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O trânsito de plantas: circulação de saberes e práticas médicas na América Meridional durante a Época Moderna

Resumo

A partir dos registros sobre plantas e ervas de médicos, agentes de cura, missionários, administradores coloniais nos séculos XVII e XVIII, o artigo explora as formas de construção do conhecimento sobre a flora, utilizando o conceito de circulação proposto por Kapil Raj. As experiências distintas e os documentos analisados demonstram o processo de observação, coleta, sistematização e circulação do conhecimento e a influência da história natural e da tradição hipocrática na classificação das ervas e plantas e na descrição adotada nos textos reunidos neste artigo. Desde livros impressos até anotações dispersas em diários de viagens, os usos das espécies para a vida humana foi o elemento valorizado por aqueles que observaram diretamente o potencial de plantas, frutos e ervas americanas.

circulação; história das plantas; práticas médicas

Abstract

From records on plants and herbs made by doctors, healers, missionaries, and colonial administrators in the seventeenth and eighteenth centuries, this article explores ways of constructing knowledge about flora using the concept of circulation proposed by Kapil Raj. The distinct experiences and documents analyzed demonstrate the process of observing, collecting, systematizing, and circulating knowledge, and the influence of natural history and the Hippocratic tradition on the classification of herbs and plants and on the descriptions adopted in these texts. From printed books to notes scattered through travel diaries, usefulness of these species to humankind was the element valued by those who directly observed the potential of American plants, fruits, and herbs.

circulation; history of plants; medical practices

Desde as primeiras viagens para o Novo Mundo, a identificação de produtos que podiam ser utilizados como mercadorias norteou a observação das plantas americanas, bem como seus usos pelas populações nativas. Ao lado de espécies desconhecidas pelos europeus, existiam aquelas que eventualmente se assemelhavam em forma, cor e odor às plantas tanto da Europa quanto de outros lugares – sobretudo as especiarias das Índias Orientais. A construção do conhecimento sobre a flora ocorre simultaneamente à expansão do mercado. O trânsito de mercadorias e de saberes faz parte de um complexo processo de transformação de plantas em mercadorias, e a construção do conhecimento sobre elas teve um papel central nesse processo. De acordo com a perspectiva de Kopytoff (2008KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In: Appadurai, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008. p.89-124. , p.96), que demonstra como “de um ponto de vista cultural, a produção de mercadorias é também um processo cognitivo e cultural: as mercadorias devem ser não apenas produzidas materialmente como coisas, mas também sinalizadas como um determinado tipo de coisas” (ver também Raj, 2007a, 2007b).

A ideia de circulação, tal qual proposta por Kapil Raj, abriu novas possibilidades para refletir sobre a construção de conhecimento em áreas coloniais do Novo Mundo durante a Época Moderna. Uma das principais contribuições é colocar em xeque a premissa de que as ciências modernas têm um lugar fixo de nascimento: a Europa Ocidental. Ao contrário, as ciências se constituem no deslocamento de ideias, práticas, objetos e, sobretudo, na interação entre indivíduos envolvidos no processo de construção de conhecimento em áreas coloniais. Estas ganham protagonismo em suas análises, ao defender que a circulação, no seu entendimento, não é sinônimo de movimento, de trânsito, mas traduz-se no fato de que as ciências se formam numa constante troca entre lugares, pessoas, práticas, artefatos, as áreas coloniais, e os indivíduos, que não podem ser considerados receptores passivos, mas passam a ter papel de produtores de conhecimento, ainda que numa rede hierárquica e assimétrica. Contudo, Raj não deixa de assinalar o papel das instituições metropolitanas europeias de fazer fluir para si os dados e resultados obtidos, como um longo processo de apropriação e acumulação.

Adotar a ideia de circulação nos leva ao entendimento de que as ciências se constituem num complexo jogo de trocas e mutações que podem ocorrer em espaços muito ampliados, numa escala global ou em locais restritos, dentro de uma mesma instituição, por exemplo. Em suas análises, somos convidados a pensar a dinâmica dos mercados, dos circuitos de troca, como lócus privilegiado de materialização dos caminhos e das redes pelas quais as ciências percorreram o mundo durante a Época Moderna (Raj, 2007a, 2007b, 2013). Por fim, lembrando que os estudos de Kapil Raj se dedicam ao sul da Ásia, uma diferença que devemos considerar ao adotar esse modelo analítico para as sociedades americanas é o fato de que estas reúnem uma diversidade de agentes e de circunstâncias que muitas vezes reforçam as hierarquias e as assimetrias quando percebemos a interação entre os agentes metropolitanos, os colonos e, sobretudo, os indivíduos que detêm os saberes sobre as plantas entre os povos indígenas e que não dominam a escrita (Gesteira, 2004b).

Contudo, nos diversos casos observados em nossa análise, a escrita da história natural entre os séculos XVI e XVIII foi uma referência importante para a catalogação da natureza americana. Ainda marcada pelo modelo herdado da Antiguidade, sobretudo via os escritos de Plínio e da tradição hipocrática, a história natural, por meio de uma descrição minuciosa e densa sobre um determinado lugar, reunia num só texto notícias sobre a geografia, o clima, as plantas, os animais e os costumes dos povos e sua relação com o meio ambiente. Percebemos na leitura das fontes primárias elencadas neste artigo que a observação, a coleta e a sistematização de informações sobre as espécies da flora obedeciam a alguns critérios. Conhecer uma planta significava produzir um relato textual e, em alguns casos, iconográfico que identificava o local de ocorrência, o tamanho, a forma, as cores, os cheiros, as qualidades (quente, fria, seca e úmida) e os usos para os seres humanos. Nesse sentido, a forma descritiva – elaborada por diferentes agentes – permitiu que as informações seguissem um padrão, o que viabilizou o trânsito de informações sobre as plantas americanas numa escala ampliada ( Secord, 2004SECORD, James A. Knowledge in transit. Isis, v.95, n.4, p.654-672, 2004. ).

Iniciaremos nossa reflexão com os livros de história natural que resultaram das observações do médico Guilherme Piso e do matemático Jorge Marcgraf realizadas no Recife holandês. Em seguida, um manuscrito autografado pelo missionário Pedro de Montenegro e um formulário médico atribuído aos jesuítas. Por fim, trechos dos diários de campo, onde há registros da flora, escritos no âmbito das comissões de demarcação de limites que percorreram os confins da América portuguesa após a assinatura do Tratado de Madrid, em 1750. Assim, delimitamos o tempo de nossa análise entre 1630 – quando os neerlandeses desembarcaram na capitania de Pernambuco – até a década de 1760, quando as viagens de demarcação ocorreram após assinatura do Tratado de Madri, em 1750. Esse recorte temporal nos permite considerar a história natural, em particular a botânica, antes das transformações que esse campo experimentou ao longo do século XVIII, sobretudo após os trabalhos de Carl von Lineus. Nosso intuito é demonstrar como a construção do conhecimento sobre as plantas envolvia uma série de agentes e era elaborada de forma a permitir a sua circulação em vários sentidos, dependendo de diversos interesses e circunstâncias.

A História natural do Brasil e os jardins do Recife holandês

Entre 1637 e 1645, o médico Guilherme Piso (1611-1678) e o matemático Jorge Marcgraf (1610-1644) foram contratados pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais para prestar serviços no Brasil durante o domínio neerlandês, em especial ao longo dos anos do governo do conde João Maurício de Nassau-Siegen. Durante a estada, os sábios realizaram inúmeras observações da fauna e da flora que resultaram na publicação dos livros Historia naturalis Brasiliae , editado em 1648, e India eutrius quere naturaliet medica , editado em 1658. Como ponto de partida para essa reflexão, serão elucidadas aqui algumas formas de observação, coleta e sistematização do conhecimento sobre as plantas em espaço colonial no contexto da colonização neerlandesa na América registradas nesses dois livros ( Gesteira, 2001GESTEIRA, Heloisa. O Teatro das coisas naturais: conhecimento e dominação neerlandesa no Brasil. 1624-1654. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2001. , 2004aGESTEIRA, Heloisa. O Recife holandês: história natural e colonização neerlandesa (1624-1654). Revista da SBHC, v.2, n.1, p.6-21, 2004a. ).

