Êh minas... Êh Minas...
As atividades geocientíficas no Brasil
colonial: um estudo da obra mineralógica
de José Vieira Couto
(transição dos séculos XVIII para o XIX)
"Êh minas Êh Minas "
Geoscientific activities in colonial Brazil: a
study of José Vieira Coutos mineralogical
work (late 18th to early 19th centuries)
Meu objetivo é estudar as cinco Memórias1 escritas pelo mineralogista brasileiro José Vieira Couto (1752-1827), a partir de pesquisas realizadas na região de Minas Gerais, entre 1799 e 1805. Pretendo reconstruir o contexto histórico, cultural e científico no qual se inseriam o autor e a obra já que partilho a convicção de que os estudos sobre a ciência devem levar em consideração não só sua lógica interna, mas também a realidade sócio-cultural em que é praticada. Em meu caso específico, isso significa examinar as Memórias escritas por Couto à luz da crise geral do sistema colonial e das reformas inspiradas no Iluminismo que os estadistas portugueses do período tentaram implementar com os objetivos de vencer o atraso econômico de Portugal e a crise que ameaçava o seu império colonial.
José Vieira Couto nasceu em Diamantina (Minas Gerais) e fez parte de uma geração de ilustrados luso-brasileiros formados na Universidade de Coimbra reformada pelo marquês de Pombal. Formou-se em filosofia e matemática em 1778 e dedicou-se, no Brasil, a pesquisas de caráter mineralógico e geológico na região de Minas Gerais, onde a atividade mineradora era a mais significativa no Brasil daquele período.
Ao estabelecer o diálogo entre os textos deixados por Couto e o contexto em que foram gerados, buscarei responder às seguintes questões: Qual era a sua visão da ciência? Que "teoria da Terra" norteava seu pensamento e suas pesquisas? Em que medida estava imbuído do ecletismo e pragmatismo que caracterizaram a ilustração luso-brasileira? Com quem dialogava? Teria produzido uma síntese própria?
Meu trabalho tem um caráter interdisciplinar na medida em que nele se entrecruzam a história do Brasil e a das geociências. A obra de Couto foi realizada em um momento crucial, tanto do desenvolvimento destas ciências quanto das relações do país com sua metrópole. Das leituras que tenho feito sobre a construção da geologia no período e sobre o modo como Portugal e sua colônia absorveram as idéias correntes na época, começo a inferir alguns pontos importantes para a compreensão das pesquisas e do pensamento científico de José Vieira Couto.
Couto foi aluno de Domingos Vandelli (1730-1815), médico, químico e naturalista italiano contratado para lecionar na Universidade de Coimbra durante a reforma instituída pelo marquês de Pombal. Formou-se, assim, dentro da tradição química que informava o pensamento netunista, segundo o qual a crosta terrestre se formara em um oceano primordial que continha em solução todos os materiais que viriam a constituí-la por um processo gradual de precipitações.
Em suas Memórias, Couto dialoga repetidas vezes com "dois grandes observadores do nosso século", Lehmann (1719-69) e Buffon (1727-88), este em uma primeira fase de seu pensamento. Ambos davam grande importância à água na formação do globo terrestre. Acreditavam que nela se haviam originado as montanhas primárias e secundárias (segundo a nomenclatura do período). As pesquisas de Lehmann, médico e mineralogista alemão, foram utilizadas em larga medida por Johann Gottlob Werner (1749-1817), um dos grandes estudiosos da terra no século XVIII, considerado o fundador do netunismo.
Para classificar as amostras que coletava e enviava para a Coroa, Couto utilizava classificações químicas, como a de Wallerius (1709-85) e a classificação do sueco Carl Lineu (1707-78). São sistemas diferentes: o primeiro leva em consideração os aspectos químicos ou internos dos minerais, enquanto o segundo prioriza os aspectos externos. Nesse caso, Couto seguia o exemplo do mestre Vandelli, que utilizava os mesmos sistemas classificatórios.
O mineralogista brasileiro estava atento ao que acontecia no campo de sua ciência. Em suas Memórias, cita regiões entre elas a Saxônia, onde Werner realizava seus trabalhos , como exemplos a serem seguidos pelo Brasil que necessitava melhorar as técnicas de extração mineral. Coerente com o pensamento ilustrado, Couto defendia a instrução dos mineiros nas técnicas mais modernas do seu ofício.
Apesar de dialogar com Lehmann e Buffon, Couto não explicita sua opinião a respeito da suposta origem aquática das montanhas.
Tampouco cita Werner, o expoente do netunismo. Além disso, há momentos em que ele se mostra completamente catastrofista em seus textos, vendo por toda a parte "o selo da desolação, de ruínas e de calamidades, por que um dia passou esta parte do globo...". Isso nos leva a encarar Couto como possível expressão radical do ecletismo e do pragmatismo da ilustração luso-brasileira, dialogando com várias correntes de idéias, mas sem tomar posição definida sobre nenhuma.2 Este é um dos nós que iremos desatar.
As dificuldades que enfrentamos nesta fase da pesquisa são comuns àqueles historiadores que se dispõem a trabalhar com o Brasil colônia. Falta de funcionários e precária qualidade de preservação dos documentos são alguns dos problemas notórios dos arquivos brasileiros. A isso se soma o fato de serem completamente desconhecidos muitos dados essenciais para que se possa entender o discurso científico de José Vieira Couto. Além de Vandelli, quem mais participou de sua formação em Coimbra? Com que naturalistas manteve contato durante o tempo em que permaneceu em Portugal? Qual a sua relação com a Academia Real de Ciências de Lisboa? Enquanto prosseguimos com as pesquisas em arquivos brasileiros, fizemos os primeiros contatos em Portugal, pois tudo indica que lá se concentra parte importante das respostas que estamos buscando.
Clarete Paranhos da Silva
Departamento de Geociências Aplicadas ao Ensino
Universidade Estadual de Campinas
Rua Culto à Ciência, 202/48,
13020-060 Campinas SP Brasil
E-mail: clarete@ige.unicamp.br
NOTAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Abr 2006 -
Data do Fascículo
Jun 1998