Resumos
O presente trabalho parte da constatação da natureza relativamente anódina dos estudos acerca dos quilombos em sociedades escravistas nas Américas, os quais não raro juntam em uma única categoria (quilombos, cumbes, palenques, mainels etc.) estruturas que podiam englobar menos de uma dezena de fugitivos e durar semanas ou meses, ou, como no caso de Palmares, congregar até 11 mil quilombolas e persistir por quase um século. Semelhante anomalia conceitual revela a falta de taxonomias que encarem os quilombos como estruturas efetivamente históricas, que podiam circunscrever-se a meras hordas ou evoluir para a condição de comunidades autossustentáveis e, pois, capazes de se autorreproduzir econômica e demograficamente por longos períodos nas Américas.
quilombos; resistência escrava; morfologias da escravidão; escravidão nas Américas
The article begins with the finding that studies on 'quilombos' in slave societies in the Americas have been relatively anodyne, not rarely placing in one sole category ('quilombos', 'cumbes', 'palenques', 'mainels', etc.) structures that might encompass anywhere from less than ten runaways, and last just weeks or months, or - as in the case of Palmares - bring together up to 11,000 'quilombolas' and endure for nearly a century. A similar conceptual anomaly is evident in the absence of taxonomies, which envision 'quilombos' as effectively historical structures, which might have been restricted merely to loose groups or have developed into self-sustaining communities capable of reproducing themselves economically and demographically for long periods in the Americas.
quilombos; slave resistance; morphology of slavery; slavery in the Americas
ANÁLISE
Uma morfologia dos quilombos nas Américas, séculos XVI-XIX* * Uma versão menor do presente artigo foi publicada anteriormente em Florentino e Amantino, 2011, 2012. A presente versão em português foi aumentada em cerca de um terço a partir do refinamento teórico do problema dos quilombos nas Américas, da agregação de novo material iconográfico e de novos dados estatísticos e estudos de caso. Do mesmo modo, alocaram-se com precisão as fontes e agregaram-se ao texto novos materiais de primeira mão de origem arquivística. Por fim, atualizou-se a bibliografia especializada.
A morphology of 'quilombos' in the Americas, sixteenth-nineteenth centuries
Manolo FlorentinoI; Márcia AmantinoII
IProfessor do Instituto de História/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo de São Francisco, 1, sala 203. 20051-070 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. manolo@ifcs.ufrj.br
IIProfessora/Universidade Salgado de Oliveira. Rua Marechal Deodoro, 211, bloco A, 2o andar. 24030-060 - Niterói - RJ - Brasil. marciaamantino@terra.com.br
RESUMO
O presente trabalho parte da constatação da natureza relativamente anódina dos estudos acerca dos quilombos em sociedades escravistas nas Américas, os quais não raro juntam em uma única categoria (quilombos, cumbes, palenques, mainels etc.) estruturas que podiam englobar menos de uma dezena de fugitivos e durar semanas ou meses, ou, como no caso de Palmares, congregar até 11 mil quilombolas e persistir por quase um século. Semelhante anomalia conceitual revela a falta de taxonomias que encarem os quilombos como estruturas efetivamente históricas, que podiam circunscrever-se a meras hordas ou evoluir para a condição de comunidades autossustentáveis e, pois, capazes de se autorreproduzir econômica e demograficamente por longos períodos nas Américas.
Palavras-chave: quilombos; resistência escrava; morfologias da escravidão; escravidão nas Américas.
ABSTRACT
The article begins with the finding that studies on 'quilombos' in slave societies in the Americas have been relatively anodyne, not rarely placing in one sole category ('quilombos', 'cumbes', 'palenques', 'mainels', etc.) structures that might encompass anywhere from less than ten runaways, and last just weeks or months, or - as in the case of Palmares - bring together up to 11,000 'quilombolas' and endure for nearly a century. A similar conceptual anomaly is evident in the absence of taxonomies, which envision 'quilombos' as effectively historical structures, which might have been restricted merely to loose groups or have developed into self-sustaining communities capable of reproducing themselves economically and demographically for long periods in the Americas.
Keywords: quilombos; slave resistance; morphology of slavery; slavery in the Americas.
