Open-access Carta dos editores

CARTA DOS EDITORES

História Ciências Saúde—Manguinbos reúne neste suplemento textos escritos originalmente para o seminário Visões da Amazônia: Cultura, Ciência e Saúde, realizado em março de 1999, no Rio de Janeiro, no Espaço Cultural dos Correios, sob a coordenação da Casa de Oswaldo Cruz e do Centro de Pesquisas Leônidas e Maria Deane (Escritório da Fiocruz na Amazônia), com o apoio do CNPq e da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco)..

Depois de milhares de anos de ocupação humana "nativa", extensa e diversificada, a Amazônia tornou-se questão obrigatória para a nacionalidade brasileira e para o mundo globalizado nesta virada de milênio. Objeto de curiosidade, investigação, imaginação ou exploração desde o século XVI, de parte de viajantes, cientistas, comerciantes, sertanistas, escritores, sanitaristas e engenheiros, o universo amazônico começou a adquirir maior visibilidade nacional e mundial na transição do século XIX para o XX no auge do ciclo da borracha.

Foi então visitado por Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e outros cientistas do Instituto de Manguinhos que revelaram aos brasileiros do Centro-Sul aquela imensa porção do Brasil, tão cheia de contrastes, onde a riqueza econômica e a exuberância dos ecossistemas conviviam com assombrosa pobreza e doenças gravíssimas. O "inferno verde" descrito por Alberto Rangel, ou o outro "sertão" descortinado por Euclides da Cunha invariavelmente surpreendiam os visitantes, fossem eles brasileiros de outras regiões ou estrangeiros. Cândido Mariano da Silva Rondon, em sua marcha para o oeste, foi ao encontro das diversas comunidades indígenas, procurando atenuar os vorazes ensaios de modernidade. A proposta de incorporar as gentes e terras amazônicas ao processo civilizatório estava em sintonia com o tempo nacionalista da Primeira República.

Os anos dourados da borracha se foram, interrompidos apenas por um breve alento durante a Segunda Guerra Mundial. Só a partir dos anos 1960 e, especialmente, da década de 1970, a Amazônia assumiu, de fato, o papel de última fronteira econômica do Brasil. O discurso da integração nacional, desenvolvido no período da ditadura militar, deu origem a grandes empreendimentos industriais, minerais, agrícolas e pecuários, com enorme mobilização de garimpeiros, pequenos proprietários e migrantes em busca de terras, atraídos todos pela sempre renovada miragem de um eldorado.

Nos anos 1980, em particular após a democratização do país, a Amazônia tornou-se objeto de intensas controvérsias na imprensa, na academia, nas agências governamentais e entre organizações não-governamentais nacionais e estrangeiras. O aspecto principal das controvérsias tem sido a compatibilização do uso econômico dos recursos naturais amazônicos com a preservação de sua riqueza biogeográfica. A dificuldade de compatilizar essas duas metas deu origem a novas clivagens e fez aparecer novos atores sociais na própria região.

A Amazônia é, de fato, uma entidade vasta, que sugere inespecificidade ou convida à hipérbole. Exige adjetivos ou recortes para dar-lhe sentido prático — Amazônia brasileira, Amazônia Legal, bacia amazônica — ou para sublinhar seu gigantismo ou exotismo — "inferno verde", "pulmão do planeta", "celeiro do mundo"... Apesar de viver movimentos pendulares entre o "esquecimento" e a atenção quase febril, a Amazônia tem se revelado capaz de gerar contínuo interesse que se traduz em estudos, discursos e também exageros. Depois de algumas décadas de quietação da consciência nacional e planetária, desde o fim do ciclo da borracha, o pêndulo retornou ao outro pólo em fins da década de 1980, e permanece até hoje nesse extremo. A região voltou a ser alvo de atenção apaixonada, barulhenta e multifacetada, de brasileiros e estrangeiros, de seringueiros e ambientalistas, trabalhadores e empresários, cientistas e banqueiros. A grande novidade é terem se tornado mais audíveis do que nunca as vozes dos atores sociais locais.

Neste suplemento de História Ciências Saúde — Manguinhos, pesquisadores de diferentes áreas — história, sociologia, antropologia, ciência política, geografia — recortam, cada um a seu modo, a entidade Amazônia, apresentando produção inédita, novas interpretações e hipóteses sobre a região. A Amazônia de que tratam é a brasileira, ou seja, aquela imensa parcela da bacia, da hiléia e da unidade biogeográfica amazônica que está dentro das precárias fronteiras do Brasil, no interior do qual moram brasileiros de várias línguas, etnias, estilos de vida e origens.

José Augusto Drummond, em 'Investimentos privados, impactos ambientais e qualidade de vida num empreendimento mineral amazônico', discute os efeitos socioeconômicos e ambientais da mina de manganês de Serra do Navio, no Amapá, o mais duradouro de todos os "grandes projetos" implantados na Amazônia contemporânea (1957-98). Desafiando o postulado corrente de que tais empreendimentos causam necessariamente disrupções ambientais e socioeconômicas, o autor apresenta elementos para repensar os papéis possíveis para os empreendimento intensivos de capital e de larga escala na região.

Em 'Biosfera, história e conjuntura na análise da questão amazônica', José Augusto de Pádua combina vários níveis de análise e diferentes escalas cronológicas, expondo de maneira acessível questões das mais complexas sobre as relações entre natureza e sociedade..

Janaína Amado desvenda dimensão histórica e social mais remota da Amazônia em 'Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial'. Valendo-se de documentação inédita encontrada em arquivos portugueses, a autora mostra que a região teve o papel pouco conhecido de receber condenados e perseguidos portugueses de diversos tipos. Jane Felipe Beltrão trata de outra face da história da Amazônia em 'A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do século XIX', onde revela como têm raízes antigas o persistente quadro de doenças epidêmicas e endêmicas da região e o precário repertório de instrumentos de saúde pública.

