Open-access A transformação no mercado de serviços odontológicos e as disputas pelo monopólio da prática odontológica no século XIX

The transformation of the dental services market and the battle over a monopoly in 19th century dental practice

Resumos

Este artigo analisa o processo de profissionalização da odontologia, tendo como cenário os Estados Unidos em meados do século XIX, local e época em que se estabeleceram as primeiras organizações odontológicas profissionais no Ocidente. Busca revelar aspectos referentes à conformação de um mercado de serviços odontológicos e as disputas entre os diversos praticantes da arte dentária pelo monopólio desse campo de saber. Fatores externos específicos tiveram um papel fundamental na emergência da profissão, entre eles a transformação nos padrões de consumo do açúcar, determinando a disseminação da doença cárie dentária na sociedade e a expansão do mercado de serviços odontológicos. A conseqüente proliferação de grupos distintos de praticantes, qualificados e desqualificados na arte dental, competindo pelo mercado de serviços odontológicos evidenciam as disputas travadas em torno do estabelecimento de uma jurisdição sobre esse campo de trabalho e a emergência da odontologia como 'profissão moderna'.

dentista; história da odontologia; sociologia das profissões; regulação profissional


The article analyzes the process by which dentistry acquired the status of a profession. The setting is the mid-nineteenth-century United States, where the West's first professional dental organizations were founded, and the focus is on some aspects of the development of a dental market and on the professional disputes among practitioners of the dental trade, who wanted a monopoly within this field of knowledge. Certain outside factors played a major role in the emergence of the profession, including changes in patterns of sugar consumption (which spread dental caries disease throughout society) as well as the expansion of the dental service market. The subsequent proliferation of distinct groups of dental practitioners - both qualified and unqualified to practice dentistry - and their competition for a place in the dental market reflect the battle waged to establish jurisdiction in this field and the emergence of dentistry as a 'modern profession'.

dentist; history of dentistry; sociology of professions; professional regulation


ANÁLISE

A transformação no mercado de serviços odontológicos e as disputas pelo monopólio da prática odontológica no século XIX

The transformation of the dental services market and the battle over a monopoly in 19th century dental practice

Cristiana Leite Carvalho

Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Rua Rio de Janeiro 2251/601, Bairro Lourdes 30160-042 Belo Horizonte – MG – Brasil clcarv@pucminas.br

RESUMO

Este artigo analisa o processo de profissionalização da odontologia, tendo como cenário os Estados Unidos em meados do século XIX, local e época em que se estabeleceram as primeiras organizações odontológicas profissionais no Ocidente. Busca revelar aspectos referentes à conformação de um mercado de serviços odontológicos e as disputas entre os diversos praticantes da arte dentária pelo monopólio desse campo de saber. Fatores externos específicos tiveram um papel fundamental na emergência da profissão, entre eles a transformação nos padrões de consumo do açúcar, determinando a disseminação da doença cárie dentária na sociedade e a expansão do mercado de serviços odontológicos. A conseqüente proliferação de grupos distintos de praticantes, qualificados e desqualificados na arte dental, competindo pelo mercado de serviços odontológicos evidenciam as disputas travadas em torno do estabelecimento de uma jurisdição sobre esse campo de trabalho e a emergência da odontologia como 'profissão moderna'.

Palavras-chave: dentista; história da odontologia; sociologia das profissões; regulação profissional.

ABSTRACT

The article analyzes the process by which dentistry acquired the status of a profession. The setting is the mid-nineteenth-century United States, where the West's first professional dental organizations were founded, and the focus is on some aspects of the development of a dental market and on the professional disputes among practitioners of the dental trade, who wanted a monopoly within this field of knowledge. Certain outside factors played a major role in the emergence of the profession, including changes in patterns of sugar consumption (which spread dental caries disease throughout society) as well as the expansion of the dental service market. The subsequent proliferation of distinct groups of dental practitioners – both qualified and unqualified to practice dentistry – and their competition for a place in the dental market reflect the battle waged to establish jurisdiction in this field and the emergence of dentistry as a 'modern profession'.

Keywords: dentist; history of dentistry; sociology of professions; professional regulation.

A odontologia desenvolveu-se como uma profissão autônoma e independente da medicina primeiramente nos Estados Unidos, em meados do século XIX. Na maior parte dos países da Europa Ocidental, ela se separou da profissão médica bem mais tarde, na primeira metade do século XX. Na realidade, podemos dividir o modelo de profissão odontológica em três categorias, caracterizadas pela extensão da dominância médica:

a) o primeiro modelo, mais comum, representa autonomia técnica e independência da odontologia em relação à medicina e tem na odontologia americana o mais proeminente exemplo;

b) o segundo modelo representa o sistema no qual a medicina tem domínio sobre a prática odontológica; é o menos comum, e o exemplo recente mais conhecido era o da Itália, onde qualquer médico era legalmente capaz de praticar a odontologia até 1985, quando, sob pressão do Mercado Comum Europeu, a profissão foi forçada a se separar da medicina (Orzack, 1981, apud Krause, 1996, p. 278);

c) no terceiro modelo, que se situa entre os dois primeiros, a odontologia divide com a profissão médica o campo de trabalho; é visto atualmente em países do Leste europeu. Na União Soviética, por exemplo, coexistem dentistas que possuem educação de nível secundário e estomatologistas, que possuem formação superior (Kang, 1998).

Quando analisamos o processo histórico de algumas especialidades médicas que, até o século XIX, constituíram-se como práticas relativamente independentes ou concorrentes da medicina – oftalmologia, homeopatia, ortopedia, obstetrícia – e que, hoje, estão integradas à profissão médica, é estimulante pensar e analisar o processo de profissionalização da odontologia, que teve um destino bem diferente (Ramsey, 1988; Kang, 1998, Nettleton, 1992). A explicação para essa independência pode ser encontrada tanto na natureza do objeto de trabalho da odontologia, que mescla arte (techné) e ciência, quanto na origem histórica do desenvolvimento da profissão.1

Em relação à natureza do trabalho, pode-se dizer que, diferentemente do observado na medicina, na atividade da odontologia predominaram, desde o início do seu desenvolvimento, as tarefas manuais, voltadas para a extração e reposição dos dentes, associando-a a uma função mais cosmética do que terapêutica, portanto, a uma imagem de trabalho 'artesanal' e 'comercial' e, por isso mesmo, de baixa estima social. Assim, embora o objeto do trabalho odontológico seja o tratamento das doenças da boca e dos dentes – de parte do corpo humano –, a atividade manual e protética do dentista nunca aparentou possuir uma relação estreita com o conhecimento científico biomédico. De fato, nos Estados Unidos, o distanciamento entre odontologia e ciência médica e o status inferior adquirido em razão da atividade manual podem estar entre os fatores que impediram a odontologia de ser incorporada à medicina, esta também intensamente contestada no século XIX, naquele país (Starr, 1982).2

No que se refere à evolução da prática profissional, nem todos os países adotaram, originalmente, um modelo de profissão independente da medicina. As explicações para o desenvolvimento de modelos distintos da prática podem ser encontradas nas circunstâncias históricas que determinaram o processo de profissionalização da odontologia nas diferentes sociedades. Em todas as situações vividas pela profissão, hoje, seja de independência ou de subordinação à profissão médica, é preciso destacar que a odontologia desenvolveu um sistema formal de conhecimento, reclamando para si uma base científica fundamentada no modelo biomédico, ainda que o foco da sua atenção tenha permanecido centrado na sua atividade 'mecânica' ou protética.3

Profissão moderna e odontologia

O conceito de profissão e os significados dos processos de profissionalização têm sido amplamente debatidos na literatura sociológica. A utilização do termo 'profissão moderna' refere-se às ocupações do século XIX, período em que as profissões, da forma como nós as conhecemos hoje, primeiro se desenvolveram. O termo 'profissão' tem sido discutido e definido por inúmeros autores e, apesar das controvérsias em torno de seu conceito, em geral, alguns atributos profissionais são compartilhados entre os estudiosos de profissões. Estes podem ser definidos pela existência de um padrão organizacional de trabalho especializado, cujas principais características incluem:

a) ocupação integral de seus membros;

b) existência de aparatos institucionais de auto-regulação;

c) treinamento padronizado em habilidades e conhecimentos esotéricos;

d) status e autonomia.

