LIVROS E REDES
A naturalização da diferença
The naturalization of difference
Monica Pimenta Velloso
Doutora em história social Fundação Casa de Rui Barbosa Rua São Clemente, 134 22260-000 Rio de Janeiro RJ Brasil
Fabíola Rohden
Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro, 2001, 224p. Editora Fiocruz,
A construção social da sexualidade vem sendo inventariada pelos mais diversos campos de conhecimento, mas, sem dúvida, é no discurso médico que vai encontrar um dos seus filões mais ricos de análise. Na virada do século XIX para o XX, a onda transformadora advinda da aceleração do processo urbano industrial, entre as suas inúmeras conseqüências, propiciou o ingresso da mulher no mercado de trabalho e a elaboração do ideário feminista, descortinando-se, assim, novas possibilidades de relacionamento entre os gêneros.
Nesse cenário, tão profundamente marcado pelos ventos da mudança, impunha-se a necessidade de repensar e demarcar os papéis sociais.
Os médicos, na condição de 'homens de ciência', se auto-elegem como a instância legítima e competente para fazê-lo. Munidos de um saber considerado redentor, buscam garantir as bases da diferença entre homens e mulheres. É nesse contexto que a ginecologia, surgindo como nova especialização da medicina, será contemplada como a 'ciência da diferença'. Esse é o fio condutor da reflexão desenvolvida por Fabíola Rohden em Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher.
Como o discurso médico vai construir a idéia da 'diferença sexual' no intuito de manter, reelaborar e reafirmar a hierarquia entre os gêneros? É com base nessa indagação que a autora estrutura o seu trabalho, entrecruzando harmoniosamente as perspectivas da antropóloga e da historiadora. Inspirando-se no que denomina uma situação etnográfica privilegiada (p. 197), a autora analisa o caso do médico Abel Parente, membro fundador da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Parente destacou-se na comunidade acadêmica ao defender uma tese considerada revolucionária e, de certa forma, imoral para o pensamento da época. A proposta da esterilização feminina era percebida então como ameaça social capaz de desestabilizar os fundamentos da moral e da ordem burguesa.
O trabalho atento e cuidadoso da historiadora destaca-se, sobretudo, na análise documental, empreendida com base nos arquivos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que contempla, especificamente, as teses sobre ginecologia produzidas no período compreendido entre 1833 e 1940.
Nesse 'discurso da diferença' uma das idéias que, a meu ver, merece especial destaque é aquela que faz aparecer o gênero colado à idéia de sexo. Assim, a mulher é incessantemente 'naturalizada', ao contrário do homem, de modo geral associado ao domínio da cultura, da ação e do pensamento. É a partir desse viés instituidor da naturalização da diferença que a autora mapeia o discurso médico da época, na perspectiva de contrastá-lo com algumas de suas vozes dissonantes, incorporadas, no caso, por Abel Parente e os que o apoiaram.
Em sua pesquisa, Fabíola Rodhen elege o corpo feminino como objeto de investigação historiográfica, mostrando que é sobre ele que se articula o discurso médico destinado a referendar a diferença. Pensa, portanto, o corpo na sua historicidade, o que significa analisá-lo não apenas como lugar da definição sexual, mas sobretudo da demonstração das distinções e das diferenças que o estigmatizam e o excluem. O corpo é focalizado na sua multiplicidade e complexidade, definindo-se como constructo cultural incessantemente reinventado.
O conjunto da obra resulta equilibrado, distribuindo-se pelos capítulos uma densa discussão acerca da emancipação feminina, da institucionalização das especialidades médicas referentes à mulher e do caráter normativo e oficial do discurso médico. O trabalho culmina com a análise do caso concreto do médico Abel Parente, acusado, entre outras coisas, de desviar a mulher do seu destino 'natural', tendo ocasionado a loucura de algumas das suas pacientes.
No primeiro capítulo, respaldando-se em algumas análises clássicas como as de Peter Gay (A educação dos sentidos) e de Norbert Elias (O processo civilizador), a autora mostra o século XIX como um marco na construção social do feminino, contrastando com o século anterior, pautado pela masculinidade. nesse contexto, o médico torna-se voz autorizada e onipresente na sociedade, pretendendo intervir nos seus mais variados domínios. A paciente deixaria de "seguir conselhos, passando a obedecer ordens" (p. 24).
Nas representações médicas, o corpo e a alma femininos passam a ser condicionados pelo sexo e, conseqüentemente, pela idéia de maternidade. A um corpo arredondado, volumoso e de seios generosos corresponderia um temperamento marcado pela fragilidade moral. Se o discurso médico busca escudar-se na 'ciência da mulher' para fazer frente à crescente influência do feminismo, é necessário, porém, analisar mais cuidadosamente a questão.
