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Conhecendo as origens da reforma psiquiátrica brasileira: as experiências francesa e italiana

Knowing the origins of the Brazilian psychiatric reform: the French and Italian experiences

LIVROS & REDES

Silvio Yasui

Professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis/SP. syasui@assis.unesp.br

O processo de transformação da assistência em saúde mental em curso no país, que denominamos reforma psiquiátrica, teve início no final da década de 1970 e inspirou-se em diversas experiências de mudança que ocorreram no continente europeu e nos EUA no período posterior à Segunda Guerra Mundial: transformações no interior das instituições, como as propostas pela psicoterapia institucional de François Tosquelles e Jean Oury e pela comunidade terapêutica de Maxwell Jones; mudanças no enfoque, de doença para saúde mental, propostas pela psiquiatria de setor na França e pela psiquiatria comunitária norte-americana; e, finalmente, as propostas mais radicais de mudança paradigmática, propostas pela antipsiquiatria de Ronald Laing e David Cooper e pela psiquiatria democrática de Franco Basaglia na Itália. Todas elas serviram como referência em determinados momentos do processo de construção da reforma psiquiátrica brasileira; algumas foram apresentadas como modelos a seguir, outras foram objeto de crítica.

O livro de Izabel C. Friche Passos, Reforma psiquiátrica: as experiências francesa e italiana, publicado pela Editora Fiocruz, descreve e analisa dois desses processos que influenciaram as formas de fazer e pensar a política e os cuidados em saúde mental no Brasil, e que se constituíram em palcos sócio-históricos no cenário mundial da transformação da assistência em psiquiatria.

A autora discorda da interpretação que considera essas experiências polarizadas e, em muitos aspectos, antagônicas. Isso a levará a dedicar especial atenção à experiência francesa da clínica de La Borde, que é comparada ao processo ocorrido na cidade italiana de Trieste. Com tal perspectiva, ela questiona a contraposição da experiência francesa, considerada eminentemente clínica, e a italiana, de orientação político-social e, ao final do livro, analisa a oposição entre o clínico e o político, que considera um falso dilema.

O percurso feito pela autora por terras europeias inicia-se na França. São descritos o sistema público de saúde e a organização do sistema de saúde mental francês, conhecido como psiquiatria de setor. O contexto histórico desse sistema é apresentado a partir dos movimentos de reforma dos anos 1960, organizados sob influência de intelectuais como Michael Foucault e Robert Castel. Tratava-se, em sua origem, de uma luta consciente para mudar os fundamentos ideológicos de uma prática no interior dela mesma. Os psiquiatras questionavam-se sobre suas ações e sobre a estratégia da internação hospitalar como meio terapêutico privilegiado. Por suas características, a experiência francesa apresentava uma limitação importante. Foi, em grande medida, um movimento interno e corporativo que, ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais um assunto de especialistas. Para a autora, os protagonistas nunca quiseram fazer política no sentido forte do termo e preservaram seu espaço institucional de poder, o hospital psiquiátrico.

A psiquiatria de setor, em consonância com a psiquiatria comunitária anglo-saxônica, pretendia definir-se pela saúde mental e não mais pela doença. O cuidado da população passou a ser feito de forma abrangente, ultrapassando o campo puramente médico e investindo no cotidiano da coletividade. Sonhava-se com a unidade e a indivisibilidade das ações de prevenção, profilaxia, cura e pós-cura. Nesse ponto a autora aponta a existência de uma ambiguidade, pois embora a proposta fosse dedicar atenção psiquiátrica à comunidade, desenvolvendo estruturas extra-hospitalares que evitassem internações prolongadas, nunca se tentou acabar com as imensas estruturas hospitalares existentes. Ao contrário, era delas que emanavam as ações do setor.

Em termos concretos, na psiquiatria de setor uma equipe única se responsabilizaria por uma zona populacional específica, de determinada região geográfica, onde existiria um sistema completo de estruturas que cobririam da prevenção à pós-cura e que seriam criadas de acordo com as necessidades reais da população. Para melhor acompanhar essa estrutura, a autora nos leva a conhecer dois diferentes exemplos de setor. No primeiro, é forte a presença do hospital psiquiátrico e de uma rede de recursos, mas mantém-se a racionalidade médica, o que caracterizaria um setor altamente especializado. Como contraponto, é apresentado o setor da cidade de Lille, no qual os profissionais questionam os limites e as potencialidades de seu trabalho. Ou seja, existiria nesse setor uma rede de oferta de ações e serviços que levaria em consideração as distintas dimensões dessa forma de organização dos cuidados com a saúde mental.

