Resumo
O artigo apresenta um panorama das pesquisas com células-tronco no Brasil, a partir de levantamento bibliográfico de artigos de pesquisadores brasileiros, publicados no início do século XXI. A análise das produções evidenciou três eixos centrais na abordagem da temática: o âmbito de fomentos destinados a investigações brasileiras com células-tronco; os estudos pré-clínicos e clínicos realizados no país; e análises socioantropológicas com foco em questões éticas e legais. O artigo aponta aspectos controversos na construção desse campo científico, especialmente vinculados à mídia, como propagadora de valores e determinadas representações sociais, com destaque para novas modalidades de esperança. Nesse cenário de incertezas, encontram-se enfermos e familiares, mobilizados pelas promessas da “medicina do futuro”.
células-tronco; terapia celular; medicina regenerativa
Abstract
Based on a review of the literature published in the early twenty-first century by Brazilian researchers, the article offers an overview of stem cell research in Brazil. Three central topics were detected in these papers: (1) the funding of stem cell research in Brazil; (2) preclinical and clinical trials in Brazil; and (3) social anthropological analysis focused on ethical and legal matters. Our review identifies controversial questions in the construction of this scientific field, especially issues involving the media as a disseminator of values and of certain social representations, where new kinds of hope figure large. Within this climate of uncertainty, we find patients and their families energized by the promises of the “medicine of the future.”
stem cells; cell therapy; regenerative medicine
Desde o século XX, os genes estão situados entre os atores biotecnológicos privilegiados no que concerne à produção de valor do homem, por ser considerados repositórios de potencialidades humanas. Na virada do século XXI, as pesquisas com células-tronco ganharam força, com a promessa de uma medicina regenerativa, capaz de superar os desafios do adoecer e do envelhecimento, mediante uma fonte potencialmente ilimitada de tecidos para transplantes (Pereira, 2008). A capacidade dessas células de se transformar em diferentes tipos de tecidos – ossos, sangue, nervos, músculos – conduziu à produção de expectativas em torno da possibilidade de ações terapêuticas dirigidas a doenças neurológicas degenerativas, cardiovasculares, traumas na medula espinhal, entre outras. As células-tronco passaram a representar um manancial renovável de saúde, convertendo-se em matéria orgânica com valor de mercado, com direitos de propriedade intelectual e inovação tecnológica (Waldby, 2002; Rose, 2006). Sob o guarda-chuva de uma medicina que se pretende personalizada, há uma aposta em aplicações terapêuticas “sob medida”, genética e imunologicamente direcionadas para cada pessoa, com o objetivo final de ampliar a eficácia de tratamentos celulares.
Este artigo apresenta um panorama da pesquisa com células-tronco no Brasil, a partir de levantamento bibliográfico de artigos de autoria de pesquisadores brasileiros, publicados no início deste século. A proposta central do estudo consistiu em investigar a constituição de um novo campo científico, mediante a análise do conteúdo divulgado pelos principais pesquisadores envolvidos com essa biotecnologia no Brasil. Algumas das questões que nortearam a leitura dessas produções foram: Qual é o conteúdo privilegiado em cada publicação? Quais os temas considerados mais relevantes? Quais os mais recorrentes?
As células-tronco são definidas por sua grande capacidade de proliferação e autorrenovação (Alves, Muotri, 2014). Os cientistas as dividem em dois grandes grupos: as células-tronco embrionárias e as células-tronco adultas (Rehen, Paulsen, 2007). As primeiras derivam da massa celular de um embrião, com quatro ou cinco dias de fecundação, e são capazes de originar muitas variedades de células e tecidos. As células-tronco adultas são constituídas em estágios posteriores do desenvolvimento e encontram-se em regiões diferenciadas do corpo, podendo gerar subtipos celulares de tecidos dos quais derivam.
As pesquisas com células-tronco embrionárias surgiram no início da década de 1980, nos EUA. A constatação da capacidade de transformação dessas células em variados tipos celulares mobilizou a comunidade científica em relação à aplicação terapêutica em humanos. No entanto, entraves éticos e legais vinculados ao uso de embriões criados para fins de reprodução assistida limitaram os avanços desse campo (Diniz, Avelino, 2009).
Os transplantes de células-tronco adultas são realizados desde os anos 1950, como o de medula óssea. As pesquisas com células-tronco adultas avançaram com a descoberta das denominadas células-tronco tecido-específicas, que dão origem a células do tecido e do órgão de que derivam. Atualmente é possível reconhecer a presença dessas células no fígado, na polpa dentária, nos vasos sanguíneos, no músculo esquelético, no pâncreas, no epitélio da pele e do sistema digestivo, na córnea, na retina, na medula espinhal e no cérebro (Rehen, Paulsen, 2007).
