A partir da quantificação dos dados, foi possível concluir que o termo barbeiro era identificado com uma prática mais popular, cujos agentes faziam parte de um estrato social mais baixo, enquanto o termo sangrador designava uma arte que, apesar de menor, fazia parte da cirurgia. A separação entre cirurgiões e barbeiros Mas o número apresentado de sangradores não inclui aqueles que possuíam autorização para exercer a

arte da cirurgia.

44 era antiga, e, em sua luta para alçar o prestígio de sua atividade ao da dos médicos, os primeiros adotaram, como uma das formas para obter essa aproximação, distanciarem-se dos segundos. A arte da sangria envolvia sarjar, aplicar bichas, ventosas e sanguessugas. Sobre esse ofício, Ewbank (1973, p. 189), que esteve no Rio de Janeiro nos anos de 1845 e 1846, escreveu uma passagem na qual se observa a indissociação dessas atividades no cotidiano: Daqui em diante usam-se indistintamente as palavras sangrador e barbeiro.

55 Os indivíduos que atuavam como sangradores eram, em sua maioria, africanos (64%); mas 21% deles haviam nascido em Portugal e 13% no Brasil. Entre os nascidos no Brasil, a maior parte era formada de escravos e forros, portanto de descendentes de africanos. Dessa forma, pode-se arriscar dizer que brasileiros e portugueses mais bem posicionados socialmente requeriam a licença de sangrador tendo em vista, provavelmente, a prestação posterior de exame de cirurgia. Apesar dessa referência, devido à própria alçada, em termos geográficos, da Fisicatura-mor, que não teve grande atuação em áreas

onde o contato com os

índios era maior, não é possível, com base nessa documentação, discutir as práticas indígenas de cura.

6 6 Nacionalidade por falta de palavra melhor, pois a África consta desta tabela como

um lugar genérico. Inclui sangradores que eram

também dentistas.

77 Treze anos depois, Vicente, agora com o sobrenome de Soares, dirigia-se à Fisicatura-mor pedindo nova carta de sangrador pelo mesmo motivo que seu xará. Apresentou, então, seu título de liberdade, adquirido em janeiro de 1822, pelo qual pagava 135$400 réis ao seu proprietário de então, Manoel de Carvalho. As cartas de alforria conseguidas por esses sangradores mostram uma situação que não deve ter sido incomum no período, principalmente nos centros urbanos. Os dois Vicentes, que viviam na Corte, conseguiram sua liberdade, apesar de Vicente Soares ter tido que desembolsar seu dinheiro. O processo de Vicente José Coelho (como passou o outro Vicente a assinar depois de liberto) apresenta indícios de que este escravo mantivera uma relação bem próxima com seu senhor. Enquanto Vicente Soares aprendeu com o mestre régio dos sangradores, assim como outros que pediram licença para sangrar à Fisicatura-mor, Vicente Coelho instruíra-se com seu então proprietário, interessado em especializá-lo em um ofício que rendesse a ele, senhor, rendimentos auferidos na condição de negro de ganho. Quando foi comprado por Manoel de Carvalho, Vicente Soares já era sangrador aprovado e talvez exercesse a sua arte de forma ambulante pelas ruas e praças da Corte, na condição de negro de ganho, como uma boa parte dos escravos da cidade do Rio de Janeiro (Cunha, 1985, p. 32), que deveriam fornecer ao senhor um jornal previamente estipulado. Dessa forma, Vicente tinha mais controle sobre o que ganhava com seu trabalho, pois, apesar de o direito ao pecúlio próprio depender formalmente do consentimento do senhor, o costume o havia consagrado, além de ser muito difícil vigiar os escravos que trabalhavam desse modo (Chalhoub, 1990, p. 161; Cunha, 1985, pp. 33, 40; Karasch, 1987, p. 194). Tal situação dos negros de ganho facilitava a acumulação de um pecúlio, e não era estranho que conseguissem comprar sua liberdade dessa forma (Chalhoub, 1990, p. 147; Cunha, 1985, pp. 34, 48). Os sangradores ambulantes cobravam menos por seus serviços de cura e de barbeiro propriamente dito do que os que atendiam em lojas, constituindo, possivelmente, a maior parte dos que praticavam a arte de sangrar (Karasch, 1987, p. 203). Eles não se oficializaram maciçamente, até porque quem recorria a seus serviços não faria questão disso, e seu modo de trabalhar facilitaria o engodo da fiscalização. Por isso, talvez a maioria dos sangradores que se submetia à Fisicatura-mor trabalhasse em lojas, normalmente pertencentes, segundo Debret (1940, p. 151), a negros ou mulatos, muitas vezes libertos, que empregavam escravos, treinando-os como aprendizes (Cunha, 1985, p. 32), o que se confirmou pela análise da documentação. Não era difícil para as pessoas forras comprarem e manterem escravos enquanto o tráfico conservava seus preços relativamente baixos, o que mudou depois de 1850, quando os preços subiram muito (Karasch, 1987, p. 211). Tanto no meio urbano, quanto no meio rural, os pobres livres e os libertos tendiam a empregar suas economias em bens móveis, como vacas, jóias, dinheiro e, principalmente nas cidades, em escravos de ganho (Cunha, 1985, p. 24). Assim, libertos que haviam sido negros de ganho como barbeiros e artesãos, compravam e treinavam escravos para os ajudarem em seus trabalhos (Karasch, 1987, p. 211). Foi o caso de Vicente Coelho que, após conseguir sua liberdade, sendo dentista e sangrador aprovado, passou a ensinar a outros esse ofício. Assim, encontramos, em 1827 e 1828, esse liberto passando a outros africanos atestados de sua competência para as artes da sangria e de aplicar ventosas e sanguessugas. Apesar de basear-se em um conhecimento justificado, para a Fisicatura-mor, por representações médicas européias elaboradas por Hipócrates e Galeno, o caráter mecânico desse ofício e sua limitação a atos cirúrgicos menores ajudam a explicar, por um lado, o porquê de grupos mais abastados da sociedade desprezarem o exercício de sangrador. E, por outro, o interesse de escravos e libertos, incluindo-se entre estes muitos africanos, por tal atividade pode ser entendido na medida em que esse grupo via em tal ofício, pelo menos nos centros urbanos, uma oportunidade de acumular pecúlio, ou seja, o aumento das possibilidades de comprar a liberdade e de melhorar suas condições de vida. Esse conhecimento foi assim sendo transmitido entre as pessoas que constituíam essa camada social, e suas atividades foram sendo reinterpretadas segundo suas concepções de doença e cura. A documentação da Fisicatura-mor não explica o porquê da sangria, do ponto de vista da medicina acadêmica e muito menos do ponto de vista de quem a praticava, sendo sempre bem objetiva quanto à definição dessa prática: tratava-se de sangrar, sarjar, aplicar bichas, ventosas e sanguessugas. A bibliografia, porém, apresenta alguns dados que podem levar à hipótese de que as pessoas que exerciam tais atividades de tradição européia reinterpretavam-nas segundo as suas concepções familiares de doença e cura: Ewbank (1973), por exemplo, relata a prática de sangria realizada pelos africanos como uma tentativa de sugar os espíritos malignos, e não os humores que havia em excesso segundo a medicina oficial. Por outro lado, alguns podem ter trazido da África a técnica de sangrar com ventosas, pois o termo é encontradiço entre as medicinas Bakongo e Obi, no oeste do continente africano, segundo Karasch (1987, pp. 264-5). Dois anos para sangrador.

88 É claro que os brancos continuavam sabendo sangrar; escravos e forros não monopolizaram esse saber, uma vez que, para alguém tornar-se cirurgião, era necessário ser sangrador, até porque isso era parte importante da compreensão então vigente sobre o funcionamento do corpo humano. Mas os negros, praticamente, ‘monopolizaram’ essa atividade. E os homens, pois outra característica marcante da arte de sangrar era ser exercida sempre por elementos do sexo masculino. Embora a arte de sangrar estivesse concentrada em camadas sociais mais baixas, não havia restrição ao status das pessoas que recorriam a tais serviços. Em muitos dos atestados enviados junto com os pedidos de licença para sangrar, vêem-se cirurgiões afirmando que tais suplicantes haviam sangrado vários de seus enfermos. Porém, principalmente em lugares mais afastados dos centros urbanos e em relação à população mais pobre, as próprias petições deixavam entrever que, com freqüência, o sangrador ultrapassava os limites impostos pelas cartas de sangria ao exercício de suas atividades, fazendo as vezes de curador. Algumas vezes o suplicante não era submetido a exame, sendo concedidas licenças (como para cirurgiões, boticários e quem curasse de medicina) mediante a apresentação de atestados de sua prática e/ou da necessidade de seus serviços. O fato de pessoas oficializarem suas atividades prescindindo de exame demonstra que o controle não era rígido. Outro procedimento da Fisicatura-mor, que leva a concluir sobre a maleabilidade de suas normas, era precisarem os suplicantes de atestar que possuíam prática para serem admitidos a exame. Assim, entendiam alguns que, quanto mais experiência mostrassem ter, mais certo seria serem examinados. O preto forro Adão Nunes Vidigal deve ter pensado desse modo ao afirmar em sua petição, de 1811, que havia "praticado e exercitado a arte de sangria nesta Corte por espaço de 14 anos", e parece não ter sido punido por exercer a atividade durante todo este tempo sem permissão (Fisicatura-mor, caixa 1212). Esse tipo de justificativa para ser admitido a exame ou receber licença de ser interpretado como mais um indício de que muitos sangradores trabalhavam no ofício completamente alheios às exigências da Fisicatura-mor. Ver também Chalhoub

(1994) sobre diferentes interpretações a respeito de questões relacionadas à

saúde (especificamente

sobre a varíola e a sua vacina), segundo os diversos grupos sociais existentes no século XIX.

99 ou de perder menos tempo com a burocracia. Também acontecia de atribuírem a um sangrador diversas viagens, para as quais não encontrei o menor resquício de registro de licenças, como acontecia com a maior parte dos que alegavam terem tido essa experiência, o que sugere que as licenças eram requisitadas quando a fiscalização tornava-se mais rigorosa, como parece ter ocorrido em 1828. Entre os pedidos de sangradores, disponíveis na documentação, levantados na pesquisa, 75 eram relativos a licenças para ir à África, constituindo 29% do total registrado na Fisicatura-mor sobre essa especialidade. A maior parte dos que viajavam oficialmente autorizados eram escravos, alguns tinham vindo da própria Costa do Leste. Mas havia forros que também se empregavam nesse trabalho — forros africanos inclusive. Os africanos deviam ser bastante requisitados para esse serviço, pois havia uma forte probabilidade de que se comunicasssem com mais facilidade com os escravos recém-adquiridos. Pagava-se menos por uma licença do que pelo exame e pela carta. Apesar de a primeira ser temporária, sempre havia oportunidade

de os sangradores embarcarem sem licença ou carta, como parece ter feito

a maioria delas.

