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Haity Moussatché: homenagem ao guerreiro da ciência brasileira

Haity Moussatché: an homage to the crusader of Brazilian science

D E P O I M E N T O

Haity Moussatché: homenagem ao guerreiro da ciência brasileira

Haity Moussatché: an homage to the crusader of Brazilian science

Haity Moussatché morreu de câncer aos 88 anos, dia 24 de julho, no Rio de Janeiro. Que perda foi para nós! Dos mais antigos e prestigiados cientistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pertenceu àquela geração formada pelos chamados ‘discípulos’ de Oswaldo Cruz, o grupo pioneiro de Carlos Chagas, Arthur Neiva, Lauro Travassos, Henrique Aragão, entre outros. Miguel Osório de Almeira, um dos grandes nomes da fisiologia brasileira, permaneceu pouco tempo no instituto, mas influenciou decisivamente a carreira do jovem judeu sefardita, emigrado de Smirna, que depois iria ser consagrado como um de seus mais talentosos sucessores. Fascinado pela biologia desde o curso secundário, rendeu-se completamente à carreira de pesquisador sob a influência das aulas teóricas de Álvaro Osório de Almeida e das aulas práticas ministradas por Thales Martins e Couto e Silva na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. A convite do primeiro, foi monitor de fisiologia até se formar, em 1933. No ano seguinte, iniciou estágio não-remunerado no laboratório de Miguel Osório, no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), onde trabalhou alguns anos com o fenômeno da crio-epilepsia. A necessidade de auferir alguma remuneração por seu trabalho levou-o a se transferir, em 1935, para a unidade que a Fundação Rockefeller mantinha no campus de Manguinhos, destinada à produção de vacina contra a febre amarela. Trabalhou com Wray Lloyd na cultura de vírus da doença. Dois anos depois pôde retornar ao laboratório de fisiologia, recebendo agora como ‘extranumerário’. Durante todo esse tempo nunca deixou de freqüentar o laboratório que os irmãos Osório de Almeida mantinham na residência particular da família, na rua Machado de Assis 45, bairro do Flamengo.1 1 "Foi nesse laboratório que se formou a primeira geração que realizou trabalho ininterrupto de pesquisa biológica no Brasil, bastando citar, entre outros, os nomes de Miguel Osório de Almeira, Branca de Almeida Fialho, Paulo Galvão, Ribeiro do Valle, Dorival Cardozo e, mesmo, André Dreyfus, o pai da genética no Brasil..." Renato Cordeiro, discurso, Rio de Janeiro, Fiocruz, 25.9.1998 (mimeo.). Ver também Luiz Gouvêa Labouriau, ‘Homenagem aos 80 anos de Moussatché", Ciência e Cultura' 42(7): 421-7, jul. 1990; e Academia Brasileira de Ciências. Organização e membros. Edição comemorativa dos 80 anos (1916-96), Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Ciências, 1996. Em Manguinhos, em colaboração com Miguel Osório e Mário Vianna Dias, investigou vários aspectos das convulsões experimentais, e daí extraiu o tema de sua tese de livre-docência na Faculdade de Medicina, em 1948. A esta altura, já fazia parte do quadro permanente do IOC graças ao concurso aberto em 1941. Moussatché chefiou a seção de farmacodinâmica e, de 1958 a 1964, a de fisiologia. Nesse período, interessou-se pelas propriedades medicinais de substâncias extraídas de plantas nativas e, sobretudo, pelo estudo dos mediadores químicos na transmissão do impulso nervoso. Seus trabalhos sobre os choques anafilático e peptônico tiveram repercussão internacional, tanto que o convidaram a escrever o capítulo correspondente no volume 18(1): 645-59 da nova série do Handbook of Experimental Pharmacology (Berlim, Spinger Verlag, 1966).

Um dos fundadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1948, participou intensamente dos movimentos e negociações visando fortalecer a área científica no contexto do desenvolvimentismo brasileiro. A convite de Darcy Ribeiro, integrou a comissão que planejou a Universidade de Brasília (UnB), em 1959 e 1960. Socialista e humanista, encarava a ciência como arma poderosa para a superação do subdesenvolvimento e a criação de uma sociedade mais justa e independente. Tal convicção levou-o a engajar-se na Associação para a Criação do Parlamento Mundial (1990), saudável utopia iluminista reavivada por homens de ciência renomados que se congregaram com o fim de conceber e difundir uma constituição universal, capaz de promover o entendimento entre as nações. Apesar de aderir entusiasticamente à fé na positividade da ciência enquanto força social, Moussatché não aceitava o utilitarismo que sempre presidira, no Brasil, à relação de governos e, mesmo, de dirigentes de instituições com a ciência. Nas poucas conjunturas e nas restritas ‘ilhas de excelência’ em que ela fora valorizada, valorizaram-na tão-somente como ciência ‘aplicada’, isto é, capaz de render benefícios imediatos, facilmente discerníveis, relegando-se a segundo plano o esforço estratégico de pesquisa básica.

Após o golpe de 1964, respondeu a inquérito policial-militar e, em 1970, quando a ditadura recrudesceu, ele e outros pesquisadores tiveram os seus direitos políticos cassados e foram aposentados compulsoriamente pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5). O chamado ‘Massacre de Manguinhos’ não foi um episódio isolado na conjuntura política. O conflito entre os defensores da ciência pura e da ciência aplicada tornou o IOC mais vulnerável às pressões do Estado, que se aproveitou da cisão para suprimir de vez a sua autonomia e para colocá-la sob sua égide.2 2 Ver a esse respeito Wanda Hamilton, ‘Massacre de Manguinhos: crônica de uma morte anunciada’. Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz, vol. 1, nº 1, nov. 1989, pp. 7-18.

Moussatché foi acolhido pela recém-criada Universidade Centro-Ocidental Lisandro Alvarado, na cidade venezuelana de Barquisimetro. Começou em 1971 como professor contratado, reponsável pela docência em fisiologia e farmacologia. No ano seguinte, era chefe da unidade de pesquisa em ciências fisiológicas da Escola de Veterinária. Em 1975, tornou-se professor titular e, até 1985, exerceu a presidência do Consejo Asesor de Investigación y Servicios (CADIS). Desenvolveu investigações farmacológicas, fez estudos sobre o fígado gordo e iniciou experimentos visando esclarecer o mecanismo de resistência que certos marsupiais (o gambá, por exemplo) apresentavam ao veneno da Bothrops jararaca.

Ao retornar ao Brasil, em 1985, nos albores da Nova República, já com Sérgio Arouca à frente da Fiocruz, foi convidado a reorganizar o Departamento de Fisiologia e Farmacodinâmica, áreas que tinham sido destroçadas na gestão de Francisco de Paula da Rocha Lagoa, primeiro como ‘interventor’ em Manguinhos, depois como ministro da Saúde. Em 1986, aos 76 anos, Moussatché reassumiu seu lugar junto com outros cientistas banidos pela ditadura militar. Retomou o estudo que vinha desenvolvendo na Venezuela sobre o mecanismo de resistência de animais ao veneno de cobras, tendo em mira obter soro antiofídico mais eficiente do que o fabricado hoje.

Ao longo de sua vida científica publicou e apresentou mais de duzentos trabalhos. Foi membro fundador da Sociedade de Biologia do Brasil (1941) e da International Society of Toxicology (1953). Pertenceu à Academia Brasileira de Ciências (1953), à Academia de Ciências de Nova York (1959), à Federação Mundial de Trabalhadores Científicos (1959), aos conselhos científicos da Revista Brasileira de Biologia (1953) e da Acta Fisiológica Latino-Americana (1955), à Associação Venezuelana para o Progresso da Ciência (1974) e à Academia de Ciencias da América Latina. Em 1986, recebeu o prêmio Golfinho de Ouro do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em 1993, foi condecorado na Venezuela e, um ano depois, o governo brasileiro agraciou-o com a Ordem Nacional do Mérito Científico, na classe Grã-Cruz.

Em ambos os países, Haity Moussatché formou numerosos pesquisadores que hoje dão à área de fisiologia e farmacodinâmica uma consistência muito superior à que tinha à época em que iniciou a brilhante carreira de investigador.

Deixou dois filhos do primeiro casamento — Ana Helena e Mendel — e foi casado em segundas núpcias com Cadem Moussatché. Os que tiveram o privilégio de conviver com ele guardam a lembrança de um homem sincero, ético, generoso, combativo, intransigente com os medíocres mas completamente dedicado aos familiares, amigos e discípulos. Não era pesquisador que se isolasse no laboratório. Otimista inveterado, amava a vida, o convívio com as pessoas, a leitura, a música, o balé, o cinema. Manguinhos tem as suas lendas. Oswaldo Cruz já foi visto por muita gente a passear entre os velhos tomos guardados no castelo mourisco. Nós haveremos de rever sempre a figura simpática de Haity, olhos doces, cabelos e bigodes prateados, bengalinha e guarda-pó, a fazer-nos companhia no bandejão, todos os dias....

Ficha técnica

A entrevista foi feita entre novembro de 1985 e janeiro de 1986 e pertence ao acervo da Casa de Oswaldo Cruz. Versão mais sintética dela foi publicada com o título ‘Ciência e resistência — Haity Moussatché: um otimista inveterado’, em Cadernos de Saúde Pública, vol. III, nº 1, jan.-mar. de 1987, pp. 98-118. O sumário da entrevista encontra-se em Nara Britto (coord.), Memória de Manguinhos. Acervo de depoimentos. Rio de Janeiro, Casa de Oswaldo Cruz, 1991, pp. 29-31. A presente reedição foi feita por Jaime Benchimol e Ruth Martins. Agradecemos a colaboração de Cadem Moussatché, Mário Vianna Dias, Sebastião J. de Oliveira e de três discípulos de Haity: Jonas Perales, atual chefe do Departamento de Fisiologia e Farmacodinâmica da Fiocruz, Renato S. B. Cordeiro, vice-presidente de pesquisa e ensino, e Pedro Fontana Júnior.

“Em 1910 muita gente emigrava para a América. Na verdade, nem pensava em vir para o Brasil; pensava em ir para a Argentina, porque as notícias que se tinha do Brasil eram de que a febre amarela matava a todos que aqui aparecessem.”

“Meu nome é uma

adaptação ao turco de um nome hebraico, Haiim, que quer dizer Água da Vida ou Vida.”

“O único que tinha algo

para me dizer, realmente, era Álvaro Osório, porque era

um pesquisador!”

“Henry Pierson, psicólogo francês muito conhecido, visitou o laboratório de Álvaro Osório de Almeida. ... Einstein e Madame Cury estiveram nesse laboratório célebre.”

“Uma reação que todo

mundo faz — injetar urina

em coelho para fazer diagnóstico de prenhez —

foi feita pelo Thales e, simplesmente, um outro publicou numa revista estrangeira. Tem o nome

de Reação de Friedman, mas

o Thales fez a reação aqui,

no instituto.”

“Miguel Osório foi

convidado por professores

a se dedicar ao piano, mas

não quis. E o Thales,

também, tinha uma cultura enorme. Homens com quem você conversava e tinha o

que aprender.”

“Aprendi que os fenômenos biológicos são altamente determinados por leis que pertencem à física ... o que

me deu segurança sobre o

que a ciência tinha de fundamental. Ela não

dependia de opiniões mas

de fatos reais, em que a

gente podia pisar e pensar com segurança. Minha

opção pela fisiologia foi

por causa disso.”

“...queriam que o Brasil tivesse pelo menos mais quatro doenças de Chagas, mais algumas leishmanioses

e outros males para serem descobertos pelos homens

da época heróica? Queriam que o instituto vivesse

sempre a época heróica, sempre descobrindo

doenças que seriam uma desgraça para o Brasil?

É isso que querem dizer

com decadência do instituto? Eu não estou de acordo.”

“diferenciar a pesquisa

básica da aplicada é pura invenção de gente que não sabe o que é ciência. ...

O que hoje é ciência básica amanhã é aplicada e vice-versa. A metodologia é a mesma, podem conviver.”

“...fui me meter a tirar fígado de cachorros. Confesso que matei muito mais cachorros

do que o cirurgião.”

“Aconselhar a natalidade

para que os filhos morram... Estamos perdendo a sensibilidade para essa

coisa preciosa que é a vida.”

“Eu achava que a pesquisa deveria ser num instituto à parte, não numa instituição

de controle de medicamentos e produção de vacinas.

O instituto seria do Ministério da Ciência e Tecnologia...”

“Às vezes, para se conseguir alguma coisa, um aparelho

que tinha o preço de uma vaca, tínhamos de pedir supostamente uma vaca,

mas esse dinheiro não era utilizado para isso. Eu

achava isso uma mentira, um absurdo. ... Se achassem que ciência não era importante, que dissessem claramente.”

“Nós, que éramos chamados de esquerda, achávamos que

a ciência tinha essa função social importante. Não deveríamos ficar a reboque

de umas tantas aplicações — nem eram mais aplicações, eram rotinas, coisas que até

já estavam atrasadas.”

“Quero evitar a palavra perseguição, porque vocês estão vendo que havia duas atitudes claramente definidas sobre o destino do instituto.

O futuro vai mostrar se tínhamos ou não razão. Não sei até hoje, porque estamos ainda muito perto do fenômeno.”

“A docência é uma conseqüência natural da pesquisa, a função mais importante das universidades. ... Há uma crise nas universidades.”

“O senhor imagine ... que o Rocha Lagoa vá ao Médici

e diga: ‘É uma gente que

quer tirar o IOC do Ministério da Saúde. O ministério

precisa do instituto, porque faz vacinas... e essa gente

fica criando problemas, fazendo coisas que ninguém controla...’”

“Não vamos imaginar que os inimigos fazem só besteira. Também fazem coisas boas, e fizeram algumas que aí estão para ficar. Mas há muita coisa a ser corrigida.”

Paulo Gadelha

Gostaria que o dr. Moussatché nos falasse de sua origem e trajetória anterior a sua vida profissional. Como foi até chegar ao Brasil, vindo de um lugar cujo nome é cheio de magia, Smirna.

Haity Moussatché

Nasci no dia 21 de fevereiro de 1910, há 75 anos. Já é uma longa história, de que não posso nem lembrar. Da primeira parte, lembro-me mais das coisas que meus pais falavam. Nasci não em uma cidade propriamente, mas em uma aldeia próxima da cidade de Smirna. Chamava-se Vourlá e ficava numa península chamada Glassoven que, por muitos anos, como Smirna, pertenceu à Grécia. Toda essa região pertencia à Grécia. Por isso, o povo falava o grego e o turco, porque era parte da Turquia.

Pertencíamos a uma colônia de judeus sefarditas que emigraram da península Ibérica na época da Inquisição. Por isso, falávamos também o espanhol. Lembro-me muito pouco daquela região, porque vim para o Brasil com dois anos de idade. Assim, realmente sou brasileiro. Meu pai antecedeu a família em cerca de um ano. Depois viemos e aqui estamos até agora.

Meu pai não tinha a escola de rabinato, mas era um rabino, foi professor de hebraico na terra dele. Era rabino no sentido de fazer todas as coisas que se referem à religião. Fazia circuncisão, liturgia judaica... até que, numa época determinada, deixou de fazer por circunstâncias sociais do mundo todo que impunham orientações não mais religiosas. Tornou-se ateu, e nos educou sem religião. Não sinto falta da religião para ser quem sou, mas respeito imensamente aqueles que são religiosos. Nada tenho contra a religião, apenas não me serve como explicação do mundo. Vejo as coisas de um ponto de vista materialista, que considero tão espiritual quanto a crença religiosa.

Desde cedo, por influência de meu pai, fui uma pessoa muito dedicada aos problemas intelectuais. Ele, sem querer nos convencer de nada, ensinava-nos simplesmente, até pela atitude, pela maneira de ser. Se sou o que sou, devo isso, fundamentalmente, a meu pai, a sua maneira correta, séria, de encarar os problemas. Homem de recursos muito parcos, fez questão que nenhum de nós seguisse a sua carreira, de comerciante. Teve de fazer comércio porque não teve outra oportunidade aqui, como também não teve em Smirna. Lecionava hebraico, mas isso não dava para viver. Então veio buscar algo mais aqui na América. Em 1910 muita gente emigrava para a América. Na verdade, nem pensava em vir para o Brasil. Queria ir para a Argentina, porque as notícias que se tinha do Brasil eram de que a febre amarela matava a todos que aqui aparecessem. Mas houve um acontecimento fundamental nessa ocasião: Oswaldo Cruz acabou com a febre amarela. Essa notícia ainda não tinha chegado a Smirna e ao Oriente. Muita gente que vinha de lá ainda procurava a Argentina. Quando desembarcavam aqui, constatavam que era uma terra em que se podia viver perfeitamente.

Fiz o curso primário e secundário no Instituto Universitário Fluminense, em Niterói, onde moramos por muitos anos, e ingressei na Escola de Medicina em 1928.

Arlindo Fábio Gomes

Professor, seu nome, traduzido para o português, tem algum significado especial?

Haity Moussatché

Meu nome é uma adaptação que eu mesmo fiz. Se quiserem pronunciar tal como se pronuncia em casa, é Haiate. Nome tão complicado que alguns colegas, por não saberem pronunciar o h aspirado, trocavam-no por r. É uma adaptação ao turco de um nome hebraico, Haiim, que quer dizer Água da Vida ou Vida.