Grande parte dos investimentos alocados em pesquisas com células-tronco destinam-se atualmente a alternativas para produção de células pluripotentes. Em 2012, o prêmio Nobel de medicina foi concedido ao cientista japonês Shinya Yamanaka e ao britânico John Gurden. Yamanaka foi o primeiro pesquisador a obter células-tronco pluripotentes sem uso de embriões. Com sua equipe conseguiu reprogramar células extraídas da pele de camundongos, inserindo fatores associados à pluripotencialidade, de modo a originar as chamadas células-tronco pluripotentes induzidas (induced pluripotent stemcells, iPS). Com o uso dessa técnica, as células extraídas da pessoa podem ser transformadas em células do tipo “embrionárias”, capazes de diferenciação em distintos tipos de tecido. A seguir, é realizado transplante das células reprogramadas para o próprio doente, intervenção que os pesquisadores reconhecem como uma “medicina personalizada” (Rehen, 29 abr. 2011; Pereira, 2013).
A descoberta das células iPS alterou o panorama desse campo de pesquisa, pela oferta de alternativas inovadoras para superar as barreiras que limitam o sucesso terapêutico das células-tronco embrionárias (Rehen, 29 abr. 2011). A primeira consiste na dificuldade de obtenção de células embrionárias, por questões éticas e legais, uma vez que são isoladas de embriões que seriam descartados por clínicas de fertilização in vitro. O segundo obstáculo reside nos riscos de rejeição após transplantes. Como as células iPS são geradas a partir de tecidos da própria pessoa, a possibilidade de serem confundidas com células invasoras é muito reduzida. Atualmente as pesquisas com células iPS também contribuem na testagem de medicamentos, por permitir o estudo de sinais precoces de algumas doenças em laboratório.
As pesquisas com células-tronco dividem-se em três níveis sucessivos: básica, pré-clínica e clínica. A pesquisa básica consiste na identificação das células, seus mecanismos e potenciais. A fase pré-clínica envolve testes de potencialidade e segurança em animais. Na etapa clínica são realizados testes de segurança e compatibilidade em humanos. Pesquisadores do campo apontam dificuldades de empreender a passagem do âmbito das pesquisas básicas para ações terapêuticas efetivas. Os defensores da terapia celular apostam no sucesso dessa tecnologia regenerativa no enfrentamento de diversas vicissitudes, como envelhecimento, traumas e doenças crônico-degenerativas.
Em contrapartida, a análise das publicações de pesquisadores brasileiros revelou aspectos controversos no advento dessa biotecnologia, especialmente vinculados à tensão entre promessas e realidades, achados e expectativas. Nesse cenário de incertezas encontram-se enfermos e familiares, mobilizados por novas modalidades de esperança em torno das promessas da “medicina do futuro”.
As interrogações teóricas que norteiam este trabalho partem do campo de estudos sociais em biociências e ciências da vida, particularmente em diálogo com autores como Nikolas Rose e Carlos Novas, dedicados à análise de processos históricos e culturais que compõem e alicerçam a constituição de uma nova arena biopolítica e a produção de novas representações em torno do corpo, da vida e da saúde.
Sobre a metodologia e a análise
Com o objetivo de mapear as publicações do campo da terapia celular, foi empreendido levantamento bibliogáfico de artigos da base de dados Scielo, em português e inglês, a partir dos descritores “células-tronco” e stemcells, de autoria de pesquisadores brasileiros, publicados na primeira década deste século. Trata-se de estudo qualitativo, no qual foi utilizada análise de conteúdo como ferramenta metodológica. Ainda que esse instrumento não esgote o conjunto de questões concernentes ao que há de mais recente no campo de investigações sobre o tema no país, permite apontar características gerais, diferenças, semelhanças e peculiaridades.
Foram encontrados 68 artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais, indexados no Qualis Periódicos/Capes. Os artigos localizados durante o levantamento datavam de 2002 a 2010, podendo-se constatar um aumento expressivo de artigos publicados a partir de 2008, conforme Tabela 1:
O aumento do número de publicações científicas sobre a temática a partir de 2008 pode ser correlacionado com dois fatores – que serão descritos em tópicos seguintes deste texto: a revogação da Ação de Inconstitucionalidade em relação à Lei de Biossegurança e a criação dos Centros de Terapia Celular e da Rede Nacional de Terapia Celular, ambos nesse ano.
Para a redação deste texto, foram estudados artigos, livros e documentos sobre a temática publicados mais recentemente – 58 artigos analisados estão em revistas brasileiras, e dez em internacionais, conforme a Tabela 2.
Esse levantamento também incluiu um artigo publicado na revista Ciência Hoje, em 2004, por um importante pesquisador do campo da terapia celular no Brasil. Apesar de essa revista não estar indexada no Qualis Periódicos/Capes, trata-se de uma relevante fonte de divulgação científica para leigos, com critérios de qualidade reconhecidos. Os artigos nela publicados são submetidos à avaliação de pareceristas ad hoc, com produção privilegiada no cenário brasileiro, no que concerne a cada campo de investigação.
