LIVROS & REDES
O gênero das travestis: corpo e sexualidade na cultura brasileira
The gender of transvestites: the body and sexuality in Brazilian culture
Mirian Goldenberg
Professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Humberto de Campos, 520/2002, 22430-190 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. www.miriangoldenberg.com.br
Travesti é um livro singular, escrito por um antropólogo extremamente singular: Don Kulick, um norte-americano, que viveu na Suécia mais de vinte anos, onde fez seu doutorado em antropologia social pela Universidade de Estocolmo. Com inúmeros livros publicados, dentre os quais se destacam Taboo e Fat, Kulick publica agora sua primeira obra em português: Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil - um fascinante livro, já clássico entre estudiosos das questões de gênero e sexualidade no Brasil.
Publicado nos Estados Unidos em 1998, Travesti é fruto de trabalho de campo realizado em 1996 e 1997, em Salvador (BA). É etnografia sensível, delicada, divertida, crítica, corajosa, provocadora e, mais do que tudo, atual, como provam fatos recentes, amplamente divulgados pela mídia nacional e internacional, envolvendo um famoso jogador de futebol e 'três travestis'.
Durante quase um ano, Don Kulick conviveu e viveu com as travestis, 24 horas do seu dia. Por isso, seu livro não fica restrito aos escândalos ou ao exotismo do grupo estudado, nem à prostituição ou às transformações dos seus corpos, temas também detalhados na pesquisa do autor. O livro dedica considerável espaço a temas como ingestão de hormônios, aplicação de silicone, primeiras experiências sexuais, prostituição, roubos cometidos por travestis, bem como aos discursos utilizados para explicar e justificar tais práticas. No entanto, o que ele pretende, diferentemente de estudos anteriores, é contextualizar as práticas percebidas como espetaculares em bases muito mais prosaicas. Como conta o autor, "concentrando-me no dia-a-dia das travestis, olhando de perto o modo como refletem sobre a vida, tentando explicar a lógica subjacente que lhes permite dar sentido à própria existência, pretendo mostrar que a prostituição, as modificações corporais, e todo o resto, não são em absoluto meras ilusões sombrias de pessoas desorientadas. Ao contrário, sugiro que tais práticas são perfeitamente razoáveis, ou, pelo menos, perfeitamente compreensíveis, no contexto do mundo social onde as travestis crescem e vivem" (p.25).
Don Kulick morou em um minúsculo quarto na mesma casa em que viviam 13 travestis, em uma das áreas mais pobres e perigosas de Salvador. Sendo um forasteiro de cabelos louros, um norte-americano que morou na Suécia, Kulick tinha um certo quê de exotismo que parecia atrair as travestis. Ao mesmo tempo, não tinha qualquer preconceito, pois não sabia quase nada sobre as travestis quando começou a estudá-las. Não tinha medo, desprezo ou repulsa, sentimentos que, após iniciar o estudo, verificou serem muito presentes nas ruas de Salvador. Não demorou para Kulick descobrir que as travestis são um dos grupos mais marginalizados, temidos, discriminados, vitimizados e desprezados da sociedade brasileira.
Kulick presume que sua condição de pesquisador estrangeiro, preocupado em manter postura não condenatória e assumidamente gay, permitiu uma relação privilegiada com as travestis. O resultado foi o acesso a dimensões de sua vida que ainda não haviam sido descritas. Ele chegou ao Brasil sem falar português, aprendendo a língua com as próprias travestis. Assim, pôde observar, sem qualquer julgamento, seus movimentos, seus rituais de embelezamento, suas conversas, suas brigas e fofocas, seus programas... Kulick descreve, detalhadamente, o seu cotidiano com elas:
Tomava café da manhã com elas (café muito adoçado e pão com manteiga), quando acordavam por volta do meio-dia, batia papo, enquanto elas, sentadas na porta de casa, arrancavam pelinhos do queixo, ao sol do fim da tarde; amontoava-me com elas nos colchonetes, assistindo a filmes de ação nas madrugadas, enquanto elas fumavam baseados de espessura de um charuto. Todas as noites, desde cerca das 20 horas até 1 ou 2 horas da manhã, eu andava pelas ruas onde trabalham as travestis, visitando-as nos diversos pontos de prostituição (p.29).
