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Aprendendo a ser médico: investigações antropológicas sobre a cultura moderna na prática hospitalar

Learning to be a doctor: anthropological research into the modern culture of hospital practice

LIVROS & REDES

Aprendendo a ser médico: investigações antropológicas sobre a cultura moderna na prática hospitalar

Learning to be a doctor: anthropological research into the modern culture of hospital practice

Cristiana Facchinetti

Psicanalista, Pesquisadora-Visitante do DEPES e professora do PPGHCS da Casa de Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4036 / sala 406 – Manguinhos 21040-361 Rio de Janeiro – RJ – Brasil cfac@coc.fiocruz.br

A cuidadosa etnografia do pensamento e das práticas da residência médica feita por Octavio Bonet em um hospital da Província de Buenos Aires, que resultou em sua dissertação de mestrado, está inserida em uma reflexão mais ampla a respeito da cultura ocidental moderna e traz à tona as tensões em torno da objetividade e da subjetividade, que, como o autor demonstra (p. 22-44), constituem um dos seus pilares.

A modernidade se descortina entre o Renascimento e o século XVII com a descoberta do cogito cartesiano (1637) e com a tradição que a este se seguiu. Como ponto de partida, essa tradição tomou a certeza do sujeito para acessar cognitivamente a realidade e construiu a ciência como um sistema de saber, concebida pelas ideologias do progresso como emancipação do homem frente à natureza e ao divino, fazendo-se marcar pelo centramento do sujeito no eu e na consciência.

Como propôs Koyré (1973), o nascimento da ciência moderna implicou uma reestruturação da metafísica ocidental e introduziu a maneira moderna de se ver o mundo. A partir dela, passou-se a pensar que os fenômenos não seriam imediatamente inteligíveis, e que o trabalho metódico da ciência consistiria em romper com o imediato para reconstruí-lo matematicamente. Com este objetivo, a experiência científica foi construída por meio de teorias abstratas e instrumentos matemáticos cuja finalidade era a de impor um distanciamento à vivência imediata do cientista, produzindo aí o sujeito epistêmico, desencarnado, desenraizado de sua cultura, de sua história e de sua própria existência, com vistas à objetivação da subjetividade. O homem passou a ter a tarefa de realizar-se como sujeito racional.

Ao recalcar a exigência metafísica da existência, a racionalidade acabou por eliminar da consciência a dimensão subjetiva, promovendo um ideal de objetividade que acabava por objetivar o próprio indivíduo. Assim, o discurso da ciência passou a ocupar a posição estratégica de produção e agenciamento da verdade, tornando a razão científica a marca distintiva do homem.

Entretanto, a produção do indivíduo como valor implicou também a introdução de contradições e o desencadear das forças imprevisíveis do recalcado, o que foi inicialmente delineado por uma teoria dos sentimentos e de uma estética a partir do século XVII e produziu ao longo do século XVIII e XIX o romantismo e uma crítica à modernidade efetiva, opondo-se à objetivação do sujeito por parte de uma razão fundada no próprio sujeito (Birman, 2000). Como o recalcado, a subjetividade retornava agora por meio de uma antropologia do sensível (Feuerbach), da interioridade (Kierkegaard) e do pulsional (Nietzsche e Freud). Neste cenário, o eu e a consciência passaram a ser pensados não mais como um dado a priori, mas como destino de um processo polissêmico, marcado por forças que perpassavam os homens, ultrapassando sua consciência e vontade, regulando suas relações com seus outros e produzindo um sujeito aberto para o novo, mergulhado pela sua cultura e história em um mundo em constante lugar de revelação. Essa oposição entre o racional e o expressivo foi a personagem que desempenhou o desenvolvimento do drama dialético da modernidade (Drawin, 1995).

A separação entre o saber científico e o domínio dos afetos, divisão estabelecida como legítima pela modernidade e tomada como condição sine qua non para garantir a prática científica desde o século XVII, acabou por produzir as categorias problemáticas que são retomadas por Bonet em seu estudo etnológico sobre a biomedicina que, como uma das mais importantes instituições da cultura ocidental, permite uma compreensão precisa da sociedade moderna. De fato, a partir de Becker, Bonet nos apresenta a biomedicina como o protótipo das profissões científicas na cultura ocidental (p.16), possuindo um corpo de conhecimentos esotéricos e difíceis considerado necessário para o funcionamento da sociedade, na medida em que se constitui como o monopólio para tratar da saúde e da doença.