Conforme a Tabela 2, é possível constatar a alta prevalência de artigos publicados na Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia. Das 25 publicações, 14 são de 2009 e oito de 2010, anos em que a revista publicou suplementos especiais dedicados a discussões acerca da temática das pesquisas e terapias com células-tronco. A maior parte desses artigos aborda relatos e perspectivas de tratamentos com células-tronco derivadas da medula óssea e do sangue do cordão umbilical, para terapêutica de doenças cardíacas, oftalmológicas, reumáticas, doenças autoimunes, diabetes e leucemia. Cabe destacar que essa prevalência de publicações por médicos da área da hematologia e hemoterapia pode ser correlacionada com o fato de a utilização terapêutica de células-tronco ser, até o momento, restrita aos transplantes com células hematopoiéticas, isto é, células responsáveis pela formação e maturação de elementos do sangue. Todas as outras modalidades de terapia celular são consideradas experimentais pela comunidade científica, limitadas a ensaios clínicos com pacientes.
O exame desse material revelou que 33 artigos consistem em revisões da literatura sobre o campo da terapia celular; 18 são referentes a pesquisas experimentais (pré-clínicas e clínicas) desenvolvidas no Brasil; 11 apresentam uma perspectiva de análise socioantropológica sobre o assunto; e sete são editoriais.
Dos sete editoriais, quatro estão publicados na Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, sendo que dois apresentam discussões ampliadas sobre o advento da terapia celular como a “medicina do futuro” (Ruiz, 2005; Ruiz, Bydlowski, Seber, 2009).
A análise das publicações evidenciou três eixos centrais, em torno dos quais a temática é abordada: (1) o âmbito de fomentos destinados a pesquisas brasileiras com células-tronco; (2) estudos pré-clínicos e clínicos realizados no país, com destaque para publicações acerca do Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular em Cardiomiopatias (MiHeart Study) (Tura et al., 2007); e (3) análises socioantropológicas sobre o campo da terapia celular, com foco nos debates éticos e legais, em torno das aplicações dessa tecnologia inovadora. Esses tópicos constituem os aspectos privilegiados nas produções analisadas. Assim, são também os eixos norteadores deste artigo.
Fomentos destinados a pesquisas com células-tronco no Brasil
O envelhecimento populacional e o consequente incremento de doenças degenerativas constituem a principal causa do aumento de encargos sociais, o que acarreta gastos crescentes com assistência médica. É nesse cenário argumentativo que a medicina regenerativa ganhou visibilidade, com o objetivo de ampliar a capacidade de regeneração de tecidos lesados, pelo uso de terapias com células-tronco.
A busca de métodos para o reparo de problemas biológicos causados por lesões, doenças ou pelo envelhecimento tem sido impulsionada pela descoberta de células-tronco com capacidade de autorreplicação e de diferenciação em diversos tipos celulares, que abriram caminhos para sua utilização no reparo de tecidos e órgãos lesados (Soares, Santos, 2008, p.17).
O desenvolvimento de pesquisas com células-tronco no Brasil teve início em 2001, com a criação do Instituto Milênio de Bioengenharia Tecidual, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. O objetivo desse instituto consistiu no fortalecimento acadêmico e tecnológico de instituições brasileiras, para produção de abordagens terapêuticas inovadoras, com uso de tecnologia celular para reparo de órgãos e tecidos. Conforme aponta Luna (2012), a formação dessa instituição constituiu um processo de estabelecimento de uma rede de caráter transdiciplinar, com foco na articulação e cooperação entre laboratórios, profissionais e pesquisadores de diversas especialidades, e nos fluxos de recursos materiais e simbólicos – financiamentos, equipamentos e força de trabalho –, com o objetivo de favorecer, em última instância, a produção de inovação.
A partir de então, diversos grupos de pesquisa, equipes de universidades, hospitais públicos e privados – como a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto Nacional de Cardiologia, o Instituto Nacional do Câncer e o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia – congregam esforços para o desenvolvimento do que atualmente é nomeado medicina regenerativa.
Em 2004, o Ministério da Saúde, em convergência com o esforço iniciado pelo Instituto Milênio de Bioengenharia Tecidual, com as potencialidades na área da pesquisa da terapia celular internacional, lançou um edital para fomentar o Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular em Cardiopatias. Essa iniciativa revelava, então, o ímpeto de cientistas brasileiros em prol da realização de ensaios clínicos no país.
Um fato que merece destaque é a aprovação pelo Congresso Nacional, em março de 2005, da Lei de Biossegurança (Brasil, 28 mar. 2005), que autorizou, para fins de pesquisa, o uso de células-tronco obtidas de embriões humanos. A decisão foi contestada naquele mesmo ano, com abertura de processo judicial. Por fim, em 2008, o Supremo Tribunal Federal aprovou a continuidade das pesquisas, restritas à utilização de embriões congelados há três anos, que seriam descartados por clínicas de fertilização in vitro.
O apelo mundial para pesquisas com células-tronco embrionárias pressionou governos, e, recentemente, o Congresso Brasileiro legislou sobre o tema. Os Ministérios de Ciências e Tecnologia e o da Saúde do Brasil há poucos meses também abriram linhas de crédito para pesquisas na área de cardiologia e acenam para ensaios clínicos e pré-clínicos para doenças incuráveis (Ruiz, 2005, p.4).