O Recife holandês, formado pela cidade Maurícia e o povoado e porto do Recife, reunia condições especiais para a observação de plantas. Havia um jardim, ou ménnagerie , situado ao redor do palácio Vrijburg, residência oficial do conde João Maurício de Nassau-Siegen edificada na cidade Maurícia. Entre outros usos, o jardim foi utilizado como espaço de observação de plantas e ofereceu suporte à circulação de algumas espécies. Do porto do Recife, exemplares da flora americana foram remetidos para a Europa. Nos Países Baixos, as espécies eram inseridas em hortos botânicos, como o da universidade de Leiden. O trânsito de plantas e de desenhos e pinturas que representavam a flora do Novo Mundo se intensificou no momento em que o conde de Nassau retornou para a Europa e organizou suas próprias coleções, em Haia e em Cleves. Além disso, Nassau presenteou homens ilustres com os quais visava estabelecer laços políticos, como é o caso do conjunto de estampas atribuído ao pintor Albert Eckhout, ofertado ao eleitor de Bradenburgo, Frederico Guilherme. O conjunto de estampas foi organizado em quatro volumes e ficou conhecido como Teatro das coisas naturais do Brasil (Whitehead, Boesman, 1989; Gesteira, 2004a; Françozo, 2014FRANÇOZO, Mariana de Campos. De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau. Campinas: Unicamp, 2014. ).

O intercâmbio de informações e de plantas foi registrado por Guilherme Piso em sua descrição do “caraguatá”, espécie de bromélia que, segundo ele, “trouxe do Brasil, dei-a ao ilustríssimo Varão Dr. Vortio, para ser conservada no Jardim de Leida” (Piso, 1957, p.409; originalmente publicado em 1658), ou, também, como o caso do cacto, quando o médico registra que “com suma indústria mandei levar do Brasil um tronco da grossura de uma perna humana, medindo cerca de vinte pés comprido, e agora está no Horto Acadêmico de Leiden, aos cuidados do Ilustríssimo professor D. Vortio” ( Piso, 1957PISO, Willem, História natural e médica da Índia Ocidental. Tradução de Mario Lobo Leal. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1957. , p.403).

A mesma dinâmica aparece na parte da História natural do Brasil relativa aos trabalhos de Jorge Marcgraf, organizada por Johannes de Laet, diretor da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Em vários momentos encontramos passagens que indicam a troca de informações por meio de remessas de plantas secas que chegaram às mãos do diretor da companhia, como no caso do “Guaieru”, que “nasce a cada passo nos bosques áridos, marítimos. Procurei delineá-la com flósculos e folhas, de plantas secas, colhidas pelo autor, porque ele não tinha feito ícone algum” (Marcgraf, 1942, p.77), ou ainda no caso de um arbusto não identificado que Laet num de seus comentários diz que procurou desenhar “esta imagem, servindo-me de um râmulo seco, colhido pelo autor e assim representei aquela cor preta” (p.78).

O movimento inverso também acontecia. Ao escrever a apresentação da História natural do Brasil , Johannes de Laet informou que estava adotando o seguinte procedimento para dar suporte aos trabalhos de Piso e Marcgraf no Recife holandês, buscando, assim, garantir ao máximo a identificação das plantas americanas por esses ainda no Recife holandês:

Para este fim procurei que me enviassem os amigos muitas plantas secas e dispostas em papel mata-borrão e tinha começado a enviar ao nosso autor as descrições de Ximenes, para que, comparando-as, visse se as mesmas nasciam no Brasil, que deu resultado com relação a alguma, como se verá no decorrer desta História ( Laet, 1942LAET, Johannes. Ao Benévolo Leitor. In: Marcgraf, Jorge. História natural do Brasil. Tradução de Mons. Dr. José Procópio de Magalhães. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1942. ).

A coleta de informações em terras americanas era feita de diversas formas. Seguindo as lições de Hipócrates, o procedimento adotado por Guilherme Piso foi o estudo de aspectos ambientais, dos ares e das águas. No pensamento hipocrático, os costumes e o modo de vida dos povos relacionavam-se ao meio em que viviam. Não por acaso os hábitos dos indígenas assumiram um lugar fundamental na obra de Piso, visto que eram reveladores da maneira pela qual se deveria proceder, além de que era uma forma de observar o uso de plantas. A incorporação do conhecimento local na História natural do Brasil pode ser verificada no uso de termos tupis para a maior parte das espécies descritas. Somem-se ainda os procedimentos menos formais, conforme aparece na História natural do Brasil em capítulo dedicado à “caapeba”, nome dado pelos indígenas à erva-de-nossa-senhora, também denominada cipó-de-cobra: “A raiz é excelentíssima contra cálculos; era a que um português dava ao senhor Vander Dussen com ótimo resultado” ( Marcgraf, 1942MARCGRAF, Jorge. História natural do Brasil. Tradução de Mons. Dr. José Procópio de Magalhães. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1942. , p.26).1 1 Adriaen van der Dussen, administrador colonial, foi membro do Conselho Secreto da Companhia das Índias Ocidentais, órgão que auxiliava o conde João Maurício de Nassau-Siegen.

Além disto, a entourage de Nassau contava com a participação de pintores, soldados e funcionários da Companhia das Índias Ocidentais que contribuíram para a observação e registro das espécies. Entre eles destacaram-se os pintores Albert Eckhout e Frans Post; além de Zacharias Wagener, da corte de Nassau, e Kaspar Schmakalden, soldado contratado pela companhia.

O trânsito de navios entre o Recife, principal empório neerlandês na América, e Amsterdam garantiu o fluxo de remessas de algumas espécies americanas que podiam ser observadas pelos sábios na universidade de Leiden. Durante a primeira metade do século XVII, o horto botânico de Leiden tornou-se, na Europa, um dos principais centros receptores de informações sobre as espécies vindas nos navios das Companhias Holandesas das Índias Ocidentais e Orientais. Soma-se a isso a presença no Recife holandês de Piso e Marcgraf, com a missão de observar e coletar informações sobre a natureza americana, fato que intensificou a transferência regular de dados para os Países Baixos do Norte ( Cook, 2005COOK, Harold J. Global economies and local knowledge in the East Indies: Jacobus Bontius learns the facts of nature. In: Schiebinger, Londa; Swan, Claudia (ed.). Colonial botany: science, commerce, and politics in the Early Modern World. Pennsylvania: University Press, 2005. p.100-118. ; Hochstrasser, 2005HOCHSTRASSER, Julie Berger. The conquest of spices and the Dutch colonial imaginery: seen and unseen in the Visual Culture Trade. In: Schiebinger, Londa; Swan, Claudia (ed.). Colonial botany. Science, commerce, and politics in the Early Modern World. Pennsylvania: University Press, 2005. p.169-186. ).

Do ponto de vista dos estudos acerca das plantas, o procedimento descritivo das espécies repete-se ao longo das páginas da História natural do Brasil ( Marcgraf, 1942MARCGRAF, Jorge. História natural do Brasil. Tradução de Mons. Dr. José Procópio de Magalhães. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1942. ) e História natural e médica da Índia Ocidental ( Piso, 1957PISO, Willem, História natural e médica da Índia Ocidental. Tradução de Mario Lobo Leal. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1957. ). Em primeiro lugar vinha a nomenclatura, em três ou quatro idiomas: o índigena, o clássico (latim e grego), o português e o holandês. Em alguns momentos da obra percebe-se que Guilherme Piso questionava o nome europeu dado a algumas espécies americanas. Dessa forma, o médico demonstrava tanto o contato com a literatura de história natural sobre o Novo Mundo como o conhecimento que tinha dos textos antigos.