Eis o aspecto importante para o qual a autora nos chama a atenção. Atenta às ciladas da 'teoria da vitimização' que marca os primeiros estudos de gênero, ela sugere um outro caminho: considerar o conjunto do campo discursivo, das práticas sociais e atores envolvidos. A partir daí, seria lícito indagar: até que ponto as mulheres não internalizariam, elas próprias, determinados comportamentos usando as teorias de acordo com os seus interesses?
No segundo capítulo, encontramos um panorama histórico cuidadoso da obstetrícia e da ginecologia no Brasil, marcado pela parceria entre a medicina e o Estado. Vale destacar especificamente a parte referente à história do ingresso das mulheres na profissão médica. No âmbito internacional, a autora mostra-nos a participação expressiva das feministas que passaram a criticar teses vigentes, como a 'fragilidade fisiológica' da mulher que colaborava para sua exclusão das funções públicas. No Brasil, essa tese também seria objeto de intenso debate entre aqueles que defendiam a emancipação feminina e os que tentavam dificultá-la, respaldando-se na argumentação da cientificidade.
Nesse capítulo, vemos ainda como as primeiras profissionais mulheres na área médica acabaram interiorizando determinados valores dominantes. Por exemplo, o caso da primeira parteira, Mme Durocher, diplomada pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro (1834), que, para transmitir confiabilidade às suas clientes, mimetizava o comportamento masculino. Em sua autobiografia, Mme Durocher observava que uma mulher atraída por "fitas, renda, enfeite de cabelo, jóia e tantas outras bugigangas" não poderia ter "precisa aptidão e constância necessária para sérios estudos de gabinete, para as observações na prática, ao lado da parturiente" (p. 82).
Na história das primeiras profissionais mulheres na área médica consta o nome de d. Pedro II como mecenas que teria custeado nos Estados Unidos os estudos de Maria Augusta Generoso Estrela, diplomada em 1879. A receptividade que teve a primeira médica a diplomar-se no Brasil, Ermelinda Lopes de Vasconcelos, em 1888, denota a associação feita entre a idéia da emancipação feminina e o ingresso do país na modernidade. Na ocasião, organizou-se uma passeata pelas principais ruas da cidade, sendo a estudante saudada por José do Patrocínio, Quintino Bocaiúva e Rui Barbosa.
Tomamos conhecimento também do conturbado cotidiano de algumas mulheres que ousaram trilhar os novos caminhos da profissionalização abertos pela medicina. Personagens que ousaram romper com as expectativas e papéis sociais que lhes circunscreviam tradicionalmente à esfera do privado, do anonimato e da invisibilidade social, conforme análise desenvolvida por Michelle Perrot em Os excluídos da história (1988).
Com base na documentação dos arquivos da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, o terceiro capítulo trabalha a fundo a questão da construção das diferenças. Fabíola Rohden mostra-nos que o eixo argumentativo de toda essa trama discursiva repousa em uma idéia-chave: a da reprodução. A uma organização corporal diferenciada corresponderiam, portanto, papéis sociais diferenciados. As ciências, artes e invenções atividades de esforço intelectual eram consideradas áreas de atuação masculina. Moldadas anatomicamente pela natureza, as mulheres deveriam direcionar os seus esforços no sentido de privilegiar as funções de gestação, parto, amamentação, cuidado dos filhos e do marido (p. 111).
Nesse sentido, a autora chama a atenção para o título de uma tese defendida por Afonso Cordeiro de Negreiros Lobato Júnior, Mulher em geral: menstruação e suas causas (1855). Para Lobato Júnior, é só no momento em que a mulher toma consciência de sua função reprodutiva que deixa de se apresentar como um 'ser equívoco', indefinido socialmente.
Nos discursos médicos analisados, a diferenciação do gênero aparece fortemente respaldada pelas teorias de Lombroso. A representação da 'mulher histérica', associada à loucura e à criminalidade, funcionava como argumento recorrente para fundamentar a intervenção e normalização médicas. Consideradas 'moralmente irresponsáveis', as mulheres, segundo algumas teses da medicina, demandavam proteção e cuidados especiais que iam desde a criação de asilos e patronatos à formação de comissões médicas para julgá-las, no caso de terem cometido crimes.
Após discutir exaustivamente a constituição da diferença feminina centrada na ginecologia, Fabíola Rodhen apresenta-nos, no quarto capítulo, o caso do médico Abel Parente. O desenvolvimento do seu trabalho, até alcançar esse capítulo, lembra o recurso ao método indiciário do 'historiador-detetive', sugerido por Carlo Ginzburg em Mitos, emblemas e sinais (1990).