1010 E de sua parte, quando forros, podiam considerar esse trabalho recompensador. Mas a comunicação entre os africanos não acontecia apenas no nível lingüístico. Especificamente em relação ao Centro-Sul do Brasil, onde os escravos africanos procediam majoritariamente do Centro-Oeste da África, pode-se dizer que compartilhavam partes de seu complexo cultural, como pressuposições básicas sobre o parentesco e visões cosmológicas. Entre elas, estava decerto a idéia de que o desequilíbrio, o infortúnio e a doença seriam causados pela ação malévola de espíritos ou de pessoas, em geral através de bruxaria ou feitiçaria (Slenes, 1991-92, p. 58; Thompson, 1984, p. 104). Tal fato sugere o importante apoio que esses sangradores poderiam constituir para os africanos que vinham nos navios negreiros. Muitos dos escravos que trabalhavam em navios negreiros foram trazidos da África nas mesmas condições que os africanos dos quais deveriam tratar. E, segundo Luccock (1975, p. 392), não se ouvia falar que abandonassem os navios em suas freqüentes idas a sua terra de origem. É claro que, pela documentação da Fisicatura-mor, não é possível saber se algum sangrador africano resolveu ficar por lá antes da década de 1830, em que Cunha (1985, pp. 76-107) identifica os primeiros retornos de escravos forros para sua terra natal. Talvez alguns tenham feito isso. Mas o que há de fato são pedidos sucessivos de licenças para viajar à Costa do Leste para um mesmo sangrador, cuja história, limitada aos dados da Fisicatura-mor, pode ser traçada em linhas gerais como a de um africano que veio num navio negreiro, provavelmente aprendeu sua arte aqui, voltou à África uma ou mais vezes como sangrador para tratar da escravaria e retornou ao Brasil. Voltando a Vicente José Coelho, o africano sangrador que achava indecoroso continuar com uma carta que afirmava ser ele escravo quando já se achava liberto, encontra-se a situação descrita. Vicente passou atestado a seu discípulo liberto Manuel, "de nação Cabinda", em 1827, para que conseguisse licença por um ano para viajar à Costa do Leste, comprometendo-se a fazer exame na volta com os meios que obteria. Passou, em 1828, outro atestado, desta vez a Afonso, "de nação Congo", para conseguir licença para ir à Costa do Leste (Fisicatura-mor, caixas 1193, 1198). Ao cruzarem-se as informações disponíveis nos registros da Fisicatura-mor percebe-se algo das relações constituídas ou reforçadas através do aprendizado de um sangrador que certamente pesaram na decisão de o sangrador africano permanecer no Brasil. Joaquim da Silva Senna, um homem pardo, fez exame em dezembro de 1811, sendo aprovado. No entanto, devido à demora em lhe entregarem a carta de sangrador, pediu licença para viajar à África enquanto a confeccionassem. Dez anos depois, o nome de Joaquim aparece atestando que Luís João Caldas, preto forro crioulo da cidade de Luanda, praticou com ele a arte de sangrador por dois anos, "fazendo aquelas sangrias que em todo este tempo se ofereceram fazer, lançando ventosas e sanguessugas e mais pertences à dita Arte, mostrando ser muito cuidadoso de fazer as suas obrigações". Luís foi aprovado, mas não tirou sua carta porque sairia em breve no bergantim Ligeiro para Cabinda, com escala Benguela, recebendo uma licença para isso. Em 1826, ainda não tinha seu título definitivo "por falta de meios", pedindo então outra licença, que lhe foi concedida com a condição de que tirasse sua carta ao fim de sua validade. Contudo, após um ano voltou a pedir licença para viajar à África, pois estava "justo" com o proprietário da escuna Leoa Africana (Fisicatura-mor, caixas 1209, 1191). A esta altura Joaquim da Silva Senna já possuía uma loja na Corte e nela continuava a formar outros discípulos, como João Ribeiro da Silva (licenciado em maio de 1827), "preto forro de nação Mina" (Fisicatura-mor, caixa 1210), Gaspar, "preto de nação", isto é, de origem africana, escravo de Antônio José de Castro (Fisicatura-mor, caixa 1198), e Januário, "preto de nação Angola", escravo de Francisco José dos Santos (Fisicatura-mor, caixa 1199), estes licenciados em dezembro de 1827 e janeiro de 1828, respectivamente. Todos apresentaram um atestado assinado apenas por Joaquim (que não sabia ler nem escrever) como garantia de que estavam aptos a exercer o ofício de sangrador — especialidade da arte de curar que, tanto em terra quanto nos navios negreiros, foi percebida por muitos escravos e forros como uma interessante opção em sua luta cotidiana para sobreviver e melhorar as próprias condições de vida. Especificamente na região Centro-Sul do Brasil, a escravidão era caracterizada por ser africana, com predominância banto.

Mesmo após 1810, quando

se deu uma certa variação quanto às regiões de onde provinham os africanos falantes de língua banto,

ainda assim as semelhanças lingüísticas permitiram a utilização de uma língua franca, conforme nos mostra Slenes (1992).

1111 Considerando as observações de contemporâneos e, principalmente, as reclamações e denúncias registradas nos documentos da Fisicatura-mor, conclui-se que existiam muitos mais curandeiros do que aqueles arrolados em tão pequeno número nas fontes pesquisadas no Arquivo Nacional. Porém, mesmo com somente 27 licenças provenientes do Brasil (25 licenças para curandeiros e duas para curar alguma moléstia específica), talvez se possa aprender um pouco sobre as práticas de cura populares nesse período. Se a ausência da maior parte dos curandeiros dos registros do físico-mor pode ser vista como indiferença face às regras segundo as quais a instituição pretendia delimitar as práticas de cura populares, a oficialização dos poucos curandeiros não pode ser tomada como simples aceitação e assimilação passiva dos valores que os consideravam, segundo o discurso da Fisicatura-mor, apenas substitutos possíveis e temporários dos médicos. Por vezes, aceitando aparentemente as regras oficiais, o curandeiro haveria de continuar a exercer suas atividades com mais tranqüilidade e até mesmo viria a se diferenciar de seus concorrentes, arvorando uma licença que atestava a sua competência. Enquanto alguns se oficializaram por estarem inseridos na concepção da medicina acadêmica, outros apenas o faziam diante da ameaça de serem punidos. Alguns dos curandeiros oficializados pela Fisicatura-mor estavam em completa sintonia com a prática médica acadêmica, como Galdino de Amorim Boanova, que se aplicou nos "estudos e conhecimentos práticos da medicina, freqüentando como ouvinte e observador o curso de operações e teórico-prático de anatomia", apresentou atestados de dois lentes da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro. Fez exame de curandeiro em 1828, respondendo às perguntas teóricas e práticas sobre as diferentes enfermidades, classificação das mesmas, aplicações, e seus resultados, e sobre farmácia, satisfazendo a tudo com inteligência (Fisicatura-mor, caixa 1191). Outros testemunhos deixam ver que a competição entre os terapeutas deveria ser feroz, motivando denúncias à Fisicatura-mor, principalmente nos períodos de devassa. Por temer "ficar increpado nas devassas deste juízo" foi que José Pedro de Carvalho, morador e estabelecido na freguesia de Guaratiba, solicitou submeter-se a exame em 1820 (Fisicatura-mor, caixa 1191). Esses receios tinham razão de ser: os que curassem sem licença poderiam ter os seus bens penhorados. Ocorresse não exame, a licença de curandeiro era sempre provisória. Nela estavam especificados os limites das práticas de cura, como se lê na licença do preto forro João Martins Lopes, morador em Penetiba, recebida após exame na Corte do Rio, em 1822, e renovada anualmente até 1828: "... para que no lugar de sua residência, não havendo médico ou cirurgião aprovado em medicina, possa curar com ervas do país aquelas enfermidades que são vulgares, sendo obrigado a consultá-los no caso de dúvida, e vir a este juízo no fim de seis meses dar conta do que tiver praticado, e dos casos dignos de comunicação, e obrando em contrário incorrerá nas penas de desobediência" (Fisicatura-mor, caixa 1199). A primeira imposição que se fazia aos que oficializavam suas práticas sob a denominação de curandeiro era usar ervas do país, conforme o regimento de 1810. Essa especificação não deixava de restringir, pelo menos oficialmente, seu exercício de curar. A diferença na titulação era dada, então, sobretudo em função da posição social que a pessoa ocupava. Além disso, alguém que já tivesse carta de cirurgia estava numa posição bem mais cômoda quando fosse pedir para aplicar "remédios internos" (que seria uma prerrogativa dos médicos, especialistas em "moléstias internas"), pois a sua capacidade como cirurgião, dentro do modelo que a Fisicatura-mor considerava o ideal para este ofício, havia sido comprovada. E ser aprovado em alguma especialidade também demonstrava que uma boa relação entre a Fisicatura-mor e esta pessoa já havia sido estabelecida. A conseqüência da concessão de uma licença para curar de medicina ou de uma para licença usar do ofício de curandeiro era o limite de seu exercício. Os que contavam com a primeira gozavam de uma liberdade equivalente à do médico, muito embora, se houvesse algum doutor presente no lugar, a opinião deste merecesse prioridade. Os curandeiros restringiam-se a curar com ervas do país as moléstias mais comuns que acometiam os povos do lugar, isso se não houvesse pessoa mais ‘qualificada’ para socorrê-los (médicos ou cirurgiões aprovados em medicina). José Gomes Cruz, morador na localidade de Rebelo, termo da Vila de Macacu, encaixava-se perfeitamente no perfil de curandeiro da Fisicatura-mor, pois pedia para ser examinado a fim de poder continuar aplicando o "conhecimento de remédios indígenas" aos infelizes que a ele recorressem, uma vez que soube "que até é proibido praticar semelhantes atos sem preceder tal qual habilitação". Seu exame, feito em agosto de 1819 na casa do delegado do físico-mor, José Maria Bomtempo, também foi bastante ilustrativo: "... fazendo-se-lhe perguntas sobre os conhecimentos que tinha de curar as enfermidades que acometem os habitantes deste clima e sobre a maneira de preparar os medicamentos com as ervas do país, a tudo respondeu com inteligência dando ao dito examinando por aprovado ..." (Fisicatura-mor, caixa 1194). Recebeu, então, José Gomes Cruz sua licença para exercer o ofício de curandeiro, tendo-se verificado sua capacidade e conhecimento das ervas e moléstias do lugar onde morava. Não há como saber se os medicamentos aos quais José Gomes Cruz se referia originavam-se de conhecimentos indígenas ou se, o que até é mais provável, significava apenas que eram remédios nativos, mas, de qualquer modo, muito da medicina indígena, no que diz respeito às plantas medicinais, parecia incorporado à medicina oficial. A licença expedida pela Fisicatura-mor era para usar do ofício de curandeiro, mas algumas vezes escrevia-se

nos processos o termo curador.