Em que pese o consenso sobre determinados atributos profissionais, predomina a falta de consenso em torno de um modelo ou conceito de profissão e de profissionalização. Dessa forma, compartilhamos a idéia defendida por Freidson (1994), da necessidade de eleger, para cada estudo em particular, um conceito de profissão. Consideramos, para efeito desse estudo, a definição recentemente apresentada por esse autor, no livro Professionalism: the third logic, no qual ele define como profissão o grupo ocupacional organizado, que reúne três condições:

a) o poder de determinar quem é qualificado para realizar um determinado conjunto de tarefas;

b) o poder de impedir que os demais realizem seu trabalho;

c) o poder de controlar os critérios para avaliar seu trabalho profissional. (Freidson, 2001)

A odontologia aparece como uma profissão moderna em meados do século XIX, época em que foram estabelecidas suas primeiras organizações profissionais.4 Na verdade, o sucesso da odontologia como profissão testemunha a emergência de um novo sistema de ocupações, a partir dessa época. O século XIX foi marcado por profundas transformações na divisão social do trabalho nas sociedades ocidentais, especialmente em relação ao trabalho especializado (expert labor). O surgimento de um padrão diferenciado de organização ocupacional, na segunda metade desse século, não foi um fenômeno isolado. Segundo Larson (1977, p. 6), esse padrão emergiu "dentro das mesmas circunstâncias históricas gerais, coincidindo com o aparecimento e consolidação do capitalismo industrial e com sua evolução para a forma corporativa, no final do século XIX e início do século XX". A autora assume que as circunstâncias gerais que estabeleceram essa primeira fase de profissionalização foram, grosso modo, as mesmas para todas as profissões. Larson (1977, p. 5) destaca o surgimento de um leque de organizações profissionais, referindo-se ao que Carr-Saunders & Wilson (1933) chamaram de "uma onda de associações". Tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, as principais associações profissionais formaram-se num período de duas gerações. Na Inglaterra, entre 1825 e 1880 e, nos Estados Unidos, no período de 1840 a 1887 (Larson, 1977, p. 246).

Os praticantes da arte dentária também aproveitaram o momento para se organizarem profissionalmente disputando, entre inúmeros concorrentes, o controle de um mercado crescente de serviços odontológicos. Tradicionalmente, os dentistas eram meros 'tiradentes' ou fabricantes de 'dentes artificiais', cuja limitada especialização, treinamento empírico e trabalho mecânico, claramente violavam as idéias, elitistas, de profissionalismo. Emergindo, no século XIX, de uma prática dedicada essencialmente à comercialização de artefatos e serviços dentários, os dentistas não compartilhavam das mesmas bases tradicionais características das atividades dos médicos, advogados e sacerdotes, cuja formação era baseada nas artes liberais e na ciência. Ainda assim, os praticantes da odontologia asseguraram status e credenciais comparáveis com essas antigas profissões. De fato, pode-se afirmar que os dentistas representam atualmente um grupo organizado, tendo alcançado sucesso em obter prerrogativas de profissão.

De maneira geral, seria plausível assegurar que a odontologia foi bem-sucedida no seu propósito de tornar-se uma profissão independente por várias razões históricas; entre elas, enumeramos algumas, que podem ser consideradas como as principais:

1) A expansão e transformação do mercado de consumo de serviços odontológicos, estimulada pela disseminação das doenças bucais, especialmente da cárie dentária, na primeira metade do século XIX – essa expansão é responsável direta pela evolução do mercado do açúcar, um produto que atingiu um consumo marcante nesse período e que é amplamente responsável pela manifestação pandêmica da cárie dentária. A expansão da demanda por cuidados bucais encabeça então uma transformação fundamental na atividade dentária, de uma prática que estava acostumada a lidar predominantemente com a estética – caracterizada pela produção e comercialização de 'dentes artificiais' dirigidos a uma minoria afluente e consumista – para uma prática com preocupações mais universais e essenciais ou, em outros termos, de utilidade pública. 2) A existência de condições técnicas e econômicas em torno à prática odontológica do século XIX – ou seja, o desenvolvimento técnico na área da odontologia, desde o século XVIII, tornou possível atender o aumento progressivo da demanda por serviços dentários com certa prontidão – pelo mesmo motivo, a demanda em expansão possibilitou também um maior desenvolvimento técnico e 'científico' da prática. As condições tecnológicas e econômicas determinaram, em grande extensão, os recursos e instrumentos necessários para a criação das suas organizações profissionais, ao mesmo tempo em que prepararam o terreno social e cultural para que os dentistas pudessem se posicionar em relação às suas demandas jurisdicionais. 3) A proliferação de grupos distintos de praticantes de odontologia, qualificados e sem qualificação na 'arte dental', e as disputas pelo controle do mercado de serviços odontológicos – o crescimento desordenado do número de pessoas dedicadas aos serviços odontológicos encorajou os 'dentistas' a estabelecerem estratégias protecionistas em torno a essa jurisdição do trabalho em saúde, por meio da organização de associações e escolas e da criação de leis e credenciais para garantia do monopólio do mercado odontológico. Eliminar a competição jurisdicional, por meio da regulamentação da profissão, tornou-se condição indispensável para garantir os benefícios do crescente mercado de serviços de saúde bucal a um único grupo, o dos dentistas credenciados. 4) O desenvolvimento de uma noção utilitária de odontologia e a luta para obtenção de reconhecimento público – a transformação da imagem pública da odontologia, partindo de um trabalho de caráter predominantemente mecânico para uma arte cientificamente fundamentada, e a modificação de sua condição social, de um produto de luxo e 'supérfluo' para uma atividade pública 'indispensável' – dedicada, principalmente, ao alívio da 'dor de dente excruciante' e do 'sofrimento humano', causados pelo consumo excessivo de açúcar – constituíram-se no cimento para a construção de novas bases profissionais, permitindo que a odontologia mudasse sua posição social, de atividade exclusivamente comercial para uma prática voltada para o serviço. 5) As descobertas relacionadas ao campo da odontologia e o desenvolvimento de teorias científicas sobre os problemas dos dentes e da boca – ao estabelecer condições econômicas para o financiamento de novas descobertas, a partir de investigações científicas e da divulgação desses resultados – uso da anestesia, desenvolvimento de materiais mais acessíveis na fabricação de 'dentes postiços', teorias sobre a causalidade da cárie dentária, teoria da infecção focal, para citar as mais importantes – os dentistas puderam justificar a necessidade da sua existência como profissão exclusiva e sustentar a demanda jurisdicional de controle sobre o mercado de serviços bucais. A complexidade do trabalho odontológico exigia, como forma de defender os interesses da população e assegurar proteção aos usuários, a eliminação do 'ignorante', por meio da regulamentação da atividade.