Meu pai achava que a Turquia deveria progredir (não progrediu muito até hoje). Quis que meu nome se adaptasse ao idioma turco, pensando que talvez ficássemos por lá. Não ficamos. Achei que convinha mudá-lo um pouco já quando cursava o secundário. "Ah!", eu disse, "está muito complicado, meu pai. Vou botar outro nome. Vou botar Haity, porque tem por aqui uma ilha, Haiti. Vai ficar Haity mesmo, e está liqüidada a complicação."

O último ano, praticamente, não estudei em Niterói, porque história natural, naquele tempo, se fazia no Museu de História Natural. Compreendia biologia, geologia, botânica, mineralogia, zoologia e também física. No colégio em que eu estava não era bom o ensino de química, então ingressei no Curso Superior de Preparatórios. Lá tive meu primeiro impacto, o professor de história natural, César Salles, um desses homens que passam e a história não registra. César Salles era um homem incrível. Herman Lent e muitas outras pessoas que se dedicaram à biologia foram seus alunos também. Era um professor de curso secundário que fazia experiências muito simples para que nós víssemos. Abria uma rã, tirava o coração e a gente ficava vendo o coração bater espontaneamente. Dava aulas excelentes de zoologia e botânica.

Aos domingos, em vez de ficar em casa, ia conosco para o Jardim Botânico ou para a Quinta da Boa Vista. Avisava com antecedência: "É para quem quiser ir", ele não obrigava ninguém. "Vamos estudar flores no Jardim Botânico." Ele pegava flores e dava suas características. Diante de uma espécie animal qualquer, perguntava: "Como é que o senhor classifica isso?" Um dizia, por exemplo: "Peixe." "Não, senhor! Eu quero reino animal, sub-reino dos metazoários, ramo dos vertebrados." (Risos.) E você tinha que repetir aquilo. Ficava gravado na memória da gente. Que professor! E foram muitos domingos!

Aquelas aulas me impressionavam tanto que tomei minha primeira decisão. "Vou estudar história natural porque a zoologia me encanta." Mas também gostava muito de plantas. "Então, vou para a escola de química." Mas lá não se estuda biologia. Ficou aquele impasse: "Se quero estudar química e biologia, não posso ir para a escola de química..." Essa fase se encerrou em 1927, quando fui aprovado nos temíveis "exames preparatórios" do Colégio Pedro II. Ingressei na Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, em 1928, pois a carreira de médico era praticamente a única opção biológica disponível naquele tempo, no Brasil. (a cadeira de biologia era então dada pelo Pacheco Leão.) Esse foi o caminho que tomei.

Luiz Fernando Ferreira

Essa cadeira se chamava história natural médica?

Haity Moussatché

Não, história natural era no curso preparatório. Naquele tempo, não havia ginásio. Era preparatório, o parcelado. História natural compreendia zoologia, botânica, mineralogia e geologia. Quando tive de decidir, no vestibular, optei por medicina, mas não gostava de medicina. Meu interesse era por zoologia ou botânica. Lá havia zoologia, biologia e parasitologia. Esta me encantou.

Gostava tanto de parasitologia que mandei buscar uns livros recém-editados do Brumpt na França, e estudava aquilo com enorme interesse. Sabia muito bem parasitologia. Passei com distinção.

Antes de começarem as aulas práticas, às oito da manhã, na Praia Vermelha, ficávamos conversando. Um colega chamado Antônio Francisco Rodrigues de Albuquerque uma vez lá me perguntou: "Você que gosta tanto de parasitologia, quer ver as lâminas no microscópio com mais detalhes?" "É claro que quero", eu falei. "Não quer ir ao Instituto Oswaldo Cruz?" Largava-me aos domingos para o IOC, para o hospital onde havia muita lâmina com tripanossoma... Tinha de tudo lá. E, assim, pela primeira vez, apareci no Instituto Oswaldo Cruz, no primeiro ano de medicina.

Fiz um bom curso no primeiro ano. No segundo, fui assistir a uma aula e tive muita sorte. Depois de um longo período fora da escola, Álvaro Osório de Almeida voltava a dar o curso de fisiologia. Na aula inaugural ele explicou como os fenômenos vivos ocorrem perfeitamente de acordo com os princípios fundamentais da Primeira Lei da Termodinâmica. Aquilo foi para mim um deslumbramento. "É isso que eu quero estudar, fisiologia", pensei. Daí por diante, minha idéia foi sempre trabalhar nessa área. No segundo ano, estudei muito, passei com distinção.

O Instituto Oswaldo Cruz era a instituição de pesquisa por excelência, para onde eu achava que deveria ir. Procurei o velho Carlos Chagas em sua casa e Evandro Chagas em seu consultório. Já estava no terceiro ano. Eles aceitaram que eu viesse fazer, no laboratório, análise dos doentes que atendiam, pela manhã, no ambulatório, pessoal da Baixada — naquela época havia malária quase na porta do instituto. Lá fiquei por dois anos. Aprendi a fazer todos esses exames para diagnóstico de malária, verminoses etc.

Todo mundo sabia, na escola, que eu gostava muito de fisiologia. Álvaro Osório precisava de um monitor e convidou algumas pessoas. Eu já o conhecia por haver ele organizado o primeiro laboratório de fisiologia no Brasil, já que o da escola de medicina estava fechado. Foi ao diretor da escola e disse que queria fazer algumas pesquisas. O diretor disse-lhe que não, que procurasse outro lugar.

Pouco antes, havia regressado do Instituto Pasteur, e procurara, inclusive, Oswaldo Cruz, argumentando que lá, no instituto parisiense, já havia fisiologia, fundada pelo Gley, um discípulo de Claude Bernard. Oswaldo Cruz não negou. Disse-lhe que sim, que estava pensando em instalar a fisiologia no instituto, mas o tempo foi passando e Álvaro Osório achou melhor montar o laboratório em sua casa.

O célebre laboratório de fisiologia da rua Machado de Assis era sustentado por Cândido Gaffrée, dono das Docas de Santos, muito amigo do pai de Álvaro Osório, que era diretor da Central do Brasil, um engenheiro de muita projeção. Cândido Gaffrée e, depois, o Guilherme Guinle sustentaram o laboratório, e Álvaro Osório pôde formar lá boa parte dos fisiologistas dessa época inicial. Tendo, então, regressado à escola de medicina, pediu um assistente e disseram-lhe: "Por que não leva o Moussatché, um estudante de fisiologia?" Deixei o instituto e lá fiquei até me formar.3 3 Ao concluir o curso médico, em 1906, Álvaro Osório de Almeida (1882-1952) viajou para a França. Trabalhou no Instituto Pasteur com Delezenne e Pozerski, entrou em contato com as pesquisas de Metchinikoff, as de François Frank, no Collège de France, as de Malfitano sobre os colóides e as pesquisas histológicas de Monouélian. De volta ao Brasil, iniciou a carreira fecunda de pesquisador num modesto laboratório montado na residência de seus pais, primeiro na rua Almirante Tamandaré, depois na Machado de Assis. Em 1908, acolheu o primeiro discípulo, o irmão Miguel, ainda estudante da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde Álvaro Osório foi nomeado professor extraordinário de fisiologia em 1911. O laboratório do Flamengo tornou-se centro de reuniões, de preparo de teses e mesmo local de visita obrigatória para personalidades de passagem pelo Rio de Janeiro. A criação de novo método de tratamento da ancilostomose resultou na nomeação de Álvaro Osório como diretor de saúde do Estado do Rio de Janeiro, por seu presidente, Oliveira Botelho. Foi, assim, um dos precursores da luta contra as endemias rurais que iria se tornar o eixo da saúde pública brasileira na década de 1920. Entre os seus trabalhos experimentais sobressaem aqueles relacionados às determinações do metabolismo basal dos habitantes de climas quentes, as pesquisas referentes ao metabolismo do cérebro e fígado, à fisiologia do rim e, especificamente, ao mecanismo da uremia. Catedrático em 1927, dedicou-se ao problema do câncer a partir de 1933. Os estudos sobre os efeitos do oxigênio nas células normais e patológicas foram iniciados na Fundação Gaffrée-Guinle, onde começou a trabalhar após o fechamento do laboratório da rua Machado de Assis. ( N. do E.)

Paulo Gadelha

O laboratório de Álvaro Osório nos remete a uma polêmica interessante, que eu gostaria que o senhor abordasse. Surge com o apoio da iniciativa particular e não no âmbito daquele que era o principal centro de medicina experimental da época, o Instituto Soroterápico, depois Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Segundo Olympio da Fonseca, não teria havido a Seção de Fisiologia em Manguinhos devido à inexistência de fisiologistas no Brasil à época de Oswaldo Cruz. É uma afirmação polêmica e contraditória. O que realmente levou Oswaldo Cruz a postergar este projeto?

Haity Moussatché

Talvez Olympio da Fonseca não conhecesse os trabalhos de Álvaro de Almeida e de Miguel Osório de Almeida. Oswaldo Cruz morreu em 1917, e nessa época o laboratório da rua Machado de Assis já estava organizado, com muitos trabalhos publicados, alguns de repercussão internacional. Não é raro que muita gente do Brasil seja mais conhecida no exterior. Naquela ocasião os irmãos Álvaro e Miguel Osório já eram bastante conhecidos.

Em 1910, Miguel Osório fizera um estudo sobre o sinal de Babinski, ao mostrar que a perna de um paciente, que estava paralisada por um acidente cerebral, tinha um sinal clássico da doença. Ele mudava suas características se houvesse anemia na perna ferida. O dedo grande do pé, em vez de ir para trás, quando se fazia uma fricção na planta do pé, flexionava-se. É um estudo muito objetivo, de grande valor diagnóstico. Isso agradou muito ao próprio Babinski, que ainda era vivo e se referiu a esta experiência.4 4 Miguel Osório de Almeida (1890-1953) desde cedo demonstrou pendor para a matemática. Preparou-se para a Escola Politécnica, mas decidiu seguir os estudos médicos, doutorando-se em 1911 com a tese ‘São os reflexos tendinosos de origem cérebro-espinhal?’ Publicou ‘Contribuição ao estudo da patologia do sinal de Babinsky’ quando ainda se achava no quarto ano da Faculdade. Em 1912, o próprio Joseph Babinski (1857-1932) referiu-se muito positivamente às experiências de Miguel Osório. Naquele ano, ele obteve a livre docência de fisiologia, em 1915, a de higiene e, no ano seguinte, a de física biológica. De 1917 a 1934 foi professor de fisiologia da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária. A convite de Carlos Chagas, ingressou no IOC, tornando-se chefe do laboratório de fisiologia em 1919, e seu diretor, em 1927. Foi também diretor do Instituto de Biologia Animal do Ministério da Agricultura (1933-34). Em 1935, assumiu a vice-reitoria da Universidade do Distrito Federal e foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Publicou mais de duzentos trabalhos sobre os fenômenos da excitabilidade, sobre a fisiologia do músculo e da respiração e sobre o sistema nervoso, empregando sempre a matemática como eixo de sua metodologia de pesquisa. Mesmo fatos fisiológicos conhecidos foram por ele relacionados a equações matemáticas. Em sintonia com os avanços da ciência moderna, estudava as relações da cibernética com a fisiologia do sistema nervoso quando veio a falecer, ainda na plenitude de sua capacidade criadora. Homem de vasta cultura, dedicou-se à literatura de divulgação científica, publicou um romance e diversos ensaios. Doutor honoris causa das universidades de Paris, Lyon e Argel, foi representante do Brasil na Unesco e presidiu várias sociedades científicas importantes do país. ( N. do E.)

Em 1917, Miguel Osório de Almeida fez concurso para professor de física da escola de medicina e foi brilhante, o que o tornou conhecido. Mas concurso não é investigação, e estou me referindo à investigação. Miguel e Álvaro não só eram grandes investigadores como brilhantes, no sentido pessoal, em particular o primeiro. Não sei por que Oswaldo Cruz não o aceitou. Pode haver muitas razões para isso. Várias vezes encontrou-se com Álvaro Osório de Almeida e disse: "Olha, aquela tua proposta, ainda estou pensando."

No Rio de Janeiro, quando eu era secretário-geral da SBPC, convidei o Álvaro Osório para fazer uma conferência inaugural, em que ele se referiu à sua tentativa de vir para o instituto. Criticou muito a escola de medicina por não haver pesquisa. Ele costumava dizer: "Que universidade é essa?" Não tinham muito simpatia por ele na escola, o que se refletiu quando fez o concurso.

Oswaldo Cruz morreu e, em 1919, Carlos Chagas, seu sucessor, convidou Miguel Osório para fundar o Departamento de Fisiologia em Manguinhos. No segundo ano de medicina, optei pela fisiologia e, no terceiro, gostei muito de microbiologia, mas não freqüentei o curso porque aprendia muito mais ficando no instituto. No terceiro ano, é para ser honesto, só ia às aulas de Álvaro Osório. As outras não me interessavam. Pinheiro Guimarães era um homem brilhante, dava boas aulas de patologia geral, mas eu podia estudar no livro e creio que lucrava mais com isso.

Arlindo Fábio Gomes

O senhor residiu no IOC nesses dois anos?

Haity Moussatché

No Hospital Evandro Chagas. Ficava lá todo o tempo. Só ia às aulas práticas de algumas cadeiras quando não conseguia quem me desse freqüência. Estava aprendendo muito mais no laboratório, fazendo exames, estudando. Tinha uma biblioteca fabulosa. Nunca ia às aulas de alguns professores. E não fui só eu.

Maurício Rocha e Silva foi meu colega de turma e amigo íntimo. Eu preferia conversar com ele sobre fisiologia, literatura, política, tudo, do que assistir a um professor que dá uma aula que posso ler no livro. O único que tinha algo para me dizer, realmente, era Álvaro Osório, porque era um pesquisador!

Quando chegou o sexto ano, disse-lhe: "Não, não preciso me formar em medicina. Estou aqui como monitor do senhor. Prefiro não me formar." "Isso não tem sentido", redargüiu ele, "você tem de se formar." Eu insisti: "Não, deixa, eu me formo depois." Ele então deu-me um ultimato: "Ou você se forma ou boto-lhe para fora do curso." E foi assim que me formei em medicina. Não estava interessado! Se bem que trabalhei na assistência, aprendi um pouco de medicina para alguma eventualidade. Naquela ocasião, os únicos postos para se trabalhar em fisiologia eram como assistentes, na escola, e estavam ocupados por dois amigos meus. Eu era monitor e eles, assistentes: o Thales Martins, que trabalhava no instituto, e o Couto e Silva.

Paulo Gadelha

Como foi a implantação do laboratório de fisiologia no IOC? Pelo que sei, houve duas etapas: com Miguel Osório, no início, depois com Thales Martins. Osório retornou mais tarde.

Haity Moussatché

Chagas convidou Miguel Osório para montar o laboratório depois do concurso para professor de física, em que, como disse, saiu-se brilhantemente. O laboratório era pouco mais que uma sala. Naquela ocasião, 1919, a escola de veterinária também o convidou para ser professor de fisiologia. Lá, não tinha a disciplina. Mandaram comprar material, assim como o Instituto Oswaldo Cruz. Vou contar essa história porque é curiosa.

Como não tinha ainda material, Chagas mandou buscá-lo na Europa. Ia demorar muito. Miguel Osório ficou pensando no que faria. Isso foi contado por ele: "Fiquei pensando o que podia fazer, uma vez que já estava no instituto. Bom, tenho uma pinça, uma tesoura...", ele disse. Claro, devia ter uma balança. Lembrou-se de que, num livro de patologia do Strümpel,5 5 Adolf von Strümpell (1853-1925), médico alemão, especialista em doenças do sistema nervoso, a quem se deve a caracterização da doença de Strümpell, paralisia espinal espástica hereditária. havia se deparado com a descrição de casos conhecidos, do ponto de vista neurológico, de pessoas surdas, cegas de um olho e com problemas de sensibilidade cutânea. Eram crianças que nasciam com essas anomalias. Sua única porta para o exterior era o olho que possuíam. As outras percepções sensoriais eram inexistentes ou tão elementares que não funcionavam. Fechando-se o olho dessa criança, ela caía em verdadeiro estado de torpor ou de sono. Quer dizer, o único excitante que a mantinha numa aparente situação de vigília era o olho por onde entravam os raios de luz.

Ele se lembrou disso e pensou: "O que acontece com um animal se tiramos sua pele, se o privamos, praticamente, de sensibilidade cutânea e se suas outras sensibilidades são destruídas?" A rã é indicada para esse exame, porque não tem o que se chama de tecido celular subcutâneo. É como se estivesse vestida com um pijama ou coisa parecida. Com a tesoura e a pinça, podia-se cortar aquilo e tirar sem grande hemorragia. E assim ele fez. Verificou que o animal se mantinha num certo estado de vigília, de atenção, como fica a rã suspensa, assim, nas quatro patas. Mas ao se tirar os restos de pele da pata, de maneira que não houvesse mais sensibilidade cutânea, a rã entrava em estado de profundo torpor ou de coma, como ele chamava. Pelo menos para a rã, a sensibilidade cutânea, e outras provavelmente, são importantes para mantê-la em estado de vigília.