Em 2005, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Ministério da Saúde divulgaram um edital com valor superior a dez milhões de reais, com o objetivo de apoiar a formação e o fortalecimento de grupos de pesquisa dedicados a procedimentos terapêuticos inovadores em terapia celular. Segundo dados do ministério (Brasil, 2010), dentre os 45 projetos aprovados, 47% eram pesquisas básicas, 29% investigações pré-clínicas e 24% ensaios clínicos. No que se refere ao tipo celular estudado, 87% dos projetos eram dirigidos à investigação de células-tronco adultas e ١٣٪ a estudos com células embrionárias.
Em 2008, o Ministério da Saúde lançou, novamente em parceria com o CNPq, outro edital para financiamento de projetos de pesquisa celular no país. O edital apoiou 52 projetos que abordavam o potencial terapêutico de células-tronco embrionárias, células-tronco pluripontencialmente induzidas (iPS) e/ou células-tronco adultas, para doenças neurológicas, hepáticas, renais, pulmonares, autoimunes, deficiências auditivas e visuais, lesões ósseas, musculares, dermatológicas, de nervos periféricos e outras. Do conjunto de propostas aprovadas, 32 consistiam em investigações pré-clínicas, 17 eram de pesquisa básica, e três eram ensaios clínicos.
No desenvolvimento da área no Brasil, outro marco relevante foi a iniciativa do Ministério da Saúde, ainda em 2008, de organizar uma chamada pública, em parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep/Ministério da Saúde) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), para a criação de Centros de Tecnologia Celular que produzissem diferentes tipos de células-tronco humanas.
Os esforços para consolidar esse campo de investigação propiciaram a formação da Rede Nacional de Terapia Celular, em 2008, por iniciativa do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, com apoio da Organização Pan-americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Atualmente, a rede é formada por oito Centros de Tecnologia Celular, localizados em cinco estados brasileiros, além de 52 laboratórios selecionados pelo CNPq. A criação desses centros integra o projeto de fortalecimento da articulação entre pesquisas básicas e ensaios pré-clínicos e clínicos, mediante a estruturação de um espaço comum, no qual cientistas e médicos, ideias e produtos possam circular e interagir.
O fôlego dos pesquisadores e o incentivo de instâncias oficiais em prol de investigações na área é determinante para o avanço de pesquisas passíveis de acarretar benefícios para a população, a partir de progressos no âmbito da medicina regenerativa. No entanto, esse território de estudos ainda é iniciático. São necessários mais debates, pesquisas e regulações políticas sobre o tema entre pesquisadores, cientistas e médicos, além da sociedade em geral. Os tratamentos com células-tronco ainda não integram o arsenal terapêutico clinicamente comprovado, pois são considerados experimentais pela comunidade científica. O uso de células-tronco permanece restrito a pesquisas clínicas, exceto no caso de transplantes de medula óssea. Entetanto, esse dado não é capaz de reduzir as expectativas em torno da possibilidade de, a médio prazo, transformar o conhecimento proveniente de ensaios clínicos em terapêuticas acessíveis nos serviços de atenção à saúde, visando à melhoria de diferentes quadros patológicos.
A produção de novos materiais coloca a urgência de novas regulações, bem como a definição de parâmetros éticos, frente à ausência de consenso internacional sobre o tema. Outro impasse concerne à dimensão econômica e social, vinculada ao princípio de universalidade do Sistema Único de Saúde brasileiro, em face dos custos para realização dos ensaios clínicos atuais, principalmente com células personalizadas, ditas “sob medida”.
Em 2012, foi criada a Câmara Técnica de Terapias Celulares (Brasil, 13 dez. 2012), integrada por representantes do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, dos conselhos federais de medicina e de odontologia, além de duas associações de pacientes, com vistas à uniformização de práticas, informações e regulações. Essa formulação seguiu o modelo da União Europeia, que criou um comitê semelhante há cerca de sete anos.
Estudos pré-clínicos e clínicos no Brasil
Em 2004, o Ministério da Saúde lançou um edital que possibilitou o desenvolvimento do Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular em Cardiopatias. Esse estudo contempla quatro ensaios clínicos independentes, para diferentes tipos de cardiopatias, empreendidos em quatro instituições, de diferentes localidades: infarto agudo do miocárdio, na Universidade Federal do Rio de Janeiro; doença isquêmica crônica, no Instituto do Coração de São Paulo; miocardiopatia dilatada, no Instituto Nacional de Cardiologia do Rio de Janeiro; cardiomiopatia chagásica, na Fundação Oswaldo Cruz da Bahia. Os quatro ensaios são multicêntricos, randomizados, duplo-cego e placebo controlados (Tura et al., 2007), o que significa que consistem em experimentos conduzidos em dois ou mais centros de pesquisa, com protocolo comum, nos quais os sujeitos da pesquisa e os pesquisadores não sabem quem foi, aleatoriamente, escolhido para receber a terapia experimental ou quem está sob efeito placebo.
As terapias com células-tronco voltadas para doenças cardiovasculares têm sido investigadas em território brasileiro, tanto em modelos animais quanto em estudos clínicos com pacientes.