A consolidação da demanda por cuidados dentários

A emergência e consolidação do mercado de serviços odontológicos, respectivamente, no século XVIII e na primeira metade do século XIX, acompanharam, pari passu, o desenvolvimento do consumo de açúcar na sociedade ocidental, sustentando a estreita correlação entre ingestão de açúcar e cárie dentária (Sheiham, 1984). O desenvolvimento quase simultâneo desses dois mercados – de consumo do açúcar e de serviços odontológicos – não coincide apenas em relação ao período no qual eles se desenvolveram, mas também em relação ao universo de distribuição. Circunscrito primeiramente aos estratos populacionais dos ricos e nobres, o consumo do açúcar, gradualmente, disseminou-se pelos vários segmentos da sociedade até se transformar num consumo de massa – no século XIX – quando o produto passou por uma mudança radical, de um artigo de luxo, acessível a poucos, para um produto de uso comum. As evidências apontam para uma distribuição semelhante da cárie dentária: primeiro, manifestou-se entre os indivíduos da aristocracia e os ricos comerciantes e, posteriormente, também no século XIX, passou a surgir em praticamente todos os estratos da sociedade.

O crescimento da doença entre os indivíduos de posses, a partir dos séculos XVII e XVIII, resultou na emergência de um mercado especializado de serviços odontológicos que, além dos serviços de extração dentária, passou a ofertar também os serviços de reposição dos dentes, inaugurando um rico e promissor comércio de 'dentes artificiais', um serviço considerado, no período, caro e supérfluo. Com a disseminação das doenças bucais, especialmente da cárie dentária, pelos diversos segmentos populacionais, no início do século XIX, o mercado de serviços odontológicos passaria a ser caracterizado de outra forma, pela sua condição de necessidade 'universal e vital'.5

Apesar da dificuldade em encontrar documentação que demonstre objetivamente a extensão da demanda por tratamentos odontológicos, estudos epidemiológicos modernos e outras evidências históricas sugerem que, a partir do século XVII, a manifestação da doença 'cárie' sofreu uma mudança radical, em quantidade e em severidade. De fato, estudos epidemiológicos sobre a distribuição da cárie dentária em nossos ancestrais demonstraram que essa foi uma doença relativamente rara até a Idade Média, quando passou, gradualmente, a ter uma ocorrência comum, primeiro entre os nobres e, depois, em toda a população (Corbett & Moore, 1976, apud Fejerskov & Thylstrup, 1988). O incremento da doença foi acompanhado pelo aumento da sua severidade, apresentando sintomas agudos, com destruição rápida e extensa de vários grupos de dentes.6

As outras evidências históricas que demarcam o aumento gradual da doença a partir dos séculos XVII e XVIII são o aumento da oferta de serviços bucais e o surgimento de uma literatura odontológica que demonstrava desenvolvimento de técnicas e conhecimentos sobre o trabalho odontológico (Hillam, 1991). Assim, anúncios oferecendo serviços de 'dentistas' passaram a ser cada vez mais freqüentes nos jornais da época, revelando, até mesmo, a diversidade de serviços odontológicos disponíveis nesse período (Campbell, 1958). Os serviços realizados pelos 'especialistas' na arte dentária compreendiam uma lista típica de tarefas dirigidas ao tratamento das gengivas e dos dentes e a venda de produtos 'milagrosos' para aliviar a dor e clarear os dentes.7

Os praticantes de serviços odontológicos do século XVIII e de boa parte do século XIX classificavam sua clientela como "homens gentis e educados" ou "gente da nobreza", revelando um grande volume de pessoas de alto nível social (Campbell, 1958). Membros da aristocracia constantemente reclamavam de dor de dente e outros problemas bucais. Um viajante alemão do século XVI, que conheceu a Rainha Elizabeth, atribuiu seus dentes escuros e as dores de dente freqüentes ao uso excessivo de açúcar – "um defeito a que os ingleses parecem estar submetidos". Segundo o testemunho desse viajante, os pobres da Inglaterra pareciam mais saudáveis do que os ricos, porque não podiam pagar pelo consumo abusivo de açúcar (Mintz, 1986, p. 134).

As condições de saúde bucal pioravam visivelmente, de uma geração para outra, e no início do século XIX elas ainda afetavam em grande medida as classes privilegiadas, conforme observa o dentista John Gray:

Nos altos níveis da sociedade é quase impossível encontrar uma pessoa na idade de 24 anos, que não tenha sofrido a perda de algum dente e que muitos dos dentes restantes não estejam estabilizados com ouro ... Eu, freqüentemente, atendo velhas damas acompanhadas de suas filhas; a mãe, geralmente, possui dentes excelentes, mas a filha está freqüentemente desdentada pela metade. (apud Hillam, 1991, p. 122, grifos meus)

Dessa forma, à medida que a riqueza das classes comerciantes e urbanas aumentava, e estas passavam a adquirir os hábitos 'civilizados' da dieta da nobreza, seus dentes também se deterioravam:

é observado que as pessoas do campo, que vivem da comida pura, e aquelas das nações indígenas, que vivem dos alimentos vegetais, têm seus dentes perfeitamente sadios e livres de doenças ... Como regra geral, eu penso ser possível afirmar que os habitantes de países quentes têm dentes livres de doenças, e os que vivem em regiões frias, e também os que habitam os portos de cidades grandes ... e os locais de grande intercurso comercial, [onde] bebidas fortes e fermentadas são constantemente utilizadas, possuem péssimos conjuntos de dentes. (Fox, 1814)

Assim, a partir do século XIX, a saúde da boca piorou progressivamente, apontando para um aumento exacerbado da prevalência de cárie dentária, atingindo também os estratos menos privilegiados. Em meados do século, a cárie dentária já teria alcançado segmentos consideráveis da sociedade. De fato, o consumo progressivo do açúcar promoveu círculos cada vez maiores de consumidores de serviços odontológicos, alterando significativamente a demanda efetiva por cuidados bucais.

A transformação no mercado de serviços odontológicos

O desenvolvimento e a transformação do mercado de serviços odontológicos devem ser examinados com base em pelo menos dois aspectos: primeiro, quanto à natureza da 'mercadoria' odontológica e sua determinação no tamanho e tipologia da demanda; e, segundo, quanto à composição e extensão da oferta desses serviços.

Diferentemente do que se observava na medicina, até o século XVII o mercado de serviços odontológicos não era sustentado por nenhum tipo de necessidade que pudesse ser considerada 'vital' ou 'universal'.8 A demanda era, além de supérflua, pequena e concentrada nos segmentos abastados da sociedade, portanto, nem vital, nem universal. Com exceção da dor de dente, de incidência baixa e restrita, tratada com soluções ainda mais dolorosas (as extrações eram ainda sem anestesia), mas definitivas, as questões bucais não se constituíam numa necessidade propriamente vital. Além disso, a substituição dos dentes destruídos ou perdidos não era considerada essencial aos indivíduos. De acordo com Woodforde (1968), a péssima aparência ocasionada pela perda ou destruição dental era um mal tão naturalmente aceito pela sociedade que os 'dentistas' tinham que se esforçar para vender tratamento odontológico que fosse além dos 'primeiros socorros'. Na essência, os especialistas dos dentes eram limitados tanto pela baixa variedade de tratamento quanto pela distribuição limitada da demanda, circunscrita aos nobres e, na melhor das hipóteses, aos ricos comerciantes dos centros urbanos, já que a maioria da população vivia no campo e era, quase sempre, pobre.