Miguel Osório considerou isso uma coisa extremamente rara. Naquela ocasião — estou me referindo a 1919 — tinha 29 anos, era um jovem que ainda não fora à Europa, apenas trabalhara com o irmão. Crítico como era, pensou: "Devo estar cometendo algum erro nessa minha interpretação." Certa vez, Henry Pierson, psicólogo francês muito conhecido, visitou o laboratório de Álvaro Osório de Almeida. Por lá passaram fisiologistas e não-fisiologistas. Einstein e Madame Cury estiveram nesse laboratório célebre. Miguel Osório descreveu a Pierson a experiência. "Mas isso é muito interessante, muito bonito! Deixa eu ver", disse o psicólogo. Miguel Osório mostrou-lhe a experiência e Pierson falou: "Isso é muito importante. Você tem que publicar." E o trabalho foi publicado, em nome de Miguel Osório de Almeida e Henry Pierson. Quer dizer, ele entrou num laboratório onde só havia tesoura e pinça, pensou nas coisas que sabia, que podia fazer, veio-lhe a idéia da experiência e assim começou o Departamento de Fisiologia, com uma verificação muito importante.

Ele trabalhou aqui até 1921, quando se retirou, mas continuou como professor. Gente que trabalhava no laboratório da rua Machado de Assis fez concurso para livre-docência na escola de medicina. Foi muito bonito, e tanto o Thales Martins como Couto e Silva e o Galvão saíram-se muito bem. Isso foi em 1926. Chagas foi falar outra vez com o Miguel Osório: "Por que você não volta para o instituto?" Não sei a razão exata de sua saída. Chagas convidou-o e ele voltou em 1927. Thales Martins achava-se aqui já há algum tempo desde 1923 ou 1924, por causa de uma espécie de convênio entre as Forças Armadas e o instituto. Treinava pessoal médico das Forças Armadas em determinadas especialidades.

Quando prestou o concurso de livre-docente para a escola, já fazia experiências muito importantes sobre as relações hipofisárias-gonadais no Departamento de Fisiologia do IOC, que era muito ativo, com gente de primeira linha. Miguel Osório e Thales Martins são, realmente, figuras de ponta da investigação no Brasil.

Luiz Fernando Ferreira

Thales Martins foi um pessoa que me impressionou muito quando eu era estudante. Fui aluno dele na escola de medicina. Pode ser considerado pioneiro na questão do comportamento animal, das relações entre comportamento e glândulas endócrinas. Enfim, a etologia que, depois, resultaria no prêmio Nobel dado ao Lorris. Talvez o senhor pudesse falar um pouco sobre a importância desse aspecto do trabalho de Thales Martins.

Haity Moussatché

Fui muito bom amigo dele, porque, quando eu era monitor, ele era assistente, e nós costumávamos conversar. Thales era muito calado, mas era um homem extremamente inteligente e, realmente, foi pioneiro nas pesquisas de endocrinologia, das relações hipofisárias-gonadais. Uma reação que todo mundo faz — injetar urina em coelho para fazer diagnóstico de prenhez — foi feita pelo Thales e, simplesmente, um outro publicou numa revista estrangeira. Tem o nome de Reação de Friedman, mas o Thales fez a reação aqui, no instituto.

O livro dele sobre hipófise e glândulas, secreção genital, foi maravilhoso, muito bem escrito. Como Miguel Osório, tinha cultura literária, além de ser bom pianista. Miguel Osório foi convidado por professores a se dedicar ao piano, mas não quis. E o Thales, também, tinha uma cultura enorme. Homens com quem você conversava e tinha o que aprender. Hoje existe muita gente com quem se pode falar de literatura, música, teatro... mas, naquela época, era raro encontrar!

A psicologia hoje, do ponto de vista experimental, ainda está no começo. Mas Thales fez uma coisa fundamental. É o precursor, aqui no Brasil, da psicologia do comportamento como matéria que tem de ser estudada experimentalmente. Seu trabalho consistiu em analisar a forma de micção dos cachorros. Todo mundo sabe que os cães machos têm de levantar uma perna durante a micção. Primeiro, têm de cheirar, depois levantam a perna e urinam. Thales mostrou que isso está ligado a um problema de plasticidade do sistema nervoso, influenciado pelos hormônios, numa fase em que o animal não é adulto. As glândulas de secreção interna estão numa fase que ainda não é considerada adulta. São as gônodas, que secretam hormônio e têm ação plástica sobre o sistema nervoso. Muito antes, tinham sido feitas experiências com rato-fêmea recém-nascido, em que se injetava hormônio masculino e o animal passava a funcionar como se fosse macho. Thales castrou cães machos muito cedo, e estes, quando adultos, urinavam como fêmeas. Tinham comportamento totalmente distinto. Em 1934, foi para São Paulo e ficou alguns anos lá. Quando ingressei no instituto, naquele mesmo ano, já tinha ido. Lamentei muito. Montou um laboratório para trabalhar com macacos. Não lhe faltavam boas idéias. Era, de fato, homem de grandes qualidades intelectuais. Mas a fisiologia não era campo em que o instituto gostaria de se projetar. Estava muito mais ligado a problemas de aplicação prática, teórica também, mas ligados principalmente à saúde pública. De modo que uma questão como essa de comportamento... Não impediam o Thales de tomar suas iniciativas, mas não lhe davam condições para fazer as coisas que queria. Lamentavelmente, não foi no instituto que se começou seriamente o primeiro laboratório de comportamento. Podia ter sido...

Quando se conta a história do laboratório da rua Machado de Assis, muitas vezes se esquece de mencionar a d. Branca. Conheci-a muito de perto. Trabalhou ativamente no laboratório, fazendo muitas coisas técnicas. Se o Álvaro Osório desenvolvia um projeto e tinha de medir gás carbônico e a quantidade de oxigênio, ela participava intensamente desses trabalhos. Nos primeiros anos do laboratório não, mas quando atingiu certa idade, sim. Quando se fala nos irmãos Osório de Almeida, na verdade não são só o Álvaro e o Miguel, mas também Branca Osório de Almeida, depois Branca Fialho, porque se casou com o jurista. Henrique Fialho. Ela assistia às aulas de Álvaro. Depois, interessou-se por problemas de educação e a eles dedicou grande parte de sua vida.6 6 Branca Osório de Almeida Fialho (1896-1965), fisiologista e pedagoga brasileira, além de colaboradora de seus irmãos Miguel e Álvaro Osório de Almeida, com diversos trabalhos publicados inclusive, foi presidente da Federação das Mulheres do Brasil, filiada à Federação Internacional das Mulheres. ( N. do E.)

Luiz Fernando Ferreira

A maneira como o senhor se formou, assistindo às aulas de Álvaro Osório e não indo aos outros cursos, era, me parece, o que todo mundo fazia na época. Mesmo quem queria ser clínico ou cirurgião ficava junto de um professor e freqüentava pouco os outros cursos. Às vezes, quando se discutem as exigências curriculares de uma escola de medicina, encontram-se tendências diversas. Pessoas querem se dedicar à cadeira básica, outras, à medicina social ou à psiquiatria. São tendências divergentes. A organização que se tem tentado dar ao ensino médico melhorou ou piorou?

Haity Moussatché

Quer saber minha opinião? Vai ter muita gente contra. Acho que piorou! As aulas, como são dadas hoje, têm exigências que castram o aluno. Ele não é capaz de pegar um livro e ler. Já tem muita coisa traduzida, e se ele não é capaz de ler um livro em português ou inglês, não deve estar numa escola superior! Se precisa ir a uma aula para aprender, há uma deficiência mental nesse aluno.

Eu me considero de inteligência mediana. Não ia às aulas, mas estudava nos livros. Ia lá, fazia minha prova e passava. Sou capaz de ler um livro, entendê-lo e escrever sobre o que li. Isso é o mínimo que se deve exigir de um universitário. Podem perguntar: "Mas para que o professor?" É para estar nos hospitais, nos laboratórios... Você vai lá, conversa com ele, examina os doentes, estuda... Não é simplesmente uma coisa de passagem, em que você assiste a uma aula, toma um apontamento e vai para casa. Não precisamos que o professor fique só nos dando aula. Há muito mais que ele pode fazer para que o aluno aprenda.

No meu caso, foram as aulas de César Salles, que nos levava ao museu, ao Jardim Botânico, que me abriram um horizonte que eu desconhecia. Tinha estudado francês, inglês, mas nunca tinha estudado história natural, zoologia, botânica. Depois aprendi que os fenômenos biológicos são altamente determinados por leis que pertencem à física, como a Primeira Lei da Termodinâmica, o que me deu segurança sobre o que a ciência tinha de fundamental. Ela não dependia de opiniões mas de fatos reais, em que a gente podia pisar e pensar com segurança. Minha opção pela fisiologia foi por causa disso.

Luis Fernando Ferreira

Ao se referir à sua família, o senhor disse que viveu sob condições modestas economicamente, mas num ambiente cultural sólido. O senhor foi buscar na pesquisa científica respostas que a perda da crença religiosa não lhe davam mais? É verdade isso? Esses fatores influenciaram?

Haity Moussatché

Creio que pode ser assim, exatamente, com pessoas que já partiram de uma posição religiosa, como meu pai. Eu encontrava na biblioteca dele livros de Ernst Heirinch Haeckel, como a História natural da criação (Natürliche Schöpfungsgeschichte, 1868), ainda que nunca houvesse estudado biologia. Uma porção de coisas relacionadas à biologia, Humanismo, de Heckel, Sobre a origem das espécies, de Darwin. Como fui educado sem religião, não enfrentei esse dilema. Já comecei a pensar como alguém que queria entender os fenômenos. E assim encantei-me pela história natural, depois pela biologia e fisiologia. Garoto ainda, eu estudei na biblioteca de meu pai. Li Os mistérios do universo (Die Welträtsel, 1839), de Haeckel, e este livro mudou minha cabeça. Estava lá na nossa biblioteca, que não era grande, era pequena, mas estava lá. Não é que meu pai me falasse particularmente sobre isso. Leu como leigo que lê coisas que passaram a lhe interessar, ou que o levaram a abandonar a religião como forma de explicação dos fenômenos da natureza, mas não nos falava disso assim. Fiz essa passagem de uma idéia religiosa para a busca de uma visão científica do mundo muito naturalmente. Nunca tive necessidade da religião para ser como sou, se bem que respeito as pessoas que precisam dela. Compreendo perfeitamente bem. Tive amigos muito religiosos e nos dávamos muito bem, conversávamos sobre o significado de cada uma dessas coisas.

Paulo Gadelha

Na formação das vocações há com muita freqüência a influência do positivismo na área da ciência e da política. Mas, em se tratando da área científica, como o senhor via o clima brasileiro da época? Favorecia ou dificultava essas vocações?

Haity Moussatché

Não posso responder bem a isso, porque só passei a tomar conhecimento do positivismo e de sua influência entre nós — o Benjamin Constant, o ‘Ordem e Progresso’ em nossa bandeira — quando comecei a me interessar pelos problemas filosóficos em geral.

Por influência do dr. Oswaldo Cruz, comecei a procurar a história de nosso país, o estudo dos filósofos. Comecei a pensar sobre as influências de Augusto Comte, mas antes não. Aqui no Brasil, quando eu tinha 18 a vinte anos, o positivismo visivelmente já não tinha influência. Acabei indo a algumas reuniões na sede dos positivistas, em que se discutiam problemas, mas não eram mais positivistas.

Paulo Gadelha

Retomando a questão da criatividade dos irmãos Osório, Carlos Chagas faz um comentário a esse respeito e diz que eles criaram um pensamento biológico próprio. O senhor falou dessa capacidade de inovação ao se referir ao episódio da tesoura e do bisturi na instalação do laboratório. Existem outros exemplos que ilustram essa criatividade dos irmãos Osório? Pode-se falar em pensamento próprio na área da biologia e fisiologia, a partir dos trabalhos deles?

Haity Moussatché

Os laboratórios da rua Machado de Assis e de Manguinhos eram relativamente pobres, não tinham muita aparelhagem. Na maioria das experiências, precisava ter iniciativa para saber como equilibrar a aparelhagem com as idéias que se queria desenvolver. Só comprávamos aparelhos depois que havia idéias para serem desenvolvidas. No laboratório da Machado de Assis — não trabalhei ativamente lá, mas fui muitas vezes — tinham de imaginar maneiras de utilizar aquele material para pôr em andamento as idéias que estavam testando.

Álvaro Osório de Almeida trabalhou com um problema de metabolismo basal que de certa maneira era um pouco melhor nos climas quentes como o do Brasil. Foi quem me chamou a atenção, pela primeira vez, para isso. Precisava medir o oxigênio e o gás carbônico. Possuía um aparelho de Orsay para fazer as dosagens. Com este aparelho, tinha que tomar todos os cuidados para que a medida fosse a mais exata possível. Não se poderia chamar isso de criatividade, mas a pessoa precisava estar muito atenta e conhecer muito bem o aparelho e suas falhas para não fazer dosagens cujos resultados invalidassem suas conclusões. Por isso, caracterizaram-se por ser pessoas que, trabalhando num laboratório relativamente pobre, colhiam resultados muito interessantes.

Luiz Fernando Ferreira

Miguel Osório é o introdutor da matemática na biologia. Ele também dominava a matemática e começou a trabalhar com modelos matemáticos. Terá isso decorrido da precariedade do laboratório?

Haity Moussatché

Não sei se é assim, não. Na realidade, ele era, fundamentalmente, um biofísico. Fossem outras as condições do Brasil, estaria mais voltado para a biofísica. Álvaro Osório quis estudar engenharia e também tinha boa formação em matemática. Mas Miguel Osório estudou muito mais, tinha formação muito boa nessa área.

Dizia que a equação vinha depois do fenômeno, uma idéia de Pitágoras. Antecedendo bastante a Rocha e Silva, Miguel Osório era um homem que procurava a equação que ia representar o fenômeno, por exemplo, a proporção entre gás carbônico inspirado e expirado, a excitação... Procurou sempre uma equação que representasse o que estava estudando. Mas, para isso, evidentemente, precisava ter uma boa formação matemática.

Vi-o durante anos trabalhando no problema de como calcular a reta provável de um conjunto de pontos. Fazia as experiências, botava aquilo num gráfico e, depois, queria saber qual era a equação que representaria melhor aquilo. Tinha de calcular a reta que passava por aqueles pontos. Boa parte de sua vida aplicou o método do quadrado de Lejandro, até que um dia resolveu estudar: "Já levei tantos anos, preciso encontrar uma fórmula que seja menos laboriosa para calcular a reta de um conjunto de pontos." Acabou encontrando um método mais prático que publicou na Academia de Ciências. Pode-se então dizer que talvez tenha sido ele o primeiro biólogo a utilizar a matemática de forma mais ampla.

A equação que obteve para representar o fenômeno da excitabilidade dos nervos foi bastante utilizada por muito tempo. Quando Miguel Osório já estava trabalhando nisso, uns mediadores químicos apareceram como fatores muito importantes no problema da excitabilidade. Isso abriu um campo em que, outra vez, ele entra com a matemática, mas num conjunto de experiências diferente. Miguel Osório utilizava equações, e alguns dos que trabalhavam com o mesmo problema — o Louis Lapicque,7 7 Louis Lapicque (1866-1952), fisiologista francês, descobriu a cronaxia e estudou a excitabilidade dos neurônios. ( N. do E.) por exemplo — achavam que estava utilizando um formalismo muito complicado em matemática para representar o sistema da estabilidade.

Paulo Gadelha

O senhor ingressou no Instituto Oswaldo Cruz como interno agregado ao Departamento de Fisiologia, passou pela área de biologia, foi professor dos cursos de bioquímica e hematologia, mais tarde foi chefe da Seção de Farmacodinâmica. Como se dava essa titulação e como isso se refletia na definição de especialidades na área biomédica ao longo desses anos?

Haity Moussatché

Tudo se passou de forma muito natural. Entrei para o laboratório em 1934, trabalhei dois ou três anos de graça, sendo já uma pessoa graduada. Aos 26, 27 anos, continuava sem emprego... Foi quando me ofereceram trabalho. Falei com o dr. Miguel: "A situação está ficando difícil para mim. Quero ver se encontro um lugar para trabalhar em fisiologia, alguma coisa...." E então Henrique Aragão me perguntou se não queria trabalhar com febre amarela. "Não sei nada de febre amarela." Eles disseram: "Ah, vão fazer cultura do vírus de febre amarela aqui. Quem sabe você não trabalha um tempo até que saia o seu contrato no instituto." Achei interessante a idéia de trabalhar com cultura de células. Já tinham me oferecido ir para o Nordeste, mas não quis.

Afinal, cultura de tecidos era interessante. Na verdade, era até certo ponto a sobrevivência da célula, mais do que a cultura. Eu não conhecia nada de febre amarela. Tinha estudado parasitologia, mas na ocasião eu ainda pensava que era produzida por um espirilo. Nem sabia que era um vírus. Trabalhei dois anos nisso. Aliás, fiz dois trabalhos científicos sobre febre amarela.

Depois saiu o contrato, como extranumerário em Manguinhos. Naquela époica o dr. Miguel trabalhava também aos sábados. Eu vinha com ele, nessa posição de extranumerário, de 1937 até quando abriu o concurso para o instituto, em 1943. Este concurso demorou muito... Por volta de 1941 saiu o edital. Inscrevemo-nos. Eram cinco ou seis provas. A prova de biologia era eliminatória. Havia uma prova para cada área respectiva: fisiologia, zoologia etc. Fui fazer a prova escrita de fisiologia. Levavam meses, às vezes, para corrigir as provas... "Passei?" "Passou." Começou então a prova prática, no meu caso, de fisiologia. Bom, aí era defesa de tese. Apresentei a tese e, quando terminou isso, fui indicado para biologista do Instituto Oswaldo Cruz, no nível... já não lembro... Parece que eram três, J, K, L...

