Open-access A parasitologia como exemplo da possibilidade de regras gerais para a ciência

Parasitology as an example of the potential for general rules for science

RESENHAS

LIVROS & REDES

Adauto Araújo; Fernando Salgueiro Passos Telles

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz. adauto@ensp.fiocruz.br; fernando.telles@ensp.fiocruz.br

Guillermo Denegri formou-se em zoologia e em filosofia. Doutorou-se em ciências naturais, dedicou-se ao ensino da parasitologia e da saúde pública, mas sua realização pessoal maior talvez tenha acontecido quando uniu o ensino da parasitologia com suas reflexões filosóficas. Concretizou essa conjunção entre o empirismo da parasitologia e a metodologia da investigação científica, desenvolvida pelo epistemólogo Imre Lakatos, em suas aulas aos alunos de doutorado em ciências no Seminário Permanente de Biofilosofia que coordena. Leciona no Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais da Universidade Nacional de Mar del Plata e é pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet). Nessa universidade, dirige o Laboratório de Zoonoses da faculdade.

Em 2004 tivemos o privilégio de conhecer Guillermo Denegri ao ministrar um curso de paleoparasitologia em Necochea, ao sul da cidade de Mar del Plata, Argentina, a convite dos professores Ricardo Guichón e Martín Fugassa. Ele, à época presidente de Federación Latinoamericana de Parasitología (FLAP), assistiu ao curso depois seguimos para Mar del Plata, para um jantar em sua casa. Norma Sardella, também parasitologista (e excelente cantora de tangos), estava conosco. Após de encomendadas as bandejas de empanadas de diversos sabores, abertas garrafas de vinhos espetaculares e recordados os tangos, a conversa fluiu sobre parasitos, filosofia, evolução, competição, conceitos e linhas de investigação em parasitologia. Guillermo estava a pensar em seu livro e tivemos a sorte de vê-lo em preparo. Entusiasmado, comentou conosco como via a pesquisa em parasitologia.

Guillermo publica agora esse esplêndido livro. Esplêndido por sua linguagem fácil, típica do professor que conhece profundamente o assunto e sabe torná-lo adequado a quem nele se inicia. Filosofia e parasitologia, como poderiam beneficiar-se uma com outra? Como essa ciência, a parasitologia, investiga seus assuntos de modo a entender os fenômenos da natureza que compreendem relações íntimas entre organismos que vivem uns com os outros, encontrando neles seu nicho ecológico? Nesse livro estão os modelos. Interessa aos biólogos e parasitologistas, mas também à ciência, ao conhecimento, aos historiadores, filósofos e a quem for suficientemente curioso para buscar entender como surgiram e se desenvolveram as complexas relações que originaram o mundo que conhecemos. Sim, o mundo dos seres viventes, pois não há ser vivo que não se relacione com diversos parasitos e vice-versa.

É uma edição bilíngue, em espanhol e em inglês, o que certamente permitirá difusão para além da América Latina. Bom que assim seja, pois muito dele se pode aproveitar. Guillermo dividiu o livro em dez capítulos curtos, sintéticos, muito bem aproveitados, sendo o último de conclusões precisas. No primeiro trata das generalidades da parasitologia, situa o leitor não parasitologista no que pretende discutir mais adiante. Já nesse capítulo se fica sabendo em que bases o livro irá nos conduzir.

Guillermo pleiteia a formação de programas de investigação científica, as quais sintetiza na sigla PIC. Tem por objetivo desenvolver uma proposta, no campo da biologia teórica e da parasitologia, que permita definir padrões e processos comuns de desenvolvimento evolutivo nos organismos vivos. Para isso, usa o marco teórico do PIC, proposto por Lakatos. A epistemologia lakatosiana pode ser apreendida como uma espécie de revisão e aperfeiçoamento de outra epistemologia, o chamado falibilismo metodológico de Popper. Ambas são teses do século XX. Com base na história real de projetos científicos específicos (como o da mecânica clássica ou da mecânica ondulatória, por exemplo), Lakatos os reconstrói na estrutura do que denomina programas de investigação científica. Essa metodologia é um instrumento de crítica do pretenso poder cognitivo das teorias científicas. Não é método, mas discurso de avaliação do poder do método naquilo que é o seu fim: a produção de conhecimento a ser aceito como legítimo. Sendo assim, é discurso meta-metodológico, ou de segunda ordem. Tal é o sentido do termo epistemologia, isto é, o de um discurso sobre o discurso metodológico. Se a ciência descreve e explica os fatos do mundo com o método científico (discurso de primeira ordem), a epistemologia (discurso de segunda ordem) apela para uma questão de direito. Com que direito o método toma para si o suposto poder de produzir verdade?