Economia fundada na incorporação de estrangeiros como condição fundamental para a sua reprodução ampliada, ao reger-se por uma lógica de altíssimo desperdício de mão de obra, a escravidão americana parecia presa a um paradoxo. Afinal, dificultava a capacidade de procriação dos trabalhadores e incrementava as taxas de mortalidade dos escravos devido às duras jornadas de trabalho. O tráfico transatlântico, no entanto, tornava congruente e necessário o que, à primeira vista, se afigurava contraditório.
A vigência do tráfico e os baixos preços da mão de obra por ele propiciado teriam levado os senhores a assumir peculiares padrões de cálculo econômico e demográfico. Em termos gerais, especialmente nas áreas mineradoras e nas regiões mais intensamente voltadas para a agroexportação, a reprodução endógena dos escravos estaria comprometida pelos altos índices de desequilíbrio entre os sexos. Além disso, haveria uma grande mortalidade de recém-nascidos e infantes que, por não possuírem grande valor econômico (em vez disso, representavam custos de manutenção), eram negligenciados pela lógica empresarial, com poucos chegando à idade produtiva e sexualmente fértil. O desperdício de mão de obra era, no entanto, apenas aparente: a velocidade de amortização do investimento inicial para a compra do escravo era maior, com o benefício e o reinvestimento realizados em menor tempo (Conrad, 1978, p.22).
Embora varie ao sabor das características de cada região - sendo o sul dos EUA a exceção sempre referida - , esse modelo geral poderia ser aplicado ao período anterior a 1850. Com a proibição definitiva do tráfico, ao mesmo tempo em que o preço dos cativos sofria um aumento generalizado, os senhores teriam buscado prolongar-lhes a vida útil - o desequilíbrio entre os sexos foi diminuindo, e a empresa escravista teria buscado adaptar-se à melhoria das condições materiais dos cativos à custa de menores ganhos; os índices de sobrevivência dos recém-nascidos teriam crescido, e o tempo de vida útil se prolongado, ao mesmo tempo em que se dilatavam as suas potencialidades autorreprodutoras. Tais mudanças se traduziriam, por exemplo, na maior incidência de famílias escravas (Klein, 1978).
A escravidão assim pensada assentava-se em um postulado básico: a sociedade escravista estaria movida por (e o devir histórico, associado a) uma férrea racionalidade econômica, sendo seu agente maior, o senhor, o homo economicus por excelência. No entanto, se uma imagem puramente econômica se adequa ao empresário capitalista, a sua transposição às fazendas, minas e cidades americanas do passado requer delicados manejos. O homo economicus é uma criação histórica do capitalismo, uma invenção humana posterior à maior parte da história da escravidão moderna. Cabe observar como e por que ao senhor de escravos não caem perfeitamente bem essas vestes historicamente tão recentes.
É certo que, desejoso de maximizar seus lucros, o senhor de escravos tendia a adotar um cálculo econômico 'moderno', já que se achava preso a uma engrenagem econômica mais ampla, sobre a qual exercia desprezível influência. Sob esse aspecto, parece haver maiores similitudes que desajustes entre o escravista e o contemporâneo capitão de indústria. Mas são mais aparências, na verdade. Os elementos desse cálculo não coincidem, pois são traduções de sociedades portadoras de racionalidades distintas. O empresário capitalista não obtém seus lucros mediante a coerção extraeconômica: cabe à "pressão surda das condições econômicas" o papel do feitor (Castro, 1980, p.93-94).
O senhor escravista, pelo contrário, devia obrigar o seu escravo a trabalhar e a obedecer, se quisesse continuar dono de coisas e gente. Diferença analiticamente fundamental, chega a ser pueril supô-la expressa em cálculos puramente econômicos. O 'cálculo' senhorial não podia ser estritamente econômico. Dos escravos, por definição, não se esperava que trabalhassem por lhes terem sido furtados os meios de subsistência e, mesmo, o direito sobre o seu corpo: eram obrigados. As estratégias senhoriais deviam ser, antes de mais nada, políticas. A cultura política escravista não pode ser resumida aos custos econômicos da manutenção de um aparato de vigilância sobre os cativos, que incidiriam sobre a taxa de rentabilidade do sistema e contribuiriam para adequar a níveis ótimos o tratamento conferido aos escravos. Tornar um fenômeno de natureza política (a má vontade do escravo em trabalhar) em uma variável econômica, simples e apressadamente, significa despolitização da política e da cultura e não permite constituir legitimamente um problema teórico relevante, tornando impossível o conhecimento de seu exato significado para o funcionamento do sistema.