O impacto epidemiológico das doenças cardiovasculares é impressionante, sendo a principal causa de morte mundial desde meados da última década até as projeções para 2030. Assim, o investimento em linhas de pesquisa e ensaios clínicos com células-tronco é considerado estratégico por entidades públicas e privadas de diversos países (Schettert, 2008, p.15).
As cardiopatias têm sido alvo das terapias celulares desde o início das pesquisas, principalmente por se tratar da maior causa de morte em todo o mundo. Sendo assim, acredita-se que esta seja a área onde as terapias celulares encontram-se mais avançadas e com uma boa possibilidade de implantação nos serviços de saúde, desde que sejam realizados estudos mais bem controlados para comprovação da eficácia do tratamento (Lima, Soares, Santos, 2009, p.88).
Os resultados das pesquisas na área têm apontado a existência de alguma eficácia de células-tronco oriundas da medula óssea no tratamento de insuficiência cardíaca de origem isquêmica, além de um potencial uso para outras cardiopatias. Nesse contexto, destacam-se as motivações privilegiadas de pesquisadores brasileiros para a condição crônica da doença de Chagas, pois esse quadro não conta com outras possibilidades terapêuticas, além do transplante cardíaco (Soares, Santos, 2008).
No Brasil, os grandes focos nas cardiomiopatias são a cardiomiopatia chagásica e isquêmica. Elas produzem e impõem um ônus socioeconômico extremamente grande para o sistema de saúde do País (Lima, Soares, Santos, 2009, p.88).
A miocardiopatia chagásica é uma das principais causas de insuficiência cardíaca na América Latina e sua apresentação clínica é semelhante a outras formas de miocardiopatia dilatada. ... O modelo da doença de Chagas é particularmente atraente para o emprego da terapia com células-tronco (Vilas-Boas et al., 2004, p.182).
O grupo de pesquisa de Soares e Santos (2008) relatou um estudo clínico pioneiro, desenvolvido na cidade de Salvador, na Bahia, que envolveu trinta pacientes com insuficiência cardíaca de etiologia chagásica. Seus resultados apontam ausência de observação de efeitos adversos, o que indica tratar-se de procedimento seguro. Rossi e Borojevic (2009) ressaltam que, embora uma metanálise dos resultados publicados na literatura tenha sugerido melhora da função cardíaca, ela é discreta. Acrescente-se que, em alguns casos, não se observou qualquer efeito. Os autores enfatizam a importância de reflexão acerca dos resultados discrepantes, a partir de novas pesquisas.
Dentre os artigos experimentais analisados, o estudo de Mastropietro et al. (2010) se destaca, dada a importância de seus resultados, se consideradas as condições psicossociais dos pacientes que recebem transplante de células-tronco. Instrumentos para avaliação socioeconômica e entrevistas sobre recuperação pós-transplante indicaram nexos entre renda, trabalho e qualidade de vida de pacientes submetidos a transplante de células-tronco. Os resultados apontam que os enfermos investigados com renda acima de dois salários mínimos apresentaram índices mais elevados no domínio da saúde mental e no escore total de qualidade de vida, além de se sentirem mais capazes de realizar atividades da vida diária. Os autores referem que as condições de pobreza depreciam a qualidade de vida, o sentimento de competência na vida pessoal e o ajustamento psicológico – o que pode elevar os riscos inerentes do transplante. Eles sugerem que médicos envolvidos nesse tipo de terapia considerem essas variáveis psicossociais.
Não só a qualidade de vida, como também o sentimento de competência pessoal e a aquisição de um melhor ajustamento psicológico, estão fortemente associados com a renda familiar. Esse achado sugere maior atenção aos fatores socioeconômicos. Para reduzir o impacto desses fatores, são necessárias demandas da equipe multiprofissional constituída pelos médicos, enfermeiros, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social, fisioterapeuta, dentista, suporte familiar e comunitário (Mastropietro et al., 2010, p.103).
De acordo com dados do Ministério da Saúde, foi alocado ao Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular em Cardiopatias o montante mais elevado de recursos para um projeto de pesquisa clínica no Brasil, com valor superior a R$13 milhões. Esse projeto consiste no maior estudo de terapia celular sobre cardiopatias financiado no mundo, no que concerne ao número de pacientes (1.200) e de instituições envolvidas (66). A extensão do estudo, que recorta o país de norte a sul, contribui para que o Brasil se destaque no cenário internacional de pesquisas celulares.
Apesar de as cardiopatias ocuparem posição privilegiada no âmbito da pesquisa com células-tronco no Brasil, outras patologias também recebem atenção e dedicação acadêmica, como doenças neurológicas (Teive et al., 2008; Muotri, 2010), autoimunes (Voltarelli, 2002), diabetes melito (Voltarelli et al., 2009), doenças oftalmológicas (Siqueira, 2009), pulmonares (Ribeiro-Paes et al., 2009), entre outras.
