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Ideologia e formação de trabalhadores técnicos em saúde no Brasil e no Mercosul

The ideology and training of technical health workers in Brazil and Mercosur


PRONKO, Marcela et al. A formação de trabalhadores técnicos em saúde no Brasil e no Mercosul . Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. 302p.

O livro A formação de trabalhadores técnicos em saúde no Brasil e no Mercosul apresenta pesquisa liderada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da Fundação Oswaldo Cruz, desenvolvida entre abril de 2007 e março de 2009, sob a responsabilidade de Marcela Pronko, Anakeila Stauffer, Anamaria Corbo, Júlio César Lima e Renata Reis. O livro, publicado em 2011, resulta da pesquisa “A educação profissional em saúde no Brasil e nos países do Mercosul: perspectivas e limites para a formação integral de trabalhadores face aos desafios das políticas de saúde”, motivada pela indagação sobre a equivalência entre os perfis e a formação dos profissionais de nível técnico do setor de saúde nos países que compõem o Mercado Comum do Sul (Mercosul), uma vez que seu desenvolvimento facilitaria, entre outras coisas, a circulação de trabalhadores entre os estados membros. Além dos quatro integrantes que constituíam o Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – a pesquisa abrangeu a Bolívia e a Venezuela. A primeira, “pelo histórico de cooperação com a EPSJV” (p.30) e a segunda, de acordo com os autores, por estar próxima de se integrar ao bloco à época.

O objeto da pesquisa é sem dúvida relevante, pois envolve os interesses de um grande número de trabalhadores de nível técnico que migram de um país para outro do bloco, além de possibilitar o estabelecimento de parâmetros de comparação em relação à formação técnica oferecida pelos diferentes países, temas que afetam a qualidade dos serviços de saúde nos mesmos. Seu objeto também tem a ver com “o estabelecimento de reciprocidade de reconhecimento curricular e particularmente de mecanismos de habilitação e credenciamento” entre os membros do bloco (p.38). A pesquisa teve três objetivos específicos: (1) “identificar o número de cursos (tipos e modalidades), habilitações profissionais, instituições ofertantes da educação profissional em saúde no Brasil e nos países do Mercosul” (p.28); (2) “identificar as diretrizes teórico-metodológicas da educação profissional no Brasil e nos países do Mercosul”; e (3) “correlacionar mediante análise crítica, os resultados obtidos com os desafios nacionais e internacionais da educação profissional em saúde ‘na perspectiva da educação integral dos trabalhadores’” (p.29, destaques meus). Esse terceiro objetivo anuncia a perspectiva teórica e ideológica que orientou o livro – a ‘educação integral dos trabalhadores’ – embora esta não seja definida ou desenvolvida de forma explícita em nenhuma parte do livro.

O texto apenas insinua a perspectiva da ‘educação integral dos trabalhadores’ como se a mesma fosse uma das bases da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), na forma de “crítica ao modelo de treinamento como instrumento para tornar as pessoas aptas ao fazer pragmático e imediato, por um lado, e ao ensino transmissivo de conteúdo e descolado da realidade dos serviços, por outro” (p.37). Na página da RET-SUS não foi possível, entretanto, encontrar formulação semelhante. A definição pode ser encontrada em outro autor, que a apresenta como uma concepção marxista da formação dos trabalhadores que os leve “ao domínio científico e tecnológico do novo processo de produção em curso, e propicie as condições para a construção de uma estrutura social, na qual os trabalhadores se constituam como classe dirigente” ( Torres, 2012, p.204TORRES, Vladimir S. A educação pelo trabalho, a educação integral e a Escola Politécnica no Rio Grande do Sul. Revista de Ciências Humanas , Florianópolis, v.46, n.1, p.199-209. 2012. )

Na mesma linha, o texto do livro critica por diversas vezes a pedagogia das competências, que teria emergido do contexto do neoliberalismo, visando contribuir “para consolidar uma visão do ser humano como uma entidade programável e adaptável às circunstâncias” (p.87). Tal pedagogia “visa tornar a escola produtora de competências para o mercado” (p.88) e teria, ainda, uma perspectiva “funcionalista e condutivista [sic] da definição das competências profissionais” (p.95).

Segundo alguns autores, a pedagogia, ou modelo, das competências seria baseada no construtivismo e teria surgido na França na área do ensino técnico ( Ramos, 2001RAMOS, Marise N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez. 2001. ). Ricardo ( 2010, p.607RICARDO, Elio C. Discussão acerca do ensino por competências: problemas e alternativas. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, v.40, n.140, p.605-628. 2010. ) situa sua origem no mesmo país nas décadas de 1960 e 1970. Araujo (s.d.) situa sua origem no meio empresarial, associada à reestruturação produtiva iniciada no final dos anos 1970, havendo certo consenso na literatura em torno de envolver: ‘saber-fazer’ (técnica, perícia), experiência (saber prático), ‘saber-ser’ (qualidades pessoais). Verbete de dicionário da EPSJV, escrito por Ramos ( 2008RAMOS, Marise N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez. 2001. ), apresenta as competências “como o conjunto de conhecimentos, qualidades, capacidades e aptidões que habilitam o sujeito para a discussão, a consulta, a decisão de tudo o que concerne a um ofício”. Independente das interpretações, no Brasil, as competências entraram nas diretrizes curriculares para o ensino técnico e profissional a partir de 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso ( Brasil, 1999BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB n.4/99. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico. 1999. ), tendo sido mantidas no governo Lula ( Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB n.1, de 21 de janeiro de 2004. Estabelece diretrizes nacionais para a organização e a realização de estágio de alunos da educação profissional e do ensino médio, inclusive nas modalidades de educação especial e de educação de jovens e adultos. 2004. ; Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias (Orientações curriculares para o ensino médio, v. 2). Brasília: MEC/SEB. 2006. ). Atualmente, o Ministério da Educação promove diversas iniciativas baseadas na noção de competências, como o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) que não tiveram a oportunidade de frequentar a escola na idade regular ( Brasil, s.d.BRASIL. Ministério da Educação. Encceja. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12485&Itemid=784. Acesso em: 29 out. 2013. s.d.
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)