Agora, a real necessidade dos dois discursos para o bom funcionamento da ciência é um problema que divide cientistas e filósofos da ciência. Poucos questionam a legitimidade do de primeira ordem, entre eles, os anarquistas metodológicos, que não veem relação entre o rigor metodológico e os produtos da ciência. Para esses, a suposta eficácia do método é mera ilusão racional fomentada pelo culto à tecnologia experimental, que, segundo essa tese, carece de fundamento. Para os anarquistas, a produção científica é simplesmente o resultado do confronto e da competição de palpites sobre a realidade, cujas forças argumentativas repousam menos na lógica do que no contexto sociopolítico de suas respectivas épocas. Mas, como se afirmou, são poucos os filósofos e cientistas que desconsideram o papel do método na ciência. A polêmica substantiva é com relação à utilidade da epistemologia.

Denegri não parece ter dúvidas com relação à necessidade dos dois discursos na ciência. Além do mais, seu livro é um exemplo inteligente da aplicabilidade do discurso de segunda ordem. De maneira clara e elegante, apresenta-nos a parasitologia na estrutura de um programa de pesquisa lakatosiano. Para Lakatos, as ciências se forjam na conjunção de discursos lógicos e de regras extralógicas. A parte lógica corresponde aos diversos métodos específicos de cada ciência. As regras extralógicas, também chamadas heurísticas, têm aparecido em todas as ciências por ele examinadas. São duas a dar a estrutura dos programas de investigação científica. Uma delas é a heurística negativa, que se apresenta na forma de uma ou mais hipóteses, fornece a base, o ponto de partida ou a ideologia, por assim dizer, com base na qual a ciência em questão busca seu fundamento. É o chamado núcleo duro do programa de investigação, que aponta os caminhos empíricos preferenciais a serem tomados pelo programa. As teses do núcleo duro devem ser admitidas como verdadeiras. Essa é uma decisão metodológica reveladora do grau de convencionalismo necessário a toda e qualquer atividade científica. Há, entretanto, um limite para tal convencionalismo e este é dado pela segunda regra: a heurística positiva do programa. Assim, o núcleo duro terá seu valor de verdade assegurado se, e somente se, um outro grupo de teses puder produzir explicações férteis para os contraexemplos do mundo real (e eles não são poucos) às afirmações do mencionado núcleo. São as hipóteses do chamado cinturão protetor do programa de investigação que se legitimam por proporem fatos novos. Fatos novos se apresentam como ideias pouco prováveis, soluções originais para contraexemplos empíricos ao núcleo duro, novos modelos explicativos e hipóteses auxiliares. O que torna fértil ou progressiva a atividade científica é a predição teórica seguida da verificação empírica de tais fatos novos, eventualmente desviantes do esperado com base no que prescreve a tradição. Quando, em vez de antecipar fatos, o programa de pesquisa passa a propor explicações a posteriori, ad hoc, isto é, após os fatos terem acontecido, o programa é dito regressivo, se afasta do campo da ciência e, no limite, pode tornar-se dogma.

Assim, para Lakatos, não há como definir a ciência como um todo abstrato, restando apenas a possibilidade de entendê-la racionalmente na reconstrução lógica de programas de pesquisa específicos.

Foi o que fez Denegri em Fundamentación epistemológica de la parasitologia. A parasitologia passa a ser mais um exemplo de programa de investigação científica, com sua lógica intrínseca e suas regras metodológicas, seus contraexemplos, suas hipóteses auxiliares, seus caminhos empíricos. Foi assim que o autor introduziu ordem e sistemática em uma disciplina biológica como é a parasitologia, repleta de conhecimento empírico. Esse, portanto, é o tema do segundo capítulo, em que o autor parte do raciocínio de que os grandes sucessos científicos são programas de pesquisa que podem ser avaliados por transformações progressivas e regressivas de um problema.

Com os alicerces bem sedimentados, ele estruturou a proposta de um programa de pesquisa (investigação) científica em parasitologia. Mesmo para aqueles não iniciados na parasitologia, o texto é suficientemente claro e muito bem exemplificado para ser entendido por todos. Seguem-se exemplos, e Guillermo Denegri vai mostrar isso nos artigos publicados em revistas especializadas e da maneira como os autores buscaram, em seus trabalhos de campo e laboratório, padrões e processos do fenômeno parasitismo, embora sem lançar mão do recurso a uma base epistemológica. Porém os artigos podem ser usados como a base empírica para formar o cinturão protetor de um programa de pesquisa em parasitologia. Vai chegar, ao final, já no oitavo capítulo, a uma proposta pedagógica em parasitologia e em teoria evolutiva, com base na metodologia dos programas de investigação científica.

Por fim, nas conclusões, Guillermo Denegri propõe a epistemologia como formação humanista de cientistas e formação científica de humanistas, de maneira a aproximar as 'duas culturas'. Boa sorte para o leitor. Que aproveite bem esse livro precioso.

  • A parasitologia como exemplo da possibilidade de regras gerais para a ciência
    Parasitology as an example of the potential for general rules for science
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010
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