Cada espécie era descrita minuciosamente, incluindo tamanho, forma, cor, aroma e sabor. Essa observação criteriosa permitiu a Piso evidenciar, por meio de seu trabalho, todos os usos possíveis de uma espécie para a vida humana. A classificação de acordo com a utilidade reforça a ideia de que todos os objetos da natureza eram vistos em função de sua capacidade de servir ao homem, ampliando o potencial de seu consumo ( Thomas, 1988THOMAS, Keith, O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ). Após descrição detalhada da planta e do fruto de uma espécie de maracujá, Piso encerra o capítulo informando sobre suas virtudes terapêuticas, procedimento comum em todos os capítulos:

A polpa, usei-a diariamente e substitui excelentemente o xarope cordial como também o arrobe de groselhas ou bérberis. Em propriedade refrigerante excede todas as demais granadilhas, e não faz mal algum, mesmo que se coma em abundância; porém seu uso imoderado entorpece os dentes. Restaura admiravelmente os fatigados do calor e mata a sede. Além disto, desperta o apetite, reprime os ardores do estômago, restaura os espíritos vitais, o que se obtem com o fruto fresco ou seu suco feito xarope e propinado numa beberagem de água e vinagre ( Piso, 1957PISO, Willem, História natural e médica da Índia Ocidental. Tradução de Mario Lobo Leal. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1957. , p.517).

Alguns critérios utilizados por Piso ao longo da obra podem ser extraídos das suas próprias descrições. Por exemplo, “comestíveis” e “não comestíveis”; “conhecidos” e “desconhecidos”; “úteis” e “nocivos”. Outra preocupação de Piso ao escolher as espécies que seriam catalogadas no livro foi a de descrever apenas aquelas que eram nativas do Novo Mundo e que já tivessem sido devidamente estudadas, isto é, aquelas cujas virtudes tivessem sido identificados. Ele valorizou, portanto, as plantas e ervas úteis para a vida humana: “Omitidos, assim, todos aqueles cujo uso médico ainda se ignora, ou os trazidos para aqui de outra parte e já suficientemente bem expostos por outros antes de mim... julguei que só devem ser tratados os que são de uso na Medicina, e empregados por outros e por mim com bom êxito para incremento de nossa arte” (Piso, 1957, p.248).

No livro de Piso, as qualidades terapêuticas das espécies eram realçadas, o que não impedia o seu uso como alimento, ornamento ou qualquer outra aplicação. Em inúmeros trechos ressaltou sua preocupação com o “incremento” do saber médico, um dos sentidos da publicação de sua obra na Europa.

A descrição era composta, na maior parte das vezes, por texto e gravura. A intenção era representar as espécies da maneira mais próxima possível da realidade, permitindo sua identificação por outros sábios. O livro deveria causar aos leitores, em especial aos sábios, a sensação de estar em contato com a natureza americana. Talvez esta tenha sido a principal contribuição de Piso e de seu companheiro de trabalho, Marcgraf: oferecer aos estudiosos europeus a possibilidade de observar um número significativo de espécies do Novo Mundo. As expectativas, tanto de Johannes de Laet, editor da obra, como de Guilherme Piso, eram no sentido de contribuir para o alargamento da medicina e da história natural. Encerramos com um trecho do “Prólogo ao leitor” presente na obra do médico:

Desejava, com estas minhas viagens, servir ao mesmo tempo à Pátria e a mim, e algo transmitir à posteridade... eu mesmo a coligi e lhe indiquei as aplicações; examinei as entranhas da terra e dos animais e enfim a dos próprios homens; desenhei ao vivo as figuras das espécies; expus-lhe em estilo simples as virtudes e as faculdades e mostrei de quantos proveitos aí hauridos podia enriquecer-se a ciência da medicina ( Piso, 1957PISO, Willem, História natural e médica da Índia Ocidental. Tradução de Mario Lobo Leal. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1957. , p.IV).

Circulação de saberes e práticas médicas na América portuguesa

Pedro de Montenegro e medicina nas missões jesuíticas

A partir de um documento guardado na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, catalogado como Curiosidad un libro de medicina escrito por los jesuítas en las missiones del Paraguay (1580), detectamos que havia uma circulação de textos sobre matéria médica entre os padres da Companhia de Jesus que atuavam na América.2 2 O documento que traz o autógrafo, no qual o autor inseriu inúmeros desenhos das plantas para complementar a descrição textual, está organizado no formato que nos sugere a intenção de publicação. O exemplar da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, não tem nenhuma imagem e parece ter sido encadernado posteriormente. A leitura atenta do documento logo revelou que a data da classificação não confere, pois em mais de um momento há referência ao texto do médico Guilherme Piso. Além disso, ao cotejá-lo com o manuscrito de Pedro de Montenegro (1710)MONTENEGRO, Pedro. Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles y plantas das missòes y províncias de Tucuman com algunas Del Brasil e Del Oriente. Mss/6407 (Biblioteca Nacional de Espanha, Madrid). 1710. Disponível em: https://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000115427&page=1. Acesso em: 30 jun. 2019.
https://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=00001...
, Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles i pantas das missòes y províncias de Tucuman com algunas Del Brasil e Del Oriente , guardado na Biblioteca Nacional de Espanha, identificamos trechos idênticos. O material circulou em diferentes cópias nas missões do Sul ( Fleck, 2014FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Entre a caridade e a ciência: a prática missionária científica da Companhia de Jesus (América platina, séculos XVII e XVIII). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2014. ).

Dentre as atividades dos missionários jesuítas na América, destacou-se sua atuação como agentes de cura. Os padres da Companhia de Jesus organizaram nos espaços administrados pela ordem – aldeias, fazendas, engenhos e colégios – enfermarias e boticas que atendiam o público interno e também a população circunvizinha, além de realizar manipulação e venda de medicamentos. Muitos desses medicamentos eram preparados utilizando produtos vindos de boticas de outros lugares, mas também havia larga utilização de plantas, ervas e raízes nativas, em alguns casos, cultivadas em seus quintais. Além de os missionários recorrerem a suportes práticos e teóricos que lhes garantissem o máximo de eficácia nos tratamentos, acumularam conhecimento sobre o mundo natural americano a partir de suas próprias experiências, sobretudo observando as práticas de cura adotadas pelos indígenas. Nas boticas, além dos remédios, havia livros impressos e manuscritos de matéria médica (Gesteira, 2004b; Gesteira, Teixeira, 2009; Leite, 2013LEITE, Bruno Martins Boto. “Verdes que em nosso tempo se mostrou”. Das boticas jesuíticas da Província do Brasil. In: Kury, Lorelai. Usos e circulação das plantas no Brasil. Séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2013. ; Fleck, 2015FLECK, Eliane Cristina Deckmann. As artes de curar em um manuscrito jesuítico inédito do Setecentos. O Paraguay Natural Ilustrado do padre José Sánchez Labrador (1771-1776). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2015. ).

Pedro de Montenegro dedicou seu trabalho, escrito em espanhol, à “sereníssima rainha dos anjos Maria santíssima e Nossa Senhora das Dores” (Montenegro, 1710, f.7), e o apresentava como uma obra que pretendia organizar o conhecimento médico a fim de auxiliar aqueles que praticavam a cura naquelas terras carentes de médicos e boticas. No prólogo ao leitor podemos perceber vestígios que indicam a concepção que Montenegro tinha da arte médica. Acima dos sábios da Antiguidade, Deus aparecia como o verdadeiro criador da medicina, fato que os grandes estudiosos gregos e latinos (Montenegro, 1710) também consideraram. Montenegro não deixou de valorizar o papel do “sábio”, pois a sabedoria era uma qualidade que diferenciava alguns homens, uma vez que estes conseguiam “descobrir as virtudes escondidas” nos produtos da natureza: metais, pedras, animais e plantas. Era papel do sábio desvendar as virtudes dos produtos “oferecidos” pelo “Grande Arquiteto”, ou pela “Divina Bondade” ao homem, no sentido de manter o seu bem-estar na Terra. Há também indícios de que o autor se identificava com a medicina hipocrática, pois as qualidades que elegeu como dignas de observação em cada objeto natural eram: “calor”, “umidade”, “frieza” e “secura”.