Em artigo publicado em 2004, Radovan Borojevic (2004, p.39), reconhecido pesquisador da área, observa a tensão entre as promessas e as realidades em torno das expectativas em relação aos ensaios clínicos. O autor destaca o papel da mídia como agente de propagação da esperança:
A exposição pública pode ser desejável, já que a mobilização da opinião é capaz de influir nas prioridades de geração de conhecimento, formação de recursos humanos, transferência de conhecimentos científicos para aplicação médica e melhora da qualidade de vida da população. Pode também ser perigosa, por gerar esperança exacerbada e injustificada, criando expectativas desproporcionais e mobilizando a sociedade a trilhar caminhos nem sempre justos ou seguir propostas nem sempre honestas.
Essa intensa e crescente mobilização social, resultante da divulgação e promoção de informações precoces sobre as pesquisas com células-tronco, é um aspecto privilegiado por diversos autores. Um exemplo dessa mobilização reside na expansão do movimento conhecido como “turismo de células-tronco”, que consiste no trânsito de enfermos entre fronteiras intercontinentais, na busca de novas oportunidades de tratamento experimental (Lindvall, Hyun, 2009; Knowles, 2010). O aumento progressivo do comércio de novas biotecnologias em países nos quais há pouca ou nenhuma regulação por parte do Estado – como China, Cingapura, Rússia, Índia, Turquia, Alemanha e México – preocupa os pesquisadores do campo.
Os principais cientistas brasileiros são rigorosos ao afirmar que, exceto no caso de transplantes com células-tronco da medula óssea, a maior parte dos procedimentos é experimental e seus riscos permanecem desconhecidos (Rehen, 29 jul. 2011; Pereira, 2013). Ainda, de acordo com os pesquisadores brasileiros, o que há de mais avançado até o momento são estudos em fase de aplicação em seres humanos, fato que não reduz o entusiasmo e as expectativas associadas ao avanço dessa tecnologia inovadora.
No objetivo e desejo de diminuir o sofrimento e, quando possível, afastar a morte, a medicina descobre novas propostas de procedimentos terapêuticos em momentos inovadores da evolução das ciências. Quanta esperança para os que necessitam curar a doença, diminuir a dor, voltar a uma vida normal! Quanta esperança para os que desejam ultrapassar os limites do tempo, do envelhecimento e da perda de qualidade da vida, da morte física inexorável! As terapias celulares estão na moda. Elas prometem, pelo menos parcialmente, propor soluções para esses desafios (Borojevic, 2004, p.37).
Pereira (2008) aponta ainda a importância do uso de células-tronco para a saúde pública brasileira, ressaltando o marco da criação do primeiro banco público de sangue de cordão umbilical para fins da terapia celular, pelo Instituto Nacional do Câncer, em 2001. A cientista defende a relevância desses bancos, para que seja possível contemplar amostras que preservem a natureza diversificada dos brasileiros.
Análises socioantropológicas sobre o campo da terapia celular
Do conjunto de 68 artigos selecionados, 11 são de cunho socioantropológico, versando sobre diferentes temas. Diniz e Avelino (2009) empreendem uma análise comparativa entre leis governamentais de regulação da pesquisa com células-tronco embrionárias de diferentes países. A partir da análise de fontes oficiais disponíveis na internet, os autores demonstram a existência de uma tendência internacional a reconhecer a legitimidade ética da pesquisa científica com células embrionárias por marco legal, como em Brasil, Reino Unido, Espanha, Finlândia, França, Dinamarca e Suécia. A particularidade da Lei de Biossegurança brasileira consiste na determinação de que a pesquisa com embriões deve ser realizada preferencialmente com embriões inviáveis. Na maioria dos países investigados, diferente da lei brasileira, não se apresenta distinção entre embriões congelados e inviáveis.
O artigo de Segre (2004), anterior à promulgação da Lei de Biossegurança, debate as exigências de redefinição do momento de início da vida para o desenvolvimento de técnicas de reprodução assistida. O texto critica o “autoritarismo obscurantista” (p.259) de setores da sociedade que, com argumentos religiosos, dificulta o avanço científico, comprometendo a meta de obtenção de melhor qualidade de vida para muitos que poderiam se beneficiar de pesquisas com células-tronco embrionárias.
Por isso, consideramos que não devemos aprioristicamente temê-las [as técnicas para uso de células embrionárias para pesquisa], e sim monitorar cuidadosamente a sua aplicação ... A possibilidade de se tratar doenças como leucemias, mal de Parkinson, Alzheimer, a par de se poder desenvolver órgãos que poderão ser utilizados em transplantes, é uma perspectiva alentadora no sentido de melhorar a qualidade e alongar o tempo de vida de muitas pessoas (Segre, 2004, p.260).
Por outro lado, Gallian (2005) chama atenção para argumentos que evocam o alarde provocado pelas investigações com células-tronco embrionárias. O autor enfatiza a existência de dificuldades de sucesso terapêutico em pesquisas com animais, além de apontar o quanto as investigações refletem um entusiasmo cego da cobertura do “evento Dolly” (p.255). Para o autor, não há justificativa para o clima de euforia difundido pela mídia. Os primeiros beneficiários da autorização legal dessas pesquisas no Brasil foram clínicas de reprodução assistida, com seus estoques de embriões congelados. Assim, nos bastidores desse espetáculo prometido pelas células-tronco, apresentam-se concepções tecnicistas da ciência para justificar o avanço científico.