Passos dedica o capítulo "Do cuidado ao controle dos riscos" a apresentar a crítica feita por diversos autores, especialmente Robert Castel, à psiquiatria de setor. As estratégias de controle da população que essa abordagem mobiliza acabariam por perpetuar o modelo segregacionista. A autora também destaca uma tendência que considera preocupante: o movimento mundial pelo qual o avanço das neurociências e o pragmatismo farmacológico colocam o funcionamento neuronal no lugar do sujeito psíquico. Tal opção tem consequências do ponto de vista da gestão, pois está mais preocupada com a racionalização dos custos do que com o ideário de transformação.

Impossível não pensar no processo que vem ocorrendo no Brasil, onde existe um agravante: a tendência, também assinalada pela autora na experiência francesa, de avanço do setor privado. Isso tem acontecido sobretudo pela concessão, por parte do setor público, da prestação dos serviços de saúde por meio do modelo das organizações sociais, sob uma racionalidade econômica ocupada principalmente com a administração de recursos, que não costuma dar importância aos ideais e princípios que deveriam nortear as práticas e a organização dos serviços - um tema polêmico, que não cabe debater aqui.

Izabel Friche inicia o trecho do livro dedicado à reforma italiana relatando alguns pontos de sua história, mas destaca que o processo mais significativo teve início na década de 1960, quando Franco Basaglia assume a direção do Hospital Provincial Psiquiátrico de Gorizia e cria o movimento denominado psiquiatria democrática, e se intensifica a partir de 1971, quando ele assume a direção do Hospital Psiquiátrico de Trieste. Esse movimento estava centrado na luta contra o manicômio e pela revisão jurídico-normativa, que visava à plena recuperação da cidadania pelos doentes mentais, e expandiu-se rapidamente pelo país como o ideário de uma verdadeira reforma.

A reforma italiana sempre considerou central a mudança na condição legal e civil do chamando doente mental, sem o que seria inviável a efetiva desconstrução das práticas anteriores. Uma grande vitória foi obtida com a aprovação da lei 180, em 1978, que previa medidas até então inéditas na legislação internacional, tais como a desativação progressiva de todos os hospitais psiquiátricos e sua substituição por serviços regionais; a transformação dos antigos manicômios em hospitais gerais; a eliminação da custódia, assegurando a proteção e a administração judicial de bens e a restituição do direito constitucional de voto ao portador de enfermidade mental. Ressalte-se que, em muitos aspectos, essa legislação inspirou o projeto de lei brasileiro conhecido como Lei Paulo Delgado, aprovado em 1989 na Câmara Federal após tramitar 12 anos no Senado e sancionado apenas em 2001, com mudanças que o alteraram profundamente.

Enquanto países europeus como Inglaterra e França tentavam fazer suas reformas sob uma perspectiva de reorganização modernizadora, criando serviços psiquiátricos alternativos mas articulados aos hospitais, na Itália o movimento iniciado por Basaglia, com uma experiência de comunidade terapêutica circunscrita a um asilo nos confins do país, pouco a pouco se tornou foco de crescente polêmica e gerou profunda e radical transformação na assistência e na política de saúde, quebrando a organicidade histórica da corporação médica. Esse processo não ocorreu uniformemente. A autora destaca múltiplos aspectos e conflitos com origem na radicalidade das mudanças propostas, mas também em uma realidade psiquiátrica arcaica e na tradição histórica de plurarismo, independência e autoafirmação cultural e política de cada região do país, que teria inviabilizado uma política centralizada de alcance nacional.

Ao refletir sobre o Brasil, Friche destaca que em nosso país se criou uma verdadeira indústria privada da loucura a partir da década de 1960, ao passo que na Itália a reforma sempre foi um debate no âmbito da psiquiatria pública, entendida como ação e responsabilidade sanitária do Estado, o que favoreceu o avanço de sua reforma.