No entanto, uma crescente variedade de técnicas e produtos odontológicos aparece no século seguinte, especialmente relacionados com a reposição dos dentes destruídos e perdidos e com a estética, demonstrando que a demanda por esses serviços tinha sido desencadeada. As transformações nos modos de vida da sociedade emergente do século XVIII, caracterizada pelo 'modismo' e pela preocupação com a estética e elegância, seriam uma das razões para esse movimento.9 Isto contribuiu para a mobilização de grupos ocupacionais de forma a suprir esse novo mercado. Assim, as primeiras estratégias usadas pelos dentistas para expansão da demanda não foram baseadas na tônica da necessidade vital a qual, como dissemos, não era significativa. No século XVIII, as estratégias ocupacionais estiveram voltadas para as questões estéticas, fundamentadas no cumprimento de futilidades, como na veneração à beleza e à juventude. O 'embelezamento obrigatório' e a 'boa aparência', marcas do estilo de vida extravagante e luxuoso da elite, induziram seus adeptos ao consumo de serviços odontológicos em larga escala (Hillam, 1990).

Para a odontologia, o novo mercado resultou no desenvolvimento das técnicas de produção e reposição de dentes artificiais. Conforme analisa o historiador Woodforde (1968), "vaidade, e não o desejo de mastigar melhor, foi o que certamente inspirou os primeiros dentes artificiais". Segundo esse autor, na Inglaterra do século XVIII, conjuntos de dentes de marfim adornavam os ricos; inútil para o propósito de comer, a nova invenção foi tanto aclamada quanto criticada e o seu uso significou, para muitos, e por muito tempo, um ato de pura vaidade, provocando comentários até mesmo ao longo do século XIX, quando os dentes artificiais já se haviam tornado lugar comum. A produção de dentes artificiais estabeleceu uma nova configuração para a prática odontológica. Sendo crescentemente incorporada pela sociedade consumista do século XVIII, especialmente a européia, tornou-se a principal tarefa odontológica da época (Hillam, 1990). Um comentário feito por John Gray, no início do século XIX, é ilustrativo desse uso:

muitos jovens têm o hábito de ir ao dentista partindo de um mero sentimento de vaidade, quando nenhuma necessidade real para esse serviço existe; desde que ele seja uma pessoa da moda, a adequação de um profissional não é nunca questionada. (Hillam, 1991)

Como resultado dos esforços de prover o mercado com serviços cosméticos os profissionais não apenas se capacitaram na arte dentária, ainda rudimentar, mas também foram compensados com o aumento da demanda por serviços odontológicos. Esse era, no entanto, um mercado de características elásticas, que dependia da capacidade de compra dos indivíduos, o que, como vimos, estava restrito aos grupos abastados da sociedade. Segundo Woodforde (1968), o tratamento odontológico constituía-se, então, numa "espécie de refinamento somente acessível a pessoas de meios" (Woodforde, 1968). A odontologia, como o açúcar, era artigo de luxo, e como tal, estava sujeita às leis estritas do lucro, da oferta e da demanda. De fato, os preços devem ter tido um papel importante na definição da quantidade de trabalho odontológico, e o número de praticantes do ofício deve ter sido, certamente, regulado pelo poder de compra da clientela. Restava à prática da odontologia ainda um longo caminho a ser percorrido – já se tornara uma atividade comercial, mas era preciso obter o status de profissão.

Considerando a abordagem utilizada por Larson (1977), do papel essencial da "necessidade vital e universal" na formação dos mercados de saúde, pode-se concluir que, no século XVIII, o potencial para expansão, no que diz respeito ao mercado de serviços odontológicos, estava consideravelmente limitado, uma vez que era pequena a parcela da população que demandava tratamento, assim como eram poucos os que podiam pagar pelos luxos e vaidades. Os praticantes de odontologia tentaram expandir esse potencial e, de certa forma, tiveram sucesso no empreendimento. Através da venda de "ornamentos para a boca", alguns praticantes fizeram fortuna (Woodforde, 1968). As pessoas comuns, nos casos de extrema necessidade, recorriam aos serviços de extração dentária dos aventureiros – geralmente praticantes de qualquer ofício que resolviam os problemas dentários como forma de complementar os rendimentos do seu trabalho de origem – e ambulantes – charlatães, em geral, que perambulavam de cidade em cidade, oferecendo curas 'milagrosas' e 'agilidade' nas extrações (Jones, 2000).

Pode-se dizer que os avanços técnicos alcançados no campo da prótese durante o século XVIII e na primeira metade do século XIX tiveram suas raízes na crescente demanda pela odontologia cosmética. A ocupação odontológica começava a atrair um imenso leque de praticantes em busca de oportunidades de trabalho. Segundo Hillam (1991), esse primeiro avanço nas técnicas dentárias, ao longo de mais de um século, significou uma parte imensurável do crescimento da demanda por serviços de odontologia e, portanto, do número de praticantes.10 No entanto, da mesma forma observada em outras atividades de caráter 'comercial', a atividade dentária, em franca expansão, não acrescentou status social à prática; ao contrário, essas novas configurações do mercado odontológico foram determinantes na composição de uma imagem da odontologia como 'arte mecânica', especialmente voltada para o lucro: como tal, a odontologia não demandava nenhum requisito especial para sua realização, a não ser a habilidade e a destreza de um artesão.

O resultado do trabalho do dentista era, portanto, avaliado diretamente pelos consumidores dos serviços, da mesma maneira como se avaliava o efeito de uma peruca ou o ajuste de um sapato, ou seja, a partir da própria experiência.11 O julgamento do produto dependia, sobretudo, da qualidade do material e da capacidade artística do artesão. Com tais características, a arte dentária apenas engrossava a longa lista das ocupações manuais existentes – ourives, ferreiros e relojoeiros, entre outros. Sua posição social era a mesma dos praticantes de ofícios manuais. Tal posição não equipava os dentistas com nenhuma característica do profissionalismo tradicional, uma vez que o desenvolvimento dessa arte, essencialmente mecânica e manual, ainda não continha elementos que justificassem as demandas de superioridade cognitiva.12

Apesar do baixo status de que desfrutava entre os homens educados da elite, é preciso ressaltar que foram esses primeiros trabalhos que, sem dúvida alguma, impulsionaram o espírito inventivo de muitos praticantes para o melhoramento da arte dental.

Novas perspectivas para o comércio de serviços de odontologia

As demandas bucais estiveram, portanto, ao longo do século XVIII, restritas a algumas necessidades mais urgentes, como o alívio da dor de dente, e ao melhoramento estético, dado pelos dentes postiços, àqueles que podiam comprá-los. Embora restrito, esse mercado teve desdobramentos, com vantagens econômicas para os que a ele se dedicaram. Ao divulgar os valores cosméticos da 'arte dental' e se dedicar ao melhoramento das técnicas e do material, os praticantes contribuíram de forma significativa para a explosão do comércio de serviços odontológicos.