Bom, teve um detalhe interessante, vou contar... Fomos classificados, sendo que eu fui o primeiro colocado. Íamos tomar posse no Ministério da Educação, mas adoeci, fui o último a tomar posse. Por isso, fui o último na classificação. Só seria promovido dez ou 12 anos depois. Aí a gente vai cozinhando e trabalhando no laboratório, a vida continua. Fui chefe da Seção de Farmacodinâmica, que pertencia á Bioquímica. Foi o Gilberto Vilela quem me indicou. Depois, fui chefe da Seção de Fisiologia. E sempre naquele posto da letra J, não me lembro bem. Acho que é a mesma em que estou hoje. Sou nível 17, corresponde à letra J. Isso depois de quarenta anos, de 1934, quando entrei, até 1970.

Paulo Gadelha

O senhor falou sobre o concurso e sobre a iniciação das pessoas no instituto, justamente quando havia a impossibilidade de acumular cargos, em 1937. Este fato é apontado por alguns historiadores como uma das causas de certo esvaziamento da produção científica do Rio de Janeiro e uma certa decadência de Manguinhos. E isso se observa à época em que Pedro Ernesto era preso, esvaindo-se todo o movimento cultural que se fazia em torno da educação e da assistência médica. Teria havido um deslocamento do eixo cultural e científico do Rio de Janeiro para São Paulo? Isso teria acontecido nesse período em que o senhor vai ser chefe de setor. Concorda com a decadência de Manguinhos nessa época?

Haity Moussatché

Já fiz referência a isso numerosas vezes. Não sei por que chamam de decadência de Manguinhos. Porque não se descobriu uma nova doença de Chagas? Ou porque havia pesquisadores de qualidade inferior à dele? Carlos Chagas fez uma descoberta muito importante e merece o renome decorrente dessa descoberta. Como também o Gaspar Viana, o Henrique Aragão, com o ciclo exoerotrocitário dos hemosporídeos representados pelo Haemoproteus columbae. Havia um grupo de pesquisadores que criava coisas interessantes, numa época que chamo de heróica. Mas, do ponto de vista estritamente intelectual, e não por suas implicações no campo da saúde pública, não sei se a descoberta de Chagas é muito mais importante do que a observação de Miguel Osório sobre a rã sem pele, alguma coisa que se chamou tônus nervoso ou atividade nervosa, e as conseqüências que se tem de tirar sobre o que significa atividade nervosa. Até hoje é uma incógnita para quem pensa em problemas dessa ordem. Isso, de um ponto de vista estritamente intelectual, é menos importante que a doença de Chagas? Não sei. Acho que não!

A doença de Chagas foi fundamental para o Brasil. A patologia do tripanossomo, como ele produz lesões, o que significa como ser vivo que produz uma doença interessa-nos, a nós que somos homens, porque nos mata. O tripanossomo apenas quer viver, e nós temos que pensar por que ele, como ser vivo, produz essas lesões. Intelectualmente, equivale à indagação de por que as excitações cutâneas produzem, na rã, determinadas reações. Estamos no campo da ciência fundamental. Sempre achei que isso fizesse parte de um instituto que tinha Miguel Osório, homens como Costa Cruz, a quem quase ninguém se refere. Lamentavelmente, morreu muito cedo. Veio trabalhar aqui com idéias brilhantes no início dos estudos sobre imunidades. Tivemos aqui um pioneiro das pesquisas nessa área que, hoje, está no auge de seu desenvolvimento. E outro homem de inteligência excepcional, o Carneiro Felipe. Em que essa gente era inferior ao Carlos Chagas? Não era, absolutamente! Ou queriam que o Brasil tivesse pelo menos mais quatro doenças de Chagas, mais algumas leishmanioses e outros males para serem descobertos pelos homens da época heróica? Queriam que o instituto vivesse sempre a época heróica, sempre descobrindo doenças que seriam uma desgraça para o Brasil? É isso que querem dizer com decadência do instituto? Eu não estou de acordo. Acho que é o contrário, e digo: "Aí estão homens da mesma qualidade intelectual de Carlos Chagas." Arthur Neiva é uma das inteligências mais brilhantes que já passaram por aqui. É o homem que estudou os barbeiros, orientou o Herman Lent a prosseguir esses estudos. Sua qualidade intelectual é a mesma de Carlos Chagas. Do Gaspar Vianna pode-se dizer pouco, porque morreu moço demais. Foi uma lástima! Mas acredito que tivesse a mesma qualidade intelectual. Não creio que faltasse essa qualidade aos pesquisadores que enfrentavam situações difíceis de trabalho, já que ainda não havia uma consciência do significado social da ciência. Essa consciência de sua importância para o desenvolvimento econômico e social dos países foi tardia. Para muita gente nasceu quase com a bomba atômica. Nós, do instituto – refiro-me a Walter Oswaldo Cruz, a Herman Lent, a mim e a alguns jovens mais – já víamos a ciência como fundamental. Já valorizávamos esse aspecto da qualidade intelectual do homem da ciência, importante de ser cultivado e promovido para se criar novos cientistas que dessem as forças econômicas de que o Brasil precisava e ainda precisa.

No meu laboratório trabalhavam 14 pessoas, entre voluntários e outros que foram criados por mim. Tínhamos uma quantidade de gente que aspirava pertencer um dia ao instituto! E sentíamos uma enorme barreira, porque achavam que o instituto, realmente, tinha de fazer soros e vacinas. Eram feitos, e sabíamos que eram de má qualidade.

Sabíamos que o soro antitetânico era muito ruim! Uma porção de coisas que se fazia era ruim, e ninguém sabia o preço. Se perguntassem: "Vocês estão fazendo indústria aqui? Qual é o preço disso?" Ninguém sabia...

Essa era a nossa briga. Achávamos que a ciência era fundamental e que não se podia permitir a miséria no Brasil, nem no resto do mundo. Morria gente no Nordeste e em todo o mundo, e já se estava fazendo o desenvolvimento científico, a bomba atômica já havia estourado. Havia uma porção de problemas! O Brasil tinha que acompanhar esse passo! Por isso eu estava unido ao pessoal que lutava, com a SBPC, pela discussão dos problemas da energia nuclear. Quando se discutia a purificação do urânio, estávamos, o almirante Álvaro Alberto e eu, metidos nisso, porque fora negada a compra de centrífugas. O Leite Lopes, o Lattes, eu e um grupo fizemos reuniões para discutir esse problema. Era o pessoal chamado de esquerda. A mim não importa que me chamem de esquerda, porque realmente sou socialista e acho que não tem outra solução. Creio que o problema transcende um pouco isso. Era a nossa posição aqui no instituto. Tínhamos razão de ser assim, porque o pessoal que trabalhava conosco... hoje, está nas universidades, todos muito bem! Essa gente que hoje tem projeção internacional foi criada por nós, saiu do instituto!

Muito se fala nos cassados. Eles foram importantes, mas muito importantes foram as pessoas que saíram do instituto jovens, que agora são maduras, com quarenta anos, e que o instituto perdeu! Mais importante eles do que nós.. Eu, com 61 anos, fui cassado mas podia ter morrido. Destruíram o laboratório, dispersaram uma porção de gente! O Nelson Vaz era um dos melhores imunologistas do Brasil, saiu daqui. Annie Prouvost-Danon foi para a França. A Maria da Guia Silva Lima para o Ceará, para a universidade também. O Leopoldo De Meis é professor na escola de bioquímica, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem projeção internacional. Ou mesmo o Dietrich! Essa gente foi criada por nós e dispersada!

Isso se chama decadência? Não é dacadência, é florescimento! O crime, o massacre, foi ter arrancado quando florescia essa gente nova! Nós nos batíamos para que o instituto desse bolsas ao pesquisador já formado. A ciência não tinha de ser feita, simplesmente, à custa de seu esmagamento, para ver se agüentava, sem receber coisa alguma ... Era preciso abandonar essa história de que tinha de trabalhar só em função da importância prática. Frederick Grant Banting, médico canadense, especialista no estudo de secreções internas que isolou a insulina (1891-1941), dizia: "Não há nada mais prático do que uma boa teoria."

Paulo Gadelha

O senhor está abordando um período relativamente longo, inclusive o massacre. Nós estávamos nos referindo ao final da década de 1930, quando teria havido um esvaziamento da ciência no Rio de Janeiro, retirando o governo Vargas o apoio de que o instituto necessitava para manter as bases institucionais de sua intervenção na saúde pública e experimental. A partir da década de 1950 teria experimentado novo alento de vitalidade. Gostaria de saber se esse período — do final da década de 1930 até a de 1950 — corresponde, de fato, a um esvaziamento político-institucional do instituto, e se isso se refletiu na trajetória das pesquisas e da saúde pública.

Luiz Fernando Ferreira

Eu quero reforçar sua afirmação sobre a relevância da pesquisa básica. O que dá renome internacional ao instituto, inicialmente, não é um trabalho aplicado, não é a doença de Chagas, mas o trabalho do dr. Aragão sobre a evolução do Haemoproteus columbae, dois anos antes, se não me engano em 1907. A repercussão na Europa redundou em prestígio muito grande.

A segunda observação é que, quando se fala em decadência do Instituto Oswaldo Cruz, não se trata da produção científica, da qualidade das pessoas que estão trabalhando ou do que produzem. Trata-se de uma questão institucional. Os salários caem, é preciso buscar complementação pois os recursos para o instituto eram pequenos. É nesse sentido que algumas pessoas entendem decadência. Os salários na época de Oswaldo Cruz, no período que o senhor chama de período heróico, eram bons. A decadência é uma questão institucional.

Oswaldo Cruz conseguiu conciliar, de uma maneira que sempre me pareceu genial, os diversos tipos de prática: tanto se trabalha no ciclo do Haemoproteus columbae, como na epidemiologia da doença de Chagas sem deixar de se produzir vacina contra a peste da manqueira, não é? Ele consegue armar um jogo graças ao qual os recursos vêm com mais facilidade. No Brasil, é mais fácil mobilizar recursos para uma frente mais aplicada — o combate à malária, por exemplo — do que para um trabalho básico. É uma realidade. Pergunto então: a conciliação entre os trabalhos de saúde pública e os mais puros ou básicos, como os de fisiologia ou mesmo de bacteriologia (Aragão fez estudos sobre sistemática de carrapatos que tampouco tiveram retorno imediato), não é uma boa atitude para que se consiga trabalhar, para que a instituição obtenha recursos?

Mário Vianna Dias e Haity Moussatché no laboratório de fisiologia do IOC, década de 1940.

(Coleção Cadem Moussatché).

Haity Moussatché e dois auxiliares inoculando um macaco no laboratório de fisiologia,

circa de 1950.

Da esq. para a dir., Couto e Silva, Haity Moussatché, Alina Perlovagora e Mário Vianna Dias.

(Coleção Cadem Moussatché).

Haity Moussatché

Veja bem, o Oswaldo Cruz conseguiu que o Aragão trabalhasse no Haemoproteus e o Chagas, na doença de Chagas, simultaneamente, antes da descoberta de alguma coisa, sem nenhuma repercussão imediata. O que fez foi deixar o pessoal trabalhar, mais nada. O Oswaldo Cruz deve ter conseguido salários razoáveis para a época porque passou a ter prestígio enorme depois que saneou a cidade do Rio de Janeiro. Um investigador do instituto tinha salário quase igual ao de um desembargador. Depois, foi se deteriorando.

A degeneração do trabalho, do pagamento do salário, representou a decadência do próprio Brasil, que não entendia o significado da ciência, como talvez ainda hoje não entenda perfeitamente. Espero que vá melhorar com a criação do Ministério da Ciência. De modo que não se podia falar em decadência do instituto... E a qualidade dos profissionais que estavam aqui... É verdade que alguns não tinham essa qualidade, este era o nosso problema. Nós achávamos que estes podiam perfeitamente ocupar outros postos que não os do Instituto Oswaldo Cruz. Mas não havia decadência. Não sei nem se se pode falar em decadência da ciência no Brasil... ainda não havia ascensão, era muito ruim. Oswaldo Cruz foi uma exceção, e muitas vezes se diz que a criação do instituto foi uma exceção, devido a seu prestígio. A ciência não tinha significado algum. Nós dizíamos que se um dia fechassem todas as instituições científicas do Brasil, ninguém se daria conta! Mas isso era o Brasil, não era o instituto.

No período a que vocês aludiram, São Paulo foi o pólo de atração por seu próprio desenvolvimento econômico. Assim mesmo, não houve esvaziamento do Rio de Janeiro. Eles souberam aproveitar melhor determinadas situações. O Armando Sales de Oliveira, por exemplo, aproveitou a crise na Europa do pré-guerra para convidar uma série de pessoas e fundar uma escola de ciências com gente de primeira qualidade, como Teodoro Ramos, matemático, Pedro Lima. No Rio de Janeiro essa escola de ciência foi criada muito depois. A nossa Faculdade de Ciências e Filosofia nasceu fraca. Lá nasceu forte. São Paulo conseguiu crescer mais. A situação econômica de uma região reflete-se no seu crescimento científico, evidentemente. De modo que não creio no esvaziamento do Rio de Janeiro.

Paulo Gadelha

Retomando a questão da relação entre pesquisa básica e aplicada, penso no significado do instituto enquanto pólo irradiador de políticas e práticas sanitárias no período heróico, sob a gestão de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Sanitaristas oriundos do instituto — Barros Barreto, por exemplo — protagonizaram um período áureo do sanitarismo no Brasil, sobrevindo depois longa decadência no contexto da política de saúde brasileira. Isso não teria privado o instituto de uma de suas bases de apoio, um braço político que, de alguma forma, reforçava a prática experimental na área biomédica?

Luiz Fernando Ferreira

Quando a gente examina o início, vê que as atividades de saúde pública e pesquisa básica estavam na mesma casa e eram realizadas pelas mesmas pessoas. Depois essas práticas se separam e, do lado da pesquisa, apareceram as dificuldades. Na saúde pública também. A separação parece trazer dificuldades para ambos os lados.

Haity Moussatché

Creio que no tempo de Oswaldo e mesmo no de Chagas essas coisas se faziam simultaneamente, até porque diferenciar a pesquisa básica da aplicada é pura invenção de gente que não sabe o que é ciência. Se soubesse, veria que não há diferença nenhuma. O que hoje é ciência básica amanhã é aplicada e vice-versa. A metodologia é a mesma, podem conviver. Talvez conviver, propriamente, não, mas podem existir simultaneamente. Qualquer problema de ciência que você toma, pode olhar do lado básico e do lado aplicado. Quem estava olhando o lado básico, em dado momento, pode ser daqui a seis meses ou um ano, estará olhando o lado aplicado... Creio que a convivência era a mais natural possível. O tempo de Oswaldo Cruz e Chagas poderia perfeitamente ter continuado. Em dado momento, o instituto começou a trabalhar numa área científica, a pasteuriana, onde determinados aspectos se desenvolveram, mostraram-se de uma importância enorme, refletiram-se imediatamente na saúde dos homens e animais. Esse é um tipo de investigação, cujos resultados aparecem de imediato só em doenças infecciosas.

Na área de fisiologia muda bastante, ainda que os resultados possam aparecer de repente. Uma descoberta tão fundamental como a do Banting mostrou que o diabetes dependia de um hormônio, a insulina, e foi possível resolver o problema de uma doença grave do metabolismo. Mas grande parte das doenças metabólicas ainda está sendo estudada com enormes dificuldades técnicas, e algumas ainda vão esperar bom tempo até que se encontre as técnicas adequadas. Portanto, seus resultados não são tão espetaculares e não despertam tanto a atenção. Depois das grandes descobertas, o instituto entrou num período de trabalho que não tinha a mesma repercussão imediata. Quer dizer, continuou simplesmente a operar com gente que trabalhava em áreas cujos problemas — o câncer, por exemplo —, são estudados até hoje. Dependiam de concepções, de técnicas que não tínhamos e, para algumas coisas, ainda não temos.

Agora, você pode dizer: "Bem, a culpa é de quem não trouxe gente para trabalhar nisso." Era a pergunta que fazíamos: "Por que o instituto não procura entrar em áreas que não são só as da parasitologia, mas sim da fisiologia parasitológica?" Hoje se está fazendo isso, a ponto de o Trypanosoma cruzi ser objeto de ene projetos. Quando têm prioridade as coisas práticas, a fuga é essa, dizer que se está estudando o Trypanosoma. Mas acho que não é necessário mentir. Ou temos uma concepção do que é a ciência hoje, ou perdemos tempo procurando convencer gente que não vê o óbvio. A deficiência não é das coisas óbvias, é das pessoas que estão julgando e que não têm capacidade de examiná-las. Ou não?

Paulo Gadelha

O senhor lembrou do exemplo do Instituto Pasteur. Podia comentar?