1212 A utilização de plantas com finalidades terapêuticas é muito antiga. Existem registros nesse sentido desde alguns milênios antes de nossa era e em várias sociedades, no Egito, na China, na Índia, na América do Sul e na Europa. Por muito tempo o estudo das plantas medicinais esteve associado a curandeiros, médicos e boticários. A partir do século XV, a invenção da imprensa permitiu um aumento da difusão dos conhecimentos herboristas, e o descobrimento do Novo Mundo e as conquistas coloniais levaram ao conhecimento de novas drogas vegetais, como a quina e a ipeca, aumentando o número de matérias-primas medicinais de origem vegetal e suscitando um aumento deste tipo de interesse pela natureza. Desde o século XVI, a qualidade de ervanário era reconhecida na França, e, em 1767, esta profissão lá foi organizada com a imposição de um exame para que se pudesse exercê-la (Le Goff, s.d.). Assim, o conhecimento das plantas medicinais era um ofício valorizado na França e muito difundido em Portugal (Crespo, 1990, pp. 204-9; Marques, 1998), exercendo expressiva influência na medicina acadêmica brasileira, que reconhecia a especificidade de moléstias e de plantas medicinais nativas e, nesse sentido, valorizava essa qualidade dos curandeiros. O argumento de que possuía conhecimentos sobre ervas medicinais foi utilizado na petição feita em 1815 pelo já citado preto forro Adão dos Santos Chagas (Fisicatura-mor, caixa 1195). Observou-se àquela altura que Adão sabia "várias mezinhas", praticara na Santa Casa e era também um sangrador dentista, mostrando assim que muitos sangradores podem ter sido dentistas e, mais ainda, curandeiros. Além disso, o caso de Adão serve para ilustrar certo aspecto dos atestados e abaixo-assinados apresentados pelos curandeiros. A maior parte não era assinada por pessoas ligadas à prática médica oficial, como nas outras categorias médicas, e sim por pessoas que ocupavam posições sociais privilegiadas e reconhe-ciam a legitimidade do conhecimento de tal ou qual crioulo forro. Adão Chagas contava com esse reconhecimento também na Santa Casa, onde havia praticado suas mezinhas, o que mostra a aceitação nos meios médicos de práticas populares de cura e, conseqüentemente, de concepções populares de doença, as quais, como se vê, não eram sempre incompatíveis com a medicina oficial. Pessoas com as quais havia travado relações através de sua habilidade médica acabaram ajudando Adão a conseguir uma licença que conferia reconhecimento oficial a seu saber, apesar de a Fisicatura-mor deixar claro que a concessão da licença seria limitada ao cuidado de doenças leves, assim como a atividade das parteiras deveria ser restrita a partos sem complicação. Seria recebido como ousadia dos suplicantes acharem estes que tinham capacidade para mais do que isso. Esse discurso sobre o pouco conhecimento dos terapeutas populares ia ao encontro da posição dos cirurgiões e médicos (e eram eles quem formavam o quadro de funcionários da instituição). Essa não era, porém, a opinião das pessoas tratadas pelos curandeiros. Na verdade, em alguns casos, dirigiam-se à Fisicatura-mor argumentando exatamente o oposto ao estabelecido em seu regimento. É o que se pode observar no processo de José Maria da Silva. Em 1818, através de uma petição, os "moradores de São Gonçalo" solicitaram ao físico-mor do Reino que José Maria da Silva recebesse a licença para poder curar "a todos os que o chamarem", uma vez que vinha tendo problemas com o cirurgião-mor da freguesia, o qual queria privar, "por todos os meios", deste benefício os moradores de São Gonçalo. Isto "porque vê que ninguém o procura nem o chama, pela experiência que se tem das funestas conseqüências que resultam das suas receitas e curativos" (Fisicatura-mor, caixa 1211). Essas declarações mostram que o curandeiro possuía muito mais prestígio na comunidade do que o cirurgião, cujo ofício era mais valorizado pela Fisicatura-mor. Um cirurgião aprovado pela instituição estava em bem menor conta junto ao público do que um curandeiro, que por problemas circunstanciais se dirigia à instituição para pedir licença. Além disso, ao processo estavam anexados oito atestados que mostravam a competência de José Maria da Silva, superior inclusive à de pessoas formadas academicamente. Assim, os moradores de São Gonçalo, "... ouvindo a notícia das admiráveis curas que o tenente José Maria da Silva havia feito de moléstias que se reputavam incuráveis", recorriam ao curandeiro. Foi o caso de Bernarda, que sofria com "um cancro que tinha na barriga, o qual foi mostrado ao cirurgião-mor da Santa Casa, e lhe disse o ilustre cirurgião-mor lhe tiraria a ferro, o que ela não consentiu por se lembrar que outra vez lhe haviam tirado, e tornou a crescer que se pôs monstruoso, e o sobredito tenente lhe pôs um remédio que o destruiu e arrancou sem lhe pôr ferro algum". O mesmo aconteceu a um escravo do alferes Francisco Bernardo, cuja cara estava quase toda comida, "estando os ossos frontais descobertos, e o curou perfeitamente, do que até ao presente não havia exemplo". Até mesmo pessoas que haviam padecido enfermas por vários anos de moléstias desconhecidas dos maiores práticos da Corte, "com despesas extraordinárias de médicos e boticas sem alcançar o menor alívio", encontrando-se, assim, desenganadas, foram curadas pelo tenente José Maria da Silva poucos meses após terem começado a usar os seus remédios. Esses casos não relatam moléstias leves, que com pouco poderiam se curar. Todos se referiam a doenças sérias, as quais nenhum médico ou cirurgião com formação acadêmica, seguindo as concepções da medicina oficial, havia conseguido debelar. Portanto, nesses atestados invocava-se a superioridade do curandeiro frente aos agentes de cura oficiais. Dessa forma, José Maria da Silva estava curando as pessoas que o procuravam sem se importar muito com as regras que a Fisicatura-mor vinha se esforçando para impor com o objetivo de regulamentar o exercício das práticas médicas. O prestígio e o respeito por esse curandeiro, com relação ao qual a população pouco se importava se tinha sido licenciado ou não, eram tais que ele passou a incomodar pessoas que, por exercerem uma especialidade mais valorizada e terem passado por exame e recebido uma carta certificando sua competência, achavam-se no direito de serem preferidas pela população, em detrimento de um curandeiro que nem licenciado era. O cirurgião encartado fora preterido, o que motivou a denúncia, causando revolta na população, que fez questão de atestar a superioridade de José Maria da Silva em relação a muitos médicos e cirurgiões acadêmicos. Ao recorrer para pedir licença, lado a lado com a população que atendia, José Maria da Silva não só deixou de ser incomodado por pessoas que exerciam especialidades consideradas mais nobres entre as classes dominantes, como levou a Fisicatura-mor a engolir o seu prestígio a ponto de "promovê-lo", relativizando os limites bem explicitados para as atividades de um curandeiro. Com sua petição, e fazendo tudo como prescrevia a Fisicatura-mor, ao anexar atestados, José Maria da Silva deixou registrados na burocracia da instituição a consideração e o prestígio que contavam alguns curandeiros para desdouro de muitos cirurgiões aprovados. José Maria da Silva foi examinado e aprovado em 1818. E, em 1820, pedia para curar de medicina prática, o que lhe permitia receitar, além de ervas do país, remédios manipulados. Em quase todos os atestados há testemunhos do prestígio e da consideração em que eram tidas essas pessoas. Mas isso não serviu para a Fisicatura-mor formar uma imagem mais benevolente dos curandeiros, que continuavam sendo considerados pouco capazes, devendo-se a eles retornar apenas nos casos de extrema necessidade, quando não houvesse ninguém mais competente para ajudar. Um outro tipo de curandeiro, mais próximo das concepções dos africanos, pelo menos da imagem que visualmente se tem de um curandeiro africano, pode ser exemplificado com o caso de Bento Joaquim. Morador na freguesia de Inhaúma, pedia "licença para poder continuar no seu curativo sem prejuízo dos professores de medicina e cirurgia". Isso já demonstrava sua consciência das prerrogativas que médicos e cirurgiões aprovados deveriam ter. O exercício de suas atividades de cura não prejudicariam os agentes de cura da medicina acadêmica porque ele aplicava "alguns remédios a algumas pessoas pobres e miseráveis deixadas de professores de medicina e cirurgia, por ser em suas moléstias quase por artes diabólicas, que, por muita experiência e conhecimento que tem o suplicante da dita moléstia, cura, e ficam sãos ...." (Fisicatura-mor, caixa 1191). Assim como José Maria da Silva e outros, Bento Joaquim ocupar-se-ia dos enfermos já deixados pelos professores, quer dizer, trataria e curaria, como vinha fazendo, de pessoas que os médicos e cirurgiões licenciados não tiveram capacidade e competência para curar. O interessante é que ele argumentou isso diante da Fisicatura-mor, cujas normas baseavam-se na hierarquia das especialidades de cura. Mas esta aceitou a justificativa. Para completar a valorização da capacidade e competência de Bento Joaquim, anexado à petição havia um atestado, de 1816, de Manuel Ricardo da Silveira, um cirurgião aprovado. No documento, Manuel reconhecia que dois de seus escravos haviam sido "deixados do professor que os assistia porque nada aproveitavam os seus remédios que foram muito bem aplicados, e de mim cirurgião". Bento Joaquim ofereceu-se para curá-los, mas Manuel Ricardo da Silveira, é claro, não acreditou que disso fosse ele capaz, e resolveu ir pessoalmente com seus escravos para a casa do curador Missionários, cirurgiões-barbeiros, barbeiros e a tradição oral conservaram a memória e difundiram o uso dos vegetais conhecidos e empregados pelos nativos, como, por exemplo, a copaíba, a maçaranduba para ulcerações e ferimentos; a jurubeba, as quineiras, o maracujá para febres; o caju

e o jaborandi como

diuréticos etc. (Santos Filho, 1977, pp. 114, 106).

1313 Desse modo, além de estar relacionado com o maior conhecimento que teriam de medicamentos baseados na flora nativa, o sucesso desses curandeiros ao tratarem alguns enfermos "deixados" pelos médicos e cirurgiões poderia estar ligado à competência dos primeiros no trato de problemas espirituais, alheios às preocupações dos terapeutas com formação mais acadêmica. Os conhecimentos herbários dos curandeiros muitas vezes estavam associados a suas crenças religiosas, que envolviam concepções sobre doença e cura. Assim, se os doentes tratados por Bento Joaquim estivessem influenciados por artes diabólicas, os médicos realmente não teriam competência para lidar com tais moléstias. A capacidade de alguns curandeiros de curar enfermidades causadas por elementos sobrenaturais não é mencionada pela Fisicatura-mor, mais é legítimo supor tenha sido este um aspecto muito importante nas práticas populares de cura. Isso porque as culturas do Oeste e do Centro-Oeste da África, os indígenas e os setores populares europeus compartilhavam a crença de que doenças poderiam ser causadas por problemas espirituais. Então muito provavelmente também no Brasil, os curandeiros — especialidade exercida por elementos originários dos setores mais populares da sociedade — cultivavam concepções semelhantes de doença e cura, segundo as quais eram necessários conhecimentos sobre rituais e sobre o uso de plantas medicinais que pudessem combater as causas sobrenaturais (Silva, 1993, p. 319). Os curandeiros que se licenciavam, além de se verem livres da pressão da fiscalização e da ameaça da punição, tinham igualmente como ‘recompensa’ uma prerrogativa dada a todos os que obedeciam às normas da Fisicatura-mor. Adquiriam o direito de reclamar neste juízo quando alguém não lhes fazia o pagamento estipulado por sua assistência médica. Sabendo disso, Bento Joaquim, em 1817, não deixou passar em branco o fato de não ter recebido a quantia que havia convencionado com o preto forro Anacleto Antônio por o haver curado de dores reumáticas, depois de ter este andado "longos tempos em poder de cirurgiões". Não há registro sobre a solução dada ao caso, mas, se Anacleto Antônio não quisesse ou não pudesse pagar, a Fisicatura-mor expediria um mandato executivo para que se penhorasse seus bens. Assim, considerando ser mais eficiente e cômodo submeter-se formalmente às regras da Fisicatura-mor, se faziam tanta questão de que ele se licenciasse — caso contrário, poderia sofrer punições de multa, penhora e prisão —, Bento resolveu continuar seguindo as normas, pedindo licenças anualmente de 1816 a 1820. Licenciado, estaria livre da possibilidade de ser punido, poderia continuar trabalhando como quisesse e ainda teria a prerrogativa de recorrer ao juízo quando não fosse pago por seus serviços. O cavalo-marinho era o símbolo desse ofício e afastava os espíritos diabólicos (Ewbank, op. cit., pp. 246-9), o que permite a conclusão de que a cura estava relacionada à

expulsão de espíritos malignos, segundo Karasch (1987, pp. 263-4).

1414 Não reconheceriam a autoridade da Fisicatura-mor para dispor sobre práticas de cura que há tempos exerciam em suas comunidades, para limitar as atividades terapêuticas que exerciam segundo suas concepções de doença e cura. Dessa forma, não se interessariam em obter um título da Fisicatura-mor. O pequeno número de oficializações também estava relacionado com o fato de que pelo interior do país, onde os terapeutas populares seriam maioria, muitas vezes a instituição deve ter permanecido desconhecida, pois a Fisicatura-mor não tinha funcionários suficientes para atuar em localidades mais afastadas. Na análise da relação entre a instituição e os terapeutas populares, deve-se ressaltar um aspecto da ação da Fisicatura-mor que também a diferenciava bastante da medicina social: o reconhecimento de que os terapeutas populares contavam com um saber legítimo e, por este efeito, o reconhecimento de suas concepções de doença e de cura. Mesmo sendo pouco marcante, naquela época, a diferença entre as medicinas populares e a mais acadêmica, principalmente em termos de tratamento, como a utilização de plantas nos medicamentos e a prática da sangria, provavelmente o significado de tais procedimentos para esses diferentes tipos de terapeutas não era o mesmo. Segundo o discurso da Fisicatura-mor, os terapeutas populares possuíam menos conhecimento, eram menos competentes. Dessa forma, suas atividades deveriam ser bem delimitadas e fiscalizadas. Mas a população em geral confiava em seus curadores. Em certos casos, via-os mesmo como mais competentes do que médicos e cirurgiões. Além disso, terapeutas acadêmicos eram pouco numerosos e cobravam caro por seus serviços. Sobre concorrência de mercado entre curandeiros e médicos na segunda metade do século passado, ver Sampaio (1995).

1515 Os terapeutas populares, por sua vez, nutriam concepções de doença e de cura mais afinadas com as da população, preocupando-se também com dimensões espirituais atribuídas como causas às enfermidades. A justificativa aceita pela Fisicatura-mor para a concessão de licenças aos curandeiros era a necessidade social destes por não haver pessoas mais qualificadas — médicos e cirurgiões — disponíveis, em certos lugares, para tratar da população. Realmente acontecia haver poucos médicos e cirurgiões em relação à população, ao passo que dos curandeiros dizia-se existirem em excesso, do ponto de vista dos primeiros. Assim, em lugar de apenas pensar que os curandeiros tinham bastante clientela porque existiam poucos médicos, pode-se considerar também que a existência de curandeiros em número razoável para atender à população restringiria a atuação dos médicos. Afinal, voltando aos atestados, viu-se algumas pessoas excederem-se por assim dizer na defesa dos curandeiros, argumentando perante a Fisicatura-mor que a competência destes era superior à de muitos ‘professores’, o que transgredia a hierarquia observada pela Fisicatura-mor. Os agentes populares de cura combatiam doenças de forma mais competente porque conheciam medicamentos eficazes para tratar os enfermos, atentando ao mesmo tempo para os problemas físicos e espirituais. Dessa forma, os doentes "deixados dos professores" também podem ser vistos como enfermos cujas moléstias não podiam ser tratadas pelos médicos, uma vez que as suas causas seriam de ordem sobrenatural. Por isso, Bento Joaquim considerava que suas atividades não prejudicariam médicos e cirurgiões, pois seus conhecimentos não concorreriam com os destes, já que não se aplicavam aos mesmos casos. De acordo com Goubert (1977), na França, ao final do século XVIII, os médicos e cirurgiões diplomados

também enfrentavam essa situação.