O autor analisa em seu processo ritualístico de passagem para o mundo profissional médico, e assim nos auxilia a mergulhar em suas encruzilhadas frente à necessidade de adaptação e de aferição de competência. Analisa também seus impulsos de cuidado, intuição e afeto, próprios do campo do sentir, mostrando a tensão estruturante que se estabelece cotidianamente entre a disposição iluminista da objetividade na transformação dos pacientes em objeto e a disposição da medicina romântica, que retoma o veio da subjetividade e dos afetos, diluindo as barreiras entre sujeito e objeto, entre paciente e seu médico. Bom exemplo disso é a ida do residente do primeiro ano ao enterro de seu paciente, motivo de reprovação moral por parte do residente terceiranista, que afirma ser perigoso para o médico aproximar-se em demasia e se envolver com seus pacientes (p. 104-15). Essa experiência de conflito, como outras relatadas na pesquisa, se expressa sobretudo nos residentes-aprendizes, que, em seu processo de passagem, parecem viver mais profundamente o mal-estar de terem de se inscrever em uma condição profundamente marcada pela racionalidade universalista a que devem aceder e pela disposição terapêutica que os levou, em sua maioria, a trilhar o longo e penoso percurso ao hospital.

Não é apenas a escolha do objeto de estudo que traz contribuições importantes, mas também o campo escolhido. O hospital universitário traduz-se também como um locus privilegiado, na medida em que se apresenta como palco de reprodução do conhecimento técnico e das práticas a ele associadas que buscam, com a rotinização e seus protocolos, universalizar e homogeneizar diferenças, diluindo as tensões com as quais os residentes se defrontam diariamente. Desse modo, a pesquisa nos mostra como a constituição da biomedicina como disciplina científica exemplifica o processo de racionalização e individuação em nossa cultura desde o século XVI sem, contudo, deixar passar o que é particular ao contexto cultural da Argentina.

É nesta alternância entre o saber local da biomedicina em um hospital da Província de Buenos Aires e outro, o de uma etnografia feita por um antropólogo argentino treinado no Brasil (citado em Duarte, 2004), que vai se desdobrando o trabalho de Bonet. Por um lado, marcam-se as pretensões científicas de universalidade; por outro, a particularidade de um hospital na América do Sul, que tem de se haver com os protocolos delineados como meio de aferição da verdade médica e de comprovação dos dados, com diagnósticos capazes de uniformizar doentes em doenças, e com a realidade local. Essa realidade provoca o retorno da subjetividade, a flexibilidade no trato pessoal, a navegação social, as decisões não-protocolares para lidar com a falta de exames, com os problemas hierárquicos, políticos, burocráticos e administrativos. Aí também, mais uma vez, a dicotomia se instala, deixando espaço para pensar que, entre o 'como se faz' e o 'como se deve fazer' ciência, produz-se uma vez mais o retorno do recalcado. Surgem a pessoalidade e as decisões marcadas por questões de ordem prática e/ou subjetiva que reacendem a encenação do drama dialético entre saber e sentir, no qual a objetividade a todo tempo se desmancha, para então ser retomada como princípio.

O que o trabalho de Octavio Bonet nos oferece como referência principal, portanto, é essa tensão estruturante que marca os residentes, o observador e as práticas, demonstrando as contradições das representações da biomedicina que se apresentam como universais e triunfantes em um dado momento, para logo a seguir serem criticadas por sua 'frieza' e limites, para mais tarde serem novamente buscadas para dar fidedignidade às práticas ou rechaçadas como incapazes de dar conta da existência e do sofrimento.

Finalmente, vale ressaltar que a dicotomia entre os saberes estruturados como ciência e a subjetividade como mediação é explicitada no próprio fazer etnográfico e nas questões levantadas pela presença do antropólogo em meio às rotinas do hospital. Em vez de se colocar como externo ao objeto investigado, Bonet traz de forma recorrente os ecos das exigências racionalistas do 'fazer ciência' e da impossibilidade da neutralidade do antropólogo. Assim, as questões trazidas pela pesquisa prolongam-se no próprio método, reconduzindo o tema para o campo mais amplo do 'fazer ciência' na cultura ocidental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Birman, Joel 2000 A psicanálise e a crítica da modernidade. In: Herzog, Regina (org.)A psicanálise e o pensamento moderno. Rio de Janeiro: Contra Capa. p. 109-30.

Descartes, René 1949 Discours de la méthode. [1637] Oeuvres et Lettres de Descartes. Paris: Pléiade.

Duarte, Luis Fernando Dias 2004 Apresentação. In: Bonet, Octávio. Saber e sentir: uma etnografia da aprendizagem da biomedicina. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz. p. VII-XIX. 2004 (Coleção Antropologia & Saúde.)

Koyré, Alexander 1973 Du monde clos à l'univers infini. Paris: Gallimard.

Drawin, Carlos Roberto 1995 O destino do sujeito na dialética da modernidade.Síntese, v. XXII, n. 71, p. 489-511.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
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