Desde o início da pesquisa, Kulick simpatizou e passou a admirar as travestis, especialmente pelo humor irreverente e postura desafiadora com que enfrentavam as muitas ofensas e agressões cometidas por policiais e, também, por pessoas comuns que passavam por elas. O que começou como trabalho de campo pouco a pouco se transformou em amizade. Se, no início da pesquisa, Kulick se sentia obrigado a passar todo o tempo com as travestis pelo fato de as estar estudando, o relacionamento que depois desenvolveu com muitas delas tornou-se tão íntimo que, na época em que deixou Salvador, em 1997, passou a visitá-las justamente quando queria relaxar e esquecer o trabalho. Mais do que forte empatia entre pesquisador e pesquisadas, o trabalho de campo produziu amizade verdadeira, como revela a dedicatória de seu livro para uma das travestis, que se tornou sua "professora, colaboradora e melhor amiga": "Este livro é para você Keila, com agradecimento, com carinho e acima de tudo, com admiração".
Kulick observa que a existência de travestis é registrada em toda a América Latina, mas que em nenhum país elas são tão numerosas e conhecidas como no Brasil, onde alcançam notável visibilidade, tanto no espaço social quanto no imaginário cultural. Uma das evidências de sua observação é a de que, em meados dos anos 1980, a pessoa tida como uma das mulheres mais belas do Brasil era exatamente uma travesti: Roberta Close, que posou para a Playboy, ícone do imaginário masculino sobre as mulheres mais desejáveis e sexies do Brasil. Vinte anos depois, após mudar-se para a Europa e casar-se com um europeu, Roberta Close está de volta ao Brasil, recebendo propostas para posar nua e para estrelar filmes pornôs. É considerada, até hoje, a mais bela travesti do Brasil e, como mostra o livro de Kulick, tornou-se uma referência fundamental para todas aquelas travestis que querem ser belas, desejáveis e conquistar o sucesso na Europa.
As travestis não se consideram homens, muito menos mulheres. Elas afirmam que são viados. Portanto, o autor constata que o núcleo duro de sua subjetividade é o fato de sentirem atração física e sexual por homens. Elas alteram o corpo irrevogavelmente para que este se assemelhe ao do sexo oposto, sem, contudo, reivindicar a subjetividade própria ao sexo oposto.
Para Kulick, a combinação singular de atributos físicos femininos e subjetividade homossexual masculina é o que faz as travestis serem quase únicas no mundo. A subjetividade travesti não é a subjetividade de mulher nem a subjetividade de homem, afirma Kulick. É a subjetividade de um efeminado do sexo masculino - um viado ou um homossexual. Mas as travestis não se consideram apenas viados ou homossexuais. Elas se dizem os únicos viados ou homossexuais realmente 'assumidos' no Brasil. Operam em uma lógica de gênero e sexo em que o critério determinante não é a genitália ou as diferenças biológicas entre homens e mulheres. Na lógica travesti o que realmente importa é o papel que a genitália desempenha no intercurso sexual. O locus da diferença de gênero é a penetração. Se a pessoa só penetra, é homem; se é penetrada, é diferente de homem e pode, então, ser um viado ou uma mulher.
Para as travestis, é a penetração que dá a chave de explicação e definição das identidades. A diferença relevante nesse sistema não é entre homens e mulheres. A diferença que interessa é entre 'comer' (penetrar) e 'dar' (ser penetrado). As pessoas que só 'comem' e nunca 'dão' são classificadas como homens. As pessoas que 'dão', mesmo que também 'comam', são classificadas como não homens (viados ou mulheres). Kulick revela que o esquema que estrutura a relação travesti/namorado implica que a travesti deve 'dar' - tanto no sentido econômico quanto no sentido sexual - e o namorado deve 'comer' - tanto no sentido econômico (consumo de bens e dinheiro) quanto no sentido sexual (penetração).
Ao revelar a lógica de gênero produzida pelas travestis, Kulick nos faz pensar sobre a verdadeira distinção de gênero no Brasil, baseada na posição que se adota no ato sexual: o passivo, aquele que é penetrado, é não homem (pode ser o viado ou a mulher), ao passo que aquele que penetra é sempre o homem. Portanto, para Kulick, as travestis são 'condensações' de determinadas ideias gerais, representações e práticas do masculino e do feminino. Elas elaboram determinadas configurações de sexo, gênero e sexualidade que sustentam e dão significado às concepções de homem e mulher no Brasil. Daí a pergunta que o antropólogo persegue e que provoca o leitor: o que as práticas travestis nos ensinam sobre o modo como o gênero é concebido e constituído na sociedade brasileira?
Segundo o autor, a cultura travesti é individualista e jovem: uma cultura constituída por indivíduos cuja maior preocupação é com a aparência, na qual beleza e feminilidade, número de namorados, clientes e 'vícios' (rapazes jovens e bonitos com quem as travestis mantêm relações sexuais por prazer, sem cobrar) configuram o mais importante. Uma cultura na qual todas essas qualidades são conquistas práticas, produto de muito esforço e intensa manipulação do corpo, que tem início desde a mais tenra juventude.