Haity Moussatché

O Instituto Pasteur nasceu um pouco antes do Oswaldo Cruz. Depois, os anos se passaram e diziam: "Ah, o Instituto Pasteur está em decadência. Lá não tem mais nada, acabou." Quando menos se esperava, fizeram uma descoberta fundamental na engenharia genética. E hoje é um dos grandes institutos, com uma quantidade enorme de gente trabalhando em áreas fundamentais. Há técnicas que permitem abordar determinados problemas, e enquanto não vierem, você tem de estudar isso. É aí mesmo que precisa criar conhecimentos, e esses conhecimentos terão resultados práticos, certamente!

Cito o caso de William Hamilton, matemático, físico e astrônomo irlandês (1805-65), que trabalhou num tema que, aparentemente, nunca teria importância: os quatérnios. Depois, por suas implicações matemáticas, teve grande importância na física prática. Mesmo quem decidir que vai trabalhar num negócio que é puro, totalmente puro, vai se enganar completamente! Os conhecimentos são todos interligados e podem ser olhados de um ângulo que tem importância para isso ou aquilo. Creio que, no instituto, o que queríamos é não precisar mentir às autoridades para fazer investigação. Aqui só se faz coisas de interesse para a saúde pública.

Haity Moussatché trabalhando no laboratório de fisiologia do IOC, acompanhado de Alina

Perlovagora. (Coleção Haity Moussatché.)

Luiz Fernando Ferreira

Quanto ao trabalho de Banting sobre a insulina, reza a lenda que ele tinha muito menos conhecimento do que muitos fisiologistas ou professores da época, mas conseguiu fazer a descoberta...

Haity Moussatché

É.

Luiz Fernando Ferreira

Isso nos leva a uma questão que às vezes se discute muito: é importante na descoberta científica, na criação original, o acúmulo de conhecimento existente ou, muitas vezes, o que conta é a genialidade ou a capacidade de dar um salto como o Banting deu, mesmo sem tanto conhecimento acumulado?

Haity Moussatché

Não é que o Banting, um cirurgião, fosse totalmente ignorante em relação ao pâncreas. Sabia alguma coisa, e não fez a descoberta só por intuição, nascida do nada. Baseou-se em experiências de outros investigadores. Tanto que Gley, fisiologista francês, imaginara experiência parecida, que dera resultados curiosos, mas tivera medo de publicar por não ter certeza de que aquilo estava certo. Fez, então, o que se chamava uma ‘carta fechada’ e a entregou à academia. Quando Banting fez o seu trabalho, leu a carta e verificou que tinha obtido um resultado parecido com o dele. Quer dizer, a sua descoberta estava na atmosfera, esperando que alguém fizesse a experiência fundamental. Uma descoberta dessa ordem não nasce do nada. Mas uma pessoa, sem saber tanta fisiologia como o professor, lendo alguma coisa, pode imaginar uma experiência que dê certo. O Banting está nesse grupo.

Wanda Hamilton

Queríamos que continuasse traçando sua trajetória no campo da ciência.

Haity Moussatché

O laboratório em que trabalhava foi crescendo. Tivemos uma quantidade bastante grande de gente, umas 14 ou 15 pessoas trabalhando mais ou menos regularmente. Pessoas não contratadas pelo instituto, mas que procuravam o laboratório. Arrumavam tempo quando trabalhavam numa escola onde não se fazia investigação. Vinham fazê-la aqui.

Havia professores que queriam fazer concurso para docência, alguns para livre-docência. Trabalhavam na escola, eram assistentes, tinham alguma questão experimental que queriam desenvolver mas não tinham disponibilidade na clínica em que trabalhavam ou no consultório. Outros visavam até a concurso para catedrático. Então, além de contribuir para a formação de pessoal, o laboratório também permitia que professores de universidade pudessem fazer suas teses de docência ou de catedrático. Cito isso porque é a vida de um laboratório, essa colaboração com a universidade sem nenhum convênio propriamente. Já disse anteriormente que a universidade, por muitos anos, esteve fechada à pesquisa, que realmente começou quando Carlos Chagas Filho fundou o Instituto de Biofísica, o qual, felizmente, existe até hoje. Passou a se chamar Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. Ele abriu as portas da universidade à medicina experimental, como Oswaldo Cruz fizera com a biologia no Brasil no começo do século. Isso tem menos de cinqüenta anos.

Em nosso laboratório, dentre as pessoas que nos procuravam, posso citar, por exemplo, Mauro Pena, um otorrinolaringologista de grande projeção. Era amigo meu. Queria fazer um estudo experimental sobre problemas de surdez por otoesclerose. Queria operar o ouvido médio de alguns macacos tendo em mira criar alguma coisa que permitisse a seus pacientes ouvir. Estava muito no começo e os otorrinos não podiam ficar treinando em seres humanos. Mauro quis fazer uma tese sobre técnicas, introduzindo modificações que já conhecia teoricamente. Fê-la aqui no instituto e se tornou docente livre em otorrinolaringologia. Couto e Silva formou-se com Álvaro Osório de Almeida, foi assistente de fisiologia da escola de medicina. Depois deixou a fisiologia, porque viu que as perspectivas de se realizar não eram convenientes; preferiu fazer clínica. Quando vagou a cadeira de higiene, quis fazer concurso, pois a higiene está intimamente relacionada com a fisiologia, em que era competente. Estudou a proteção contra os raios solares com urucum. Fez um estudo experimental, especialmente sobre a ação fotodinâmica. Luz incidindo sobre o organismo pode produzir efeito tóxico. Couto e Silva verificou se o urucum tinha efeito protetor. Deolindo do Couto e Silva foi professor de neurologia. Quando morreu o Austregésilo, fez concurso para a cátedra.

Luiz Fernando Ferreira

Foi o concurso em que ganhou o Hamilton Nogueira?

Haity Moussatché

Eles empataram. Aí foi para a congregação, que decidiu pelo Hamilton Nogueira. As razões que se alegam... não seria o momento de comentar. Deram ao Hamilton, o que acho muito bom, porque era uma figura, tinha projeção política.

Luiz Fernando Ferreira

Ele foi senador ou deputado, não foi?

Haity Moussatché

Senador, exatamente. Mas tinha competência, era professor assistente de higiene e, como Couto e Silva, uma pessoa capaz.

Wanda Hamilton

Existindo empate, quais eram os parâmetros para a escolha?

Haity Moussatché

Na congregação, cada professor, lendo o currículo, pelo conhecimento maior ou menor que tinha dos candidatos, fazia sua eleição. O Hamilton foi eleito por uma diferença muito pequena. Couto e Silva continuou na clínica. Paulo Niemayer, cirurgião, esteve aqui fazendo umas alterações na tese do Deolindo, porque aqui no laboratório havia essa possibilidade.

Paulo de Carvalho, professor de farmacologia, quis fazer concurso quando morreu o catedrático. Eu tinha uma substância nunca estudada em farmacologia, o triafenil-tetrazol, muito importante para pesquisas de hidrogenados, utilizados na medição química do sistema nervoso central. Ele fez a tese quase toda aqui conosco, e se tornou catedrático. Tinha um laboratório lá na escola, mas o nosso estava mais bem montado.

Clementino Fraga Filho estava interessado em estudar uma fração do sangue que intervém na coagulação. Queria ver, em animais sem fígado, o que se produzia com esta fração, do ponto de vista bioquímico, assim como a ação sobre a coagulação etc. Queria trabalhar em cachorros sem fígado e chegou a procurar um cirurgião, mas soube que eu estava trabalhando com cães nessa condição para verificar um problema relativo à histamina no sangue durante o choque anafilático. Procurava esclarecer um problema colocado pelo Maurício Rocha e Silva, que achava que praticamente toda a histamina que aparecia no sangue do cachorro, durante o choque anafilático, era do fígado, onde estava bem armazenada. Essa histamina era liberada, entrava na circulação e ocorria a histaminemia, conseqüentemente a baixa de pressão e o choque. Eu achava que o fígado talvez fosse importante, mas podia não ser só ele. Por isso fui me meter a tirar fígado de cachorros. Confesso que matei muito mais cachorros do que o cirurgião. Mas acertei a técnica e fiz um trabalho sobre isso. Ele veio me procurar, fez a tese e passou no concurso. Isso tudo é história. O laboratório era o centro de atração para muita gente, e continuaria a ser durante o tempo em que estivemos fora.

Luiz Fernando Ferreira

Não eram só fisiologistas profissionais que vinham, mas também pessoas da área clínica, interessadas em desenvolver trabalhos nessa área?

Haity Moussatché

Exatamente. Eu achava importante mostrar que o nosso laboratório era muito vivo! Nós o tornamos vivo, e os trabalhos continuamente eram publicados nas revistas, apresentados nas reuniões científicas. Esse foi o ‘Massacre de Manguinhos’, pelo menos no meu laboratório.

Luiz Fernando Ferreira

O laboratório de cirurgia experimental era ligado à fisiologia?

Haity Moussatché

Não, era perto porque ficava no prédio hoje conhecido como Cardoso Fontes, no primeiro andar. Com o Fontana, instalei uma série de contadores de cintilação, contadores de raios beta. Naquela ocasião, o diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas era José Leite Lopes, grande amigo meu. Pedi que me fizessem um contador e eles me fizeram. Tinha mais um outro que conseguimos, um de cintilação. Enfim, instalamos naquela sala de cirurgia experimental um laboratório, que ficou praticamente anexo à fisiologia, para verificar problemas de contágio com isótopos.

Luiz Fernando Ferreira

Esse laboratório de cirurgia experimental chegou a funcionar? Foi idéia do Maurício Gudin, irmão do ex-ministro Eugênio Gudin, não foi?

Haity Moussatché

Algumas pessoas tentaram fazer cirurgias. O Gudin tentou fazer algumas, mas não era homem para estar freqüentando laboratório a toda hora. Murilo Fontes era seu assistente. Às vezes, algumas dessas operações eram feitas em animais porque a sala era maior, mas sem a parte de formol. Essa parte não era feita porque o pessoal ficava com nojo, não se eliminava totalmente o formol, de modo que aquilo teve vida curta.

Wanda Hamilton

A colaboração entre pesquisadores e pessoas da universidade que vinham ao instituto era sem convênio, em nível pessoal?

Haity Moussatché

Era praticamente em nível pessoal. Claro que a direção do instituto estava informada. Quando eram clínicos, vinham aos sábados, porque sabiam que estávamos trabalhando. Ficavam um ano, às vezes trabalhando todos os sábados. Às vezes, vinham aos domingos também. Trabalhávamos sábados, domingos e feriados.

Luiz Fernando Ferreira

Essa coisa de convênio e assinar papel, isso é recente, não é?

Haity Moussatché

É, e tem que ser visto com muito cuidado, porque assusta o pessoal. Às vezes, a decisão não é administrativa, mas dos próprios laboratórios. Ontem mesmo, por exemplo, procurou-me uma moça que queria fazer estágio aqui. Entregou não sei aonde um papel pedindo estágio. É estudante de biologia, escreveu que ia fazer estágio de parasitologia. Por acaso é minha vizinha, e o pai me procurou. Perguntaram a ela se podia trabalhar o dia inteiro. Disse que o dia inteiro não podia. Disseram-lhe que, nesse caso, não podia estagiar.

Luiz Fernando Ferreira

Não, a decisão é do departamento, do laboratório. O Galvão, por exemplo, só aceita se for em tempo integral. Morel, se não me engano, exige que saiba ler inglês. Em nenhum momento a administração decide quem faz ou não estágio.

Haity Moussatché

Isso é muito importante, porque o melhor material para treinar no laboratório é o estudante, não é o formado. Este já vem com uma segunda intenção: quer ter o lugar. Pode ser que o estudante também queira. Deviam assinar algum documento dizendo que trabalham voluntariamente, não têm exigência a fazer, vêm espontaneamente procurar. É como eu digo sempre: "Eles são atraídos... é alguma coisa que vem de dentro e não de fora."

Luiz Fernando Ferreira

Acho importante o senhor dizer isso, porque durante toda a vida estudantes fizeram estágio. De uns tempos para cá, não sei por quê, começou-se a aceitá-los só no último ano de faculdade, ou já formados. Antes entravam até antes do primeiro ano, e deram grandes pesquisadores, não é?

Haity Moussatché

Quero chamar a atenção para o pessoal que ficou aqui no laboratório, à época do ‘Massacre de Manguinhos’, preocupado com o destino que poderia ter o material. Não se sabia o que ia acontecer e, pelo que se diz, parte desse material foi vendido como sucata. Quando as pessoas viram que o laboratório ia ser fechado mesmo, trataram de levar parte do material para outros laboratórios. Teve gente que até guardou parte dele. Alguns eram contratados pelo instituto, outros já efetivos.

Esse pessoal que ficou foi transferido para o Instituto do Câncer. A própria instituição os transferiu, mediante acerto com o Ministério da Saúde.

Wanda Hamilton

O senhor pode falar de alguns dos transferidos?

Haity Moussatché

Claro, o Pedro Fontana Júnior, por exemplo, não trabalhava diretamente comigo, mas colaborava. Foi transferido. Júnia Peixoto, Ivan Caldas Martins, que trabalharam comigo, também. Começaram como estudantes, já estavam formados e trabalhavam aqui. Continuaram as investigações que estavam fazendo comigo pois permaneceram aqui uns dois, três anos. Tinha muita gente... alguns já tinham ido embora.

Nelson Vaz, Braúlio Magalhães Castro, Maria da Guia, que esteve há pouco tempo aqui como a - Annie Prouvost-Danon, Paulo Ramos, José Lopez Quadra, que também foi transferido. Marise Jourberg trabalhava comigo em farmacologia aplicada à psicologia do comportamento. Também teve de ir embora. Maria Queiroz, que está trabalhando na Fundação Ataulfo de Paiva... Uma porção de gente. Nuno Alves Pereira, um dos voluntários, já foi até diretor da escola.

Wanda Hamilton

A gente estava falando no ‘Massacre’. Sei que foram feitos vários inquéritos policiais militares (IPMs). Foram chamados 16 cientistas para depor, dos quais oito foram cassados e, dois, aposentados pelo AI-5.

Haity Moussatché

Creio que não foram só 16. Essa comissão de inquérito, pelo menos a primeira, ficou aqui dois meses. Inquiriram desde cientistas até bedéis.

Wanda Hamilton

A comissão era presidida pelo Olympio da Fonseca?

Haity Moussatché

Não, houve uma comissão militar e outra civil. A primeira foi militar. Veio um general, chamava-se Aluísio Falcão. Quando se instalou, fui o primeiro a ser chamado. Fui falar com o general, que era muito amável. Pode parecer que, sendo uma comissão militar, eles fossem atrabiliários. Não foram no nosso caso, ainda que em outros tenha acontecido coisas muito sérias. Primeiro ele disse: "O senhor é o primeiro a ser chamado porque tem uma grande projeção aqui no instituto." E tirou uma série de perguntas — tinha um bolo! — escritas em pedaços de papel. A primeira pergunta que me fez foi sobre minhas idéias políticas; se eu era comunista. Aliás, essa pergunta me foi feita depois, na Comissão Central de Inquérito da Segurança do Ministério da Saúde.

Wanda Hamilton

E o Olympio foi presidente de uma comissão montada aqui? Ele falou que havia comunistas em Manguinhos, um grupo pequeno, uns três ou quatro, mas não havia um centro comunista. Depois foi ser presidente dessa comissão...

Haity Moussatché

Ele presidiu uma comissão civil. Quando me perguntaram sobre isso, disse: "Olhe, general Falcão, tenho medo que um inquérito como esse, em que as perguntas e respostas são feitas assim, parcialmente, fique um tanto desconexo, uma colcha de retalhos. Eu já lhe digo quais são minhas idéias políticas. Em primeiro lugar, quero agradecer imensamente ao senhor essa distinção, de chamar-me primeiro por ter projeção especial aqui no instituto. Ser chamado por uma comissão militar nessas condições não deixa de ser uma coisa boa. (Risos.) Quero dizer-lhe que é muito difícil responder se sou comunista ou não, porque isso é motivo de discussão. O que quer dizer ser comunista ou não ser? Nunca pertenci a partido comunista, a nenhum partido político, porque não sou dos que crêem que a solução do mundo seja através da política. Creio que a solução é através da ciência, utilizada para o bem social da humanidade, e não por políticas de antagonismo, como no mundo atual. Tenho minhas idéias políticas: sou socialista. Acho que o capitalismo não tem solução, vive contradições que, certamente, não vão resolver os problemas sociais do mundo."

Já se passaram vinte anos, não é? Os problemas estão aí, agravados. Se tenho razão ou não, não quero discutir. Ainda penso do mesmo jeito, e agora mais seriamente. Em entrevistas, publicamente, quando me perguntam o que penso, digo que as ideologias políticas perderam a capacidade de resolver os problemas do mundo.

Os problemas sociais do mundo todo, e não só do Brasil, vão além das ideologias, tais como se apresentam na defesa de pontos de vista políticos. O Brasil está metido num complexo com as demais nações, das quais sofre influências. A solução de seus problemas sociais está estreitamente ligada à solução dos de outros países, particularmente os do Terceiro Mundo. Continuo achando que o socialismo, pela distribuição mais eqüitativa das riquezas, é uma saída.