Ana Maria Daou escreve 'Instrumentos e sinais da civilização: origem, formação e consagração da elite amazonense', retratando a ascensão das elites sociais e políticas de Manaus de meados do século XIX até o início do século XX. Ela correlaciona a ascensão de diversos tipos locais e adventicios à produção da borracha e ao correlato crescimento dos serviços governamentais e comerciais, exibindo o lastro estrutural e o estilo de vida de uma nova elite regional.

No ensaio intitulado 'O imaginário social sobre a Amazônia: antropologia dos conhecedores', Samuel Maria de Amorim Sá analisa a tensão entre imaginários endógenos e exógenos ao povo e à região amazônicos, propondo o contínuo reprocessamento das instituições e soluções "de fora" e "de dentro". Em 'Euclides da Cunha e a Amazônia: visão mediada pela ciência', José Carlos Barreto de Santana recupera produções menos conhecidas do autor de Os sertões. Em textos que ficaram esparsos, Cunha novamente produziu imagens literárias candentes e hiperbólicas, desta vez sobre a paisagem humana e natural das florestas tropicais úmidas, influenciando com esta nova "polifonia" multidisciplinar as visões brasileiras posteriores sobre a região.

Fernando Sergio Dumas dos Santos, em 'Tradições populares de uso de plantas medicinais na Amazônia', analisa diversas linhagens do conhecimento popular sobre plantas medicinais, especialmente nas regiões dos rios Negro, Branco, Acre e Purus. Liga-se, assim, a dois importantes temas contemporâneos, a saber, o conhecimento "tradicional" ou "popular" sobre a natureza amazônica e os usos que podem ser dados à biodiversidade regional.

Archibald O. Haller, Ramon S. Torrecilha, Maria Cristina del Peloso Haller e Manoel M. Tourinho, autores de 'Os níveis de desenvolvimento socioeconômico da população da Amazônia brasileira — 1970 e 1980', mobilizam base de dados macrorregional nunca reunida na literatura para aferir e comparar níveis de desenvolvimento da população da Amazônia Legal em 1970 e 1980. Ao indicarem a melhora generalizada desses níveis, os autores põem em xeque pressupostos e achados do conjunto da literatura. Propõem uma polêmica explicação sociológica sobre a convivência de notórias mazelas sociais com as melhoras registradas, argumentando que tal justaposição, longe de ser paradoxal, é, na verdade, típica de regiões de fronteira submetidas a processos acelerados de mudança social.

Em 'Ciência na periferia: a Unesco, a proposta de criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica e as origens do Inpa', Marcos Chor Maio e Magali Romero Sá tratam dos esforços envidados na implantação de um grande centro de pesquisas científicas na Amazonia no posguerra (1945-52). Com base em documentação de arquivo inédita, analisam a proposta da Unesco de se criar o Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (IIHA). Sopesando os aspectos externos e internos da polêmica suscitada pela proposta, os autores mostram as dificuldades implícitas na criação de instituições científicas na periferia, e situam a emergência do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia (INPA) na esteira dessas controvérsias.

Em 'O Boi-Bumbá de Parintins, Amazonas: breve história e etnografía da festa', Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti apresenta vivida interpretação antropológica de um evento que vem ganhando renome nacional . O belo trabalho fotográfico de Loris Machado, na seção Imagens', permite apreciar melhor a manisfestação popular do Boi-Bumbá.

A seção 'Depoimento' traz a palestra com que Márcio Souza abriu o seminário Visões da Amazônia: Cultura, Ciência e Saúde. Baseando-se nas investigações que têm feito sobre a turbulenta vida regional logo após a independência brasileira, especialmente durante a Revolta dos Cabanos, o escritor sustenta que parte do "estranhamento" mútuo que ainda existe entre a Amazônia e o restante do Brasil tem raízes nas trajetórias coloniais distintas e na maneira um tanto arbitrária pelas qual as duas unidades coloniais — o Brasil e o Grão-Pará — foram fundidas num único país independente depois de 1822.

Na seção 'Debate', apresentamos as intervenções feitas por cineastas e produtores culturais na mostra de filmes e vídeos que ocorreu no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), paralelamente ao seminário Visões da Amazônia. Sob a coordenação de Stella Oswaldo Cruz Penido, Murilo Santos, Dominique Gallois, Aurelio Michiles, Selda Vale da Costa, Renato Pereira, Ricardo Arnt e Geoffrey O'Connor apresentam seus pontos de vista sobre a origem e as mensagens dos filmes e videos exibidos então.

Na seção 'Fontes', temos o inventário preliminar do Fundo Família Carneiro, elaborado por Priscila Fraiz, que destaca a relevância dos documentos referentes ao cientista Paulo Estevão de Berrêdo Carneiro, o mentor intelectual do projeto de criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica. Finalmente, em uma nova seção, 'Ensaio Bibliográfico', José Augusto Drummond faz uma apreciação geral de livros de cientistas sociais publicados nos últimos vinte anos sobre temas sociais e ambientais da Amazônia brasileira, fornecendo, inclusive, uma extensa bibliografia de títulos recentes publicados em português ou inglês. Sustenta o autor que, na maior parte dessa literatura, predomina uma visão negativista, quando não apocalíptica, das perspectivas da região e sua população.

Esperamos que os trabalhos reunidos neste suplemento de História, Ciências, Saúde-Manguinhos ajudem a integrar de forma mais plena a Amazônia e seus habitantes na agenda de debates e na memória nacionais.

Marcos Chor Maio

José Augusto Drummond

Editores convidados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2000
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Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br
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