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Muito barulho por nada

Much ado about nothing

P I N G U E - P O N G U E

Muito barulho por nada

Much ado about nothing

Francisco Salzano

Departamento de Genética
Instituto de Biociências, UFRS
Caixa Postal 15053
91501-970 Porto Alegre — RS Brasil
salzano@if.ufrgs.br entrevistado por/talks to Luiza Massarani
massarani@ufrj.br

Ao ser questionado sobre os organismos transgênicos1 1 Usam-se os asteriscos para remeter o leitor ao glossário no final do dossiê, às p. XXX. , o geneticista Francisco Salzano diz que o tema lembra a peça Muito barulho por nada, de William Shakespeare. Ele acredita que há temor exagerado por parte da sociedade sobre os possíveis malefícios que seriam causados por alimentos transgênicos. Alega que o processo de introdução desses alimentos no mercado é lento e pressupõe análise meticulosa, antes da liberação. Em sua avaliação, a legislação brasileira que regula a transgenia é cuidadosa.

Salzano é professor do Departamento de Genética do Instituto de Biociências da UFRS; recentemente, foi eleito membro estrangeiro da Academia de Ciências dos Estados Unidos. Concedeu esta entrevista a Luisa Massarani, em junho de 2000, quando esteve no Rio de Janeiro para ministrar a palestra ‘Fronteiras da ciência: manipulação genética, ética e saúde’, parte do programa das Jornadas Científicas 2000, da Fiocruz.

Qual seu ponto de vista sobre os organismos transgênicos?

A transgenia é uma técnica genética como outras. Pode trazer benefícios e ocasionar problemas. O que se deve considerar cuidadosamente é a relação custo-benefício. Não há tecnologia isenta de riscos, e uma modificação do ambiente natural sempre é possível. Por outro lado, não podemos renunciar a processos científicos que, de alguma maneira, possam trazer benefícios do ponto de vista do bem-estar social.

Em sua palestra na Fiocruz, o senhor afirmou que as discussões sobre o tema lembram a peça Muito barulho por nada. Por quê?

Há um temor exagerado por parte da sociedade sobre os possíveis malefícios que seriam causados por alimentos transgênicos. Em geral, o processo de avaliação de riscos é cuidadoso. No que se refere aos alimentos — tema que está gerando maior discussão —, o que se está tentando fazer é melhorar sua qualidade. Mas a transgenia não se limita à área alimentar. Tem várias outras aplicações, que também estão sendo investigadas, embora com menor pressão por parte da sociedade.

Quais são as outras possíveis aplicações da tecnologia transgênica?

Duas das mais importantes são o diagnóstico de doenças hereditárias e a terapia gênica. Os animais mais investigados hoje são os camundongos transgênicos. Há um tipo especial de camundongo transgênico chamado knock-out (em português, nocaute), criado a partir da inserção, nesse animal, de um gene defeituoso do nosso organismo. Isto é fundamental para se entender como o gene se expressa e o que está faltando, para eventualmente se obter a terapia gênica, que poderá levar à cura de certas doenças.

A tecnologia para a transgenia está cada vez mais simples e os equipamentos já são relativamente acessíveis em termos financeiros. Assim, eles ficam disponíveis para pessoas que eventualmente não têm o sentido de responsabilidade e ética. Como evitar o mau uso da técnica nesse cenário?

O risco existe, mas não apenas em relação à transgenia: existe para qualquer outra técnica ou aplicação de técnica. É caso de polícia. A má aplicação de qualquer processo científico pode ocorrer, mas isso não pode impedir que o processo correto ocorra. Podemos recorrer a um exemplo. Muita gente tem medo de avião e, de fato, de vez em quando um deles cai. As pessoas têm o direito de optar, se quiserem, por vir de Porto Alegre ao Rio de Janeiro a pé. Mas não se pode proibir outras pessoas de usar o avião, embora seja uma técnica que também envolve risco.

O senhor afirmou que a metade dos alimentos nos Estados Unidos é transgênica e não foram observados impactos negativos na saúde das pessoas. Gostaria de fazer um paralelo com a radioatividade. Também nesse caso houve certa euforia, quando se descobriram suas aplicações benéficas, por exemplo, na medicina. É possível que os alimentos transgênicos causem impactos negativos na saúde, mas que eles ainda não tenham sido detectados por falta de tempo hábil para se manifestarem?