Riqueza não é, simplesmente, ter o que comer e um cantinho para dormir, é ter a vida de qualquer cidadão médio da União Soviética ou dos Estados Unidos, de Moscou ou Kiev, Leningrado ou Odessa, um cidadão de nível médio que vive como nós. Somos a classe média-média, nem muito rica, nem pobre, não é? No mundo inteiro, nas cidades do mundo capitalista e do mundo comunista, em Nova York, San Francisco, Nova Orleans, em todas as cidades, enfim, dos Estados Unidos, o cidadão médio tem a sua vida. Estender esse padrão a toda a população do mundo, a cerca de cinco bilhões de pessoas, das quais mais de 70-80% não têm acesso, às vezes, sequer à comida pode ser que seja possível, mas não tenho certeza.

Wanda Hamilton

Quais são os caminhos para se chegar lá?

Haity Moussatché

Ah, os caminhos são os da tecnologia. Mas será que ela vai resolver esses problemas, atualmente? Não estaremos contaminando a atmosfera, o meio ambiente, ao querer dar a todos melhores condições de vida? Nós, que consumimos, que temos acesso a alguma riqueza, somos quase minoria, somos realmente uma aristocracia no mundo atual... Os outros estão aí, na miséria, morrendo diariamente de fome, em todos os países do Terceiro Mundo. As crianças morrem aos milhares, e esse problema não nos afeta mais porque já perdemos a sensibilidade. A vida é a coisa mais preciosa que o homem tem!

Como é possível que os governos assistam a isso tudo e não dêem importância, não tomem providências? Uma delas é a redução da natalidade, o que permitirá, com os meios de produção existentes, dar a todos uma vida decente. Não é só comer! São todas as coisas, inclusive o que se defende tão insistentemente nos países capitalistas: a liberdade. Liberdade de expressar opiniões. Por que não chegar a isso, todo mundo com liberdade para exprimir suas opiniões? Por que a liberdade de expressão tem que ser de uma pequena minoria que detém o controle dos meios de comunicação e pode dizer o que quer? E a maioria? Tem que ouvir simplesmente, pelo rádio, pela televisão? Às vezes nem sabe ler, no fundo nem quer saber, não quer tomar parte nisso. Essa liberdade não seria uma falsa liberdade que estamos propagando?

Sei que nos países socialistas se questiona e ataca a idéia da restrição à natalidade. Temos que tomar providências, nos países capitalistas e nos socialistas, para dar a todo cidadão médio, a chamada classe média, que constituirá a única classe, o direito a todos os meios que a humanidade é capaz de produzir. Cada um com seu gosto: gosta de música, compra discos; gosta de fazer esporte, faz... É ter a liberdade de escolher, de dizer o que pensa através dos órgãos de imprensa ou das associações sindicais. Poder viver e se manifestar como um cidadão qualquer, sem que os meios de comunicação estejam nas mãos de alguns... Faço a crítica igualmente aos países socialistas, onde só podem transmitir informações os que detêm os meios de comunicação. Na verdade, a liberdade aí é uma ficção. Sou totalmente favorável à liberdade.

Não há solução para a massa de gente que está na miséria. Às reuniões entre economistas, políticos e sociólogos comparecem as melhores cabeças, e quando saem, a gente vê que não encontraram soluções. Não é por burrice, evidentemente! É porque não estão levando em conta uma coisa fundamental, essa massa de gente que está crescendo e reclamando. Algumas vezes propõe-se uma racionalidade social, como estudar o número de pessoas que pode ter cada família...

Luiz Fernando Ferreira

Planejamento familiar...

Haity Moussatché

Exatamente. Por exemplo, acabei de ler na New Scientist que, frente à impossibilidade de se resolver o problema da fome em Bangladesh, quando surge uma senhora esquálida com o filho faminto a pedir comida, instituições que estão ajudando dizem: "Sim, damos comida, mas primeiro você tem de se submeter a uma ligação das trompas." Se não fizerem isso, não vão resolver! Durante todo esse tempo nada se resolveu, porque continua o crescimento da população, as crianças nascem e morrem. Eu até disse à minha neta, que está estudando cinema: "Vamos fazer um filme juntos? Filhos para morrer." É o que se está fazendo! Aconselhar a natalidade para que os filhos morram... são filhos para morrer! Estamos perdendo a sensibilidade para essa coisa preciosa que é a vida. As pessoas morrem e a gente cita isso simplesmente como estatística!

Wanda Hamilton

O senhor falou tudo isso para o general?

Haity Moussatché

Falei durante cinco horas! Houve alguns intervalos em que ele me fez umas perguntas, mas a mim não deu nenhuma resposta. Depois que acabou, fui embora. Sei que informou que nós éramos um grupo idealista, e não havia nada, nenhum de nós era perigoso. (Risos.) Eu, como o Herman Lent e vários outros, não tinha nada de perigoso.

Wanda Hamilton

À época do golpe de 1964, o Travassos era o diretor do instituto. Depois entrou o Rocha Lagoa. Qual foi a política do novo regime em relação à ciência?

Haity Moussatché

A única coisa que se pode dizer é que não traçou nenhuma política para a ciência. Foi um golpe de estado de 1o de abril. Depois, em 1969, foi golpe para valer, dado contra o Castello Branco. Teve início um regime que já se sabia que ia durar. Não fizeram nenhuma declaração sobre o que iam fazer com a ciência. Não era preocupação deles.

Wanda Hamilton

Mas os cientistas estavam se mobilizando pelo Ministério da Ciência e Tecnologia....

Haity Moussatché

Era um movimento que existia desde muito antes. Nós já nos mobilizávamos por sua criação em 1958-59. Recentemente, o próprio Renato Archer, o primeiro político a assumir o Ministério da Ciência e Tecnologia, referiu-se a isso. Disse ter visto o José Leite Lopes e o Jaime Tiomno, físicos do Rio de Janeiro, falando na televisão. Éramos nós, que começávamos a nos bater pela criação do Ministério da Ciência.

Wanda Hamilton

Esse movimento surgiu na Academia Brasileira de Ciências?

Haity Moussatché

Nasceu de conversações com um pessoal ligado à SBPC. Na Academia de Ciências estávamos muito preocupados com o destino da ciência. Fazíamos reuniões, conversávamos muito sobre o que fazer. O Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) havia sido criado, e o Álvaro Alberto foi o primeiro presidente. Era recebido pelo presidente da República. Com o tempo, o próprio Conselho de Pesquisas foi perdendo status. A ciência se via cada vez mais incapaz de atingir os altos postos políticos para dizer o que pensava, o que se devia fazer. Então nasceu essa idéia... Não se pode dizer que tenha tido um pai, porque nasceu das conversações.

Luiz Fernando Ferreira

O instituto estaria melhor no Ministério da Ciência e Tecnologia do que no Ministério da Saúde?

Haity Moussatché

Eu defendia essa idéia quando se pensou que o ministério ia ser criado; naquele momento pediram que indicássemos quais instituições poderiam pertencer ao Ministério da Ciência. O instituto era uma delas.

Wanda Hamilton

Por quê?

Haity Moussatché

Era um instituto de medicina experimental. Discute-se muito se o Oswaldo Cruz queria criar um instituto de medicina experimental ou um instituto para investigações no campo da biologia, relacionadas à medicina ou não. Querendo se prender às origens, muita gente acha que o Oswaldo Cruz queria o primeiro. Costumava-se dizer, "Ah, não, veja o Instituto Pasteur, de onde ele veio, é um instituto de medicina experimental." Mas não é bem assim. O próprio Pasteur era um químico. O Instituto Pasteur, atualmente, tem muita bioquímica. Os micróbios matam e criam doenças, mas antes de ser patogênicos, são seres biológicos que têm de viver. Patogênicos somos nós, para eles, quando usamos substâncias para matá-los. Então, o que é patogênico? Onde está a medicina? Se eles pudessem criar uma medicina experimental para se defender do homem, estariam também tratando disso. De modo que é bem provável que o que esteja em jogo, aqui, seja a biologia como um todo, particularmente os campos que vão esclarecer os fenômenos da vida, o que significa um ser vivo, qualquer que ele seja. Nós o consideramos um parasita, mas ele está vivendo, precisa de alguma substância que podemos sintetizar e que ele não sintetiza, e por isso se torna parasita. Mas também nós estamos utilizando muitas coisas dele. Tal interação faz com que o Instituto Oswaldo Cruz deva ser um centro para o estudo dos fenômenos biológicos mais importantes. Dentro da estrutura do Ministério da Saúde, importante era produzir soros e vacinas. Na hora em que você precisa usar soro e vacina para um caso específico, não vai perguntar que pesquisa se está fazendo... Poderiam ser produzidos por qualquer instituto, com gente treinada para isso. Poderia ser até uma indústria particular ou do Estado, voltada especificamente para a produção, em condições melhores, portanto. Eu sabia que no instituto as coisas estavam atrasadas, muitas coisas eram feitas a um preço que ninguém sabia, porque não eram quantificadas. Pedia-se dinheiro, mas ninguém sabia o preço. Era uma instituição onde o controle de pessoal era remoto, às vezes um livro de ponto para assinar. Ora, isso deveria ser feito por uma instituição do Estado com características industriais, para se saber o preço que custa. Quando você tem que usar vidros que se quebram, e ninguém quer saber quantos quebram, é um absurdo! Isso tem um preço! Eu achava que a pesquisa deveria ser num instituto à parte, não numa instituição de controle de medicamentos e produção de vacinas. O instituto seria do Ministério da Ciência e Tecnologia, para que o pessoal que trabalhasse lá, como nós, que formávamos gente nova, não tivéssemos, simplesmente, um cargo técnico e uma técnica muitas vezes criticável.

Wanda Hamilton

Na época de Oswaldo Cruz esses diferentes ramos da ciência conviviam bem. Existia campanha de erradicação, medicina experimental, produção, tudo convivendo no instituto, não é?

Haity Moussatché

Isso é verdade. Há cerca de cem anos! Mas você acha que tudo de ciência e tecnologia usado em 1904 ia permanecer mais ou menos igual até 1984, sem que houvesse necessidade de se reformular toda a maneira de proceder? Oswaldo Cruz estava formando os primeiros investigadores do Brasil! Carlos Chagas apenas tinha aprendido alguma coisa sobre protozoários e transmissores quando descobriu outras coisas importantes nesse período heróico. Passados mais de cinqüenta anos, não podemos continuar na mesma situação. Era preciso reconsiderar o que o Instituto Oswaldo Cruz podia representar para a ciência no Brasil. Quando se começou a pensar na criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, no curso das conversações entre vários pesquisadores, conseguimos interessar o Arthur Moses, tivemos reuniões até com o Roberto Campos para discutir o problema.

Carlos Chagas Filho, Antônio Couceiro e muitos pesquisadores eram contra a criação do ministério. Achavam que iriam colocar à frente dele um ministro político, e que isso criaria problemas para o cientista. Havia, portanto, divergências de parte de gente importante. Nós chamávamos a atenção deles para o fato de Álvaro Alberto ter sido o primeiro presidente do Conselho Nacional de Pesquisas sem ser pesquisador. Ele era professor de físico-química da Escola Naval, mas tinha relações diretas com o presidente da República. Os outros presidentes do CNPq alcançavam o segundo secretário, quando achávamos que precisávamos ter um ministro que falasse sobre os nossos problemas na hora de repartir o bolo orçamentário. Se fosse um político, podíamos dizer que não estava cumprindo a sua missão. Enfim, queríamos que a ciência passasse a significar algo no Brasil. Mas o golpe militar ignorou o Ministério da Ciência e Tecnologia, e até considerou subversivas as pessoas que eram favoráveis a isso, pois eram consideradas de esquerda. Era um argumento fora de propósito. Após a instauração da Nova República,8 8 Período de governo que teve início com a eleição indireta de Tancredo Neves em 1984, após o último governo militar, o do general João Figueiredo. Apoiado numa ampla coalizão política oposicionista, a chapa Tancredo Neves-José Sarney derrotou no Colégio Eleitoral o candidato Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo que concorria à presidência pelo partido do governo, o Partido Democrático Social (PDS). criou-se o Ministério da Ciência e Tecnologia e o ministro não é pesquisador. Mas Renato Archer está procurando ouvir o pessoal de ciência, ele está tentando fazer alguma coisa para que a ciência passe a realmente significar mais nos altos níveis da administração do país.

Wanda Hamilton

Após o golpe de 1964, Rocha Lagoa assumiu a direção do Instituto Oswaldo Cruz. Como esse fato repercutiu no instituto?

Haity Moussatché

Havia dois grupos. Um achava que o instituto deveria continuar no Ministério da Saúde. Os diretores pediam orçamento para fazer soros e vacinas porque isso sensibilizava mais os políticos a dar verbas. Achavam que essa era a forma de o instituto ter as verbas de que precisava. Às vezes, para se conseguir alguma coisa, um aparelho que tinha o preço de uma vaca, tínhamos de pedir supostamente uma vaca, mas esse dinheiro não era utilizado para isso. Eu achava isso uma mentira, um absurdo. Estávamos no pós-guerra e sabíamos que a ciência era importante. Os diretores dos institutos deveriam apresentar nossos problemas como coisas de ciência mesmo. Alegavam que tínhamos que fazer coisas para uso público, soros, vacinas ou o que fosse. Achávamos que não era mais necessário utilizar essa mentira para justificar nosso trabalho aqui. Se achassem que ciência não era importante, que dissessem claramente. Mas os políticos diziam o contrário, que a ciência era importante! Depois do Sputinik, da explosão da bomba atômica, qualquer político sabia que a ciência era fundamental para o desenvolvimento do país. Não era preciso continuar alegando balelas para se dizer isso!

Wanda Hamilton

E o Rocha Lagoa?

Haity Moussatché

No instituto, ele pertencia a outro grupo. Dizia que não estava de acordo conosco, que éramos elementos perniciosos ao instituto. Sabíamos que nossa situação aqui não era muito favorável. Estávamos num momento em que se anunciava a nossa morte.

Paulo Gadelha

Uma coisa intrigante é que a cassação foi politizada, talvez incorretamente, tanto por quem executou o ato como pelas vítimas da repressão. O fato tomou dimensões muito superiores às simples divergências com relação aos rumos do instituto. Esse grupo é identificado tanto pela repressão quanto por quem está do lado de cá, como mais à esquerda. Como entender isso?

Haity Moussatché

Em princípio aceitemos que havia um grupo de esquerda e outro de direita. São classificações muito subjetivas. Homens como Miguel Osório de Almeida, Lauro Travassos, o próprio Tito Cavalcanti não acreditavam que a ciência fosse uma solução social para o mundo moderno. Eram céticos. Não estou me referindo àqueles que jamais se preocuparam com o problema e que, portanto, são da direita ou acham que o mundo, assim, está muito bom.

Particularmente, no caso do Rocha Lagoa, dizem que ele era inimigo pessoal nosso. Não acredito muito nisso. Nunca tive problemas com ele. Acho que simplesmente se aproveitou de uma situação criada no país, em que se podia punir os que estavam pensando como elementos da esquerda. O governo não desejava manter em seus quadros quem lhe pudesse criar problemas. Nós estávamos nesse caso. Para o Rocha Lagoa, era muito fácil conseguir que o Médici nos aposentasse. Médici também cassou muita gente da Faculdade de Filosofia, baseando-se em processos levados pelo diretor da faculdade.

Há os que acreditam que o cientista tem uma função social fundamental. Vou além: o cientista que não entende o significado social de sua prática não sabe por que está fazendo ciência. Depois de um livro tão fundamental quanto A função social da ciência, publicado em 1939, da bomba atômica e do Sputinik não se pode duvidar de que a ciência e a tecnologia têm grande potencialidade para a solução de muitas coisas. O importante na bomba atômica não é a guerra, mas a fissão do átomo. Nós, que éramos chamados de esquerda, achávamos que a ciência tinha essa função social importante. Não deveríamos ficar a reboque de umas tantas aplicações — nem eram mais aplicações, eram rotinas, coisas que até já estavam atrasadas. Podíamos desempenhar papel muito mais importante no desenvolvimento da ciência e do país. Até mesmo pessoas que admiramos, como Miguel Osório e Lauro Travassos, achavam que a ciência tinha importância mas não ia resolver os problemas sociais, ainda tinha alguma a ser descoberta no homem para ver como transformá-lo num ser... melhor. O pesquisador é um homem que sempre tem dúvidas. Eles tinham muitas dúvidas sobre como a ciência poderia intervir numa transformação social que levasse, não a um paraíso, mas a um melhor entendimento entre os homens. Achavam que mesmo que a ciência progredisse, os homens nunca atingiriam o entendimento total.

Paulo Gadelha

O senhor faz parte da associação para a criação do Parlamento Mundial. Que projeto é esse?

Haity Moussatché

Bem, a idéia foi de Noel Baker, prêmio Nobel da Paz, que achou que era chegado o momento de reunir homens de ciência, conhecidos por seus trabalhos e suas posições, para formar uma associação chamada Parlamento Mundial, que iria elaborar, vamos dizer assim, uma Constituição. Amanhã, talvez fosse possível instaurar o entendimento entre todas as nações e haveria um parlamento mundial com homens de ciência ou não devotados à causa da paz e do entendimento humano. Perguntaram se eu aceitava fazer parte, e eu disse: "Claro que sim."

