DEBATE
Ciência, tecnologia, parlamento e os diálogos com os cidadãos
Science, technology, parliament, and dialoguing with citizens
Luisa Massarani
Coordenadora do Centro de Estudos do Museu da Vida Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Av. Brasil 4365, Manguinhos 21045-900 Rio de Janeiro RJ Brasil lumassa@fiocruz.br
RESUMO
Este mini-dossiê discute a importância de se ampliar a participação do público não-especializado no processo decisório relacionado a temas de ciência e tecnologia que têm impacto significativo na sociedade. Trata-se de uma coletânea de textos que inclui a experiência da Dinamarca que se tornou modelo internacional de realização de mecanismos participativos na área , do Canadá, da Argentina e do Chile, além de uma contribuição do Reino Unido com algumas reflexões sobre o tema. Esperamos que seja o ponto de partida para uma discussão mais ampla sobre o tema e que gere frutos para o aumento da participação pública em temas de ciência e tecnologia no Brasil e em outros países da América Latina.
Palavras-chave: participação pública em C&T; modelos deliberativos em C&T; América Latina.
ABSTRACT
This mini-dossier discusses the importance of expanding the non-specialized public's participation in the decision-making process surrounding those issues in science and technology that have a significant impact on society. This collection of texts includes experiences from Denmark (which now serves as an international model in participative mechanisms), Canada, Argentina, and Chile, along with a contribution from the United Kingdom with some thoughts on the topic.1 We hope it will be the starting point for a broader discussion and that it will foster increased public participation in science and technology topics in Brazil and other Latin American nations.
Keywords: public participation in S&T; deliberative models in S&T; Latin America.
A ciência e a tecnologia têm, cada vez mais, aplicações que afetam de forma significativa a sociedade. Pesquisas com células-tronco embrionárias, plantios e alimentos geneticamente modificados e produtos gerados por meio de nanotecnologia são apenas alguns exemplos que vêm gerando controvérsias e acirrados debates tanto na comunidade científica como fora do âmbito acadêmico.
No entanto, são comuns em particular na América Latina os episódios em que, em vez de se criarem estratégias para trazer ao debate, de forma mais democrática, temas relacionados à ciência e à tecnologia, a sociedade tem sido excluída do processo decisório em questões que têm impacto na vida cotidiana das pessoas.
Exemplo disto é o episódio recente da introdução de alimentos e plantações geneticamente modificados no Brasil, tema que vem causando controvérsias desde 1998, acirradas em 2003. Embora o cultivo e a comercialização de produtos geneticamente modificados fossem na ocasião proibidos por lei no Brasil, em fevereiro de 2003 descobriu-se que grande proporção da soja plantada no Sul do país era transgênica. Pouco após anunciar que a proibição seria mantida, o governo decidiu permitir a venda para consumo animal e humano, sob o argumento de que se tratava de um problema social e econômico importante, tendo em vista que envolvia milhões de toneladas de soja e grande número de pequenos agricultores. A decisão foi tomada aproximadamente dois meses após serem anunciados os resultados de uma pesquisa de opinião pública que reiterava dados de estudo similar feito no ano anterior: cerca de 70% dos brasileiros preferem comer alimentos não transgênicos; cerca de 90% dos entrevistados afirmam que, se tem de haver alimentos transgênicos vendidos nos supermercados, que sejam rotulados.
O tema dos transgênicos longe de ser apenas uma opção alimentícia ou uma questão restrita ao âmbito acadêmico tem impacto importante em aspectos variados do país. Para ilustrar isto, basta lembrar seu caráter econômico: por um lado, sementes transgênicas são recusadas por alguns países, em particular na Europa; por outro, como alegam os defensores delas, há expectativas de que gerariam plantações muito mais produtivas e resistentes a pragas. O Brasil é um dos maiores exportadores de produtos agrícolas do mundo e a agricultura é responsável por 13% do produto interno bruto brasileiro, com papel significativo na balança comercial do país. Ressalte-se, ainda, que os transgênicos passaram a ser regulamentados pela controversa lei de biossegurança, que inclui também a pesquisa com células-tronco de embriões e que foi aprovada em março de 2005 sem que tenha havido um processo de discussão e participação amplo do ponto de vista da sociedade, embora vários setores determinados, muitos dos quais com perspectivas corporativas estreitas, se fizessem presentes no processo.