Porém, outros fatores favoráveis à expansão do mercado estavam em curso, desencadeando um processo de diferenciação na mercadoria odontológica. O mais importante, já descrito, era o aumento do consumo de açúcar por todos os segmentos da população. De fato, as mudanças no cotidiano dos indivíduos e, especialmente, nos hábitos alimentares da sociedade foram determinantes nesse processo. A revolução técnica e industrial e o processo de urbanização também tiveram papel importante na expansão do consumo de açúcar pelas massas, principalmente pelo aumento de produtos alimentares manufaturados contendo sacarose, o que provocou uma mudança no equilíbrio de toda a dieta humana. Substituíam-se alimentos nutritivos e o açúcar tornava-se o principal ingrediente da dieta da classe trabalhadora, fonte exclusiva de ingestão calórica (cf. Mintz, 1986). No caso da doença cárie, a população pobre, desnutrida e, portanto, mais desprotegida oferecia baixa resistência ao ataque maciço da doença cárie. Na verdade, a pobreza contribuiu como um fator multiplicador na disseminação da doença.

O consumo em massa do açúcar abriu as portas para a manifestação epidêmica da cárie; no século XIX, a doença já incidia sobre cada estrato da sociedade, dos mais pobres aos ricos comerciantes e nobres, transformando a infecção dentária e a dor de dente em lugar comum. Como resultado dessas complicações estava a expansão efetiva do mercado consumidor de serviços odontológicos.13 Efetiva pelo menos em dois sentidos: primeiro, porque transformou as características predominantes da prática odontológica, de um mercado de serviços fundamentalmente 'cosméticos' para um mercado baseado em necessidades vitais – representado pela manifestação epidêmica e aguda da dor de dente; e, segundo, porque esse mercado se tornou universal, sem fronteiras – a cárie dentária tornou-se uma doença que incidia sobre toda a população.

Com todas as pessoas envolvidas no problema da cárie e não apenas um segmento da sociedade, despertava-se, finalmente, o interesse do público em relação à odontologia. De um lado, porque juntamente com os outros problemas de saúde, especialmente da classe trabalhadora, as doenças da boca passavam a contribuir como um motivo adicional de conflito entre as classes sociais. De outro, porque o interesse do público por terapêuticas mais eficazes e menos dolorosas fomentava a procura de 'especialistas' nesse campo de trabalho. Além disso, como parte da demanda provinha dos estratos mais carentes da sociedade, incapazes de arcar com os custos dos serviços de especialistas, a atividade odontológica transformou-se num 'negócio' atrativo para aventureiros e charlatães. Em pouco tempo, a proliferação da 'má prática' nesse campo de saber serviria de alerta para o público. Como observou Hillam (1991), quando todos estão "em risco, soluções devem ser encontradas, mesmo e também para os pobres, ainda que não exista nenhuma ameaça imediata à vida".

Essas mudanças lançaram as bases para a reorganização de toda a área de trabalho odontológico. Elas permitiram a transformação de um mercado assentado quase que exclusivamente na troca de produtos de luxo e supérfluos para um mercado que deveria atender também a 'necessidades' básicas de saúde. Entretanto, é importante ressaltar que a expansão do mercado não se constitui em razão suficiente para estabelecer o monopólio sobre um campo de trabalho. Outros fatores são necessários, como por exemplo, credibilidade e reconhecimento do público sobre a competência dos produtores do item negociado nesse mercado (cf. Larson, 1977). Cabe aos grupos ocupacionais candidatos encontrar os ingredientes que irão convencer as audiências a respeito de suas demandas de monopólio sobre o campo de trabalho em expansão. Para Brown (1986), fazem parte desses ingredientes os argumentos e discursos que os grupos candidatos ao monopólio divulgam, revelando experiências e conhecimentos sobre o seu trabalho.

O novo mercado de serviços odontológicos

Não se pode falar da emergência de um único mercado de serviços odontológicos ou de um único tipo de prática odontológica. Independentemente das necessidades básicas emergentes, as tarefas cosméticas da odontologia continuaram sendo comercializadas como artigos de luxo. A extração de dentes, no entanto, tornou-se a solução disponível para a população sem recursos. Os dentes artificiais permaneceram inacessíveis às camadas populares, pelo menos, até a segunda metade do século XIX, quando a descoberta de materiais de fácil manuseio e baixo custo operacional permitiu a 'democratização' da reposição dentária também para esse público.14

As novas características do mercado de serviços odontológicos, de necessidades vitais e universais, possibilitaram ao campo de trabalho da odontologia os elementos de distinção que já demarcavam o mercado de trabalho médico. Essas novas características, de natureza inelástica, passaram a concorrer com os atributos cosméticos desse mercado, influenciando a oferta e os preços dos serviços odontológicos. A ocorrência de dor de dente e infecção dentária, em proporções crescentes, ameaçando o cotidiano dos indivíduos, estabeleceu o potencial para os praticantes dedicados à atividade odontológica explorarem mecanismos tradicionais de credibilidade e autoridade sobre os problemas dentários.

A alta prevalência de problemas bucais não eliminou a abordagem mecânica e cosmética da prática odontológica, ao contrário, a expandiu. Porém, a manifestação de problemas básicos e urgentes deu outra dimensão à prática de saúde bucal, uma dimensão que poderia ser estrategicamente explorada (como, de fato, o foi) como utilidade pública, componente essencial para o processo de profissionalização. No bojo dessas mudanças, a própria arte mecânica se transformou, incorporando novas características a esse mercado. Uma delas teria sido a necessidade de privacidade na realização do trabalho odontológico. Anteriormente, as tarefas odontológicas podiam ser realizadas e comercializadas mesmo a distância (as dentaduras encomendadas e feitas, muitas vezes, sem a presença física do paciente e enviadas pelos meios disponíveis na época). Os problemas da dor de dente e da infecção, associados ao desenvolvimento das técnicas, determinaram a necessidade de assistência direta ao cliente em todas as fases da terapêutica, do alívio da dor à confecção da prótese, estabelecendo, para maior eficácia do tratamento odontológico, a privacidade no atendimento.

A utilização de uma esfera privada de trabalho para o tratamento da clientela, como sinônimo de eficácia, foi gradualmente acrescida à nova prática profissional, por meio dos consultórios odontológicos. Em outras palavras, para melhor desempenhar suas funções e para lidar com o surgimento de um novo tipo de relação paciente-profissional, os dentistas necessitavam de um espaço fixo e privado de trabalho.

Essas transformações possibilitaram a superação da velha receita do trabalho puramente manual. O espaço de trabalho redefiniu os conceitos da arte mecânica, denominando-a distintivamente de 'arte dental'. Como conseqüência da evolução da arte dental estava a necessidade da construção de um conhecimento formal para a prática da odontologia. Restava aos praticantes da odontologia definir a abordagem desse conhecimento, se voltada exclusivamente para o saber empírico e mecânico, ou se fundamentada nas ciências.

A rede de trabalho odontológico a partir do século XVIII

Antes de analisar os dilemas existentes em relação ao conhecimento odontológico é necessário conhecer os praticantes da 'arte dental' e sua inserção no mercado de serviços odontológicos. A posição dos praticantes no mercado pode ajudar a separar o 'dentista' típico do charlatão, ou do praticante da arte dentária apenas como ocupação complementar.15

As evidências sugerem que a profissão odontológica não evoluiu de um único tipo de praticante, assim como não se constituiu de uma simples combinação de diferentes tipos de artesãos que, por interesses econômicos ou afinidade com a natureza manual do trabalho, já praticavam algumas das atividades dentárias. Ao contrário, as evidências apontam para a competição entre grupos ocupacionais diversos pelo controle profissional do crescente mercado de trabalho odontológico.