É preciso diferenciar os dois casos. No caso da radioatividade, um grupo pequeno de pessoas manipulava o material e recebia grandes doses da radiação. No caso dos transgênicos, muitas pessoas estão envolvidas, e a exposição é muito maior. Se houvesse riscos, eles já teriam se manifestado. Além disso, podemos considerar que somos todos transgênicos, pois a transgenia é um processo natural. É relativamente comum haver transmissão horizontal do DNA de uma espécie para outra e entre organismos. O mesmo ocorre em mamíferos, até mesmo em primatas e no homem. Ao longo da história evolucionária, adquirimos uma série de genes e os incorporamos ao nosso material genético. O exemplo mais clássico é o do DNA mitocondrial: um microrganismo invasor se adaptou tão bem ao hospedeiro que agora integra seu material genético. Temos, em nosso genoma (ver Glossário), o material genético de um microrganismo. Na verdade, milhares de seqüências gênicas foram reproduzidas por transposição.* Neste momento, estamos estudando em Porto Alegre os chamados "sistemas Alu", que são investigados por meio dessa enzima (Alu), que corta o DNA. Cerca de 17% de nosso genoma é formado por essas seqüências, que resultam da transposição de material genético de uma região para outra de nosso DNA ou de primatas ancestrais.

Sabe-se de que espécies seriam tal material genético?

Não, porque são regiões muito restritas do DNA. Mas, claramente, trata-se de restos de material, que se movem de uma região para outra do genoma.

Como se consegue identificar que tais seqüências são provenientes de outras espécies?

Pela constituição do DNA e sua presença nessas outras espécies. O DNA mitocondrial, por exemplo, é circular, enquanto o nosso DNA é linear. O DNA circular só ocorre em microrganismos. A grande descoberta da biologia molecular dos últimos tempos é que a transgenia é um evento não muito raro. Não estou dizendo que seja freqüente, que estamos respirando DNA por aí e que ele vá se incorporar ao nosso genoma. Há uma série de complicações para isso ocorrer, mas a possibilidade existe.

Como o senhor vê a legislação brasileira sobre os organismos transgênicos?

Alguns pesquisadores acham que ela é muito restritiva, talvez excessivamente restritiva. Mas, no que diz respeito aos alimentos, é preciso tomar todas as precauções. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio)* envolve profissionais de todas as áreas e representantes da comunidade, e há uma regulamentação precisa sobre o tema. Entre outras coisas, determinam-se cuidados que devem ser tomados em laboratório, nos testes iniciais em campo, na adaptação das espécies e dos produtos às nossas condições, além de se avaliar a possibilidade de que o material passe para espécies afins.

Em geral, os testes de avaliação do impacto de plantas são realizados para a realidade norte-americana e européia, para linhagens características daquelas regiões. Como fica o Brasil?

Em relação especificamente à soja transgênica, há um convênio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) com a empresa Monsanto para experimentar a inserção do material genético em linhagens brasileiras. Há grande quantidade de experimentos sendo feitos em todas as estações da Embrapa. Nosso departamento, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também trabalha com soja transgênica. No Brasil, há estudos também com mamão, arroz e outras plantas cultivadas, tendo em vista obter linhagens melhores.

Como o senhor vê a participação da sociedade em debates científicos?

Não há dúvida de que a sociedade deve participar, mas de modo a não impedir o desenvolvimento científico. É preciso montar comitês de ética institucionais — o que tem sido feito em toda parte — com representantes da comunidade científica. É por meio do convívio com o especialista que a pessoa não especializada percebe a complexidade do processo. Há poucos dias, um aluno que também está fazendo um trabalho sobre transgênicos perguntou se deveríamos fazer um plebiscito sobre o tema. Parece-me um absurdo. Para que haja plebiscito, é preciso haver informação. A maioria das pessoas é pouco informada. É indispensável realizar um trabalho de esclarecimento que explicite todos os aspectos da questão.

Na sua opinião, como a mídia trata a questão dos transgênicos?

De forma equivalente à que ela trata qualquer outro aspecto científico. Em geral, a mídia procura enfatizar as questões que estão mais em debate ou que provocam maior impacto. Isto faz com que nem sempre sejam abordados os aspectos mais importantes do problema. Mas, de maneira geral, não tenho observado um desvio muito importante no que se refere à realidade, nem posições claramente tendenciosas. Há tendenciosidade em publicações ou manifestações veiculadas por meio de órgãos específicos de grupos, mas a mídia, de maneira geral, não tem se posicionado claramente a favor ou contra os transgênicos.

Há algum aspecto que o senhor gostaria de abordar antes de encerrarmos esta entrevista?

A transgenia é uma técnica como qualquer outra, voltada para o melhoramento genético. Ela vai continuar a ser aplicada. Qualquer tentativa de proibir a experimentação e a eventual aplicação do produto desenvolvido só vai levar ao atraso. Como ela já está sendo usada em todo mundo, qualquer país que prescindir dessa tecnologia vai ficar prejudicado. Ela veio para ficar, e sua aplicação deve ser feita da melhor maneira possível.

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    Usam-se os asteriscos para remeter o leitor ao glossário no final do dossiê, às p. XXX.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2000
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