Antes de atuar nas missões da América espanhola, Montenegro trabalhou durante trinta anos como médico no Colégio de Madri e, ao longo da obra, refere-se a lugares por onde provavelmente passou durante sua estada no Novo Mundo: Colégio de Córdoba, na Província de Tucumán, e Colégio de Assunção. A referência ao Paraguai e às missões de Paraná, Uruguai, São Borja e São Gabriel aparecem inúmeras vezes ao longo do texto. O manuscrito divide-se em duas partes. No “livro segundo”, o autor reuniu informações acerca “Das ervas, e raízes medicinais destas Missões, do Paraguai, com algumas do Brasil e Províncias do Chile” (Montenegro, 1710, f.159). Na obra, as plantas são descritas detalhadamente, e a estrutura do texto segue as práticas comuns da história natural. Em primeiro lugar, o nome da espécie em espanhol, guarani e tupi. Depois os aspectos morfológicos; se possível, o autor associa cada espécie descrita na obra com alguma planta conhecida na Europa. Em seguida, as virtudes terapêuticas, sempre indicando qualidades hipocráticas, como: quente, fria, úmida ou seca, virtudes que podem ser percebidas pelo agente de cura por meio dos sentidos (o paladar, o olfato e o olhar) que auxiliam na identificação da espécie.

Pedro de Montenegro nasceu na região da Galícia, em 1663, e exerceu medicina no Hospital Geral de Madri. Não se sabe exatamente a data em que o missionário desembarcou na América, dirigindo-se à província do Paraguai, onde serviu como enfermeiro nas missões. Ao cotejar documentação coeva que circulou na região, Arata (1898)ARATA, Pedro Narciso. Botánica Médica Americana: los herbarios de las missiones del Paraguay. La Biblioteca, t.7, p.419-448; t.8, p.185-192. 1898. Disponível em: https://archive.org/details/b24880115. Acesso em: mar. 2020.
https://archive.org/details/b24880115...
concluiu, em finais do século XIX, que eram inúmeras cópias do mesmo texto, o que pode nos levar a uma dúvida em relação à originalidade de Pedro de Montenegro (Fleck, Poletto, 2012). Um dos desafios que enfrentamos quando nos voltamos para esse tipo de texto, seja manuscrito ou impresso, como vimos acima, é o de que nem sempre quem escreve é o autor. E mais, no campo da história natural da Época Moderna, muitas vezes vemos informações idênticas em textos de autores distintos – o mesmo ocorre com os desenhos. Portanto, nesta análise, quero justamente assinalar que o que lemos em livros e manuscritos, mesmo com autoria identificada, nem sempre foi elaborado pelo indivíduo que assinou a obra, o que reforça o conceito de circulação para pensar a produção desses textos, ainda que nem sempre seja possível recuperar a rede de colaboradores. Podemos considerar que tais obras resultam de uma compilação de saberes que circulavam tanto em livros impressos ou manuscritos quanto nas práticas médicas das populações indígenas que eram observadas, como dito anteriormente.

No caso específico da Companhia de Jesus, instituição estabelecida em quatro continentes, havia redes de trocas entre os missionários e agentes de cura. No caso da América Meridional, essas redes se entrecruzavam nas áreas dominadas pelas coroas espanhola e portuguesa, uma vez que as fronteiras americanas eram fluidas, havendo interpenetração nos territórios lusos e espanhóis. No que tange à circulação de ideias na América, olhar para o passado à luz das fronteiras nacionais atuais torna-se, ao nosso ver, limitado. Entendemos que, ao circular pelo mundo como mercadorias, plantas e raízes levam consigo os saberes que auxiliam na difusão do seu consumo em escala global, como, por exemplo, “O bálsamo de Copaíba é hoje muito conhecido e usado por toda a Europa, África e América, e com grande estima e elevado preço no Japão e na China” ( Montenegro, 1710MONTENEGRO, Pedro. Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles y plantas das missòes y províncias de Tucuman com algunas Del Brasil e Del Oriente. Mss/6407 (Biblioteca Nacional de Espanha, Madrid). 1710. Disponível em: https://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000115427&page=1. Acesso em: 30 jun. 2019.
https://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=00001...
, f.34).

A circulação dos produtos acompanha a troca de informações sobre eles e se dá em múltiplas direções. As práticas médicas eram, em alguns casos, acompanhadas de um processo de experimentação e cultivo de plantas medicinais, o que estimulou a disseminação de espécies pelo mundo. Em seu texto, Montenegro (1710MONTENEGRO, Pedro. Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles y plantas das missòes y províncias de Tucuman com algunas Del Brasil e Del Oriente. Mss/6407 (Biblioteca Nacional de Espanha, Madrid). 1710. Disponível em: https://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000115427&page=1. Acesso em: 30 jun. 2019.
https://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=00001...
, fl.1) descreve as virtudes do cacau, que era utilizado nas missões do Sul e originário da região do Grão-Pará; ele, aliás, complementou informações e o desenho a partir da obra de Guilherme Piso e de outros textos da história natural. O trecho dedicado ao maracujá traz semelhanças com a descrição consagrada por frei Vicente do Salvador, pois, quando trata dessa fruta, la granadilla , expõe minuciosamente a flor, conhecida como flor da paixão por ter sido associada à saga e aos mistérios de Cristo ( Montenegro, 1710MONTENEGRO, Pedro. Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles y plantas das missòes y províncias de Tucuman com algunas Del Brasil e Del Oriente. Mss/6407 (Biblioteca Nacional de Espanha, Madrid). 1710. Disponível em: https://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000115427&page=1. Acesso em: 30 jun. 2019.
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, fl.178). Por fim, ao tratar da erva-mate, Montenegro faz alusão ao mito de São Tomé, informando que, “a erva, bem embebida em auga é uma tradição antiga nestes paises do Paraguai e missões, foi transmitida por São Tomé aos indígenas” (Montenegro, 1710, fl.32). Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1994)HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994. , o mito de São Tomé chegou à América espanhola por intermédio dos padres da Companhia de Jesus ligados à província do Brasil que percorriam os sertões em busca de almas.

As instruções de Montenegro para manipular as plantas e preparar os “simples” – medicamentos feitos com um único produto – iam desde o plantio, colheita de algumas espécies até o preparo dos medicamentos. Saber plantar e colher no momento exato era fundamental para extrair as essências, as virtudes e qualidades das plantas e ervas. As épocas de plantio e colheita de cada espécie relacionavam-se ao seu temperamento – quente ou fria –, e, caso isso não fosse respeitado, o consumo podia ser danoso ou sem efeito para a terapêutica desejada. O local escolhido para o cultivo das plantas era igualmente importante, uma vez que era necessário proteger as plantas dos ventos frios e secos e do calor excessivo, elementos que exerciam influência nos produtos. Esses conselhos encontram-se nos tópicos “modo de cozer as plantas, em que época e circunstâncias, para sua conservação e duração, retirado das obras de Andres Mathiolo, sobre os escritos de Dioscorides e advertencias necessárias” (Montenegro, 1710, fl.XIV) e “explicam-se a virtude e o modo de conhecer as plantas e suas qualidades, retirados das obras de [Andres] Mathiolo e Lagunas” (fl.XVII).