Assim, a partir, principalmente, da segunda metade do século XVIII, o mundo social da prática odontológica esteve constituído por uma rede diversa de praticantes, qualificados e não qualificados na arte dentária; os limites entre eles eram notoriamente obscuros. A lista dos grupos ocupacionais envolvidos no mercado da prática odontológica era, de fato, interminável: barbeiros, ferreiros, ourives, relojoeiros, boticários, barbeiros, cirurgiões e médicos, para citar os mais comuns (Hillam, 1991). Muitos deles prestavam serviços odontológicos como uma atividade complementar à sua atividade de origem; outros se tornaram, com o tempo, dentistas em tempo integral. Além disso, havia os praticantes exclusivos de odontologia, que se intitulavam especialistas na 'arte dental': operadores de dentes, 'dentateurs', 'toothdrawers', 'crawcours', 'cirurgiões-dentistas', ou simplesmente 'dentistas'.16 A essa lista é preciso acrescentar os 'irregulares': empíricos, mágicos, ambulantes, charlatães, e toda sorte de 'aventureiros' (Ramsey, 1988). De fato, nos séculos XVII e XVIII praticamente não existiam sanções de ordem legal, através de estatutos ou decisões judiciais, nem requisitos de treinamento formal para o exercício da prática odontológica, sendo inevitável o surgimento de 'aventureiros' em torno da florescente atividade da odontologia. É no meio dessa diversidade de grupos praticantes que se inicia uma verdadeira batalha pelo monopólio profissional, destacando-se a organização de grupos de interesse e a construção de estratégias de legitimação profissional.

Crescimento profissional: incentivos e restrições

Por todo o século XVII, como anteriormente, apenas um grupo muito pequeno de indivíduos se dedicava ao limitado mercado de serviços dentários, geralmente restritos às camadas mais abastadas da sociedade. Já no século XVIII, especialmente na segunda metade, houve uma mudança mais significativa nessa área de trabalho, levando ao aumento dos grupos envolvidos nessas práticas, especializados ou não. Segundo Hillam (1991), a diversificação e a disseminação da arte dentária foram as principais razões para o primeiro pico no número de especialistas em odontologia na Inglaterra. É razoável supor que esse fato tenha ocorrido em maior ou menor grau em quase toda a Europa. Entretanto, é na virada do século XIX, graças ao aumento radical do consumo do açúcar e ao incremento das doenças bucais, que vamos observar um segundo pico na oferta de serviços bucais, através da proliferação de grupos de praticantes da arte dentária.

De fato, há indícios de que nas cinco primeiras décadas do século XIX o número de especialistas em odontologia esteve em franca expansão, desta vez para atender também aos menos afluentes; a universalização da demanda dentária exercia, dessa forma, o papel de fomentador da competição entre os grupos diversos de 'especialistas' dentais. Nos Estados Unidos, por exemplo, a falta de restrição corporativa em torno aos grupos ocupacionais possibilitou uma extraordinária expansão na oferta de especialistas em odontologia.17 A percepção de que a prática odontológica se tornara altamente lucrativa encorajava a entrada nesse campo de trabalho.18 De acordo com Schwartz (1954), "a odontologia americana conseguia seus recrutas entre os habilidosos e engenhosos da vida ... atraídos para a odontologia em função do desafio e da oportunidade".

Muitos médicos americanos se voltaram para o exercício da prática odontológica, não apenas motivados pelo potencial de trabalho nessa área, mas porque se encontravam ameaçados pelos sérios conflitos existentes no campo de trabalho da medicina do século XIX. De fato, na primeira metade desse século, a posição social e econômica dos médicos esteve ameaçada pela falta de credibilidade, resultante da ineficiente e duvidosa medicina 'heróica' praticada pelos médicos e pela forte competição entre as diferentes 'seitas' médicas, com propostas alternativas de cura (Pernick, 1985). Hillam (1991) sugere que algumas famílias médicas na Inglaterra se moveram gradualmente para a odontologia por dois motivos: o mercado médico estava saturado e os custos envolvidos no treinamento do dentista (sistema mestre-aprendiz) eram baixos; tanto a prática da medicina quanto a da farmácia já se encontravam regulamentadas, exigindo requisitos mais rígidos de entrada para seus candidatos (escolas, associações e licenciamento, por exemplo). Nos Estados Unidos, o problema parecia ser mais conjuntural, relacionado à crise econômica. Segundo Schwartz (1954), "por causa da disseminação do desemprego e da falta de legislação, a odontologia foi povoada por praticantes desqualificados, o número de dentistas dobrando durante os dois anos da depressão (1837-1839). Para os dentistas qualificados, status profissional ... tornou-se uma questão de sobrevivência".

Um outro fator que contribuiu para a rápida expansão do número de praticantes da odontologia foi a disponibilidade de recursos técnicos; assim, quando o aumento da demanda por serviços bucais se fez mais evidente, nas primeiras décadas do século XIX, já existia um corpo razoável de técnicas e conhecimentos odontológicos (desenvolvidos no século anterior). A existência desses meios, aliada à natureza manual e mecânica do trabalho odontológico, foi, certamente, um facilitador da rápida adesão de praticantes a esse campo.

O incremento da demanda por serviços de odontologia, além de promover uma rápida expansão na oferta de dentistas, abriu também a possibilidade de dedicação em tempo integral a essa atividade. Um exemplo de que a prática odontológica teria se tornado comum no início do século XIX, com a possibilidade de dedicação integral dos seus praticantes, pelo menos nos centros urbanos, pode ser constatado na declaração de Joseph Fox (1814):

Uma atenção à aparência do dente; um desejo de preservá-lo em um estado saudável; e a necessidade que existe de procurar alívio quando os dentes estão afetados pelas doenças, são fontes de considerável ocupação. Nas metrópoles e cidades maiores, homens profissionais, como os dentistas, são capazes de confinar sua prática a esse departamento apenas. (grifos meus)

De fato, o grau de desenvolvimento técnico do trabalho odontológico, somado aos ganhos econômicos gerados, justificava os esforços de dedicação integral a esta nova área de trabalho. No campo, nas zonas rurais, a atividade ainda permaneceu como uma ocupação marginal e terreno aberto para a atuação de irregulares e ambulantes por muito mais tempo.

Com efeito, a relativa facilidade de ingresso nesse campo de trabalho representou a abertura de oportunidades ocupacionais numa sociedade cada vez mais competitiva. Com a demanda por serviços dentários mudando em quantidade e qualidade e os meios de regulamentação da atividade completamente ausentes, os dentistas, qualificados ou não, estavam sujeitos ao mecanismo regulador do mercado. Isso significava a existência de um campo de trabalho extremamente atrativo, especialmente para os 'aventureiros'. Com a abertura para um imenso leque de praticantes, a competição se tornava cada vez mais acirrada, dificultando as possibilidades de articulação e negociação das diferenças dentro desse campo de trabalho. Essa concorrência pelo lucrativo 'negócio' da odontologia estabeleceu as condições necessárias para as demandas de monopólio profissional. Como bem observa Hillam (1991), "enquanto existe um excesso de demanda, os incompetentes e os sem ética podem ser ignorados e deixados para encontrar seus próprios níveis ... e quando existe um rápido aumento na oferta, as fileiras são fechadas e o 'charlatanismo' é usado como um fator de discriminação". Na verdade, a proliferação de especialistas e a competição no mercado agiram como um elemento organizador da jurisdição, determinando a busca pelo fechamento do mercado odontológico, especialmente por aqueles grupos interessados em se colocar em posição de vantagem. Para aqueles que queriam obter benefícios exclusivos do crescente mercado de serviços odontológicos era imperativo eliminar a competição.