Wanda Hamilton

Segundo Herman Lent, muito antes do golpe, de todo esse problema político, aliás desde o tempo de Oswaldo Cruz, existiram dois grupos em conflito no instituto. Surgiram por causa de uma dissidência a respeito do Arthur Moses, que Oswaldo Cruz não quis contratar. Depois, Carlos Chagas o contratou. Olympio da Fonseca, que foi diretor do instituto, diz que sempre houve oposição muito grande aos diretores por brigas internas com repercussão até na imprensa. Qual foi o papel destas questões internas no processo que culminou na cassação?

Haity Moussatché

O problema do Arthur Moses ocorreu em 1910, 1911. Eu tinha um ano de idade ou nem era nascido. Arthur Moses era, naquela época, muito moço, um jovem brilhante, que se iniciava na pesquisa. Ele queria fazer parte do instituto e parece que recorreu a influências políticas para que fosse efetivado. Oswaldo Cruz declarou que deixaria o posto se ele fosse efetivado. Moses teve de sair e, mais tarde, foi para o Instituto de Biologia. Depois, praticamente largou a investigação científica.

Luiz Fernando Ferreira

Mas chegou a desfrutar de algum prestígio?

Haity Moussatché

Ele começou a fazer investigação e tinha certa posição. Não posso dizer que era um grande pesquisador, pois estava começando, era muito jovem. Quando o conheci, já era um senhor muito mais velho do que eu. Em 1911, devia ter, sei lá, 26, 27 anos. Mas era brilhante. O que houve, realmente, foi que Oswaldo Cruz não admitiu que seu prestígio fosse posto à prova por um jovem que queria fazer parte do instituto.

Luiz Fernando Ferreira

Oswaldo Cruz era muito cioso de sua própria autoridade, não é?

Haity Moussatché

Era cioso e estava criando o que queria. Era muito cuidadoso na escolha do pessoal.

Wanda Hamilton

Mas os dois grupos continuaram a existir?

Haity Moussatché

Não sei, acho que não. Não tenho notícia da formação de dois grupos. Mais tarde, quando Oswaldo Cruz já estava doente, pesquisadores com certo prestígio, como Belisário Penna, Carlos Chagas, Figueiredo Vasconcellos começaram a pensar em quem iria substituí-lo. Aconteceram coisas perfeitamente humanas. Chagas achava que era o mais prestigiado, e provavelmente era. Uns achavam que tinha grande prestígio, mas talvez não fosse bom administrador. Outros achavam que poderia dirigir o instituto melhor, porque tinha as qualidades. Não creio que isso tenha tido muita influência na história do instituto, nem tampouco quando o Olympio da Fonseca assumiu a direção. Ele já chegou com uma atitude especial, de querer fazer grandes transformações. Nós tínhamos posições definidas quanto às coisas que tencionava fazer. Achávamos que o instituto deveria realmente mudar, mas não no sentido que ele queria, que era o do instituto dos tempos de Oswaldo Cruz.

Reintegração das cassados, agosto de 1986. Da esq. para a dir., Domingos Arthur Machado

Filho, Masao Goto, Fernando Braga Ubatuba, Sebastião José de Oliveira, Hugo de Souza

Lopes, Augusto Perissé, Moacyr Vaz de Andrade, Herman Lent e Haity Moussatché.

Foto: Flávio de Souza.

Olympio fundou o Departamento de Micologia. Depois, fez concurso para a Escola de Medicina, onde lecionou muitos anos. Era já uma pessoa de prestígio. No entanto, não teve a oportunidade de fazer um instituto de parasitologia ou de criar um laboratório de investigação que mostrasse quem realmente era. Regressou ao instituto com uma porção de programas que desejava implementar, entre eles, a compra de um microscópio eletrônico. Mas não é isso que define uma instituição, ter um aparelho muito moderno, e sim ter gente capaz de trabalhar. Criou-se, então, certa divergência. Ele apoiava muita gente do antigo instituto. Acho que o instituto tem que ter uma linha, uma trajetória, que não difira de seus objetivos fundamentais. Estava ampliando seu raio de ação nacional face às necessidades científicas. O Brasil tinha de formar gente nova, e éramos nós que a formávamos. O Vilela também, mas ele sempre ficava de fora, não era uma pessoa que se engajasse numa luta maior, como nós. Walter Oswaldo Cruz, um dos filhos do patrono da instituição, Herman Lent, eu e alguns mais jovens achávamos que tínhamos de lutar por isso. E fomos longe. Não pense que isso nos custou pouca coisa! Eu havia feito concurso para o instituto e estava aqui há muito tempo. Tinha tirado o primeiro lugar, e o Aragão ofereceu-me uma bolsa para ir aos Estados Unidos. Herman não quis fazer o concurso, preferiu ficar como contratado. Mas o Aragão julgou que ele também merecia bolsa para ir aos Estados Unidos conhecer outros laboratórios. Dividiu uma bolsa entre nós dois, cada um com seis meses.

Achávamos que Aragão estava fazendo coisas que ainda eram do velho instituto. Este tinha crescido e precisava de um conselho. Fomos falar com ele: "Dr. Aragão, seria interessante criar um conselho que não fosse executivo, mas que funcionasse." "Ah, isso é uma idéia muito antiga", respondeu. Já no tempo de Oswaldo Cruz pediam que criasse um conselho. E Oswaldo Cruz disse: "Bom, o que vai acontecer é o seguinte: crio um conselho, entram o Chagas, Gaspar Vianna, Rocha Lima e outros. Rocha Lima e Gaspar Vianna vão se unir contra mim; ou então eu e o Chagas vamos ficar contra o Rocha Lima. Não vale. O melhor conselho que cada um tem é exercer a sua função com a autoridade que o cargo lhe dá."

Nossa atitude levou o Aragão a comentar que éramos destrutivos. Uma pessoa ouviu e nos disse: "Sabem que o Aragão disse que vocês são destrutivos no instituto?" Eu indaguei: "Como é possível que tenha dito uma coisa dessa quando acaba de nos oferecer uma bolsa para irmos aos Estados Unidos? É uma incoerência. Vamos falar com o Aragão porque pode não ser verdade." Chegando lá eu disse: "Estamos surpresos, porque temos pelo senhor um grande apreço. O senhor sabe o que pensamos, dissemos-lhe claramente." Como ele não desmentiu, eu acrescentei: "Bom, já que parece que o senhor de fato se referiu a nós dessa maneira, não aceitamos mais a bolsa para ir aos Estados Unidos, porque não creio que seja razoável dar um prêmio a pessoas que querem destruir o Instituto Oswaldo Cruz." E não fomos. Se isso influiu na minha formação e na do Herman, não sei. Eu ia trabalhar com David Nachmanson sobre um assunto que me interessava, com mediadores químicos e outros problemas. Quer dizer, havia realmente posições bem definidas naquela ocasião.

Quero evitar a palavra perseguição, porque vocês estão vendo que havia duas atitudes claramente definidas sobre o destino do instituto. O futuro vai mostrar se tínhamos ou não razão. Não sei até hoje, porque estamos ainda muito perto do fenômeno. Walter estava de acordo conosco. Quando passamos para a universidade, Walter foi um dos que ficou contra. Queria que continuássemos fora da universidade. Depois foi favorável ao Ministério da Ciência. Walter não foi cassado porque morreu, senão também teria sido. Talvez o poupassem por ser filho de Oswaldo Cruz, mas não creio.

Wanda Hamilton

Ele foi afastado da seção de hematologia, como o senhor, mesmo antes da cassação.

Haity Moussatché

Queriam colocar gente mais de acordo com a direção que ia ser dada ao instituto. Eu iria me opor se não permitissem a investigação livre, de acordo com as idéias que estávamos seguindo. Não chamo isso de perseguição. São duas linhas políticas totalmente diferentes.

Paulo Gadelha

Esse embate não se deu de forma democrática, não é? Não era apenas uma disputa de linhas, um jogo limpo. Uma das linhas tinha recursos de fora. Não houve convencimento, uma linha vitoriosa pelo valor de sua tese. Houve corte por um ato de arbítrio...

Haity Moussatché

A verdade é que, antes do golpe de 1964, fazíamos nossas pesquisas sem problemas, trabalhando simplesmente. O instituto nos dava os auxílios que podia, de acordo com a verba disponível para determinados objetivos prioritários. Ficávamos um pouco a reboque disso, até que se criou o Conselho Nacional de Pesquisas, onde conseguimos um pouco de material de fora. No instituto, as verbas já estavam destinadas a determinados objetivos, e a investigação científica básica, propriamente, estava relegada a segundo plano.

Em 1964, isso mudou completamente. Veio um diretor que sabíamos que era contra nós e teria força no novo governo. Como já disse, foi a história da morte anunciada, como no título do livro do Gabriel García Márquez. Por isso muita gente dizia: "Haity, por que você não se aposenta?" E eu podia me aposentar, já tinha muito mais de 35 anos de serviço. "Não me aposento", eu disse. "Vou cair, mas em pé." E fiquei até me cassarem.

Luiz Fernando Ferreira

Dá para entender quando o senhor diz que, até um certo momento, houve divergência de linhas mas não perseguição. Mas a partir de um momento...

Haity Moussatché

Isso não foi só no instituto. Na Faculdade de Filosofia aconteceu o mesmo. Era gente que lutava por coisas que, naquela ocasião, não se aceitava. Fazíamos parte de um grupo que queria algo diferente... Estávamos seguindo uma linha contrária às direções que o mundo tomava. Não era um problema nosso, nem do Brasil, era do mundo inteiro. Quero situá-lo bem. Não tenho nenhum problema com o Rocha Lagoa. Não tive com nenhuma das pessoas que pensavam diferente de mim. Podem pensar diferente, podem ter razão, mas defino a minha posição, e o outro, a sua.

Paulo Gadelha

Essa divergência de linhas é atual, não é? Recentemente, numa palestra do ministro Renato Archer, alguém questionou: o Ministério da Ciência e Tecnologia estava investindo em ciência aplicada e pouco em ciência básica. Como isso está se refletindo na Fiocruz?

Haity Moussatché

Em primeiro lugar, o Ministério da Ciência e Tecnologia ainda está se estruturando. Archer está procurando consultar muitos cientistas, está reunindo pessoal. Até agora não se sabe se vai ficar ou não. Apenas começa a se definir a política que o ministério seguirá. Nós mesmos escrevemos uma carta ao ministro, eu e um grupo de oito ou nove, Jaime Tiomno, Leite Lopes, Leopoldo Nachbin, Roberto Aureliano Salmeron, Danon... Pedi pessoalmente a assinatura do Morel. Numa reunião com o Archer, expliquei que fazíamos sugestões sobre política científica nacional, que gostaríamos de conversar especialmente sobre os institutos de pesquisa. Achamos que as universidades não vêm cumprindo uma de suas funções, a investigação, mas não por culpa dela. A docência é uma conseqüência natural da pesquisa, a função mais importante das universidades. No entanto, seus pesquisadores são marginalizados, a ponto de as universidades não terem dinheiro para a investigação; elas têm de recorrer sempre a uma instituição de financiamento. Isso mostra precariedade. Há uma crise nas universidades. A alternativa que sugerimos é a criação de institutos destinados fundamentalmente ao desenvolvimento de pesquisa básica e tecnológica. Queremos uma conversa pessoal com ele e não representamos nenhuma instituição. Não sou do Instituto Oswaldo Cruz, nem o Tiomno é do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, nem o Salmeron é representante de nada na Europa. Vamos simplesmente como pessoas que têm uma vida dedicada à ciência. Temos que esperar um pouco para que o ministério se organize. A Fiocruz pode continuar como está, mas pode ser que ela queira colaborar mais estreitamente com o Ministério da Ciência e Tecnologia.

Paulo Gadelha

A Fundação Oswaldo Cruz abriga um ramo de controle de qualidade, outro de produção de vacinas, a área de ensino e ainda a pesquisa básica. O senhor acha que essas coisas estão equilibradas ou pendem mais para o lado da ciência aplicada, em detrimento da ciência básica?

Haity Moussatché

A ciência básica faz investigações que dão resultado não se sabe quando; a ciência aplicada faz investigações e segue a mesma metodologia. Uma procura resolver um problema mais imediato; a outra, um problema a longo prazo. Toda investigação que se faça no instituto é válida. A Fiocruz é mais dedicada aos problemas de saúde. Ela vai ficar dentro do Ministério da Saúde. Mas se amanhã acharem preferível que a parte de ciência básica fique ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, esta é uma decisão que poderá ser tomada depois. O principal é que o instituto tenha gente de qualidade investigando, e que seja apoiada pelos dois ministérios.

Temos que olhar as coisas com serenidade e em perspectiva. Hoje, o instituto tem condições sem dúvida melhores do que antes. Estou otimista, senão não retornava. Já estou aqui há três ou quatro meses. Tenho uma posição excelente lá na Venezuela. Para que viria para cá se isso estivesse ruim?

Paulo Gadelha

Está aqui há três meses, elaborando projetos, mas sua reincorporação definitiva continua em suspenso, assim como a de outros cassados. Como está sentindo isso em termos profissionais e afetivos?

Haity Moussatché

Se a direção do instituto me sugere a criação de um novo departamento, é porque está interessada nele. Não acredito que tenha feito isso simplesmente por uma atenção especial, porque fui cassado. Temos experiência de alguns meses, um laboratório funcionando, linha de pesquisa. O instituto tem que contratar esse pessoal já. Acredito no trabalho...

Paulo Gadelha

O senhor falou de auxiliares que conservaram equipamentos e reagentes de seu laboratório. Podia contar essa história?

Haity Moussatché

Quando cheguei, várias pessoas, colegas, colaboradores e auxiliares, como o Francisco Gomes, conhecido como Chico Trombone, telefonaram-me espontaneamente. O Chico disse: "Tenho aqui um material, substâncias químicas que eram suas e que guardei. Queria devolver, além de uma porção de outras coisas que estavam lá na Escola Fluminense de Medicina." Ainda não avaliei essas substâncias químicas, mas devem valer alguns milhões. Eu tinha glicose-6-fosfato num vidro grande. O preço do grama é caro. Tem o cilindro registrador, o fisiógrafo, que o Mário Viana Dias e o Ivan me devolveram. A Júnia e o Ivan trouxeram o microscópio de contraste de fase que eu tinha e que estava com eles, e ainda vão trazer mais. Foram coisas que guardaram com cuidado, por apreço ao laboratório.

Depois que fui cassado, quando viram que isso ia ser destruído, levaram, não para eles, mas para as escolas onde estavam. Trabalhavam aqui, mas não em tempo integral.

Wanda Hamilton

O que eles não puderam levar, ficou.

Haity Moussatché

Ficou e, segundo me disseram, muita coisa foi vendida como material velho.

Wanda Hamilton

Como foi a história do Fernando Ubatuba?

Haity Moussatché

Foi no dia do golpe. Viemos ao instituto, porque queríamos ver qual era a situação. Tínhamos experiências em andamento. Bom, voltamos para casa. Na rua, aparentemente, nem havia muita coisa. Fernando Ubatuba era professor de bioquímica na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Foi preso por denúncia de uma pessoa...

Wanda Hamilton

Quem acusou muita gente na época foi o Lacôrte.

Haity Moussatché

Como é que eu posso dizer uma coisa dessas? Ele foi acusado. Se foi por alguém daqui ou da escola rural, não sei. Dizem que foi daqui, mas não sei. O fato é que ele foi preso. Eu já estava preso. Fui convocado para prestar declaração à polícia no quartel militar, em Realengo. Em 1964, logo depois do golpe. Tomaram uma série de depoimentos e faziam sempre perguntas assim, meio desencontradas, um major e um capitão: "Os senhores tinham um cofre-forte lá no instituto?" "Sim." "Para que servia?" "Bom, a gente põe substâncias radioativas, que não se pode deixar assim... uma pessoa pode pegar entorpecentes usados para experimentação, e até dinheiro que a gente, às vezes, recebe e não quer levar para casa. Tem que ter um cofre-forte." Várias perguntas assim. Eu fui embora, libertaram-me, e o Ubatuba, que estava preso há 15 dias, foi solto naquela noite ou no dia seguinte, porque eles estavam testando se as suas declarações coincidiam com as minhas. "Para que o senhor foi ao instituto?" "Bem, ninguém esperava esse golpe. Sabia-se que ia acontecer qualquer coisa, mas não a data. Não avisaram. Fomos porque estávamos fazendo umas experiências, não para armar coisa nenhuma."

Wanda Hamilton

Os senhores sabiam que iam ser cassados? Isso veio de surpresa?

Haity Moussatché

Era uma questão de tempo. Quando subiu o Rocha Lagoa, sabíamos que isso ia acontecer.

Wanda Hamilton

Mas havia base legal para a cassação? Uma justificativa?

Haity Moussatché

Nunca conseguimos ler o que eles atribuíram, não sabemos. Fomos cassados e aposentados, mas o que ouvíamos era, simplesmente: "Ah, são de esquerda."

Paulo Gadelha

A idéia de reprimir, cassar, estava clara. Agora, descobrir exatamente por que acontecia com um ou com outro... até o Lagoa deve ter conseguido, num dado momento, que alguém fosse contemplado pelo Médici: "Bom, vamos incluir esse daí..."

Luiz Fernando Ferreira

É. Acontecia assim também. Na época, quando houve as cassações, o Couceiro, presidente do CNPq, foi ao Médici reclamar. Demitiram-no pouco tempo depois. Força-se uma situação para que você saia. O próprio Rocha Lagoa deixou de ser ministro, não cumpriu o mandato.