Por fim, conforme registrado por Montenegro no prólogo ao leitor, o objetivo de seu trabalho era auxiliar os que viviam e se dedicavam à cura dos enfermos nas missões, isolados e distantes de boticas e de médicos doutos, garantindo a eficácia das terapêuticas adotadas a partir de orientação precisa e inspirada na cultura médica de sua época, sem deixar de incorporar as práticas locais, que, sem dúvida, enriqueceram o seu trabalho. Sua preocupação era fornecer informações aos que exerciam sua faina em terras americanas, diferente de Piso, que pretendia que seu trabalho contribuísse para ampliar o conhecimento da medicina na Europa.

Um caderno de receitas atribuído aos jesuítas (c.1700)

O Formulário médico: manuscrito atribuído aos jesuítas e encontrado em uma arca da Igreja de São Francisco de Curitiba (Formulário médico..., 2019), doravante apenas Formulário , é um documento de 230 páginas onde se encontram centenas de receitas para doenças e males que afligiam a população da América portuguesa e compõe o acervo de obras raras da Biblioteca de Manguinhos, Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Após análise paleográfica, verificou-se que o texto foi produzido por uma só pessoa, pois o documento apresenta um mesmo padrão de escrita. Numa das fórmulas, “receita ou grande segredo para curar toda a corrupção de Herpes ou Gangrena”, há indicação de um nome que pode ser uma pista: Manoel de Oliveira Cerial (Formulário médico..., 2019, p.310). Porém, nada assegura que ele tenha sido o proprietário desse caderno e compilador de todas as receitas, uma vez que não há autógrafo. Até o momento, não há elemento que nos permita afirmar com segurança que o documento tenha sido elaborado por um missionário ou pertencido a alguém vinculado à Companhia de Jesus, conforme indicado na ficha catalográfica. Os estudos ligados aos aspectos materiais desse documento – características da escrita, da letra, do papel, da tinta – permitem-nos afirmar com segurança que ele foi produzido entre finais do século XVII e primeira metade do século XVIII, ainda que se aponte o ano de 1703 ( Leal, 2019LEAL, Jose Franklin. A análise histórica, documental e paleográfica do receituário médico. In: Gesteira, Heloisa; Leal, João Eurípedes; Santiago, Maria Claudia (org.). Formulário médico: manuscrito atribuído aos jesuítas encontrado em uma arca da Igreja de São Francisco de Curitiba. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019. p.147-155. ; Hannesch et al., 2019HANNESCH, Ozanna et al. Formulário médico, estudo da materialidade do manuscrito e sua preservação: informações subjacentes. In: Gesteira, Heloisa; Leal, João Eurípedes; Santiago, Maria Claudia (org.). Formulário médico: manuscrito atribuído aos jesuítas encontrado em uma arca da Igreja de São Francisco de Curitiba . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019. p.111-145. ).

Da leitura do Formulário , interessou observar de que forma estão sistematizados os saberes e usos de algumas plantas, originárias ou não da América. A análise do documento permitiu ampliar as reflexões sobre o trânsito de plantas que eram utilizadas em receitas e como tais práticas alcançaram locais distantes das cidades e vilas coloniais, os sertões e caminhos que iam sendo trilhados por diversos motivos e criando circuitos permanentes. As práticas médicas, portanto, não devem ser desvinculadas do mercado e das trocas culturais, em especial as formas do conhecimento acerca de plantas, ervas e raízes ( Barrera, 2002BARRERA, Antonio. Local herbs, global medicines. In: Smith, Pamela; Findlen, Paula. Merchants and marvels: commerce, science, and art in Early Modern Europe. New York: Routledge, 2002. p.163-181. ).

Em suas páginas, o códice reúne medicamentos compostos – feitos a partir de mais um produto – em receitas de xaropes, unguentos, óleos, vomitórios entre outros remédios de botica e preparados com plantas, ervas, partes de animais, cinzas, fezes humanas, sangue, urina entre outros ingredientes que hoje nos são estranhos. Diferentemente dos livros impressos ou manuscritos acima citados, o documento apresenta receitas compostas. Seguindo o modelo das farmacopeias da época, a maior parte das fórmulas é acompanhada de seu uso em alguma circunstância, como, por exemplo, as utilizadas para “curar quaisquer feridas gangrenadas, podres e profundas em qualquer parte do corpo”. Duas das receitas experimentadas e citadas “são as que o Capitão Pedro de Macedo e Moura fez maravilhas ainda em chagas ... dos cirurgiões por incuráveis por cura em menos de 12 dias. Com a presente receita sem que nunca falha” (Formulário médico..., 2019, p.311).

Indicações de lugares e comentários sobre a incidência ou não de alguns produtos nos permitem inferir que esse documento foi elaborado por alguém que de fato circulou na região Sul da América portuguesa, entre São Paulo e o Rio Grande de São Pedro. Quando apresenta uma receita que utiliza o maracujá, originário das zonas tropicais da América ( Ferrão, 1993FERRÃO, José E. Mendes. A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; Fundação Berardo, 1993. , p.107), há ressalva de que o fruto pode ser trocado por “pós de pedra negra do capão”, pois “nestas partes” não se encontra o fruto. Ou ainda como indicado na fórmula para “barriga adormecida por causa do frio”, onde se utilizava “erva picão, que em São Paulo dão o nome de tirimindî , e no Rio Grande de São Pedro dão o nome de erva Minuâne ” (Formulário médico..., 2019, p.394-395). Muitos termos indígenas aparecem no Formulário, sobretudo palavras tomadas dos kiriris, ou kariris. Contra o catarro, deve-se “mastigar raiz de alcaçuz, a que os kiriris chamam locorodi ” (p.195). Para combater dor de dentes, indica “a raiz da erva que os kiriris chamam [de] suâxadziaskrâ ” cozida (p.203).

Por fim, para esta análise, destaco a forma pela qual as ervas utilizadas nas receitas foram classificadas logo nas primeiras folhas do manuscrito. No tópico “Das qualidades das ervas em geral”, os produtos foram organizados em três categorias: quentes, frias e temperadas. Esses atributos, ou “qualidades”, constituíam um dos aspectos recorrentes nas descrições das espécies e serviam para identificar, por parte dos agentes de cura, que tipo de planta era adequada para curar doenças específicas. Lembrando que, de acordo com a tradição hipocrática, os males eram causados por um desequilíbrio dos humores que circulavam no corpo humano, que, por sua vez, eram caracterizados a partir das qualidades acima mencionadas. Do ponto de vista da cultura terapêutica, essa forma de classificação das plantas aponta para a tradição da botânica médica que organizava as espécies a partir de suas qualidades essenciais, quente, fria, seca e úmida, e está igualmente de acordo com o procedimento de caracterização de algumas doenças.

Entre as ervas, encontram-se, no Formulário , espécies nativas e exóticas que são utilizadas nas inúmeras fórmulas apresentadas. O comércio de medicamentos estimulou a disseminação de novos hábitos de consumo. Nas receitas registradas em farmacopeias durante a Época Moderna podemos perceber o movimento de cosmopolitização do uso de algumas plantas; o Formulário materializa essa dinâmica em terras americanas e mesmo em pontos apartados do litoral. Os inúmeros produtos de boticas utilizados nas receitas ou isoladamente demonstram que os circuitos mercantis tinham um potencial de difusão de medicamentos produzidos em vários lugares ( Almeida, 2017ALMEIDA, Danielle Sanches de. O trato das plantas: os intermediários da cura e do comércio de drogas na América portuguesa, 1750-1808. Tese (Doutorado) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro; École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2017. Disponível em: http://ppghcs.coc.fiocruz.br/images/dissertacoes/teste/tese_Danielle%20Sanches.pdf. Acesso em: 20 mar. 2019.
http://ppghcs.coc.fiocruz.br/images/diss...
). Ao sugerir o uso do “elixir estomacal do Dr. Stoughton”, o compilador das receitas informa que o medicamento, “preparado somente pelo seu filho único”, podia ser adquirido apenas no “armazém em Bartholomeu Lane, junto a bolsa Real de Londres” (Formulário médico..., 2019, p.322).