Na primeira metade do século XIX, portanto, havia estímulo suficiente para que alguns grupos de dentistas liderassem estratégias de fechamento de mercado.19 Entre essas estratégias estavam os discursos dos cirurgiões-dentistas dirigidos a distintas audiências, à própria profissão, ao público leigo e ao Estado, neste último caso, com vistas à regulamentação da ocupação. De fato, os discursos dos dentistas candidatos à profissão evidenciavam uma grande preocupação com a disputa dentro do seu campo de trabalho, tanto entre os aventureiros e charlatães quanto entre os próprios praticantes da arte dentária. Esses discursos expressavam os argumentos da profissão, sobretudo, quanto a quem deveria produzir (e, mais tarde, quem poderia) e como deveriam ser produzidos os serviços de odontologia, na tentativa de convencer as audiências da necessidade do monopólio de um único grupo, dos dentistas credenciados, sobre esse recém-criado campo de saber.

Conclusão

A definição de uma autoridade sobre um campo de saber é decorrente, entre outros fatores, do processo de competição profissional por uma jurisdição (Abbott, 1988). Para os grupos em disputa pela prática odontológica, o momento era estratégico. Entretanto, o sucesso em sobrepor os diversos grupos de praticantes dependia de outros fatores, especialmente do desenvolvimento de uma idéia de utilidade social para que o público reconhecesse a necessidade de ter seus interesses defendidos. O público deve estar convencido de que os serviços profissionais oferecem riscos, para justificar a defesa de seus interesses através de um sistema de monopólio e de distribuição de privilégios. Como observamos em outro trabalho (Carvalho, 1994), esse processo de fato ocorreu, e uma das principais estratégias utilizadas pelos candidatos a dentista consistiu em tentar definir quem deveria produzir e como deveriam ser produzidos os serviços odontológicos. Para isso, eles tiveram que, primeiramente, sobrepor a imagem que o público tinha com respeito à 'arte dental', o que significava apagar a imagem de 'ocupação mecânica' e construir uma de 'ocupação científica'. A criação de uma imagem científica estava vinculada à escolarização da odontologia, uma vez que a ciência só poderia ser feita nas instituições reservadas para esse propósito. Além disso, estava ligada também à construção de teorias científicas que pudessem embasar essa 'prática científica'. De fato, em meados do século XIX testemunhou-se a emergência de uma teoria sobre a dor de dente ou, pelo menos, o aparecimento de um campo de investigação sistemática sobre o assunto nos termos da ciência (cf. Carvalho, 1994). Os dentistas utilizaram discursos carregados de metáforas associadas com o sofrimento e com a dor para lidar com sua falta de estima perante o público e assim construir uma base de confiança e uma noção de utilidade social, na busca por credibilidade e autoridade profissional, ingredientes fundamentais da ideologia profissional.20 Uma das estratégias para lidar com tal problema foi o estabelecimento de uma instituição para a formação do cirurgião-dentista, proposta que foi finalmente legitimada pela inauguração da primeira escola de odontologia, em Baltimore, nos Estados Unidos, em 1839. Mais tarde, esse processo seria consolidado pela luta dos dentistas no sistema legal e pela conquista de leis que regulamentassem não apenas o sistema educacional, mas também as formas de licenciamento e o exercício profissional.

Este artigo buscou evidenciar as disputas em torno do estabelecimento de uma jurisdição sobre o mercado odontológico, no século XIX, definindo o momento de profissionalização da odontologia no Ocidente, tendo como cenário principal os Estados Unidos. Tal como pudemos observar, esse processo teve uma enorme influência na conformação e no modelo da prática odontológica ocidental, incluindo vários países da Europa e da América Latina e, com certeza, o Brasil. É importante considerar, entretanto, que a competição entre os diversos praticantes da arte dentária e as estratégias de luta pelo monopólio do mercado obedecem às conjunturas sociais e culturais de cada sociedade; estudos de caso devem ser feitos para elucidar tais processos nas diversas sociedades e entender, dessa forma, um pouco mais sobre a organização da profissão do dentista.

NOTAS

Recebido para publicação em janeiro de 2004.

Aprovado para publicação em setembro de 2005.