Introdução

Em 1856, os membros da Academia Imperial de Medicina viam- se às voltas com um problema que os indignava. O presidente da província havia autorizado que um curandeiro africano, conhecido como Manuel, tratasse dos doentes de cólera no Hospital da Marinha de Recife. A reação dos médicos, nesse caso, foi tentar impedir que o "preto buçal" Manuel empregasse "o seu remédio" (Annaes Brasilienses de Medicina, mar. 1857, pp. 9-10; Freyre, 1968, pp. 506-9).

Cerca de quarenta anos antes, uma situação semelhante era percebida pelos médicos de modo completamente diferente. Um terapeuta popular chamado Adão, que era preto forro, praticara por algum tempo na Santa Casa do Rio. Em vez de horrorizar os médicos, essa experiência serviu como argumento em favor do pedido feito por Adão para que fossem oficializadas suas práticas médicas (Fisicatura-mor, caixa 1195).

Os moradores de Macacu, localidade fluminense onde exercia o seu ofício, apoiavam o curador. Apresentaram, em 1815, um abaixo-assinado com 44 assinaturas (entre as quais as de capitães, tenentes, alferes e sargentos), no qual diziam padecer a falta de médicos e cirurgiões e, como Adão havia aprendido a sangrar na cidade e tinha "conhecimento das várias ervas medicinais que entre nós há com abundância", pediam licença para que ele pudesse "livremente sangrar nossas famílias e em algumas doenças leves ensinar-nos alguns remédios e também tirar dentes".

O curandeiro Adão teve o seu saber reconhecido oficialmente pelos médicos, que o autorizaram a praticar, pelo período de um ano, as "várias mezinhas" que conhecia "para certas enfermidades", renovando a licença anualmente até 1822. Mas, quatro décadas depois, os médicos externariam profunda irritação com a permissão dada pelo presidente da província de Pernambuco para que o preto escravo Manuel tratasse de doentes de cólera. Assim, enquanto no início do século a população pôde ainda se manifestar pacificamente através de um abaixo-assinado, em 185(?), suas opções quanto à prática médica só puderam prevalecer ao preço de muita tensão social e até ameaça de motim popular.

Uma situação que incomodava muito os médicos da Academia Imperial de Medicina em meados da década de 1850 era perfeitamente aceitável no tempo da Fisicatura-mor. Chama a atenção que a relação entre a medicina oficial e a medicina popular tenha mudado tanto nesse pequeno espaço de tempo. Os estudos sobre história da medicina concentram-se no período que se inaugura com a criação das faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. No entanto, não existem muitos trabalhos sobre o início do século XIX, apesar da existência de uma fonte muito rica e seriada que são os documentos da Fisicatura-mor, do reino, responsável pela regulamentação e fiscalização das diversas atividades que pudessem interferir na saúde pública e que dissessem respeito ao exercício de práticas médicas em Portugal e todos os seus domínios. Mesmo após a Independência de 1822, a Fisicatura-mor continuou a existir no Brasil até 1828.

A Fisicatura

Em 1810 foi instituído o Regimento do Físico-mor, que orientava os seus representantes no exercício de suas funções. Havia uma divisão de responsabilidades entre as práticas médicas relativas à prescrição e à fabricação de remédios, que eram da alçada do físico-mor, e as práticas médicas relacionadas às intervenções cirúrgicas, que eram da responsabilidade do cirurgião-mor.

Em minha pesquisa, dei prioridade aos dados dos pacotes e, nestes, aos pedidos de oficialização das atividades. Tais pedidos abriram um processo burocrático, cujas partes principais eram o próprio pedido, o atestado do mestre com quem havia praticado o suplicante (ou, caso não fosse possível, a produção de atestado, relatos de testemunhas), o auto de exame (feito pelos examinadores da Fisicatura-mor) e a ordem para que se passasse a carta ou a licença, que permitiam a livre prática de determinado ofício. As licenças, ao contrário das cartas, eram provisórias. Valiam por um, dois, três anos, conforme o tempo considerado justo pelo físico-mor, pelo cirurgião-mor ou por seus representantes. Em muitos casos era comum que, em vez de um atestado de mestre, fossem apresentadas atestações de pessoas de posição social prestigiada, padres, militares, políticos locais e, às vezes, ainda, abaixo-assinados da população que usufruía dos serviços daquele que solicitava a carta ou licença.

Observando o regimento e a própria documentação, pude identificar uma hierarquia de práticas de cura seguidas pela Fisicatura-mor. A posição mais conceituada era a dos médicos, ocupando os curandeiros a menos valorizada; a meio caminho entre estes dois grupos estavam os licenciados a curar da medicina prática. Os curandeiros representavam a contrapartida do conhecimento dos boticários sobre medicamentos. Analogamente, os cirurgiões eram vistos como mais preparados que os sangradores e as parteiras, que exerceriam apenas uma parte de um conhecimento muito mais amplo, que era a arte da cirurgia. Entre essas categorias, a das parteiras é aquela sobre a qual dispomos de menos informações. A sua principal característica era a de ser constituída exclusivamente por mulheres. De modo geral, as que exerciam práticas de cura e oficializavam suas atividades limitavam-se à condição de mulheres parteiras ou curandeiras.

Terapeutas populares

A documentação da Fisicatura-mor nos apresenta um quadro em que as categorias médicas mais populares estão menos presentes nas vias de legalização do que as atividades mais conceituadas, o que, é claro, não significa que as primeiras existissem em menor número.

Distribuição percentual das categorias de cura (1808-28)

Fonte: Pedidos de licença e de carta provenientes do Brasil e, até 1822, de Portugal e seus demais domínios, para o livre exercício de alguma prática médica específica.

Documentação da Fisicatura-mor contida nas caixas 1186-1212, AN.

Cerca de 1.300 processos eram pedidos de licença procedentes do Brasil, o que representa 70% do total. A quantificação desses dados mostrou os seguintes resultados: a categoria de terapeutas que mais se oficializou no Brasil foi a dos cirurgiões (30%), seguidos dos boticários (29%), dos sangradores (16%), dos licenciados para curar de medicina prática (que eram cirurgiões com autorização para prescrever remédios, 15%), das parteiras (5%), dos médicos (3%) e dos curandeiros (2%, incluídos nesta categoria os licenciados a curar alguma moléstia específica). Mesmo constituindo a menor porção dos pedidos para oficialização, outras fontes contemporâneas e muitas observações registradas nos papéis da própria Fisicatura-mor, indicam terem sido as terapias populares as mais difundidas então na sociedade. E contudo, apesar de saber-se que eram tais terapias mais utilizadas nessa época, existem poucos registros sobre como eram praticadas. Há algumas observações genéricas, feitas por praticantes da medicina européia, que acentuam a "limitação" do conhecimento das pessoas que não curavam de acordo com os preceitos dessa medicina, as quais eram identificadas com setores subordinados da sociedade (escravos, forros, livres pobres, mulheres), muito embora tais práticas de cura fossem reconhecidamente necessárias. A Fisicatura-mor não se preocupava com entrar em detalhes sobre as terapias populares, até porque, para os requerentes serem aprovados, suas práticas deveriam adequar-se, pelo menos na petição e no exame, às linhas da medicina acadêmica. Por isso, considerava suficiente registrar se as capacidades dos requerentes estavam ou não de acordo com as atividades que pretendiam exercer. Raras vezes tais métodos de cura foram explicitados, tanto pela parte suplicante quanto pelos examinadores.

Analisando-se a relação da Fisicatura-mor com as camadas populares, é possível pensar que a própria não oficialização pode mostrar, além da impossibilidade da instituição cumprir seus objetivos, a recusa dos agentes de cura populares a se enquadrarem nos limites da Fisicatura-mor, bem como o desconhecimento da população quanto à atuação da mesma. No entanto, principalmente nos locais de maior concentração urbana, onde havia uma presença maior de médicos, boticários, cirurgiões e da Fisicatura-mor, forjaram-se categorias a cujas atividades os defensores das concepções da medicina européia queriam que os praticantes de terapias populares se ativessem. Mas existem indícios, nos documentos, de que muitas vezes as atividades de quem era rotulado como sangrador, parteira ou curandeiro, de acordo com a concepção da Fisicatura-mor, não se restringiam aos limites do título obtido. Muitos sangradores faziam as vezes de dentistas, enquanto as parteiras receitavam remédios de medicina internos. A maior parte das informações de que dispomos, porém, diz respeito a certas atividades consideradas em seus limites impostos pela Fisicatura-mor e, por isso, serão apresentadas separadamente.

A medicina popular abordada aqui se distinguia da medicina acadêmica primeiramente pela classe social dos que a praticavam e dela se valiam. As práticas de cura populares eram exercidas por escravos, forros e livres pobres; já os que praticavam a medicina acadêmica eram, em geral, pessoas de posição econômica privilegiada. Outra característica da medicina popular era a falta de sistematização, muito embora a medicina acadêmica também não possuísse então um conjunto de teorias e práticas completamente organizados. De qualquer forma, as práticas terapêuticas oficiais hauriam em sua matriz européia concepções de doença e cura mais ordenadas em classificações de moléstias e métodos específicos de terapia. Também tinham a seu favor o fato de serem exercidas por pessoas de posição social privilegiada e o poder de tentar coibir práticas muito diferentes das suas. Mas a relação entre essas medicinas não se fazia apenas de imposição, por um lado, e resistência, por outro. Alguns medicamentos preconizados pelos médicos acadêmicos podiam ser utilizados pelos praticantes da medicina popular, e, certamente, o oposto também ocorria. Além disso, pessoas da classe dominante recorriam a tratamentos da medicina popular, prescritos por quem pertencia aos setores desfavorecidos da população, não só pela falta de médicos como por efeito da reconhecida competência dos terapeutas populares, ainda que, nessa questão, não se possa falar de reciprocidade, vez que a população mais pobre não tinha condições de recorrer à medicina oficial.

Sangradores

Os pedidos para usar da arte da sangria apresentavam registros bem simples, mas foi possível identificar algumas características interessantes. Ter carta da arte da sangria era um pré-requisito para quem quisesse prestar exame na arte da cirurgia.

O negócio de sanguessugas está em mãos dos barbeiros. ... entramos certa vez numa barbearia para ver as caixas de madeira grossa, de três pés de comprimento, cheias de argila, em que os vermes são importados, e na qual se os enterravam até serem retirados para serem usados. Algumas sanguessugas são de dimensões enormes. O preço usual é de vinte centavos de dólar para cada uma que o barbeiro aplica.

Não havendo explicações sobre as práticas terapêuticas na documentação produzida pela Fisicatura-mor, é forçoso recorrer a observadores contemporâneos leigos como o reverendo Walsh (1985, pp. 177-8), que assinalou a predominância de negros nesse ofício:

Para as dores reumáticas, eles usam de maneira singular as ventosas, que geralmente são aplicadas por um negro. Um dia, ao passar pela rua detrás do palácio, vi um médico negro aplicando esse tratamento em alguns pacientes sentados na escadaria de uma igreja. Ele amarrou o braço e o ombro de uma mulher que parecia sentir dores terríveis e, fazendo pequenas escarificações em vários pontos com um pedaço de lâmina de navalha, começou a bater levemente nesses locais com a parte plana da lâmina até que o sangue surgisse. Em seguida colocou pequenas ventosas feitas de chifres sobre elas e, aplicando sua boca numa abertura situada na extremidade, habilmente extraiu o ar de seu interior e fechou a abertura com argila, deixando-a firmemente presa à pele. Fazendo a mesma coisa, ele fixou mais sete ventosas do cotovelo ao ombro, onde elas tinham uma aparência muito estranha. Quando foram removidas, o braço estava coberto de sangue e a mulher disse que sentia um grande alívio.