A receita da Triaga Brasílica comercializada pelos jesuítas na Bahia, registrada na “Coleção de Várias Receitas e Segredos Particulares das principais boticas da nossa Companhia de Portugal, Da Índia, de Macau e do Brasil, 1766”, era elaborada, como tantas outras, com produtos originários dos quatro continentes. Contudo, o que nos chamou a atenção foi a indicação de plantas e locais onde se encontram algumas espécies, tais como “Raiz de Abutua, Em Pernambuco, Camamu, Aldeia do Espírito Santo, e no Sertão”; “Raiz de Capeba, no Colégio da Bahia”; “Raiz de Jaborandi, na Quinta do Colégio da Bahia”, “Cipó-de-cobra, na quinta do Colégio da Bahia”; “Semente de Pindaíba, na Aldeia do Espírito Santo” (Coleção de várias receitas..., 1766, fl.411, 412).

Além do plantio, conforme apontamos acima, a circulação de plantas e de práticas médicas se dava com intensidade no interior do continente americano, o que, certamente, estimulou a formação de circuitos locais, tanto dos produtos como de práticas médicas.

Os diários: demarcações de limites nos confins da América Meridional

Após a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, entre Portugal e Espanha, que buscou estabelecer os limites entre as monarquias católicas na América Meridional, foram enviados astrônomos e engenheiros para realização dos trabalhos de campo: realizar os trabalhos demarcatórios no próprio terreno, que deveriam seguir pela linha divisória. Formada por representantes das duas coroas, uma comitiva se encarregaria da região Norte, outra seguiria para o Sul. Cada uma delas foi organizada em diferentes subgrupos, os quais ficaram encarregados de trechos predeterminados no tratado. Serão abordados aqui apenas os trabalhos realizados pelas tropas do Sul.

Os detalhes das viagens foram acertados entre os ministros plenipotenciários visconde Thomaz da Silva Telles, pelo lado português, e José de Carvajal y Lancaster, pelo lado espanhol. Os percursos e as tarefas foram previstos no “Tratado, pelo qual os Ministros Plenipotenciários de S.S.M.M. Fidelíssima e Católica ajustaram, e determinaram as instruções, que haviam de servir de governo aos Comissários das duas Coroas na Demarcação dos limites respectivos na América meridional, em execução do Tratado de Limites, assinado em Madrid a 17 de Janeiro de 1750”, doravante “Instruções”. Astrônomos, cosmógrafos, engenheiros, cirurgiões, militares e um séquito de índios para os serviços mais pesados e para auxiliar na identificação de caminhos foram contratados pelas coroas lusa e espanholas.

As “Instruções” foram entregues aos comissários de cada reino. Do lado português, o responsável pelas partidas do Sul foi Gomes Freire de Andrade.3 3 De acordo com a documentação coeva, identifico os grupos que seguiram para o Sul como primeira, segunda e terceira partidas de limites. Ali foram definidos os caminhos de cada uma das partidas de limites, os procedimentos que deveriam ser adotados para resolver disputas geográficas e eventuais conflitos com as populações nativas. O documento indicava ainda o tipo de informação que deveria ser coletada, tais como dados sobre as terras, os frutos, os animais e os costumes indígenas. Precisamente no artigo 25 foi instruído que

os comissários, geógrafos e mais pessoas inteligentes de cada tropa vão apontando os rumos, e distâncias da derrota, as qualidades naturais do país, os habitantes, e seus costumes, os animais e plantas, frutos, e outras produções, os rios, lagoas, montes, e outras circunstâncias dignas de notícias, pondo nome de comum acordo aos que a não tiverem para que venham declarados nos mapas com toda as distinções, e procurarão que o seu trabalho não só seja exato pelo que toca à demarcação da raia, e geografia do país, mas também proveitoso pelo que respeita ao adiantamento das Ciências, História Natural, e as observações Físicas e Astronômicas (Coleção de notícias..., 1841, p.18).

O trecho nos permite perceber que ao lado da descrição dos caminhos percorridos e do estabelecimento das coordenadas geográficas, “as pessoas inteligentes”, deveriam se ocupar de temas que deveriam constar nos diários, ou seja, a história natural. Antes mesmo da realização das viagens filosóficas em Portugal, há nas “Instruções” uma clara indicação de que nessas viagens fossem recolhidas informações mais amplas da região, o alargamento da história natural. Se, por um lado, partilhamos com Ângela Domingues (1991)DOMINGUES, Ângela. Viagens de exploração Geográfica na Amazônia em finais do século XVIII: ciência, política e aventura. Lisboa: Região Autónoma da Madeira, 1991. o argumento de que, quanto às viagens da década de 1750, no que tange aos estudos da fauna e da flora, vemos uma ausência de resultados mais sistematizados, não concordamos plenamente com a ideia de “aventura”. Certamente os homens que partiram em viagens para lugares parcialmente desconhecidos, como os confins da América portuguesa, depararam-se com situações adversas como as intempéries, os conflitos com as populações nativas que habitavam as áreas em litígio, o encontro com animais selvagens, insetos, doenças e até mesmo a morte. Contudo, não devemos considerar a experiência da viagem uma aventura, uma vez que a palavra sugere improviso, algo não meticulosamente projetado, como delineado magistralmente em Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda (1982)HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. . E, no campo da história da ciência, a ideia de aventura ajudou a transformar as viagens filosóficas estruturadas nas últimas décadas do século XVIII como um marco que levou a um apagamento de experiências anteriores.

Entre as missões conferidas aos homens que sairiam em campo, nas “Instruções” fica claro que a redação de diários registrando os acontecimentos e informações para o “adiantamento das ciências” demonstra que havia a intenção de acumular dados, incluindo a história natural, o que nos permite inferir que havia uma intenção de que, além de informações sobre o clima e a geografia, fossem observados elementos da fauna e da flora e também hábitos das populações locais. O registro da história natural e do conhecimento geográfico fazia parte do processo de exploração das terras que iam sendo incorporadas no processo de conquista de novas áreas pelos Estados europeus. Mas, voltemos aos registros sobre as plantas nos diários dos demarcadores. Para a análise, restrinjo-me ao diário da segunda partida de limites, pois, do ponto de vista do que me interessa, esse diário apresenta detalhes importantes.

A primeira partida iniciou sua jornada no dia 12 de janeiro de 1753. O primeiro comissário foi Miguel Angelo Blasco. O percurso iniciou em Castillos Grandes e seguiu até a boca do rio Ibicuy, onde os trabalhos foram interrompidos devido às Guerras Guaraníticas.4 4 A primeira partida suspendeu seus trabalhos durante as Guerras Guaraníticas, que se estenderam de 1753 até 1757. A segunda partida iniciou a jornada demarcatória em 1758. O Tratado de Madri interferiu nas áreas onde estavam as missões jesuíticas de São Francisco de Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo Custódio. A movimentação das tropas resultou no confronto entre as partidas espanhola e portuguesa contra os missioneiros, resultando na morte de mais de 1.500 índios. Este diário, embora informe sobre os animais da região, não contém descrições detalhadas de plantas. Um pequeno trecho nos chamou a atenção:

Não se pode descobrir erva alguma medicinal conhecida, senão Junça, que há no mesmo arroio em grande cópia, de cujas raízes costumam tirar uma espécie de ácido, com que as senhoras costumavam cá na América, e na Europa compor o tabaco que chamam vinagrilho (Diário da primeira partida..., 1841, p.47).

A ideia de “descobrir” ervas medicinais, ainda que conhecidas, significava encontrar espécies úteis pelos caminhos percorridos. Havia a clara intenção de detectar a ocorrência de produtos que pudessem ser eventualmente comercializados, sobretudo as ervas medicinais. Ampliar o conhecimento, ainda que de forma esparsa, sobre os recursos locais, permite-nos considerar que o esforço do registro nos diários não pode ser visto como algo separado do processo de conquista de uma região colonial.