Vale lembrar que a introdução de inovações científicas e tecnológicas, bem como de equipamentos e comportamentos, sem um engajamento e processos adaptativos apropriados da sociedade pode levar, em situações extremas, a revoltas populares, como ocorreu no Brasil com a introdução do sistema métrico decimal (Revolta dos Quebra-Quilo), na segunda metade do século XIX, e com as campanhas de vacinação (Revolta da Vacina), no início do século XX.
No cenário internacional, países distintos como Dinamarca, Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia, Japão e França, entre outros, têm usado, em maior ou menor grau, mecanismos de participação pública, que incluem conferências de consenso, júris de cidadãos, consultas públicas e referendos. Essa tarefa é mais desafiadora em nosso continente, tendo em vista a tradição de autoritarismo e a visão excludente predominante, que também afeta alguns membros da comunidade científica estes consideram ser necessária uma formação científica formal de alto nível para que se possa opinar e influenciar nas grandes decisões políticas que envolvem ciência e tecnologia.
Ainda assim, nos últimos anos, algumas iniciativas para incrementar a participação pública em temas de ciência e tecnologia têm despontado em nosso continente, ainda que de forma mais pontual e por vezes sem efeito prático. Exemplo disso é um artigo na legislação do Rio de Janeiro, requerendo que qualquer decisão em ciência e tecnologia que represente um impacto mais substancial na sociedade a exemplo da construção de uma hidrelétrica ou usina nuclear, por exemplo só pode ser tomada após consulta à população. Tal artigo, no entanto, nunca foi regulamentado. Porém, existem bons exemplos de iniciativas da sociedade civil, envolvendo metodologias participativas: conferências de consenso foram realizadas na Argentina e no Chile, e serão detalhadas mais adiante neste mini-dossiê.
Partindo do pressuposto de que a sociedade pode e deve participar de processos decisórios na área de ciência e tecnologia que podem afetar profundamente seu futuro e a vida dos cidadãos, e com objetivo de trazer o tema à discussão, o Centro de Estudos do Museu da Vida da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e a revista História, Ciências, Saúde Manguinhos prepararam este conjunto de depoimentos de pessoas que vêm se preocupando com a participação pública em ciência e tecnologia e estão ou estiveram envolvidos com iniciativas práticas que buscam aproximar a sociedade dos processos decisórios.
O mini-dossiê se abre com uma entrevista concedida em parceria pelo biólogo Lars Klüver e pela especialista em comunicação Edna F. Einsiedel, dois nomes de destaque nessa área. Klüver é diretor do Conselho Dinamarquês de Tecnologia (Teknologirådet), que se tornou paradigma internacional de realização de modelos participativos em temas de ciência e tecnologia. Einsiedel tem envolvimento direto na organização de conferências de consenso no Canadá e focaliza suas pesquisas nos modelos deliberativos.
Em seguida, publicamos uma transcrição adaptada de uma palestra proferida no Rio de Janeiro pelo sociólogo Tom Shakespeare, do Reino Unido.
Cruzamos os mares e chegamos a duas experiências precursoras em nosso continente, realizadas na Argentina, em 2000, e no Chile, em 2003, discutidas pelo engenheiro Ricardo A. Ferraro; pela socióloga Adriana Bacciadonne e pelo especialista em biotecnologia Alberto Díaz (experiência Argentina); e pelo médico Alberto Pellegrini Filho (experiência chilena). A contribuição da Argentina permite-nos o acesso a trechos do relatório final de uma das conferências de consenso realizadas naquele país. Já o artigo sobre a experiência chilena discute como foi o processo de adaptação do mecanismo participativo desenvolvido na Dinamarca para o contexto latino-americano.
O mini-dossiê é, por certo, não-exaustivo. Mas esperamos que seja o ponto de partida para uma discussão mais ampla e que gere frutos no incremento da participação pública em temas de ciência e tecnologia, no Brasil e em outros países da América Latina.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Jun 2007 -
Data do Fascículo
Ago 2005