A sangria era muito utilizada na Europa e, no Brasil, foi praticada desde o século XVI de forma igualmente difundida e recomendada para quase todas as doenças (Santos Filho, 1977, vol. 1, pp. 229, 107). Algumas comunidades indígenas brasileiras também utilizavam rotineiramente a escarificação e a sangria, praticada em veia frontal ou da panturrilha, raramente nas do cotovelo. E os objetos cortantes podiam ser dentes de animais, bicos de pássaros, lascas de taquara, cristais de rocha e, após o comércio com o europeu, facas.
Distribuição percentual da nacionalidade dos sangradores

Fonte: Pedidos de licença e de carta para o livre exercício da arte de sangrar.

Documentação da Fisicatura-mor contida nas caixas 1186-1212, AN.

Não há como afirmar que os sangradores oficializados fossem todos também barbeiros, mas, considerando-se as muitas petições nas quais os suplicantes eram mencionados como barbeiros, não é improvável que, pelo menos no caso dos escravos e forros, essas palavras significassem a mesma coisa. Há testemunhos de contemporâneos, como Walsh (1985, vol. 1, p. 200), sobre a variedade dos serviços oferecidos pelos barbeiros, que preparavam e vendiam casco de tartaruga para fazer pente e remendavam meias de seda, sendo famosos pelo capricho com que se desimcumbiam desse serviço. Além disso, eram os músicos da cidade, e em suas barbearias, existiam sempre instrumentos musicais, em geral suspensos num arco para serem vendidos ou para entretenimento dos fregueses das classes mais elevadas e, às vezes até, para aliviar as dores de um ‘paciente’ que o barbeiro estivesse tratando.

Um ofício, de setembro de 1820, do próprio cirurgião-mor José Correia Picanço, endereçado aos vereadores do Senado da Câmara da Corte, ajuda a definir um pouco melhor o grupo social que praticava essa especialidade médica. Justificando a admissão de um preto escravo a exame, Picanço explicava as razões pelas quais os escravos deveriam ser aceitos no exercício das artes de sangrar e de tirar dentes (Documentos sobre a escravidão, 6.1.23):

Pelo regimento do cirurgião-mor do reino não se acha acautelada a proibição de exame de escravos para que possam sangrar, sarjar, lançar ventosas e sanguessugas, e tirar dentes. Por isso admiti a exame o preto Vicente, escravo de Anacleto José Coelho. Não achei razão para, pelo meu juízo, deixar de assim o obrar, quando, considerando que, vivendo em um país onde os homens ingênuos, livres e libertos se negam ao exercício de muitas ocupações, de modo que não há suficiente número de sujeitos nelas peritos para ocorrer à necessidade pública, julguei deveria mais atender a esta do que a qualquer outra consideração, e tanto mais porque as artes de que se trata têm mais de mecânicas do que de liberais.

Os argumentos do cirurgião-mor são bastante claros no que diz respeito aos próprios membros mais bem posicionados da sociedade relegarem as atividades de sangrador a escravos e a outros socialmente "inferiores". Luccock (1975, p. 72) também inclui os barbeiros entre as profissões mecânicas e observa que eram muito numerosos. Quanto à recusa de libertos trabalharem como sangradores, Picanço pode estar fazendo referência ao aprendizado e não ao trabalho, pois os que haviam aprendido enquanto escravos continuavam a ser sangradores após a alforria e, inclusive, ensinavam a arte.

Esse era o caso de Vicente, mencionado no ofício. Trazido de Angola, aqui acabou sendo escravo de Anacleto José Coelho, que era sangrador aprovado e ensinou a seu escravo as artes de "sangrar, sarjar, deitar ventosas, sanguessugas, e tirar dentes", conforme atestado de junho de 1820 apresentado à Fisicatura-mor. Tendo isso em vista, Picanço admitiu o escravo a exame para sangrador e dentista em agosto, na Corte, durante o qual Vicente respondeu a perguntas práticas e teóricas, saindo aprovado e apto para receber a carta (Fisicatura-mor, caixa 1212).

Em 1824, porém, achando-se já "forro e liberto" e considerando "indecoroso conservar uma carta do tempo de escravo", Vicente recorreu ao cirurgião-mor para que lhe passasse uma nova, no que foi atendido em novembro do mesmo ano. Para isso, Vicente apresentou a carta de liberdade que lhe fora dada gratuitamente por Anacleto José Coelho em junho de 1824.

Alguns anos antes, em 1811, outro escravo chamado Vicente havia feito exame de sangrador, também na Corte. Seu senhor, João Soares de Oliveira, o fez aprender a arte no Hospital Real Militar e da Marinha com o cirurgião aprovado, mestre régio dos sangradores, Francisco Luís da Silva, que passou atestado de haver o cativo "teórica e praticamente aprendido a Arte da Sangria, ventosas e sanguessugas o tempo que determina o regimento".

De volta à África

Além de ganhar a vida nas praças e ruas, ou numa loja, o sangrador também podia tentar acumular algum pecúlio exercendo as suas atividades em navios, especialmente os negreiros.

Em geral, os sangradores que trabalhavam nos navios não eram submetidos a exames, portanto não recebiam cartas da arte de sangria. Pediam uma licença provisória, que lhe permitisse exercitar as suas atividades durante o tempo que durasse a viagem que pretendiam fazer.

Os proprietários de escravos que sabiam sangrar tratavam com os donos das embarcações com destino à Costa do Leste para que seus negros de ganho sangradores cuidassem dos africanos que seriam trazidos. Às vezes, o dono do escravo e do navio eram a mesma pessoa. Esses sangradores negros constituíam a única assistência médica recebida pelos africanos (Karasch, 1987, pp. 40, 194, 203) tanto na travessia para o Brasil, quanto ao desembarcarem aqui.

Entre as justificativas que acompanhavam os pedidos de licença para os sangradores viajarem sem prévios exames, figurava a dificuldade, alegada por alguns proprietários de embarcações, de encontrar um sangrador ou cirurgião aprovado para poder fechar a matrícula do navio. Tal explicação deveria ser acompanhada do argumento de que o sangrador possuía muita experiência, mesmo sem oficialização anterior de sua prática (como os que pediam admissão a exame).

Também eram alegadas a demora do processo de aprovação em face da brevidade com que o navio sairia para a África e a falta de meios para o exame e a carta (que seriam obtidos com a viagem). Entretanto, muitas vezes, as licenças eram concedidas seguidamente a um mesmo sangrador, o que dá a entender que as explicações seriam apenas desculpas, engolidas pela Fisicatura-mor, com o objetivo de desembolsar menos dinheiro com a oficialização,

Curandeiros

A categoria dos curandeiros pouco aparece nos pedidos de licença. Mas apesar do reduzido número, esses pedidos são alguns dos itens mais interessantes da documentação pesquisada, já que, após a extinção da Fisicatura-mor, essa atividade perdeu espaço de legalização.

Durante o período estudado, a palavra curandeiro abrigava diversos significados (além dos relacionados com casos policiais), e a relação desses terapeutas com a sociedade variava conforme se tratasse de um ou outro tipo.

assistir-lhe o seu curativo, o qual não foi mais senão com cozimentos de raízes dados internamente, externamente banhos de ervas, clisteres das mesmas, vindo eu no conhecimento que o seu curativo era ficá (sic) por presenciar entre o gentio da Costa de Leste onde tenho sete viagens, uma para o reino de Angola, segunda para Cabinda, terceira para Roma, e quatro para a capitania de benguela, onde presentemente navego, que o curativo entre eles não é mais senão com cozimentos de raízes, e ervas, e como os meus escravos ficaram bons com os medicamentos do curador na forma do gentio da Costa de Leste, e eu satisfeito com a saúde deles, passei esta por ser verdade ... (Fisicatura-mor, caixa 1191).

Além do reconhecimento da eficácia dos curativos de Bento Joaquim, tem-se aí um testemunho sobre práticas de cura da África e seu uso no Brasil entre a população pobre. O reconhecimento dessas práticas só não foi maior porque se trata de curas feitas por um curandeiro para um grupo específico, os escravos, no caso do atestado.

Teresa Joana do Espírito Santo (eram poucas as mulheres que passavam atestados) também testemunhou, em 1816, que havia sido com raízes de pau e folhas do mato que o pardo Bento a curara da enfermidade de que padecia havia anos e que "os professores desta Corte não se atreveram a curar". E, se precisasse, juraria pelos Santos Evangelhos e nomearia os "professores que a assistiram antes do curioso pegar-me a curar ...". Na mesma época, Quitéria Maria de Santana passou atestado semelhante.

Esses documentos confirmam que os curandeiros eram solicitados não apenas por falta de médicos ou cirurgiões, como queria a Fisicatura-mor, mas por serem mais eficientes, ao menos na visão de seus pacientes. E isso era admitido pela instituição que, apesar de basear-se na estratificação dos agentes de cura, deixava passar várias petições com atestados nesse sentido, que terminavam com a aprovação e licenciamento dos suplicantes.

Em sua petição, Bento Joaquim deixou registrada outra idéia estranha à medicina acadêmica: artes diabólicas pareciam estar por trás de algumas moléstias.

Conclusão

A ação controladora da Fisicatura-mor não tinha o mesmo alcance sobre todas as categorias de terapeutas. As pessoas que exerciam as especialidades de medicina, cirurgia e farmácia oficializavam-se mais do que os sangradores, parteiras e curandeiros. Mas havia uma motivação comum às pessoas que buscavam legalizar as suas atividades: além do receio de uma punição, muitas podem ter visto, nos títulos da Fisicatura-mor, uma forma de elevar o seu status, de adquirir mais prestígio na comunidade em que atuavam e, dessa maneira, distinguir-se na concorrência.

Essa mesma explicação talvez se aplique à reduzida busca de oficialização por parte dos terapeutas populares: faziam parte de comunidades na qual já teriam firmado o seu prestígio e, por isso, eram menos afetados pela concorrência, além de seus procedimentos estarem mais em conformidade com as concepções médicas da população.

Fontes

Manuscritas

Documentos sobre a escravidão e mercadores de escravos (1777-1831), Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 6.1.1823.

Fisicatura-mor, Arquivo Nacional, caixas 1186 a 1212.

Impressas

Annaes Brasilienses de Medicina, Jornal da Academia Imperial de Medicina. Rio de Janeiro, mar. 1857.

Recebido para publicação em abril de 1998.