A principal característica das travestis de Salvador, e de todo o Brasil, é que elas adotam nomes femininos, roupas femininas, penteados e maquiagens femininos, pronomes de tratamento femininos, além de consumirem grande quantidade de hormônios femininos e pagarem para que outras travestis injetem até vinte litros de silicone industrial em seus corpos, com o objetivo de adquirir aparência física feminina, com seios, quadris largos, coxas grossas e, o mais importante, bundas grandes. A despeito de todas essas transformações, muitas das quais irreversíveis, as travestis não se definem como mulheres. Isto é, apesar de viverem o tempo todo vestidas como mulher, referindo-se umas às outras por nomes femininos, e sofrendo dores atrozes para adquirir formas femininas, as travestis não desejam extrair o pênis e não pensam em 'ser' mulher. Elas não são transexuais. Ao contrário, afirmam elas, são homossexuais - homens que desejam outros homens ardentemente e que se modelam e se completam como objeto de desejo desses homens" (p.21-22).
As travestis são atraídas por homens de aparência masculina e de pênis grande, que assumem atitude ativa na relação sexual (isto é, eles sempre penetram, nunca são penetrados), homens que normalmente têm relações com muitas mulheres (namoradas ou esposa), homens que são 'galinhas' e infiéis. Elas querem se sentir desejadas por 'homens de verdade', e não por outros viados iguais a elas. E, o mais interessante, elas não querem um namorado em função do prazer sexual. Kulick constata que elas não obtêm sexo dos homens, mas sim gênero. Prazer sexual é algo que as travestis obtêm em outro lugar, com os 'boyzinhos', com os 'vícios' e com os clientes que conhecem na rua à noite. Dos namorados, elas querem se sentir desejadas e penetradas, querem se sentir uma verdadeira mulher, ou 'mulheríssima', como dizem.
O desejo de ser desejada por um homem também explica o prazer da prostituição, que, ao contrário do que afirmam inúmeros pesquisadores, não é para elas apenas uma fonte de renda. Segundo Kulick, muito mais do que o dinheiro que recebem pelos programas, a prostituição é fonte de experiências prazerosas e recompensadoras. É o único contexto em que elas podem desenvolver autoestima, autoconfiança, valor pessoal, além de se sentir como objeto de verdadeiro e intenso desejo masculino. Nas noites de Salvador, elas são admiradas, elogiadas, reconhecidas, cortejadas. São 'mulheríssimas'.
Desde o início da pesquisa, Don Kulick explicou às travestis que o seu livro não seria uma hagiografia, que não as descreveria como 'santinhas'. E cumpriu sua promessa. Travesti é uma descrição honesta e profunda da complexidade das vidas de Keila, Banana, Tina, Pastinha, Mabel, Rosana, Adriana, Angélica, Babalu, Cíntia, Elisabeth, Lia Hollywood, Luciana, Magdala, Martinha, Roberta e tantas outras que, além dos depoimentos que deram para o livro, tornaram-se suas colaboradoras e amigas. A voz de cada uma está presente no livro, e não apenas ajudando Kulick a propor suas interpretações originais e criativas sobre a subjetividade das travestis. Cada uma delas, especialmente Keila, também cria e elabora suas próprias interpretações sobre gênero, sexualidade e corpo na cultura brasileira, articulando instigantes ideias sobre homens, mulheres e viados, gêneros ancorados nas ideias de atividade e passividade nas práticas sexuais.
Tive a sorte de descobrir Travesti, há muitos anos, quando dei um curso sobre violência e masculinidades no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o sociólogo Michel Misse. Fiquei fascinada com a pesquisa, as ideias e o instigante texto de Don Kulick. Também fiquei muito orgulhosa ao ver meu livro A Outra citado duas vezes, junto a tantos autores clássicos da antropologia de gênero. Em junho de 2008, tive a sorte ainda maior de conhecer Don Kulick e assistir a todas as suas palestras aqui no Rio de Janeiro, organizar o lançamento de Travesti no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, mostrar a ele vários lugares do Rio de Janeiro e, especialmente, conversar muito com ele. Passei a admirar ainda mais sua criatividade, originalidade, coragem e, particularmente, a maneira apaixonada e divertida com que expõe suas ideias sobre as travestis, pornografia, sexo com animais, sexo na Suécia e tantas outras. Assim como Kulick aprendeu muito com as travestis, eu aprendi muito com Kulick e, agora, meus alunos estão aprendendo comigo a não apenas expor e escrever suas ideias, mas buscar a paixão e o sabor da arte de pesquisar.
Don Kulick sabe como seduzir o leitor com a sua bela etnografia e com o seu jeito único de ser, e desafia cada um de nós, por meio do fascinante mundo das travestis, a repensar ideias preconcebidas sobre gênero, sexualidade e corpo na cultura brasileira.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Abr 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009