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CARTA DAS EDITORAS CONVIDADAS

Caros leitores,

Este número foi organizado a partir da constatação de que histórias e políticas de oceanos e mares ainda têm recebido pouca atenção dos historiadores das ciências no país. Não que os mares e oceanos não perpassem a história, a política e a investigação científica do Brasil, dos países vizinhos ou de Portugal, como os artigos reunidos neste volume o demonstram.

Os estudos sobre os oceanos e mares consolidaram-se por todo o mundo na transição para o século XX, com as viagens de exploração do Challenger inglês ou do Gazelle alemão, e institucionalizaram-se com os experimentos infraestruturais – infrastructural experiments, nos dizeres de Robert Kohler em Lanscapes and labscapes – a partir da fundação, em 1872, da famosa Stazione Zoologica de Nápoles, seguida, dentre outras, pela Biologischen Anstalt Helgoland em 1892, outro empreendimento modelar a combinar pesquisa, instrução em biologia marinha e indústria pesqueira. Por tais espaços de conhecimento e poder circulou toda uma geração, como a de Hermann von Ihering, o que lhe possibilitou produzir os primeiros e últimos dos inúmeros trabalhos que fundamentariam suas histórias sobre a origem do oceano Atlântico, que Maria Margaret Lopes e Irina Podgorny discutem nesta edição. Criaram uma nova tradição de formação, pesquisa e articulação de políticas internacionais, como demonstraram os estudos de Helen Rozwadowski em The sea knows no boundaries. Recriando modelos, organizaram-se os laboratórios marinhos em Portugal, o que Maria Fernanda Rollo, Maria Inês Queiroz e Tiago Brandão abordam historicamente, analisando a oceanografia como opção estratégica da política científica nacional do Estado Novo português, assim como sua complexificação técnica e científica a partir dos anos 1970. Os interesses pelo espaço marinho combinaram a pesca comercial marítima e as investigações ictiológicas também na Argentina, na transição para o século XX, conforme explica Susana García, explorando as formas como os naturalistas compilaram e processaram as observações e experiências empíricas dos pescadores. Espaço de consolidação de pesquisas inovadoras e poder – que inclusive será conquistado pelas mulheres – veio a ser o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, cujo processo de institucionalização, já a partir de 1940, é tratado por Alex Gonçalves Varela.

Abrangendo ampla temporalidade, os artigos reunidos aqui mobilizam produção de conhecimentos, instrumentos de navegação, criaturas marinhas mitológicas, personagens históricos controversos, viagens de exploração, apropriação de recursos, interesses geopolíticos, instituições. Navegam, seguindo os astrolábios e os textos de cosmógrafos portugueses dos séculos XVI a XVIII, tratados por Heloisa Gesteira, até alcançar as ferramentas de busca eletrônica especializada das quais se utilizam Gilberto Menezes Amado Filho e Leila de Lourdes Longo para traçar panoramas atuais e perspectivas futuras para os estudos da biodiversidade marinha, da fauna marinha bentônica, no Brasil. Também são contempladas as lendas sobre monstros marinhos, alguns dos quais estabelecidos e classificados pelas práticas científicas, como examinam Rodrigo Salvador e Barbara Tomotani no texto sobre o legendário Kraken, tornado um calamar gigante. Nessas viagens de monstros e dados – a serem combinados em tabelas e mapas –, as histórias contadas discutem questões de teoria darwinista, práticas de campo e colecionismo, redes de correspondência e intercâmbio de informações, expostos na análise de Almir Leal de Oliveira dos trabalhos de John Casper Branner (1899-1911) nas expedições Stanford ao Brasil. A formação de pessoal para a expansão dos impérios também é tratada por Gabriel Passetti, em suas considerações sobre a viagem do Beagle de FitzRoy, seguindo a tradicional perspectiva dos “ollhos imperiais”. Acompanham ainda as viagens Alda Heizer e Aline Cerqueira, discutindo na seção “Fontes” a inserção dos trabalhos de Joséphine Schouteden-Wéry no litoral belga e na colônia do Congo, aprofundando um debate amplo sobre os fatores geológicos, climáticos e hidrológicos que regulavam a distribuição geográfica das espécies.

Os mares e oceanos – spaces in between – lugares de diversidades, de ocorrências inesperadas, de usos múltiplos (da recreação a palcos de guerra e pirataria; de depósitos de oferendas a pesquisas científicas; de náufragos de migração a projetos de conservação da biodiversidade) possibilitam outras produções de imagens, coleções, interpretações. A legitimidade dessas representações, os meios técnicos necessários para tornar visíveis espaços quase inacessíveis estão presentes nas análises sobre a fotografia subaquática e os limites da visibilidade fotográfica de Alejandro Martínez. A imagem também consta das atividades da realeza europeia no início do século XX, como escrevem Maria Estela Jardim e colaboradores considerando o interesse pelo mar e o colecionismo do penúltimo rei português. O intento de representar e tornar visível o mundo submarino surge também no artigo de Maurício de Mattos Salgado e Martha Marandino sobre a proliferação dos aquários e a musealização do mar, com todas as implicações daí decorrentes – como as técnicas de manutenção de organismos em cativeiro. A mesma busca está presente na resenha do premiado livro História, pesquisa e biodiversidade do Monumento natural das Ilhas Cagarras, na qual Maria Margaret Lopes destaca como especialistas do mais alto nível em animais, plantas e recursos minerais partilham o mar com pescadores, ambientalistas, esportistas, turistas, navios comerciantes e mergulhadores, cada um com seus respectivos aparatos, nos poucos metros protegidos ao redor e nessas ilhas, até então, “tão perto e tão desconhecidas”.

Como sugere Susana García, os estudos sobre o mar iniciados aqui permanecem um “entramado” de agentes, instituições, instalações, aparatos e desejos com prioridades e interesses muito diversos a pesquisar.

Alda Heizer
Maria Margaret Lopes
Susana García

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sept 2014
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