Cesarino (2007) aborda o tema sob a perspectiva jurídica. Essa autora comparou os debates e as legislações britânica e brasileira de regulamentação de pesquisas embriológicas e reprodução assistida. A autora ressalta o quanto, no contexto britânico, as leis foram precedidas e seguidas por intensos debates éticos. No cenário brasileiro, a aprovação resultou da pressão de interessados na aprovação das duas biotecnologias.
Luna (2007a, 2007b, 2008, 2010) publicou diversos artigos sobre a temática das células-tronco, no período analisado. Em “A personalização do embrião humano” (Luna, 2007a), a autora analisa as representações de embrião e feto humanos, em discursos de profissionais dedicados à reprodução assistida e em textos publicados na mídia, no momento que antecedeu e ultrapassou o ciclo de eventos no Poder Legislativo relacionado à aprovação da Lei de Biossegurança. As narrativas dos entrevistados enfatizaram os marcos físicos da atribuição da noção de pessoa ao embrião. A pesquisadora observou a existência e o uso de argumentações, de um lado, religiosas e, de outro lado, científicas, sobretudo no que concerne à legitimação dos posicionamentos de cada grupo.
Em outro artigo, Luna (2008) aborda os aspectos religiosos em contexto médico de investigações com células-tronco. Como o Brasil é, até o momento, um país de população em sua maioria católica, a autora investigou a adesão de pesquisadores e doentes entrevistados à interpretação do Vaticano, que se opõe a qualquer manipulação do embrião humano, por considerá-lo vida. Nos dois grupos houve ampla maioria de apoiadores do uso de embriões nos termos propostos pela Lei de Biossegurança: “Não se verificou correlação linear direta entre pertencimento religioso e a opinião sobre a pesquisa com células embrionárias: os entrevistados contrários ou indecisos com respeito a essa manipulação eram católicos não praticantes ou sem religião” (p.174).
Dentre os textos de cunho sociocultural examinados, destaca-se o artigo de Oliveira Junior (2009), que apresenta argumentos filosóficos, crenças religiosas e princípios da bioética. O pano de fundo religioso do artigo é demonstrado em diversas passagens, como:
A grandeza do ato, em poder o ser humano realizar esta captação e sequencial transferência, vem a ser um demonstrativo da infinita sabedoria do Criador ... Mas para aperfeiçoar ainda mais o ser humano, o Criador alojou as células virgens, verdadeiros soldados de reserva, como um autêntico estepe, na medula óssea, disponíveis a qualquer tempo (Oliveira Junior, 2009, p.161).
O autor defende as pesquisas com células-tronco embrionárias, desde que respeitados os princípios éticos e legais, como assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido. Dessa forma, para ele seria possível um “caminho coroado de êxito pela medicina regenerativa” (Oliveira Junior, 2009, p.163).
Fernandes (2008) parte da ideia de que o campo de estudos das células-tronco contém um relevante debate, concernente à esfera da bioética. O autor questiona a posse do material doado para clínicas de reprodução assistida, advogando em prol do não patenteamento das células-tronco humanas. Para ele, a preservação dos direitos de propriedade não é útil à promoção do bem-estar social e pode dificultar o acesso a possíveis resultados e terapias. A alternativa considerada adequada é a criação de um fundo de pesquisas mundial para o desenvolvimento de pesquisas, sobretudo com células embrionárias, como forma de evitar o patenteamento e outros meios de apropriação privada. O reconhecimento da autoria intelectual seria concedido aos cientistas, bem como a valorização social de sua contribuição.
Controvérsias
A partir das análises empreendidas, é possível apontar alguns aspectos polêmicos nesse campo de investigação, especialmente decorrentes do fato de as pesquisas com células-tronco embrionárias se tornarem objeto de debates morais. Certos ingredientes das controvérsias merecem destaque, como a divulgação de pesquisas celulares pela mídia leiga.
Como aponta Luna (2012), as células-tronco têm sido alvo da atenção pública, uma vez que seu uso traria “promessas de cura” para doenças sem tratamentos eficazes. Nesse contexto, a mídia exerce grande influência ao divulgar, com frequência, resultados positivos de terapias experimentais com células-tronco em seres humanos.
Um artigo recentemente publicado (Almeida, Dal’Col, Massarani, 2013) apresenta a controvérsia no telejornalismo brasileiro, a partir de um estudo sobre a divulgação das células-tronco, suas pesquisas e resultados. Nessa investigação foi efetuado levantamento de notícias veiculadas no telejornal de maior audiência da rede aberta nacional, entre 2005 e 2008 – período que cobriu o debate jurídico acerca do uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa no país. As autoras apontam a forte polarização do debate em torno do tema, com ênfase para a tensão entre os que defendiam (especialmente, cientistas e pesquisadores) e os que atacavam (religiosos, em sua maioria) as investigações com células-tronco embrionárias. Por outro lado, destacam a prevalência de um tom de entusiasmo, mobilizado pelos apelos aos interesses em saúde, ao avanço tecnológico e progresso da ciência, revelando as complexas relações entre mídia, opiniões públicas e decisões políticas.