Haity Moussatché

Todos dão à minha cassação um caráter pessoal. Digo que não pode ser pessoal, porque não tinha e não tenho nada com o Rocha Lagoa. Ideologicamente éramos diferentes. Portanto, fui cassado por razões ideológicas. O governo era ideologicamente contra mim.

Paulo Gadelha

Pessoas colocadas em determinadas situações conseguem detonar outras pessoas em função de um arranjo muito maior, definido em nível nacional.

Haity Moussatché

O senhor imagine, por exemplo, que o Rocha Lagoa vá ao Médici e diga: "É uma gente que quer tirar o IOC do Ministério da Saúde. O ministério precisa do instituto, porque faz vacinas muito importantes para a população; faz pesquisas para resolver os problemas imediatos do Brasil, e essa gente fica criando problemas, fazendo coisas que ninguém controla. Querem fazer uma ciência que não sabemos o que significa... O que eles estão fazendo?... Estão fazendo novas experiências, que ninguém sabe para que valem. Ficam gastando dinheiro do país e nós não podemos botar mais gente lá, porque a verba está pequena. Assim, a situação é difícil." E o Médici dirá: "Essa gente tem que sair imediatamente. Não serve. São chefes de departamento. Ficam fazendo estas experiências, bobagens. Estudam epilepsia e não sei o que mais... Que significa isso para a solução dos problemas de saúde no Brasil? Nada."

Quem é o Rocha Lagoa? É uma pessoa que fez concurso para o instituto, chegou a ser chefe de seção ou lá o que seja. Era uma pessoa credenciada. Foi ao presidente que fez o Ato Institucional no 5 para terminar com todas as pessoas que estavam criando problemas ao governo. Com isso, não estava fazendo nada de intrigas, estava simplesmente dizendo que o instituto tinha que tomar outra orientação. Quer dizer, a questão tem raízes profundas ligadas ao problema da função social da ciência.

Declarei ao general Falcão que era contra a guerra. Pertenço à Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, cuja função é ser contra as explosões atômicas e contra a guerra. Se sabiam disso ou tinham lido o depoimento, disseram: "Esse marreco aqui é da esquerda. Pode ser um desses da KGB, aqui entre nós." Entende?

Paulo Gadelha

O discurso da repressão era de que as pessoas estavam sendo cassadas não pelos projetos profissionais ou científicos, mas por suas posições ideológicas e políticas.

Haity Moussatché

Claro, mas veja bem: por que houve a invasão da Universidade de Brasília? Como foi criada esta universidade? Bom, Juscelino criou Brasília, isso está na base de todo o fenômeno. Surgiram críticas de que estava industrializando o país mas não fazia nada pela cultura. Juscelino disse: "Vamos criar uma universidade. Vou mostrar que não cuido só da parte industrial, de automóveis."

E propôs ao Ciro dos Anjos, chefe da Casa Civil, que estudasse um programa para a Universidade de Brasília. Ciro dos Anjos falou com Darcy Ribeiro, que trabalhava na Casa Civil. Era amigo meu de longa data, desde 1957, quando o chamei para colaborar durante uma reunião da SBPC. Darcy chamou a mim, Leite Lopes, Jacques Danon, Herman Lent... Bom, as origens da Universidade de Brasília já são espúrias para o governo de 1964, certo? Não quis admitir que, pela primeira vez no Brasil, fosse criada uma universidade. Havia um conjunto de escolas. E ainda não há universidade no Brasil, ainda não há.

Haity Moussatché em seu laboratório ca. 1995. Foto: Jorge de Carvalho

Luiz Fernando Ferreira

Apesar disso, a Revolução de 1964 não conseguiu arrasar a idéia da Universidade de Brasília. Ela manteve um núcleo diferente que forçou um movimento de mudança nas outras universidades. Aquela história de acabar com o catedrático, fazer os departamentos, os institutos, tudo isso partiu da Universidade de Brasília.

Haity Moussatché

Exato, fomos nós, conversando com o Darcy...

Paulo Gadelha

Fale sobre essa experiência. Quanto tempo ficou envolvido nesse projeto?

Haity Moussatché

Trabalhamos mais de um ano, reunindo-nos várias noites na semana até o ponto em que conceituamos o que seria a universidade. Por exemplo: a criação dos institutos, como base da universidade, resultou de nossas conversações. Nenhuma universidade foi organizada nesse estilo até hoje. A de Brasília é a primeira e talvez a única. Mais tarde teve caráter de departamento, mas os institutos são básicos dentro do departamento. Depois do trabalho, a gente ia para a casa do Darcy, fazíamos reuniões lá. Naquela ocasião eu era secretário regional da SBPC e provoquei vários encontros para discutir a criação da universidade. Colaborava gente de São Paulo e de outros lugares. Quase no final do governo Juscelino, isso já estava bem estruturado, pensado e se começou a chamar outras pessoas, como Pedro Calmon, para fazer parte de comissões, levar o problema ao Juscelino e obter seu apoio. Depois, Jânio Quadros criou a Universidade de Brasília.

Anísio Teixeira foi chamado para ser reitor. Darcy estava na Casa Civil. Jânio caiu e, no governo de João Goulart, a universidade foi organizada. Começou-se a contratar uma porção de gente. Todos estavam ligados a esse grupo inicial, quer dizer, gente suspeita. Quando veio o golpe, essas pessoas pediram demissão, porque uma pessoa foi nomeada e se viu que ia começar a perseguição lá dentro. Acabaram convidando professores de cursos secundários de Goiás para preencher funções exercidas por cientistas do calibre de Tiomno. Um pessoal de primeira classe na pesquisa do Brasil que foi substituído por gente que ninguém sabe para que veio. A Universidade de Brasília ainda está sofrendo as conseqüências disso. Darcy teve que ir embora, não voltou. Essa é a história real da Universidade de Brasília. Agora ela está se reequilibrando. Saiu aquele capitão-de-fragata que ficou esses anos todos fazendo as maiores perseguições lá dentro.

Paulo Gadelha

O senhor falou da saída do Darcy. O senhor também saiu?

Haity Moussatché

Nunca fui para a Universidade de Brasília. Colaborei muito tempo na estrutura, fui um dos promotores de reuniões no Rio, mas não fui para Brasília.

Paulo Gadelha

Como foi a experiência dessa diáspora dos cientistas exilados? O senhor manteve relações com alguns deles nesse período de exílio? O grupo se dispersou?

Haity Moussatché

Fui cassado em 1970. Em 1971 estava na Venezuela. O que se manteve foi uma relação de amizade pura e simples. Nós sabíamos que o Rabinovich estava na Universidade de Nova York. Mantínhamos correspondência. Fui a Nova York visitá-lo. Cada um estava num lugar. A volta era uma incógnita total. Pensei que fosse terminar meus dias na Venezuela, ou talvez, voltasse quando estivesse doente, mas aí seria o final.

Wanda Hamilton

Como foram os contatos para ir trabalhar na Venezuela?

Haity Moussatché

Quando fomos cassados, pessoas amigas nos escreveram perguntando se não queríamos ir para lá. Eu ia para a Inglaterra, porque amigos nossos estavam lá. Ubatuba foi para a Venezuela. Seis meses depois, telefonou-me: "Você quer vir para cá? A situação é muito boa. Aqui as universidades estão criando coisas interessantes." Como o meu contzato na Inglaterra estava demorando... Um dos problemas era a minha idade. Eu já tinha 61 anos e, lá, aos 65, as pessoas são aposentadas de qualquer maneira. Por outro lado, não podiam me dar um cargo inicial, porque eu tinha certo prestígio. Tinham de me dar um posto que correspondesse à minha posição. Além disso, havia uma crise na Inglaterra. Estavam procurando no National Research Council, primeiro para Edimburgo, depois para Londres mesmo. Então, o Ubatuba propôs: "Estamos criando uma universidade, algo bem interessante." Eu disse: "Posso ficar aí um ano." Escrevi para Londres, porque, até que saísse a bolsa para lá, eu ia para a Venezuela. Depois escrevi dizendo: "Vou experimentar mais um ano, porque a situação aqui na Venezuela é muito interessante." Depois resolvi ficar porque tenho mesmo uma função interessante, a de organizar a investigação científica da universidade! Fiquei lá 14 anos.

Paulo Gadelha

Já se falou muito da experiência de exilados na Europa. Como é num país latino-americano? Há isolamento maior?

Haity Moussatché

É um negócio muito sério, porque a gente não conhece ninguém. O único que eu conhecia era Ubatuba. Fui com minha senhora, só nós dois. Não tenho o que reclamar do tratamento que me deram. Só posso fazer elogios, porque foram extremamente gentis comigo. Fiz muitas relações boas, tanto que me disseram que, no dia que eu decidisse ir embora, fechariam as fronteiras da Venezuela para eu não sair.

Paulo Gadelha

Que lições retira dessa vivência toda?

Haity Moussatché

Olha, sou um otimista inveterado. Há sempre uma esperança quando a situação está ruim. Sei que o Brasil está passando por uma fase de transformação muito séria, mas a gente não pode ficar muito agoniado com isso. Ninguém pode ficar esperando tempos indefinidos.

Paulo Gadelha

O senhor tem uma avaliação mais definida do que acontece hoje na política brasileira?

Haity Moussatché

É muito cedo para dizer o que esse governo pode fazer.9 9 Refere-se a José Sarney, vice-presidente da República, que assumiu a presidência após a morte de Tancredo Neves em abril de 1984. Há problemas criados no período em que o Brasil esteve sob o controle dos militares. Se bem que eles não fizeram só besteira. Não vamos imaginar que os inimigos fazem só besteira. Também fazem coisas boas, e fizeram algumas que aí estão para ficar. Mas há muita coisa a ser corrigida. A investigação, nesses últimos anos, ficou relegada a um plano secundário. Muita coisa precisa ser acertada pelo governo Sarney, que não esperava ser o presidente. Tancredo também não seria a salvação. Não há um salvador. É uma situação que tem que ser vista até em função da posição geográfica do Brasil e de suas relações com outros países. Temos que nos tornar independentes da dominância do capital norte-americano. O Brasil já tem hoje uma situação econômica bastante diferente daquela de trinta anos atrás. Não por causa dos militares, mas porque, apesar deles, muita coisa foi criada. E muitas coisas já tinham sido feitas antes do regime militar. Há três Brasis diferentes: o do Espírito Santo até o Sul; o Brasil do Nordeste, que é outro; e o do Norte, que também é diferente. Esse, que fica mais ao Sul, que inclui Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, hoje é uma potência totalmente diferente do Nordeste e do Norte e está lutando para ver se sai da situação em que está. Vai sair. Não aceito a idéia de que estamos derrotados. Acho que o Brasil precisa de uma política diferente, que o liberte um pouco dos Estados Unidos. Já tem capacidade para procurar outros mercados, porque tem o que oferecer. Nesse momento, especialmente difícil, temos uma desvalorização muito grande da moeda.

Paulo Gadelha

Na busca de outras relações, saindo da dependência em relação aos Estados Unidos, o senhor vê possibilidades que favoreçam a área científica?

Haity Moussatché

Há sempre algo a acrescentar quando se procuram relações científicas com outros países. Se há alguma coisa extremamente impessoal, que a todos pertence, é a atividade científica, em todos os países que são capazes de contribuir para a ciência. A relação do Brasil com esses países deve ser mantida e incentivada. Temos que manter relações científicas mais estreitas com a União Soviética, o que não ocorre porque estamos sob o domínio dos americanos, que realmente têm uma atividade científica extraordinária. Mas seria útil que nos voltássemos para outras potências.

NOTAS
  • 1
    "Foi nesse laboratório que se formou a primeira geração que realizou trabalho ininterrupto de pesquisa biológica no Brasil, bastando citar, entre outros, os nomes de Miguel Osório de Almeira, Branca de Almeida Fialho, Paulo Galvão, Ribeiro do Valle, Dorival Cardozo e, mesmo, André Dreyfus, o pai da genética no Brasil..." Renato Cordeiro, discurso, Rio de Janeiro, Fiocruz, 25.9.1998 (mimeo.). Ver também Luiz Gouvêa Labouriau, ‘Homenagem aos 80 anos de Moussatché",
    Ciência e Cultura' 42(7): 421-7, jul. 1990; e
    Academia Brasileira de Ciências. Organização e membros.
    Edição comemorativa dos 80 anos (1916-96), Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Ciências, 1996.
  • 2
    Ver a esse respeito Wanda Hamilton,
    ‘Massacre de Manguinhos: crônica de uma morte anunciada’.
    Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz, vol. 1, nº 1, nov. 1989, pp. 7-18.
  • 3
    Ao concluir o curso médico, em 1906, Álvaro Osório de Almeida (1882-1952) viajou para a França. Trabalhou no Instituto Pasteur com Delezenne e Pozerski, entrou em contato com as pesquisas de Metchinikoff, as de François Frank, no Collège de France, as de Malfitano sobre os colóides e as pesquisas histológicas de Monouélian. De volta ao Brasil, iniciou a carreira fecunda de pesquisador num modesto laboratório montado na residência de seus pais, primeiro na rua Almirante Tamandaré, depois na Machado de Assis. Em 1908, acolheu o primeiro discípulo, o irmão Miguel, ainda estudante da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde Álvaro Osório foi nomeado professor extraordinário de fisiologia em 1911. O laboratório do Flamengo tornou-se centro de reuniões, de preparo de teses e mesmo local de visita obrigatória para personalidades de passagem pelo Rio de Janeiro. A criação de novo método de tratamento da ancilostomose resultou na nomeação de Álvaro Osório como diretor de saúde do Estado do Rio de Janeiro, por seu presidente, Oliveira Botelho. Foi, assim, um dos precursores da luta contra as endemias rurais que iria se tornar o eixo da saúde pública brasileira na década de 1920. Entre os seus trabalhos experimentais sobressaem aqueles relacionados às determinações do metabolismo basal dos habitantes de climas quentes, as pesquisas referentes ao metabolismo do cérebro e fígado, à fisiologia do rim e, especificamente, ao mecanismo da uremia. Catedrático em 1927, dedicou-se ao problema do câncer a partir de 1933. Os estudos sobre os efeitos do oxigênio nas células normais e patológicas foram iniciados na Fundação Gaffrée-Guinle, onde começou a trabalhar após o fechamento do laboratório da rua Machado de Assis. (
    N. do E.)
  • 4
    Miguel Osório de Almeida (1890-1953) desde cedo demonstrou pendor para a matemática. Preparou-se para a Escola Politécnica, mas decidiu seguir os estudos médicos, doutorando-se em 1911 com a tese ‘São os reflexos tendinosos de origem cérebro-espinhal?’ Publicou ‘Contribuição ao estudo da patologia do sinal de Babinsky’ quando ainda se achava no quarto ano da Faculdade. Em 1912, o próprio Joseph Babinski (1857-1932) referiu-se muito positivamente às experiências de Miguel Osório. Naquele ano, ele obteve a livre docência de fisiologia, em 1915, a de higiene e, no ano seguinte, a de física biológica. De 1917 a 1934 foi professor de fisiologia da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária. A convite de Carlos Chagas, ingressou no IOC, tornando-se chefe do laboratório de fisiologia em 1919, e seu diretor, em 1927. Foi também diretor do Instituto de Biologia Animal do Ministério da Agricultura (1933-34). Em 1935, assumiu a vice-reitoria da Universidade do Distrito Federal e foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Publicou mais de duzentos trabalhos sobre os fenômenos da excitabilidade, sobre a fisiologia do músculo e da respiração e sobre o sistema nervoso, empregando sempre a matemática como eixo de sua metodologia de pesquisa. Mesmo fatos fisiológicos conhecidos foram por ele relacionados a equações matemáticas. Em sintonia com os avanços da ciência moderna, estudava as relações da cibernética com a fisiologia do sistema nervoso quando veio a falecer, ainda na plenitude de sua capacidade criadora. Homem de vasta cultura, dedicou-se à literatura de divulgação científica, publicou um romance e diversos ensaios. Doutor
    honoris causa das universidades de Paris, Lyon e Argel, foi representante do Brasil na Unesco e presidiu várias sociedades científicas importantes do país. (
    N. do E.)
  • 5
    Adolf von Strümpell (1853-1925), médico alemão, especialista em doenças do sistema nervoso, a quem se deve a caracterização da doença de Strümpell, paralisia espinal espástica hereditária.
  • 6
    Branca Osório de Almeida Fialho (1896-1965), fisiologista e pedagoga brasileira, além de colaboradora de seus irmãos Miguel e Álvaro Osório de Almeida, com diversos trabalhos publicados inclusive, foi presidente da Federação das Mulheres do Brasil, filiada à Federação Internacional das Mulheres. (
    N. do E.)
  • 7
    Louis Lapicque (1866-1952), fisiologista francês, descobriu a cronaxia e estudou a excitabilidade dos neurônios. (
    N. do E.)
  • 8
    Período de governo que teve início com a eleição indireta de Tancredo Neves em 1984, após o último governo militar, o do general João Figueiredo. Apoiado numa ampla coalizão política oposicionista, a chapa Tancredo Neves-José Sarney derrotou no Colégio Eleitoral o candidato Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo que concorria à presidência pelo partido do governo, o Partido Democrático Social (PDS).
  • 9
    Refere-se a José Sarney, vice-presidente da República, que assumiu a presidência após a morte de Tancredo Neves em abril de 1984.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Out 1998
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