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    Os documentos produzidos por essa instituição encontram-se organizados no Arquivo Nacional num livro-índice de mais 15 livros, além de 51 pacotes com os papéis da burocracia. Este livro-índice guarda listas de nomes de pessoas, atividades, motivos dos processos e sua localização nos outros livros. Os ofícios mencionados logo chamaram a minha atenção: cirurgião, sangrador, boticário, parteira, curador de morféia, médico, curandeiro... Os pacotes não estavam diretamente relacionados ao livro-índice. Continham os mais variados documentos exigidos pela burocracia da Fisicatura-mor, enquanto os livros eram constituídos pelos registros das licenças e cartas que garantiam aos seus donos o direito de exercerem determinadas atividades.
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    Diretamente relacionada com essa hierarquia estabelecida pela Fisicatura-mor estava a posição social ocupada pelos terapeutas. Escravos, forros e mulheres desenvolviam atividades menos prestigiadas, como os ofícios de sangrador, parteira ou curandeiro. A hierarquia adotada pela instituição reafirmava o lugar de cada um, confirmando a posição que tinham na sociedade. Os conhecimentos e as práticas de cura populares eram formalmente desvalorizados pela Fisicatura-mor.
    Por outro lado, durante os vinte anos de atuação da Fisicatura-mor no Brasil, os terapeutas populares foram reconhecidos como possuidores de um saber legítimo e autorizados a exercer as suas atividades. Esse reconhecimento era possível porque o propósito dessa instituição não era tanto reprimir, no sentido de eliminar as práticas médicas populares, mas incorporar os terapeutas, inseri-los em ligações de dependência pessoal, que seguiam a hierarquia social e a das práticas médicas. A Fisicatura-mor era instituição de uma sociedade na qual as relações sociais baseavam-se na construção e na reafirmação de dependências pessoais. A hierarquia social era reafirmada com a troca de favores, e benefícios por lealdade e obediência. E o modo como funcionava a Fisicatura-mor também fortalecia e deixava evidente essa hierarquia.
    Os médicos, cirurgiões e boticários consideravam o seu saber superior ao dos terapeutas populares, mas não os desqualificavam totalmente, pois o conhecimento destes sobre a natureza da região era valorizado. Durante o período de existência da Fisicatura-mor, o contexto não era de medicalização da sociedade, de imposição de padrões científicos, de higienização das cidades, de modificação e normalização de condutas, o que torna a documentação da Fisicatura-mor mais importante, vez que, depois de seu término, não se tem notícia de outro qualquer órgão público que tivesse o objetivo de fiscalizar e autorizar práticas médicas as mais variadas, registrando assim práticas populares de cura. A partir da década de 1830, a relação entre a medicina popular e a medicina acadêmica mudou paulatinamente: já não se tratava então de enquadrar minimamente as práticas populares nas concepções da medicina acadêmica, mas simplesmente de desautorizá-las.
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    Setenta e nove por cento dos pedidos para o exercício da arte da sangria provinham do Brasil, entre os quais a condição jurídica do sangrador foi explicitada como forro ou escravo em 84% (o que corresponde a 101 escravos e 63 forros em 193 pedidos) dos casos. Os sangradores podiam ser pessoas livres que, na maior parte das vezes, obtinham esta habilitação antes ou junto com a de cirurgiões. Mas os escravos e forros praticamente eram sempre sangradores, não podendo aspirar a nível hierárquico mais alto dentro dos princípios estabelecidos pela Fisicatura-mor.
    Nas petições e atestados dos suplicantes era bastante comum aparecerem juntos os termos sangrador e barbeiro: "barbeiro-sangrador". De hábito, a população percebia como associados esses ofícios, chegando mesmo a ser usual fazer-se referência a um sangrador como barbeiro, o que confirma serem tais ofícios com freqüência exercidos por uma mesma pessoa. Eram duas atividades distintas, mas realizadas com instrumentos semelhantes, tendo sido agrupadas ainda na Idade Média (Lyons
    et al., 1987, pp. 338, 355). Contudo, a função de controle da Fisicatura-mor, que nunca utilizava a palavra barbeiro nos documentos que emitia, nenhuma relação tinha com as habilidades de um sangrador para cortar barba e cabelo. Tal distinção servia também para deixar bem clara a diferença entre a arte da sangria e a atividade de barbeiro. A partir da quantificação dos dados, foi possível concluir que o termo barbeiro era identificado com uma prática mais popular, cujos agentes faziam parte de um estrato social mais baixo, enquanto o termo sangrador designava uma arte que, apesar de menor, fazia parte da cirurgia. A separação entre cirurgiões e barbeiros
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    era antiga, e, em sua luta para alçar o prestígio de sua atividade ao da dos médicos, os primeiros adotaram, como uma das formas para obter essa aproximação, distanciarem-se dos segundos.
    A arte da sangria envolvia sarjar, aplicar bichas, ventosas e sanguessugas. Sobre esse ofício, Ewbank (1973, p. 189), que esteve no Rio de Janeiro nos anos de 1845 e 1846, escreveu uma passagem na qual se observa a indissociação dessas atividades no cotidiano:
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    Os indivíduos que atuavam como sangradores eram, em sua maioria, africanos (64%); mas 21% deles haviam nascido em Portugal e 13% no Brasil. Entre os nascidos no Brasil, a maior parte era formada de escravos e forros, portanto de descendentes de africanos. Dessa forma, pode-se arriscar dizer que brasileiros e portugueses mais bem posicionados socialmente requeriam a licença de sangrador tendo em vista, provavelmente, a prestação posterior de exame de cirurgia.
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    Treze anos depois, Vicente, agora com o sobrenome de Soares, dirigia-se à Fisicatura-mor pedindo nova carta de sangrador pelo mesmo motivo que seu xará. Apresentou, então, seu título de liberdade, adquirido em janeiro de 1822, pelo qual pagava 135$400 réis ao seu proprietário de então, Manoel de Carvalho.
    As cartas de alforria conseguidas por esses sangradores mostram uma situação que não deve ter sido incomum no período, principalmente nos centros urbanos. Os dois Vicentes, que viviam na Corte, conseguiram sua liberdade, apesar de Vicente Soares ter tido que desembolsar seu dinheiro. O processo de Vicente José Coelho (como passou o outro Vicente a assinar depois de liberto) apresenta indícios de que este escravo mantivera uma relação bem próxima com seu senhor. Enquanto Vicente Soares aprendeu com o mestre régio dos sangradores, assim como outros que pediram licença para sangrar à Fisicatura-mor, Vicente Coelho instruíra-se com seu então proprietário, interessado em especializá-lo em um ofício que rendesse a ele, senhor, rendimentos auferidos na condição de negro de ganho.
    Quando foi comprado por Manoel de Carvalho, Vicente Soares já era sangrador aprovado e talvez exercesse a sua arte de forma ambulante pelas ruas e praças da Corte, na condição de negro de ganho, como uma boa parte dos escravos da cidade do Rio de Janeiro (Cunha, 1985, p. 32), que deveriam fornecer ao senhor um jornal previamente estipulado. Dessa forma, Vicente tinha mais controle sobre o que ganhava com seu trabalho, pois, apesar de o direito ao pecúlio próprio depender formalmente do consentimento do senhor, o costume o havia consagrado, além de ser muito difícil vigiar os escravos que trabalhavam desse modo (Chalhoub, 1990, p. 161; Cunha, 1985, pp. 33, 40; Karasch, 1987, p. 194). Tal situação dos negros de ganho facilitava a acumulação de um pecúlio, e não era estranho que conseguissem comprar sua liberdade dessa forma (Chalhoub, 1990, p. 147; Cunha, 1985, pp. 34, 48).
    Os sangradores ambulantes cobravam menos por seus serviços de cura e de barbeiro propriamente dito do que os que atendiam em lojas, constituindo, possivelmente, a maior parte dos que praticavam a arte de sangrar (Karasch, 1987, p. 203). Eles não se oficializaram maciçamente, até porque quem recorria a seus serviços não faria questão disso, e seu modo de trabalhar facilitaria o engodo da fiscalização. Por isso, talvez a maioria dos sangradores que se submetia à Fisicatura-mor trabalhasse em lojas, normalmente pertencentes, segundo Debret (1940, p. 151), a negros ou mulatos, muitas vezes libertos, que empregavam escravos, treinando-os como aprendizes (Cunha, 1985, p. 32), o que se confirmou pela análise da documentação.
    Não era difícil para as pessoas forras comprarem e manterem escravos enquanto o tráfico conservava seus preços relativamente baixos, o que mudou depois de 1850, quando os preços subiram muito (Karasch, 1987, p. 211). Tanto no meio urbano, quanto no meio rural, os pobres livres e os libertos tendiam a empregar suas economias em bens móveis, como vacas, jóias, dinheiro e, principalmente nas cidades, em escravos de ganho (Cunha, 1985, p. 24). Assim, libertos que haviam sido negros de ganho como barbeiros e artesãos, compravam e treinavam escravos para os ajudarem em seus trabalhos (Karasch, 1987, p. 211).
    Foi o caso de Vicente Coelho que, após conseguir sua liberdade, sendo dentista e sangrador aprovado, passou a ensinar a outros esse ofício. Assim, encontramos, em 1827 e 1828, esse liberto passando a outros africanos atestados de sua competência para as artes da sangria e de aplicar ventosas e sanguessugas.
    Apesar de basear-se em um conhecimento justificado, para a Fisicatura-mor, por representações médicas européias elaboradas por Hipócrates e Galeno, o caráter mecânico desse ofício e sua limitação a atos cirúrgicos menores ajudam a explicar, por um lado, o porquê de grupos mais abastados da sociedade desprezarem o exercício de sangrador. E, por outro, o interesse de escravos e libertos, incluindo-se entre estes muitos africanos, por tal atividade pode ser entendido na medida em que esse grupo via em tal ofício, pelo menos nos centros urbanos, uma oportunidade de acumular pecúlio, ou seja, o aumento das possibilidades de comprar a liberdade e de melhorar suas condições de vida.
    Esse conhecimento foi assim sendo transmitido entre as pessoas que constituíam essa camada social, e suas atividades foram sendo reinterpretadas segundo suas concepções de doença e cura. A documentação da Fisicatura-mor não explica o porquê da sangria, do ponto de vista da medicina acadêmica e muito menos do ponto de vista de quem a praticava, sendo sempre bem objetiva quanto à definição dessa prática: tratava-se de sangrar, sarjar, aplicar bichas, ventosas e sanguessugas. A bibliografia, porém, apresenta alguns dados que podem levar à hipótese de que as pessoas que exerciam tais atividades de tradição européia reinterpretavam-nas segundo as suas concepções familiares de doença e cura: Ewbank (1973), por exemplo, relata a prática de sangria realizada pelos africanos como uma tentativa de sugar os espíritos malignos, e não os humores que havia em excesso segundo a medicina oficial. Por outro lado, alguns podem ter trazido da África a técnica de sangrar com ventosas, pois o termo é encontradiço entre as medicinas Bakongo e Obi, no oeste do continente africano, segundo Karasch (1987, pp. 264-5).
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    É claro que os brancos continuavam sabendo sangrar; escravos e forros não monopolizaram esse saber, uma vez que, para alguém tornar-se cirurgião, era necessário ser sangrador, até porque isso era parte importante da compreensão então vigente sobre o funcionamento do corpo humano. Mas os negros, praticamente, ‘monopolizaram’ essa atividade. E os homens, pois outra característica marcante da arte de sangrar era ser exercida sempre por elementos do sexo masculino.
    Embora a arte de sangrar estivesse concentrada em camadas sociais mais baixas, não havia restrição ao status das pessoas que recorriam a tais serviços. Em muitos dos atestados enviados junto com os pedidos de licença para sangrar, vêem-se cirurgiões afirmando que tais suplicantes haviam sangrado vários de seus enfermos. Porém, principalmente em lugares mais afastados dos centros urbanos e em relação à população mais pobre, as próprias petições deixavam entrever que, com freqüência, o sangrador ultrapassava os limites impostos pelas cartas de sangria ao exercício de suas atividades, fazendo as vezes de curador.
    Algumas vezes o suplicante não era submetido a exame, sendo concedidas licenças (como para cirurgiões, boticários e quem curasse de medicina) mediante a apresentação de atestados de sua prática e/ou da necessidade de seus serviços. O fato de pessoas oficializarem suas atividades prescindindo de exame demonstra que o controle não era rígido. Outro procedimento da Fisicatura-mor, que leva a concluir sobre a maleabilidade de suas normas, era precisarem os suplicantes de atestar que possuíam prática para serem admitidos a exame. Assim, entendiam alguns que, quanto mais experiência mostrassem ter, mais certo seria serem examinados. O preto forro Adão Nunes Vidigal deve ter pensado desse modo ao afirmar em sua petição, de 1811, que havia "praticado e exercitado a arte de sangria nesta Corte por espaço de 14 anos", e parece não ter sido punido por exercer a atividade durante todo este tempo sem permissão (Fisicatura-mor, caixa 1212). Esse tipo de justificativa para ser admitido a exame ou receber licença de ser interpretado como mais um indício de que muitos sangradores trabalhavam no ofício completamente alheios às exigências da Fisicatura-mor.