O advento e a expansão do acesso à internet proporcionaram uma democratização das informações, com dados sobre linhas de pesquisa e prováveis usos terapêuticos dessas células (Takeuchi, Tannuri, 2006), o que pode ser ilustrado pelo trecho: “Nos últimos anos, a terapia celular e as células-tronco adultas e embrionárias dominaram a mídia e as esperanças dos pacientes portadores de doenças incuráveis sem perspectivas de tratamento eficaz pelos meios convencionais atualmente estabelecidos” (Ruiz, Bydlowski, Seber, 2009, p.1).
Roza e Bizario (2008) consideram que as informações veiculadas pouco esclarecem sobre questões centrais ao campo da terapia celular e reforçam preconceitos religiosos e morais presentes na cultura latina. A promoção entusiasmada da terapia celular não atribui a devida importância ao fato de que ainda são necessários muitos passos até a obtenção de terapias aprovadas, controladas e acessíveis à população. Em meio a esse cenário de incertezas estão os enfermos e seus familiares, mobilizados pelas promessas da “medicina do futuro”, repercutindo na busca pela inclusão em ensaios clínicos experimentais, mediante a crescente judicialização de suas demandas.
Zatz (2009) ressalta a existência de clínicas, em países que não possuem regulação oficial para pesquisa com células-tronco, que oferecem tratamentos para variadas condições clínicas, como síndrome de Down, lesões medulares, acidente vascular cerebral e, até, calvície e rugas faciais de envelhecimento, contribuindo para o aumento progressivo do “turismo de células-tronco”. A autora destaca a dificuldade de definir o tempo necessário para que os estudos se desloquem da bancada para o leito do doente, do âmbito da pesquisa básica para terapia. Carvalho et al. (2009) concordam com a afirmativa de Zatz e enfatizam que, apesar dos avanços na ciência básica, ocorridos na última década, perguntas permanecem sem resposta, como os mecanismos de atuação da terapia celular. Embora os estudos se mostrem promissores até o momento, há uma demanda significativa de pesquisas pré-clínicas, antes que seja possível avançar nas testagens em pacientes.
Para Zatz (2009), a mídia poderia colaborar, divulgando a gratuidade na participação em ensaios clínicos. A autora advoga a ideia de que os resultados negativos de ensaios clínicos também deveriam ser publicados em periódicos científicos e em sites, consultados por enfermos na busca de informações. A divulgação de que a aplicabilidade clínica dessas novas modalidades terapêuticas permanece distante, para a maioria das doenças, consistiria em uma forma de proteção dos doentes, inclusive contra danos financeiros e psicológicos.
Considerações finais
O avanço das pesquisas com células-tronco, em âmbito global, reflete uma aposta otimista na medicina regenerativa, com a promessa de reparar e renovar o corpo, em caso de trauma, no envelhecimento e na deficiência. O protagonismo da terapia celular sustenta- se na possibilidade de desenvolver formas inovadoras de produção de uma saúde renovável ou menos vulnerável à ação predatória do tempo. O corpo, seus órgãos, tecidos e células converteram-se em matéria de aperfeiçoamento contínuo, capaz de articular diferentes grupos sociais em disputas por acesso a serviços médicos e tratamentos experimentais. Nesse contexto, a esperança torna-se um ingrediente da pesquisa científica, da política e do mercado.
Como enfatizam Novas e Rose (2004), a ciência constitui um horizonte junto ao qual são construídas formas de futuro, pelo engajamento em pesquisas científicas, direcionadas à produção de distintas modalidades de tecnologia e recursos terapêuticos. A esperança desempenha papel fundamental na remodelação de aspirações, ambições e desejos, de acordo com os objetivos biotecnológicos que se pretende alcançar, e afeta cada vez mais os indivíduos, que necessitam lidar com a incerteza e, até, com informações contraditórias sobre modalidades complexas de terapêuticas (Leibing et al., 2016). A promoção e a manutenção da esperança tornam-se elementos cruciais, no que concerne ao cuidado de pessoas com doenças que ameaçam a vida. Nesse cenário, é a crença na melhoria das condições humanas que alicerça o que poderíamos chamar de uma “indústria médica da esperança” (Leibing, Tournay, 2010; Menezes, 2013).
Novas (2006) destaca as distintas facetas da esperança em jogo na biopolítica contemporânea. Não se trata somente das expectativas de enfermos e familiares em relação ao tratamento e à cura de suas doenças, mas também de médicos, no desenvolvimento de recursos terapêuticos inovadores; de cientistas e pesquisadores, no avanço da ciência e no reconhecimento dos pares; e da indústria farmacêutica e das companhias biotecnológicas, de alcançar terapias passíveis de gerar lucros.
Como já revelava Rose (1989), novas autoridades estão agindo de forma sutil sobre as escolhas, os desejos e a conduta dos indivíduos, por meio das ansiedades, estimuladas pela atração que suas imagens de vida oferecem, e a persuasão inerente às suas verdades.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Out 2016 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2017
Histórico
-
Recebido
Mar 2015 -
Aceito
Out 2015