Outra característica importante da experiência italiana é o fato de ela ter sido construída e ter-se expandido a partir da desmontagem interna das instituições e não do estabelecimento de uma política geral por parte de administradores ou ideólogos profissionais. A eliminação do hospital psiquiátrico foi o ponto de chegada e não de partida. Para o êxito dessa empreitada, foi essencial a construção de uma rede de estruturas regionais de assistência que não fossem externas ou complementares, como na experiência francesa. A radicalidade italiana consiste na pretensão de que essa rede substitua de fato o hospital psiquiátrico. A autora aponta então para uma questão vital, que toca profundamente a experiência brasileira: até que ponto as estruturas substitutivas rompem de fato com a psiquiatrização dos problemas sociais e da população? Com o intenso aumento no consumo de psico-fármacos, o hospital corre o risco de tornar-se anacrônico. O controle dos corpos se faz de forma mais sutil, através da neurobioquímica.

Nessa perspectiva, destaque-se o significado que os italianos atribuem ao termo desinstitucionalização, que tem designado o paradigma da reforma italiana. A palavra tem sua origem nos EUA do governo Kennedy, quando foi utilizada para definir a política de desospitalização, redução de leitos e transferência de serviços psiquiátricos para a comunidade, sem uma efetiva reestruturação da assistência pública. Buscando inverter a lógica racionalista presente nos princípios que norteavam a proposta americana, a desinstitucionalização tem por objetivo reconstruir a complexidade da existência do sujeito que necessita de cuidados psiquiátricos. Ao deslocar a ênfase da cura para o que é denominado emancipação terapêutica, transformam-se todo o campo terapêutico, as estruturas existentes, os operadores do campo psiquiátrico, o usuário e propõe-se uma ruptura com o paradigma clínico.

Assim como fez com a experiência francesa, a autora aborda o objetivo e a ruptura da reforma italiana analisando a experiência na cidade de Trieste. O título do capítulo revela o tom de sua descrição: "Desinstitucionalização triestina ou a utopia na cidade". Ela nos leva a conhecer a cidade e sua história, acompanha os passos e as características dessa experiência complexa, a envolver anos de seguidas transformações que não mobilizaram apenas os habitantes de Trieste, pois o movimento se espalhou pela Itália e influenciou fortemente a reforma psiquiátrica brasileira, especialmente na cidade paulista de Santos, na passagem da década de 1980 para a de 1990.

O leitor terá uma ampla visão dessa experiência, do processo de desmontagem do manicômio, da ocupação do território pela presença de Marco Cavallo - um grande cavalo azul de papel machê - e da construção de uma rede substitutiva composta por diversos serviços que abrangiam diferentes dimensões da assistência: atenção à crise, moradia, reabilitação, cooperativas sociais, centros para toxicodependências, ambulatórios e outras.

No capítulo sobre a clínica psiquiátrica francesa de La Borde, Passos destaca a psicoterapia institucional que, ao longo de sua exposição sobre a psiquiatria de setor, ficara relegada a um segundo plano por ser uma prática restrita a poucas instituições, embora de grande importância para a experiência brasileira. Ela nos leva a conhecer La Borde por meio da narrativa de sua estada na instituição criada por Jean Oury em 1953. Em suas primeiras impressões relata a dificuldade em diferenciar os internos dos funcionários, apresentando, de certa forma, a dimensão do cuidado coletivo vivenciado por todos aqueles que habitam o castelo do século XVIII em que funciona a clínica. Avançando na leitura encontram-se versões históricas do nascimento e da consolidação da psicoterapia institucional que sustenta algumas das práticas de saúde mental na França e em especial as dessa clinica, referência mundial.

Finalizando, a autora coloca em debate o que chama de falso dilema entre o político e o clínico, contrapondo as duas experiências mais significativas: Trieste e La Borde. Para ela, não há oposição entre o clínico e o político, pois nenhuma prática nesse campo foge a problematizações políticas ou a opções éticas. Analisando criticamente as duas experiências, destaca de forma interessante os aspectos positivos e os dilemas de cada uma.

O leitor chega ao final do livro com mais questões do que respostas. Muito provavelmente era esta a intenção da autora: fazer pensar a partir das marcantes experiências apresentadas.

  • Conhecendo as origens da reforma psiquiátrica brasileira: as experiências francesa e italiana

    Knowing the origins of the Brazilian psychiatric reform: the French and Italian experiences
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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