A terceira partida foi chefiada por José Custódio de Sá e Faria, sargento maior de infantaria com o exercício de engenheiro, e teve como cosmógrafo Miguel Ciera. O cirurgião foi José Poliani. A tropa seguiria o terreno entre os rios Paraná e Paraguai, rumando para o norte, até o rio Jauru. O diário é rico em dados sobre povos indígenas, como no caso dos bayás, que “semeiam milho, abóboras, e outras sementes; plantam algodão, tabaco”, mas traz poucas informações sobre a história natural (Diário da terceira partida..., 1841, p.437).

A segunda partida de limites iniciou a jornada na boca do rio Ibicuy e encerrou no salto do rio Paraná, em 1759. O primeiro comissário do lado português foi José Fernandes Pinto Alpoim, coronel engenheiro do regimento de artilharia da praça do Rio de Janeiro. O grupo era composto por aproximadamente 120 homens, entre os quais indígenas remadores, paulistas “experientes em viagens de canoas” e o cirurgião Bartholomeu da Silva.

Entre os diários, o material da segunda partida é o único que traz informações mais sistematizadas. Ao final, há um tópico que se dedica a fornecer uma “ideia geral dos rios por onde corre a parte da linha divisória, que tocou demarcar a segunda partida, e breve notícia dos animais e vegetais que neles se encontram” (Diário da segunda partida..., 1841, p.335). O texto abre com uma breve descrição sobre os rios e o clima. Em seguida, informações sobre as populações indígenas, diferenciando entre os católicos e os não católicos; por fim, as plantas e os animais compõem um quadro completo da região, cuja benignidade garante abrigo aos nativos, considerados incultos. “Em um temperamento qual havemos dito provê a natureza espontaneamente em rios e bosques uma grande parte de sustento necessário a seus incultos habitadores, sem o que com sua fereza morreriam de fome e miséria” (Diário da segunda partida..., 1841, p.348).

A estrutura desse tópico aproxima-se do modelo da história natural. Como os outros diários das partidas de limites aqui citadas, não há registro de autoria.5 5 Os diários que registram as atividades realizadas pelas partidas de limites não trazem autoria definida. Contudo, nos trechos e tabelas que apresentam observações realizadas com instrumentos, há abaixo das informações a assinatura dos primeiros comissários e astrônomos de cada partida. Porém, o escrivão, ao falar de plantas, coloca-se como alguém que não teria competência adequada para um estudo mais aprofundado das espécies:

Estas são proporcionadas ao temperamento quente, e quase as mesmas que se dão no Brasil, e demais países que gozam de igual clima. Entre as plantas para benefício da saúde e da medicina, se conheceram o escardio, a douradilha, o polipodio, o sombreirilho, ou umbigo-de-vênus, a salsa parrilha, e o coentrilho, e se não esconderia infinidades de outras (como se veem muitas mais ao Sul), aos olhos de um diligente botânico, que as inquirisse com o prolixo exame, que não permitiria que em nos outros a falta de conhecimento das espécies, e a ocupação no trabalho de outro destino (Diário da segunda partida..., 1841, p.350).

As espécies não foram observadas por um especialista, nem o texto foi escrito por “um diligente botânico”. Eis aqui um elemento importante: a coleta bruta dos dados, se feita a partir de alguns critérios tais como forma, cor, qualidades e uso do produto, pode ser por indivíduos previamente instruídos, mas que não eram especialistas. Nesse caso, podemos até sugerir que o texto em tela foi originalmente orientado pelo cirurgião, mas qualquer um dos demarcadores teria a competência para recolher informações. Eis uma etapa importante da construção de conhecimento sobre as plantas e ervas do Novo Mundo. A intenção de alargar as informações fica evidente quando o escriba, ao descrever algumas plantas, menciona como a “relação histórica de sua viagem, que imprimiu D. Antonio de Ulhoa, se tem feito tão conhecidas na Europa muitas frutas que são peculiares da América” (Diário da segunda partida..., 1841, p.350).6 6 Antonio de Ulloa foi membro da armada real espanhola. Acompanhado de Jorge Juan, também da armada, integrou a expedição ao Peru capitaneada por Charles Marie de La Condamine. Dessa viagem foi publicado o livro Relaciones Historica del viage a la America Meridional hecho de orden de s. Mag. para medir algunos grados de Meridiano terrestre, y venir por ellos en conocimiento de la verdadera figura, y magnitud de la tierra, con otras varias observaciones astronomicas e físicas (Ulloa, Juan, 1748). Segue o texto, mencionando algumas árvores como o Ibarporoti, “fruta de árvore mui elevada no tamanho, e figura e uma ginja grande, não tão negra como esta quando está em sua perfeita madureza” (p.351); o Jacaratiá, árvore pequena cuja folha se assemelha à da nogueira e cuja “fruta é como um mamão ou papaia pequena, muita amarela por dentro, e por fora, com porção de pequenas sementes brancas, e despende um leite nocivo do qual é necessário purgá-la para poder comê-la sem dano, e assada, ou cozinhada é gostosa (p.351).

Segue dando informações sobre Caraguatá, uma espécie de bromélia que se come crua, “das suas folhas se faz a estopa com que calafetam os barcos nos povos” (Diário da segunda partida..., 1841, p.351). Ingá, pinheiros entre outras frutas, mas o escriba indica que omitirá para fazer uma descrição da jabuticaba. Em seguida as notícias sobre as madeiras. O jacarandátan, de cor avermelhada, que bem trabalhado “fornece boas mesas, cadeiras e outros móveis do gosto”, a peroba, que “se acha no Iguasu e no Paraná”, árvore de grande porte e grossa, “dela fazem em São Paulo as canoas maiores, e de mais preço, e é não menos útil para fábricas e edificios, por sua duração ao vento, e a água”, além do tagibo, os cedros, o anjico (Diário da segunda partida..., 1841, p.356).

Por fim, a notícia do uso medicinal da raiz de Angélica, um excelente contraveneno para mordedura de cobra, que, além de uma multidão de insetos, colocava em risco a vida dos que se deslocavam pelos confins da América portuguesa. Esse é o único momento do texto que registra a receita do preparo da mezinha: após socada a raiz e cozida em aguardente, bebe-se e também pode ser colocada na ferida. E encerra informando que “em todas as hortas das doutrinas se veem plantadas multidão destas angélicas; e além das reiteradas experiências que se haviam feito pelos missionários da eficácia deste remédio, a comprovou o Dr. José Duboris cirurgião da partida Hespanhola” (Diário da segunda partida..., 1841, p.363).

Considerações finais

A opção que fiz neste percurso não foi a de analisar apenas um trabalho, mas reunir fontes documentais diferentes para refletir sobre a construção de conhecimento a respeito da flora americana em circunstâncias diferentes. Parti dos trabalhos de história natural dos neerlandeses que nos legaram dois livros que se tornaram referência para os estudos de botânica e zoologia no Brasil até os dias atuais. Nesse caso, e talvez o único no conjunto, poderíamos aplicar o conceito de circulação tal qual proposto por Raj em seus estudos citados anteriormente, a partir das atividades dirigidas por sábios contratados pela Companhia das Índias Ocidentais que viajaram para uma região colonial com a missão de coletar informações que foram, depois, remetidas para a República, onde foram tratadas e publicadas. A leitura dos livros Historia natural do Brasil e História natural e médica das Índias Ocidentais me colocou em contato com práticas que revelam o diálogo com a população local, as formas de coleta e os espaços que auxiliaram a realização das observações, além da manutenção de correspondência com sábios que permaneceram na Europa.