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  • 1
    A ciência se distingue da
    techné porque mais exatamente e completamente do que a 'arte' ela deve poder exprimir-se numa linguagem e ser comunicável pelo ensino; a ciência permite a demonstração. A arte diz respeito à mudança como aspecto contingente do individual, ela visa à geração de uma obra e ao conhecimento dos meios para criar coisas que poderiam ser ou não ser e cujo princípio de existência reside no criador e não na coisa criada (cf. Granger, 1994).
  • 2
    Existe uma explicação de que quando a odontologia se candidatou a especialidade médica, em meados do século XIX, nos Estados Unidos, esta última sofria de forte concorrência por parte de outras práticas terapêuticas e da sua própria ineficiência, necessitando a todo custo elevar seu conceito perante a sociedade para manter seus profissionais. Nesse contexto, qualquer vinculação com a odontologia, uma prática eminentemente empírica e manual, tornaria suspeito o caráter científico e profissional que a medicina tentava impingir a si própria (Gies, 1926; Pernick, 1985).
  • 3
    Em relação à idéia de 'trabalho mecânico', um termo freqüentemente utilizado pelos dentistas da época e corriqueiramente mencionado nos documentos históricos, entende-se o trabalho de um artesão, de um homem de ofício; o trabalho que envolve um fazer artesanal no qual os atos de destreza manual são preponderantes aos que envolvem capacidade de raciocínio (Webster's Dictionary, 1989, p. 889).
  • 4
    As primeiras organizações odontológicas profissionais (associações, escolas) foram criadas nos Estados Unidos nas décadas de 1830 e 1840. Na Inglaterra e na França, essas organizações surgiram um pouco mais tarde, na segunda metade do século XIX.
  • 5
    A oferta de serviços caracterizada como "vital e universal" é referida em Larson (1977) como um fator essencial para o estabelecimento de uma profissão, tendo em vista que o produto vendido tem um caráter de utilidade pública, criando a justificativa para que sua venda seja regulada e monopolizada.
  • 6
    A mudança no padrão do ataque cariogênico a partir do século XVII está determinada pela diferenciação do local de ocorrência da doença no dente e pela sua severidade. Antes, as cáries dentárias eram observadas principalmente na região entre a coroa e a raiz dentária e, em geral, levavam à destruição extensa de apenas um dente. Nos séculos XVII e XVIII ocorreu um incremento total na prevalência de cárie. Isso porque a freqüência de cárie aumentou nas superfícies oclusais e interproximais, inaugurando um padrão 'moderno' de ataque cariogênico, em que a destruição descontrolada de grupos de dentes passou a ser a norma (cf. Fejerskov & Thylstrup, 1988).
  • 7
    Os serviços mais comuns ofertados pelos especialistas da arte dentária eram: extração de dentes; limpeza, estabilização e fixação de dentes; raspagem de tártaros e tratamento das gengivas; produtos para alívio da dor de dente; transplantes dentários; fabricação de dentes artificiais (unitários ou conjuntos de dentes) e venda de pós, tinturas e loções para diferentes propósitos (assepsia, frescor, brancura etc.).
  • 8
    De acordo com Larson (1977), a "necessidade universal e vital" é um componente essencial para o mercado de serviços médicos; não apenas pelo seu potencial de expansão – que é ilimitado – mas porque o clima ideológico da sociedade ocidental, enraizado na tradição religiosa judaico-cristã, favorece as funções e os objetivos que a medicina pretende preencher, criando fontes externas de legitimação e credibilidade profissional e contendo elementos que encarnam o papel do sacerdote. Assim, numa sociedade secularizada, o médico (doutor) pode ser considerado um dos herdeiros mais diretos do ministro religioso ou do padre.
  • 9
    Para um exame mais detalhado da prática odontológica no século XVIII, ver Hillam (1991). Para a autora, a ênfase da odontologia nessa época está nos benefícios cosméticos e sociais. Essa ênfase é favorecida pela revolução consumista, segundo a qual o desejo de gastar estava, sobretudo, acompanhado de um aumento da capacidade de realizá-lo.
  • 10
    O primeiro pico no número de praticantes da arte dental na Inglaterra ocorreu em 1755, mas foi apenas no início do século seguinte que a profissão apresentou-se economicamente mais atrativa e promissora. Nos Estados Unidos também ocorreu um grande aumento no número de provedores de serviços dentários na primeira metade do século XIX. (Ver dados na nota 17.)
  • 11
    Brown (1986) afirma que os padrões das habilidades dos trabalhadores de ofício são definidos pelas suas clientelas, e a qualidade de uma dada peça trabalhada é julgada diretamente pelos usuários. Artesanato é um trabalho que não necessita de maiores interpretações a fim de ser julgado bom ou ruim. Em outras palavras, o trabalho manual não demanda nenhum argumento, nenhuma interpretação por parte do trabalhador para que sua clientela saiba que o produto em questão tenha sido produzido sob um determinado padrão.
  • 12
    Segundo Larson (1977), o profissional deve estar equipado com os significados de superioridade cognitiva – isto é, um corpo padronizado de conhecimentos que é socialmente aceito como superior aos conhecimentos conseguidos de fora, tanto pela experiência adquirida no trabalho, quanto em uma vocação – que ele compartilha com outros profissionais e que o distinguem do leigo.
  • 13
    Em sua teoria sobre o "sistema de profissões" Andrew Abbott (1988) apóia-se na existência de forças externas que provocam transformações nesse sistema, com a abertura de oportunidade profissional. Ele argumenta que "forças externas provocam distúrbios ao sistema (de profissões) através da abertura de novas áreas de trabalho e através da destruição de velhas jurisdições". Em geral, as mudanças de tarefas, induzidas externamente, exercem maior influência do que o surgimento e desaparecimento de grupos ocupacionais – as tarefas geralmente antecipam os grupos. Abbott também aponta a existência de quatro fontes 'objetivas' de atividades profissionais – tecnologia, organizações, fatores naturais e fatores culturais. Embora considerando os dois últimos mais raros no estabelecimento de novos campos de trabalho, ele considera que os fatores naturais podem ter um efeito profundo no sistema e que mudanças repentinas ocorrem, com freqüência, nas tecnologias, como conseqüência dos fenômenos naturais. De acordo com essa interpretação, o consumo de açúcar representou um distúrbio fundamental na área de trabalho da odontologia; o aumento da incidência das doenças bucais e a diferenciação no padrão do ataque cariogênico são fatores naturais que agiram como fonte externa de distúrbio, promovendo mudanças e reorganizando o campo de trabalho odontológico.
  • 14
    A introdução da anestesia em 1846 e a descoberta do 'Vulcanite' em 1851, nome da substância de borracha que passou a ser utilizada como base das dentaduras artificiais, em substituição ao ouro, transformou a extração dentária e a dentadura numa alternativa razoável para os problemas de saúde bucal das pessoas com menos recursos (Ring, 1985).
  • 15
    Até o século XIX era comum os profissionais ligados a algumas ocupações se dedicarem a mais de uma atividade, ao mesmo tempo ou sazonalmente. Os dentistas (certamente mais do que os médicos) têm vários exemplos nesse sentido. No prefácio de seu livro, Pierre Fauchard (1746), que se identificava como um "Chirurgien Dentiste", escreveu que "as outras artes que eu pratico nunca me distraíram da cirurgia dentária, para a qual eu fui destinado desde minha juventude" (cf. Fauchard, 1746).
  • 16
    O termo 'dentista', entendido como uma categoria específica envolvida especificamente com assuntos dentários, aparece pela primeira vez no século XVII, na França. Os outros termos utilizados para designar o especialista em odontologia são encontrados nos escritos e documentos históricos há muito mais tempo (pelo menos desde os séculos XIII e XIV) em diferentes sociedades (Harris, 1992).
  • 17
    Nos Estados Unidos, os números de praticantes na área de serviços odontológicos giravam em torno de cem, em 1800. Dez anos mais tarde, eram trezentos, e em 1840 chegaram a doze mil (cf. Cigrand, 1892, p. 233). O mesmo fenômeno é observado na Inglaterra: em 1801, 44 praticantes; em 1811, 65 praticantes; em 1821 eram 110 e, em 1841, havia 347 dentistas (cf. Hillam, 1991, p. 76).
  • 18
    Hillam (1991) observa esse mesmo padrão na Inglaterra, onde a odontologia teria se tornado um negócio bastante atrativo no final do século XVIII e início do século XIX, prometendo excelente retorno financeiro. Trazia, também, a vantagem de um custo relativamente pequeno em termos do tempo e do dinheiro necessários para entrar para a profissão, se comparados com a educação médica ortodoxa vigente e seus requisitos para o exercício profissional.
  • 19
    Fechamento (
    closure) é um fenômeno mais geral, que significa a manutenção de outras pessoas de fora das vantagens que alguém obtém na sociedade, ou seja, de propriedades como capital, patrimônio, ou outros valores de mercado. Uma das estratégias de fechamento, a estratégia de exclusão, é aplicável aos processos de profissionalização. Exclusão pode ser entendida, então, como um nome para todo o gênero de estratégias de fechamento que nega para aqueles que não estão dentro de um grupo privilegiado acesso a algumas propriedades, as quais dão ao grupo uma posição de monopólio dentro do mercado ou, pelo menos, algum tipo de controle sobre ele. Essa parece ser uma linha de ação importante para as profissões, a fim de eliminar a competição e dominar o mercado de serviços profissionais (Collins, 1990).
  • 20
    A descoberta da anestesia por um dentista, em 1846, longe de ser um acaso, veio reforçar as campanhas dos profissionais para sua legitimação social. Para os dentistas, explorar a necessidade de regulação do uso de tal inovação tecnológica tornou-se uma estratégia óbvia, uma vez que nem a medicina nem o público queriam prescindir das vantagens que ela havia trazido para a sociedade – a possibilidade e a esperança no combate a algumas doenças mas, acima de tudo, no combate à dor e ao sofrimento. O controle profissional contra o uso leigo apresentava-se como a solução plausível para esse perigoso esquema. Neste sentido, a descoberta da anestesia agiu como um fator de consolidação do processo de profissionalização da odontologia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006

    Histórico

    • Aceito
      Set 2005
    • Recebido
      Jan 2004
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