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    ou de perder menos tempo com a burocracia. Também acontecia de atribuírem a um sangrador diversas viagens, para as quais não encontrei o menor resquício de registro de licenças, como acontecia com a maior parte dos que alegavam terem tido essa experiência, o que sugere que as licenças eram requisitadas quando a fiscalização tornava-se mais rigorosa, como parece ter ocorrido em 1828.
    Entre os pedidos de sangradores, disponíveis na documentação, levantados na pesquisa, 75 eram relativos a licenças para ir à África, constituindo 29% do total registrado na Fisicatura-mor sobre essa especialidade. A maior parte dos que viajavam oficialmente autorizados eram escravos, alguns tinham vindo da própria Costa do Leste. Mas havia forros que também se empregavam nesse trabalho — forros africanos inclusive. Os africanos deviam ser bastante requisitados para esse serviço, pois havia uma forte probabilidade de que se comunicasssem com mais facilidade com os escravos recém-adquiridos.
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    E de sua parte, quando forros, podiam considerar esse trabalho recompensador.
    Mas a comunicação entre os africanos não acontecia apenas no nível lingüístico. Especificamente em relação ao Centro-Sul do Brasil, onde os escravos africanos procediam majoritariamente do Centro-Oeste da África, pode-se dizer que compartilhavam partes de seu complexo cultural, como pressuposições básicas sobre o parentesco e visões cosmológicas. Entre elas, estava decerto a idéia de que o desequilíbrio, o infortúnio e a doença seriam causados pela ação malévola de espíritos ou de pessoas, em geral através de bruxaria ou feitiçaria (Slenes, 1991-92, p. 58; Thompson, 1984, p. 104). Tal fato sugere o importante apoio que esses sangradores poderiam constituir para os africanos que vinham nos navios negreiros.
    Muitos dos escravos que trabalhavam em navios negreiros foram trazidos da África nas mesmas condições que os africanos dos quais deveriam tratar. E, segundo Luccock (1975, p. 392), não se ouvia falar que abandonassem os navios em suas freqüentes idas a sua terra de origem. É claro que, pela documentação da Fisicatura-mor, não é possível saber se algum sangrador africano resolveu ficar por lá antes da década de 1830, em que Cunha (1985, pp. 76-107) identifica os primeiros retornos de escravos forros para sua terra natal. Talvez alguns tenham feito isso. Mas o que há de fato são pedidos sucessivos de licenças para viajar à Costa do Leste para um mesmo sangrador, cuja história, limitada aos dados da Fisicatura-mor, pode ser traçada em linhas gerais como a de um africano que veio num navio negreiro, provavelmente aprendeu sua arte aqui, voltou à África uma ou mais vezes como sangrador para tratar da escravaria e retornou ao Brasil.
    Voltando a Vicente José Coelho, o africano sangrador que achava indecoroso continuar com uma carta que afirmava ser ele escravo quando já se achava liberto, encontra-se a situação descrita. Vicente passou atestado a seu discípulo liberto Manuel, "de nação Cabinda", em 1827, para que conseguisse licença por um ano para viajar à Costa do Leste, comprometendo-se a fazer exame na volta com os meios que obteria. Passou, em 1828, outro atestado, desta vez a Afonso, "de nação Congo", para conseguir licença para ir à Costa do Leste (Fisicatura-mor, caixas 1193, 1198).
    Ao cruzarem-se as informações disponíveis nos registros da Fisicatura-mor percebe-se algo das relações constituídas ou reforçadas através do aprendizado de um sangrador que certamente pesaram na decisão de o sangrador africano permanecer no Brasil. Joaquim da Silva Senna, um homem pardo, fez exame em dezembro de 1811, sendo aprovado. No entanto, devido à demora em lhe entregarem a carta de sangrador, pediu licença para viajar à África enquanto a confeccionassem. Dez anos depois, o nome de Joaquim aparece atestando que Luís João Caldas, preto forro crioulo da cidade de Luanda, praticou com ele a arte de sangrador por dois anos, "fazendo aquelas sangrias que em todo este tempo se ofereceram fazer, lançando ventosas e sanguessugas e mais pertences à dita Arte, mostrando ser muito cuidadoso de fazer as suas obrigações". Luís foi aprovado, mas não tirou sua carta porque sairia em breve no bergantim
    Ligeiro para Cabinda, com escala Benguela, recebendo uma licença para isso. Em 1826, ainda não tinha seu título definitivo "por falta de meios", pedindo então outra licença, que lhe foi concedida com a condição de que tirasse sua carta ao fim de sua validade. Contudo, após um ano voltou a pedir licença para viajar à África, pois estava "justo" com o proprietário da escuna
    Leoa Africana (Fisicatura-mor, caixas 1209, 1191).
    A esta altura Joaquim da Silva Senna já possuía uma loja na Corte e nela continuava a formar outros discípulos, como João Ribeiro da Silva (licenciado em maio de 1827), "preto forro de nação Mina" (Fisicatura-mor, caixa 1210), Gaspar, "preto de nação", isto é, de origem africana, escravo de Antônio José de Castro (Fisicatura-mor, caixa 1198), e Januário, "preto de nação Angola", escravo de Francisco José dos Santos (Fisicatura-mor, caixa 1199), estes licenciados em dezembro de 1827 e janeiro de 1828, respectivamente. Todos apresentaram um atestado assinado apenas por Joaquim (que não sabia ler nem escrever) como garantia de que estavam aptos a exercer o ofício de sangrador — especialidade da arte de curar que, tanto em terra quanto nos navios negreiros, foi percebida por muitos escravos e forros como uma interessante opção em sua luta cotidiana para sobreviver e melhorar as próprias condições de vida.
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    Considerando as observações de contemporâneos e, principalmente, as reclamações e denúncias registradas nos documentos da Fisicatura-mor, conclui-se que existiam muitos mais curandeiros do que aqueles arrolados em tão pequeno número nas fontes pesquisadas no Arquivo Nacional. Porém, mesmo com somente 27 licenças provenientes do Brasil (25 licenças para curandeiros e duas para curar alguma moléstia específica), talvez se possa aprender um pouco sobre as práticas de cura populares nesse período.
    Se a ausência da maior parte dos curandeiros dos registros do físico-mor pode ser vista como indiferença face às regras segundo as quais a instituição pretendia delimitar as práticas de cura populares, a oficialização dos poucos curandeiros não pode ser tomada como simples aceitação e assimilação passiva dos valores que os consideravam, segundo o discurso da Fisicatura-mor, apenas substitutos possíveis e temporários dos médicos. Por vezes, aceitando aparentemente as regras oficiais, o curandeiro haveria de continuar a exercer suas atividades com mais tranqüilidade e até mesmo viria a se diferenciar de seus concorrentes, arvorando uma licença que atestava a sua competência. Enquanto alguns se oficializaram por estarem inseridos na concepção da medicina acadêmica, outros apenas o faziam diante da ameaça de serem punidos.
    Alguns dos curandeiros oficializados pela Fisicatura-mor estavam em completa sintonia com a prática médica acadêmica, como Galdino de Amorim Boanova, que se aplicou nos "estudos e conhecimentos práticos da medicina, freqüentando como ouvinte e observador o curso de operações e teórico-prático de anatomia", apresentou atestados de dois lentes da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro. Fez exame de curandeiro em 1828, respondendo às perguntas teóricas e práticas sobre as diferentes enfermidades, classificação das mesmas, aplicações, e seus resultados, e sobre farmácia, satisfazendo a tudo com inteligência (Fisicatura-mor, caixa 1191).
    Outros testemunhos deixam ver que a competição entre os terapeutas deveria ser feroz, motivando denúncias à Fisicatura-mor, principalmente nos períodos de devassa. Por temer "ficar increpado nas devassas deste juízo" foi que José Pedro de Carvalho, morador e estabelecido na freguesia de Guaratiba, solicitou submeter-se a exame em 1820 (Fisicatura-mor, caixa 1191). Esses receios tinham razão de ser: os que curassem sem licença poderiam ter os seus bens penhorados.
    Ocorresse não exame, a licença de curandeiro era sempre provisória. Nela estavam especificados os limites das práticas de cura, como se lê na licença do preto forro João Martins Lopes, morador em Penetiba, recebida após exame na Corte do Rio, em 1822, e renovada anualmente até 1828: "... para que no lugar de sua residência, não havendo médico ou cirurgião aprovado em medicina, possa curar com ervas do país aquelas enfermidades que são vulgares, sendo obrigado a consultá-los no caso de dúvida, e vir a este juízo no fim de seis meses dar conta do que tiver praticado, e dos casos dignos de comunicação, e obrando em contrário incorrerá nas penas de desobediência" (Fisicatura-mor, caixa 1199).
    A primeira imposição que se fazia aos que oficializavam suas práticas sob a denominação de curandeiro era usar ervas do país, conforme o regimento de 1810. Essa especificação não deixava de restringir, pelo menos oficialmente, seu exercício de curar. A diferença na titulação era dada, então, sobretudo em função da posição social que a pessoa ocupava. Além disso, alguém que já tivesse carta de cirurgia estava numa posição bem mais cômoda quando fosse pedir para aplicar "remédios internos" (que seria uma prerrogativa dos médicos, especialistas em "moléstias internas"), pois a sua capacidade como cirurgião, dentro do modelo que a Fisicatura-mor considerava o ideal para este ofício, havia sido comprovada. E ser aprovado em alguma especialidade também demonstrava que uma boa relação entre a Fisicatura-mor e esta pessoa já havia sido estabelecida.
    A conseqüência da concessão de uma licença para curar de medicina ou de uma para licença usar do ofício de curandeiro era o limite de seu exercício. Os que contavam com a primeira gozavam de uma liberdade equivalente à do médico, muito embora, se houvesse algum doutor presente no lugar, a opinião deste merecesse prioridade. Os curandeiros restringiam-se a curar com ervas do país as moléstias mais comuns que acometiam os povos do lugar, isso se não houvesse pessoa mais ‘qualificada’ para socorrê-los (médicos ou cirurgiões aprovados em medicina).
    José Gomes Cruz, morador na localidade de Rebelo, termo da Vila de Macacu, encaixava-se perfeitamente no perfil de curandeiro da Fisicatura-mor, pois pedia para ser examinado a fim de poder continuar aplicando o "conhecimento de remédios indígenas" aos infelizes que a ele recorressem, uma vez que soube "que até é proibido praticar semelhantes atos sem preceder tal qual habilitação". Seu exame, feito em agosto de 1819 na casa do delegado do físico-mor, José Maria Bomtempo, também foi bastante ilustrativo: "... fazendo-se-lhe perguntas sobre os conhecimentos que tinha de curar as enfermidades que acometem os habitantes deste clima e sobre a maneira de preparar os medicamentos com as ervas do país, a tudo respondeu com inteligência dando ao dito examinando por aprovado ..." (Fisicatura-mor, caixa 1194).
    Recebeu, então, José Gomes Cruz sua licença para exercer o ofício de curandeiro, tendo-se verificado sua capacidade e conhecimento das ervas e moléstias do lugar onde morava. Não há como saber se os medicamentos aos quais José Gomes Cruz se referia originavam-se de conhecimentos indígenas ou se, o que até é mais provável, significava apenas que eram remédios nativos, mas, de qualquer modo, muito da medicina indígena, no que diz respeito às plantas medicinais, parecia incorporado à medicina oficial.
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    A utilização de plantas com finalidades terapêuticas é muito antiga. Existem registros nesse sentido desde alguns milênios antes de nossa era e em várias sociedades, no Egito, na China, na Índia, na América do Sul e na Europa. Por muito tempo o estudo das plantas medicinais esteve associado a curandeiros, médicos e boticários. A partir do século XV, a invenção da imprensa permitiu um aumento da difusão dos conhecimentos herboristas, e o descobrimento do Novo Mundo e as conquistas coloniais levaram ao conhecimento de novas drogas vegetais, como a quina e a ipeca, aumentando o número de matérias-primas medicinais de origem vegetal e suscitando um aumento deste tipo de interesse pela natureza. Desde o século XVI, a qualidade de ervanário era reconhecida na França, e, em 1767, esta profissão lá foi organizada com a imposição de um exame para que se pudesse exercê-la (Le Goff, s.d.).
    Assim, o conhecimento das plantas medicinais era um ofício valorizado na França e muito difundido em Portugal (Crespo, 1990, pp. 204-9; Marques, 1998), exercendo expressiva influência na medicina acadêmica brasileira, que reconhecia a especificidade de moléstias e de plantas medicinais nativas e, nesse sentido, valorizava essa qualidade dos curandeiros.
    O argumento de que possuía conhecimentos sobre ervas medicinais foi utilizado na petição feita em 1815 pelo já citado preto forro Adão dos Santos Chagas (Fisicatura-mor, caixa 1195). Observou-se àquela altura que Adão sabia "várias mezinhas", praticara na Santa Casa e era também um sangrador dentista, mostrando assim que muitos sangradores podem ter sido dentistas e, mais ainda, curandeiros. Além disso, o caso de Adão serve para ilustrar certo aspecto dos atestados e abaixo-assinados apresentados pelos curandeiros. A maior parte não era assinada por pessoas ligadas à prática médica oficial, como nas outras categorias médicas, e sim por pessoas que ocupavam posições sociais privilegiadas e reconhe-ciam a legitimidade do conhecimento de tal ou qual crioulo forro. Adão Chagas contava com esse reconhecimento também na Santa Casa, onde havia praticado suas mezinhas, o que mostra a aceitação nos meios médicos de práticas populares de cura e, conseqüentemente, de concepções populares de doença, as quais, como se vê, não eram sempre incompatíveis com a medicina oficial.