Os textos produzidos e atribuídos aos jesuítas, por sua vez, tiveram destino um pouco diferente. Não cabe aqui especular se o fato de permanecerem manuscritos foi proposital ou não, mas a existência de inúmeras cópias dos trabalhos sobre as práticas medicinais médica que circularam nas missões e o próprio caderno de receitas indicam que esse material foi produzido para uso em áreas afastadas das cidades: nos caminhos e missões dos sertões (o que se verificou nas palavras de Pedro de Montenegro). Nesse caso, a circulação se daria numa escala mais local? Entendo que não, uma vez que, nos manuscritos, logo vemos a interação e a presença de informações correntes sobre a botânica médica, e considerá-los apenas uma produção colonial, em contraposição à medicina europeia, de alguma forma nos levaria à ideia de um isolamento ou atraso que seria intrínseco às áreas coloniais.

Também não quero correr o risco de afirmar que, do ponto de vista das práticas científicas, esse material desviou-se de circuitos mais amplos, como é o caso do caderno de receitas encontrado numa arca de uma igreja. Mas, ainda assim, detectam-se em suas páginas menções aos livros de medicina que eram referência em Portugal, além do endereço de uma loja situada em Londres onde é possível encontrar o verdadeiro elixir do doutor Stoughton, ou seja, as práticas médicas estavam inseridas em circuitos amplos de troca.

As informações sobre as plantas que compõem os diários das partidas de limites produzidos ao longo da década de 1750 nos demonstram o esforço do Estado português em controlar mais de perto essas informações, mas, nesse caso, podemos sim entender que o objetivo em parte malogrou, devido às condições das viagens e à ausência de homens que se dedicariam exclusivamente às observações de história natural. Entretanto, ainda assim, os critérios da botânica médica auxiliaram na coleta de dados dispersos, o que, em princípio, permitiria a transferência das informações.

Em comum, todos os textos analisados registram em suas páginas o conhecimento dos povos indígenas em relação aos usos das plantas do Novo Mundo e, em muitos casos, incorporam os termos utilizados por diferentes grupos nativos. Esse elemento nos permite questionar até que ponto tal procedimento é uma apropriação direta do conhecimento indígena ou se, ao inseri-los em seus trabalhos e descrevê-los a partir das categorias da botânica médica, há uma mutação? Nesse caso, entendo que, conforme proposto por Raj, a mutação é inerente à construção de conhecimento, e podemos pensar se, quando um produto largamente utilizado pelos indígenas vira mercadoria, como a copaíba, junto com ele transita o conhecimento indígena ou o produto já ganhou outros atributos tais como as qualidades naturais? Aqui um aspecto provocador da ideia de circulação.

Observo ainda que, além dos medicamentos de boticas, algumas plantas – nativas ou exóticas – foram largamente utilizadas em medicamentos simples e compostos na América. Na maior parte das vezes, as espécies da flora que foram estudadas pelos médicos, missionários, agentes de cura e mesmo administradores coloniais, ainda que coletadas durante deslocamentos e viagens, podiam ser observadas em jardins, boticas, textos manuscritos e livros impressos, o que demonstra que esse conhecimento dependia, entre outros elementos, de uma rede de trocas que era assegurada pelos caminhos e circuitos mercantis. E aqui reforço meu argumento de que os procedimentos da botânica médica foram amplamente utilizados para as descrições das plantas, intensificando e garantindo a troca de informações.

Os registros dos neerlandeses, representados aqui na figura de Guilherme Piso e Jorge Margrave, e as informações contidas nos diários produzidos no âmbito das partidas de limites tinham objetivos semelhantes: reunir informações e contribuir para o alargamento do conhecimento em história natural ou em medicina na Europa. Em contraponto, o caderno de receitas e o manuscrito autografado por Pedro de Montenegro deixam transparecer que o material foi organizado para auxiliar agentes de cura que atuavam no âmbito do continente americano, fazendo circular um conjunto de práticas médicas, remédios de boticas, além de estimular o consumo e o comércio de plantas.

Em comum, os trabalhos aqui analisados incorporaram termos indígenas para a catalogação das espécies; e talvez esse seja o principal aspecto daquilo que chamamos de práticas médicas locais, ainda que muitos produtos tenham alcançado consumo numa escala global, como o óleo de copaíba, entre tantos outros medicamentos simples. Outro elemento que não se pode deixar de sublinhar é a formação de redes imperiais e circuitos, mas que, como nem sempre seguem as vias mais oficiais, são mais difíceis de ser perseguidos As redes são formadas no interior dos circuitos mercantis.

Encerro considerando que, mais do que um conceito, a ideia de circulação conforme definida por Kapil Raj, ao questionar paradigmas da história das ciências, oferece-nos uma abordagem metodológica rica para tratar as práticas medicinais americanas e todos os agentes nelas envolvidos – cada um a seu modo – como indivíduos que participaram, em escalas diferentes, da construção do conhecimento sobre a história natural e sobre a medicina durante a Época Moderna.

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, Danielle Sanches de. O trato das plantas: os intermediários da cura e do comércio de drogas na América portuguesa, 1750-1808. Tese (Doutorado) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro; École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2017. Disponível em: http://ppghcs.coc.fiocruz.br/images/dissertacoes/teste/tese_Danielle%20Sanches.pdf Acesso em: 20 mar. 2019.
    » http://ppghcs.coc.fiocruz.br/images/dissertacoes/teste/tese_Danielle%20Sanches.pdf
  • ARATA, Pedro Narciso. Botánica Médica Americana: los herbarios de las missiones del Paraguay. La Biblioteca, t.7, p.419-448; t.8, p.185-192. 1898. Disponível em: https://archive.org/details/b24880115 Acesso em: mar. 2020.
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  • BARRERA, Antonio. Local herbs, global medicines. In: Smith, Pamela; Findlen, Paula. Merchants and marvels: commerce, science, and art in Early Modern Europe. New York: Routledge, 2002. p.163-181.
  • COLEÇÃO DE NOTÍCIAS para a história e geografia das nações ultramarinas que vivem nos domínios portugueses ou lhes são vizinhas. t.7. Lisboa: Academia Real das Ciências, Tipografia da Academia, 1841.
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NOTAS

  • 1
    Adriaen van der Dussen, administrador colonial, foi membro do Conselho Secreto da Companhia das Índias Ocidentais, órgão que auxiliava o conde João Maurício de Nassau-Siegen.
  • 2
    O documento que traz o autógrafo, no qual o autor inseriu inúmeros desenhos das plantas para complementar a descrição textual, está organizado no formato que nos sugere a intenção de publicação. O exemplar da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, não tem nenhuma imagem e parece ter sido encadernado posteriormente.
  • 3
    De acordo com a documentação coeva, identifico os grupos que seguiram para o Sul como primeira, segunda e terceira partidas de limites.
  • 4
    A primeira partida suspendeu seus trabalhos durante as Guerras Guaraníticas, que se estenderam de 1753 até 1757. A segunda partida iniciou a jornada demarcatória em 1758. O Tratado de Madri interferiu nas áreas onde estavam as missões jesuíticas de São Francisco de Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo Custódio. A movimentação das tropas resultou no confronto entre as partidas espanhola e portuguesa contra os missioneiros, resultando na morte de mais de 1.500 índios.
  • 5
    Os diários que registram as atividades realizadas pelas partidas de limites não trazem autoria definida. Contudo, nos trechos e tabelas que apresentam observações realizadas com instrumentos, há abaixo das informações a assinatura dos primeiros comissários e astrônomos de cada partida.
  • 6
    Antonio de Ulloa foi membro da armada real espanhola. Acompanhado de Jorge Juan, também da armada, integrou a expedição ao Peru capitaneada por Charles Marie de La Condamine. Dessa viagem foi publicado o livro Relaciones Historica del viage a la America Meridional hecho de orden de s. Mag. para medir algunos grados de Meridiano terrestre, y venir por ellos en conocimiento de la verdadera figura, y magnitud de la tierra, con otras varias observaciones astronomicas e físicas (Ulloa, Juan, 1748).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    3 Jun 2020
  • Aceito
    20 Out 2020
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