Para Ginzbug, o modelo cognitivo indiciário que serviria de base interpretativa para campos de conhecimento tão distintos entre si, como a psicanálise, a historiografia da arte e a criminologia se estrutura com base no deciframento de pistas e de sinais. Cercado o campo das 'evidências', a autora parte no encalço do caso concreto: o do médico Abel Parente. Como, por quê, baseada em que a tese da 'esterilização feminina provisória', defendida por Parente, fora objeto de tantas e tamanhas controvérsias? Como conseguira envolver e mobilizar tantas instituições e pessoas? Afinal de contas, em que ela destoava e, sobretudo, contrariava o saber médico da época?
Arrolando cuidadosamente os discursos acusativos contra o médico Abel Parente, a autora reforça sua tese inicial: a da naturalização das diferenças entre os gêneros. Apresentando-se como os defensores da moralidade pública, os médicos acusavam o colega Parente de estar cometendo um crime de lesa-pátria ao praticar a esterilização. Confundia-se, propositadamente, a prática da esterilização com a do aborto. Se a sexualidade feminina era assunto que não pertencia ao poder decisório das mulheres, mas ao dos médicos e dos maridos, a esterilização passava a ser considerada crime contra a natureza. Argumentava-se, assim, que a esterilização provocava o descontrole da sexualidade, advindo daí a loucura, a imoralidade (prostituição) e a crise da instituição familiar. Entrando em conflito com sua verdadeira natureza e predestinação a procriação a mulher provocava não só a sua desordem interna corporal, mas a desordem social.
Esses argumentos da tese do dr. Públio de Mello, da Sociedade de Higiene do Brasil, vão desencadear o debate público. Na defesa, a autora detém-se na análise da obra do dr. Francisco de Castro, da Diretoria Sanitária, Abel Parente do ponto de vista do direito criminal, da moral pública e da medicina clínica (1893). Aspecto digno de nota é a própria redefinição que se opera em torno do conceito de imoralidade. Não seria o controle da sexualidade e o livre-arbítrio do casal mais moral do que a multiplicação indefinida da prole, abandonando-se esta aos cuidados da sociedade? A indagação, envolvendo sobretudo a idéia da mulher como sujeito das decisões, era revolucionária para os padrões morais da época.
A polêmica vai aumentar, ao longo da primeira década do 1900, abrangendo um amplo e diversificado leque de questões, que passam pela ética, direito, criminalidade, publicidade, feminismo, sexualidade, estética, natalidade, malthusianismo e eugenia, remetendo ao grande debate em questão: a distinção entre a esfera da natureza e da cultura. Por aí, tem-se a reconstituição de um quadro fértil e extremamente rico do debate das idéias sociais que se fizeram presentes no campo da medicina e da saúde pública. Tomando como foco de análise o microcosmo da ginecologia, a autora consegue mapear, com acuidade, as principais linhas do debate científico da época, estruturado em torno da classificação e hierarquização do conhecimento e dos gêneros.
Um dos méritos do trabalho de Fabíola Rodhen é o de ressaltar os aspectos múltiplos e contraditórios que vazam não só do discurso médico, mas também daquele produzido pelas mulheres escritoras referente à própria representação do feminino. A plasticidade, por assim dizer, que permeia tais discursos reflete a multiplicidade de interesses em jogo: se, de um lado, legitimava-se a diferença homem-mulher com base na natureza biológica, de outro, mostravam-se os fundamentos sociais passíveis de moldar e de construir essas diferenças. Roy Porter em a 'História do corpo', artigo publicado em A escrita da história (1992), chama a atenção para o fato ao ressaltar o caráter complexo das relações corpo-mente, sendo o corpo mediado por sistemas de sinais culturais. Observa que a distribuição da função e da responsabilidade entre corpo e mente difere de acordo com o século, a classe, as circunstâncias e a cultura, possuindo as sociedades uma pluralidade de significados concorrentes.
Resgatando a leitura foucaultiana sobre a sexualidade, a autora reforça o papel da instabilidade e da fluidez das categorias como forma de legitimar as diferenças (de classes e de etnias) entre as mulheres. A análise do caso do médico Abel Parente, empreendida por Fabíola Rodhen, reforça a centralidade da historicidade, revelando-se essa através do caráter cambiante e fluido das fronteiras que organizam o mundo social. Denota-se claramente, aí, como os limites, as atribuições e as hierarquias dos papéis sexuais são constantemente redefinidos em função das questões colocadas pela dinâmica social. Inspirando-se no panorama mutante da virada do século XIX para o XX, a autora capta, com sensibilidade e profundo espírito de análise, um desses momentos singulares em que a mudança impõe-se como força reestruturadora, buscando conferir novos sentidos e inteligibilidade à dinâmica história do cotidiano.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2004 -
Data do Fascículo
Dez 2003