    Pessoas com as quais havia travado relações através de sua habilidade médica acabaram ajudando Adão a conseguir uma licença que conferia reconhecimento oficial a seu saber, apesar de a Fisicatura-mor deixar claro que a concessão da licença seria limitada ao cuidado de doenças leves, assim como a atividade das parteiras deveria ser restrita a partos sem complicação. Seria recebido como ousadia dos suplicantes acharem estes que tinham capacidade para mais do que isso.
    Esse discurso sobre o pouco conhecimento dos terapeutas populares ia ao encontro da posição dos cirurgiões e médicos (e eram eles quem formavam o quadro de funcionários da instituição). Essa não era, porém, a opinião das pessoas tratadas pelos curandeiros. Na verdade, em alguns casos, dirigiam-se à Fisicatura-mor argumentando exatamente o oposto ao estabelecido em seu regimento.
    É o que se pode observar no processo de José Maria da Silva. Em 1818, através de uma petição, os "moradores de São Gonçalo" solicitaram ao físico-mor do Reino que José Maria da Silva recebesse a licença para poder curar "a todos os que o chamarem", uma vez que vinha tendo problemas com o cirurgião-mor da freguesia, o qual queria privar, "por todos os meios", deste benefício os moradores de São Gonçalo. Isto "porque vê que ninguém o procura nem o chama, pela experiência que se tem das funestas conseqüências que resultam das suas receitas e curativos" (Fisicatura-mor, caixa 1211). Essas declarações mostram que o curandeiro possuía muito mais prestígio na comunidade do que o cirurgião, cujo ofício era mais valorizado pela Fisicatura-mor. Um cirurgião aprovado pela instituição estava em bem menor conta junto ao público do que um curandeiro, que por problemas circunstanciais se dirigia à instituição para pedir licença.
    Além disso, ao processo estavam anexados oito atestados que mostravam a competência de José Maria da Silva, superior inclusive à de pessoas formadas academicamente. Assim, os moradores de São Gonçalo, "... ouvindo a notícia das admiráveis curas que o tenente José Maria da Silva havia feito de moléstias que se reputavam incuráveis", recorriam ao curandeiro. Foi o caso de Bernarda, que sofria com "um cancro que tinha na barriga, o qual foi mostrado ao cirurgião-mor da Santa Casa, e lhe disse o ilustre cirurgião-mor lhe tiraria a ferro, o que ela não consentiu por se lembrar que outra vez lhe haviam tirado, e tornou a crescer que se pôs monstruoso, e o sobredito tenente lhe pôs um remédio que o destruiu e arrancou sem lhe pôr ferro algum". O mesmo aconteceu a um escravo do alferes Francisco Bernardo, cuja cara estava quase toda comida, "estando os ossos frontais descobertos, e o curou perfeitamente, do que até ao presente não havia exemplo". Até mesmo pessoas que haviam padecido enfermas por vários anos de moléstias desconhecidas dos maiores práticos da Corte, "com despesas extraordinárias de médicos e boticas sem alcançar o menor alívio", encontrando-se, assim, desenganadas, foram curadas pelo tenente José Maria da Silva poucos meses após terem começado a usar os seus remédios.
    Esses casos não relatam moléstias leves, que com pouco poderiam se curar. Todos se referiam a doenças sérias, as quais nenhum médico ou cirurgião com formação acadêmica, seguindo as concepções da medicina oficial, havia conseguido debelar. Portanto, nesses atestados invocava-se a superioridade do curandeiro frente aos agentes de cura oficiais.
    Dessa forma, José Maria da Silva estava curando as pessoas que o procuravam sem se importar muito com as regras que a Fisicatura-mor vinha se esforçando para impor com o objetivo de regulamentar o exercício das práticas médicas. O prestígio e o respeito por esse curandeiro, com relação ao qual a população pouco se importava se tinha sido licenciado ou não, eram tais que ele passou a incomodar pessoas que, por exercerem uma especialidade mais valorizada e terem passado por exame e recebido uma carta certificando sua competência, achavam-se no direito de serem preferidas pela população, em detrimento de um curandeiro que nem licenciado era. O cirurgião encartado fora preterido, o que motivou a denúncia, causando revolta na população, que fez questão de atestar a superioridade de José Maria da Silva em relação a muitos médicos e cirurgiões acadêmicos. Ao recorrer para pedir licença, lado a lado com a população que atendia, José Maria da Silva não só deixou de ser incomodado por pessoas que exerciam especialidades consideradas mais nobres entre as classes dominantes, como levou a Fisicatura-mor a engolir o seu prestígio a ponto de "promovê-lo", relativizando os limites bem explicitados para as atividades de um curandeiro. Com sua petição, e fazendo tudo como prescrevia a Fisicatura-mor, ao anexar atestados, José Maria da Silva deixou registrados na burocracia da instituição a consideração e o prestígio que contavam alguns curandeiros para desdouro de muitos cirurgiões aprovados. José Maria da Silva foi examinado e aprovado em 1818. E, em 1820, pedia para curar de medicina prática, o que lhe permitia receitar, além de ervas do país, remédios manipulados.
    Em quase todos os atestados há testemunhos do prestígio e da consideração em que eram tidas essas pessoas. Mas isso não serviu para a Fisicatura-mor formar uma imagem mais benevolente dos curandeiros, que continuavam sendo considerados pouco capazes, devendo-se a eles retornar apenas nos casos de extrema necessidade, quando não houvesse ninguém mais competente para ajudar.
    Um outro tipo de curandeiro, mais próximo das concepções dos africanos, pelo menos da imagem que visualmente se tem de um curandeiro africano, pode ser exemplificado com o caso de Bento Joaquim. Morador na freguesia de Inhaúma, pedia "licença para poder continuar no seu curativo sem prejuízo dos professores de medicina e cirurgia". Isso já demonstrava sua consciência das prerrogativas que médicos e cirurgiões aprovados deveriam ter. O exercício de suas atividades de cura não prejudicariam os agentes de cura da medicina acadêmica porque ele aplicava "alguns remédios a algumas pessoas pobres e miseráveis deixadas de professores de medicina e cirurgia, por ser em suas moléstias quase por artes diabólicas, que, por muita experiência e conhecimento que tem o suplicante da dita moléstia, cura, e ficam sãos ...." (Fisicatura-mor, caixa 1191).
    Assim como José Maria da Silva e outros, Bento Joaquim ocupar-se-ia dos enfermos já deixados pelos professores, quer dizer, trataria e curaria, como vinha fazendo, de pessoas que os médicos e cirurgiões licenciados não tiveram capacidade e competência para curar. O interessante é que ele argumentou isso diante da Fisicatura-mor, cujas normas baseavam-se na hierarquia das especialidades de cura. Mas esta aceitou a justificativa.
    Para completar a valorização da capacidade e competência de Bento Joaquim, anexado à petição havia um atestado, de 1816, de Manuel Ricardo da Silveira, um cirurgião aprovado. No documento, Manuel reconhecia que dois de seus escravos haviam sido "deixados do professor que os assistia porque nada aproveitavam os seus remédios que foram muito bem aplicados, e de mim cirurgião". Bento Joaquim ofereceu-se para curá-los, mas Manuel Ricardo da Silveira, é claro, não acreditou que disso fosse ele capaz, e resolveu ir pessoalmente com seus escravos para a casa do curador
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    Desse modo, além de estar relacionado com o maior conhecimento que teriam de medicamentos baseados na flora nativa, o sucesso desses curandeiros ao tratarem alguns enfermos "deixados" pelos médicos e cirurgiões poderia estar ligado à competência dos primeiros no trato de problemas espirituais, alheios às preocupações dos terapeutas com formação mais acadêmica. Os conhecimentos herbários dos curandeiros muitas vezes estavam associados a suas crenças religiosas, que envolviam concepções sobre doença e cura. Assim, se os doentes tratados por Bento Joaquim estivessem influenciados por artes diabólicas, os médicos realmente não teriam competência para lidar com tais moléstias. A capacidade de alguns curandeiros de curar enfermidades causadas por elementos sobrenaturais não é mencionada pela Fisicatura-mor, mais é legítimo supor tenha sido este um aspecto muito importante nas práticas populares de cura. Isso porque as culturas do Oeste e do Centro-Oeste da África, os indígenas e os setores populares europeus compartilhavam a crença de que doenças poderiam ser causadas por problemas espirituais. Então muito provavelmente também no Brasil, os curandeiros — especialidade exercida por elementos originários dos setores mais populares da sociedade — cultivavam concepções semelhantes de doença e cura, segundo as quais eram necessários conhecimentos sobre rituais e sobre o uso de plantas medicinais que pudessem combater as causas sobrenaturais (Silva, 1993, p. 319).
    Os curandeiros que se licenciavam, além de se verem livres da pressão da fiscalização e da ameaça da punição, tinham igualmente como ‘recompensa’ uma prerrogativa dada a todos os que obedeciam às normas da Fisicatura-mor. Adquiriam o direito de reclamar neste juízo quando alguém não lhes fazia o pagamento estipulado por sua assistência médica. Sabendo disso, Bento Joaquim, em 1817, não deixou passar em branco o fato de não ter recebido a quantia que havia convencionado com o preto forro Anacleto Antônio por o haver curado de dores reumáticas, depois de ter este andado "longos tempos em poder de cirurgiões". Não há registro sobre a solução dada ao caso, mas, se Anacleto Antônio não quisesse ou não pudesse pagar, a Fisicatura-mor expediria um mandato executivo para que se penhorasse seus bens. Assim, considerando ser mais eficiente e cômodo submeter-se formalmente às regras da Fisicatura-mor, se faziam tanta questão de que ele se licenciasse — caso contrário, poderia sofrer punições de multa, penhora e prisão —, Bento resolveu continuar seguindo as normas, pedindo licenças anualmente de 1816 a 1820. Licenciado, estaria livre da possibilidade de ser punido, poderia continuar trabalhando como quisesse e ainda teria a prerrogativa de recorrer ao juízo quando não fosse pago por seus serviços.
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    Não reconheceriam a autoridade da Fisicatura-mor para dispor sobre práticas de cura que há tempos exerciam em suas comunidades, para limitar as atividades terapêuticas que exerciam segundo suas concepções de doença e cura. Dessa forma, não se interessariam em obter um título da Fisicatura-mor. O pequeno número de oficializações também estava relacionado com o fato de que pelo interior do país, onde os terapeutas populares seriam maioria, muitas vezes a instituição deve ter permanecido desconhecida, pois a Fisicatura-mor não tinha funcionários suficientes para atuar em localidades mais afastadas.
    Na análise da relação entre a instituição e os terapeutas populares, deve-se ressaltar um aspecto da ação da Fisicatura-mor que também a diferenciava bastante da medicina social: o reconhecimento de que os terapeutas populares contavam com um saber legítimo e, por este efeito, o reconhecimento de suas concepções de doença e de cura. Mesmo sendo pouco marcante, naquela época, a diferença entre as medicinas populares e a mais acadêmica, principalmente em termos de tratamento, como a utilização de plantas nos medicamentos e a prática da sangria, provavelmente o significado de tais procedimentos para esses diferentes tipos de terapeutas não era o mesmo.
    Segundo o discurso da Fisicatura-mor, os terapeutas populares possuíam menos conhecimento, eram menos competentes. Dessa forma, suas atividades deveriam ser bem delimitadas e fiscalizadas. Mas a população em geral confiava em seus curadores. Em certos casos, via-os mesmo como mais competentes do que médicos e cirurgiões. Além disso, terapeutas acadêmicos eram pouco numerosos e cobravam caro por seus serviços.
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    Os terapeutas populares, por sua vez, nutriam concepções de doença e de cura mais afinadas com as da população, preocupando-se também com dimensões espirituais atribuídas como causas às enfermidades.
    A justificativa aceita pela Fisicatura-mor para a concessão de licenças aos curandeiros era a necessidade social destes por não haver pessoas mais qualificadas — médicos e cirurgiões — disponíveis, em certos lugares, para tratar da população. Realmente acontecia haver poucos médicos e cirurgiões em relação à população, ao passo que dos curandeiros dizia-se existirem em excesso, do ponto de vista dos primeiros. Assim, em lugar de apenas pensar que os curandeiros tinham bastante clientela porque existiam poucos médicos, pode-se considerar também que a existência de curandeiros em número razoável para atender à população restringiria a atuação dos médicos. Afinal, voltando aos atestados, viu-se algumas pessoas excederem-se por assim dizer na defesa dos curandeiros, argumentando perante a Fisicatura-mor que a competência destes era superior à de muitos ‘professores’, o que transgredia a hierarquia observada pela Fisicatura-mor. Os agentes populares de cura combatiam doenças de forma mais competente porque conheciam medicamentos eficazes para tratar os enfermos, atentando ao mesmo tempo para os problemas físicos e espirituais. Dessa forma, os doentes "deixados dos professores" também podem ser vistos como enfermos cujas moléstias não podiam ser tratadas pelos médicos, uma vez que as suas causas seriam de ordem sobrenatural. Por isso, Bento Joaquim considerava que suas atividades não prejudicariam médicos e cirurgiões, pois seus conhecimentos não concorreriam com os destes, já que não se aplicavam aos mesmos casos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Out 1998
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