Apesar de sua adoção ampla, o livro mantém postura intransigente de crítica, como uma “noção imprecisa, originária do mundo da produção e de conotação individual, em detrimento da qualificação como construção e relação social, que entende que ... a qualificação do trabalhador é determinada também pela condição de classe, de gênero, de etnia” (p.121). A principal crítica é que as competências visariam formar o profissional apenas para o mercado, sem uma visão crítica de sua inserção na sociedade da qual faz parte. Parece inevitável perguntar se tal formação crítica não poderia constar como uma das competências dos cursos técnicos.

Os resultados da pesquisa apresentados no livro não seguem um critério comum que facilite a comparação entre os sistemas de formação de trabalhadores técnicos em saúde nos diferentes países analisados. Tal falta de critério comum decorre, segundo os autores, de “profundas diversidades e diferenças entre os seus países [do Mercosul]” (p.171). Os resultados relativos ao Brasil são apresentados em capítulo próprio, com estrutura e estilo narrativo específicos, além de distintos da apresentação relativa aos outros cinco estados. O segundo capítulo, relativo ao Brasil, ocupa mais de um terço do volume, alongando-se numa análise da conjuntura das décadas 1980 e 1990, cujo centro são as medidas liberais na economia e seus reflexos na educação profissional. Há trechos em que o texto revela certo maniqueísmo, segundo o qual houve políticas pautadas por um “neoliberalismo da terceira via” [sic] (p.92) – como o Plano Nacional de Formação Profissional – e outro “projeto ambicioso de formação profissional em saúde no âmbito nacional” (p.93) – como o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem. Esse capítulo é certamente o que apresenta informações mais consistentes dos resultados da pesquisa, excetuados certos arroubos de cunho político-ideológico.

O capítulo três trata dos demais países, seguindo uma estrutura descritiva comum e pouco analítica, precedida de uma longa e aparentemente desnecessária comparação entre as carac-terísticas gerais dos países – dimensão, população, organização do Estado, saúde, saneamento e economia (p.191-213). O texto não adotou padrões semelhantes para a apresentação da dimensão e características da força de trabalho no setor de saúde de cada um dos países. A relação entre profissionais e população, por exemplo, varia de um por mil habitantes para a Argentina e por dez mil para a Bolívia, Paraguai e Uruguai, não havendo números para a Venezuela, embora o espaço utilizado para tratar desse país seja 40% maior do que o dos outros.

Ao final da leitura, infelizmente, não se pode ter uma visão comparativa entre o número e modalidade de cursos (objetivo específico 1), nem em relação às diretrizes teórico-metodo-lógicas da educação profissional (objetivo específico 2), muito menos em relação ao ambicioso terceiro e último objetivo específico da pesquisa: “correlacionar mediante análise crítica, os resultados obtidos com os desafios nacionais e internacionais da educação profissional em saúde ‘na perspectiva da educação integral dos trabalhadores’”. Com relação a este último objetivo, o texto conclui com novo ataque à pedagogia de competências adotada no Brasil e em outros países (quais?), modelo “voltado para o mercado de trabalho, distanciando-se assim de uma perspectiva de formação integral desses trabalhadores” (p.276-277), que é mais um pressuposto do que uma conclusão da pesquisa.

REFERÊNCIAS

  • ARAUJO, Ronaldo M.L. As referências da pedagogia das competências . Disponível em: http://www.ufpa.br/ce/gepte/imagens/artigos/as%20inspiracoes%20do%20uso%20da%20nocao%20de%20cpt%20-%20ufsc.pdf. Acesso em: 30 set. 2012. s.d.
    » http://www.ufpa.br/ce/gepte/imagens/artigos/as%20inspiracoes%20do%20uso%20da%20nocao%20de%20cpt%20-%20ufsc.pdf
  • BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias (Orientações curriculares para o ensino médio, v. 2). Brasília: MEC/SEB. 2006.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB n.1, de 21 de janeiro de 2004. Estabelece diretrizes nacionais para a organização e a realização de estágio de alunos da educação profissional e do ensino médio, inclusive nas modalidades de educação especial e de educação de jovens e adultos. 2004.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB n.4/99. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico. 1999.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Encceja. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12485&Itemid=784. Acesso em: 29 out. 2013. s.d.
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  • RAMOS, Marise N. Pedagogia das competências. In: Pereira, Isabel Brasil; Lima, Júlio César (Org.). Dicionário da educação profissional em saúde . Rio de Janeiro: EPSJV. 2008. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/pedcom.html. Acesso em: 30 set. 2012. 2008.
    » http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/pedcom.html
  • RAMOS, Marise N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez. 2001.
  • RICARDO, Elio C. Discussão acerca do ensino por competências: problemas e alternativas. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, v.40, n.140, p.605-628. 2010.
  • TORRES, Vladimir S. A educação pelo trabalho, a educação integral e a Escola Politécnica no Rio Grande do Sul. Revista de Ciências Humanas , Florianópolis, v.46, n.1, p.199-209. 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2013
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