O escravo era uma mercadoria, objeto das mais variadas transações mercantis: venda, compra, empréstimo, doação, transmissão por herança, penhor, sequestro, embargo, depósito, arremate e adjudicação. Era uma propriedade, enfim. O ordenamento jurídico da sociedade o constituía como tal, exceto no que concerne à transgressão da lei. Aliás, têm razão os historiadores que consideram que o primeiro ato humano do escravo é o crime - sintetizado, por exemplo, no roubo, no assassinato de senhores ou na fuga e na formação de quilombos. A legislação cuidou, é verdade, de regular o seu uso, como normalmente acontece com outros tipos de propriedade. Mas apenas reconhecia humanidade no escravo por ocasião do crime, pois, afinal, nenhuma outra propriedade é punível.
Pode-se dizer, portanto, que as evasões e a constituição de comunidades de quilombolas representavam atitudes do escravo que o humanizavam - na lei escravocrata e na imaginação de muitos historiadores. No limite, porém, a recriação temporal da sociedade escravista, mesmo a sua reprodução econômica, era uma questão fundamentalmente política, e as atitudes e relações que os escravos estabeleciam (familiares, religiosas, de resistência explícita ou não ao cativeiro) cumpriam papéis essencialmente políticos.
Fugas
Nas Américas, como na África pré-colonial, a reprodução do escravismo esteve estruturalmente ligada à contínua reiteração do poder. Não poderia ser de outro modo, pois, não sendo autorregulável, a produção escravista pressupunha a constituição de relações pretéritas e desiguais de poder - 'antes de ser propriedade o escravo era um cativo de outro homem'. A senhores e escravos unia, antes que o mundo da produção, uma relação de poder fundada em ordem privada e culturalmente legitimada. Por isso, e não apenas por representar um ataque frontal ao direito de propriedade, é que essa possibilidade apontava para os limites do domínio privado do senhor e garantia ao escravo algum espaço para a negociação de demandas. Mas não se deve esquecer que a escravidão vicejou nas Américas por quase quatrocentos anos - quatro vezes mais do que a experiência do trabalho livre, portanto. Logo, de variadas formas, o passado escravista ainda é maior do que o presente livre. Eis a razão pela qual, embora as fugas e as comunidades de escravos fugidos constituíssem formas clássicas de resistência à escravidão, de algum modo o seu estudo pode igualmente ensinar algo acerca de tamanha estabilidade.
Pode-se começar pela capitania do Rio de Janeiro, uma região altamente integrada ao mercado internacional de produtos tropicais. Se em 1789 o total de escravos chegava a 65 mil habitantes - 15 mil na cidade do Rio de Janeiro - , trinta anos depois alcançou-se o total de 150 mil, quarenta mil na urbe. O tráfico de africanos explica tamanho incremento, com médias anuais de nove mil desembarcados na última década do século XVIII, e de 23 mil entre 1808 e 1830, a maior parte prontamente redistribuída pelo sul-sudeste brasileiro (Florentino, 2010, p. 37 e ss.). As listas de cativos constantes de inventários post-mortem indicam que tal incremento exacerbou a razão de masculinidade e diminuiu a taxa de dependência. Movimento semelhante ocorreu na região de Taubaté, capitania de São Paulo, uma área rural voltada para o mercado interno colonial cuja ligação ao tráfico de africanos cresceu igualmente depois de 1808 (Tabela 1).
Menos de 3% dos mais de 1.200 inventários post-mortem da capitania do Rio de Janeiro e de Taubaté registravam nomes de escravos fugidos, em um total inferior a 1% dos quase 14 mil escravos arrolados pela fonte. Ao derivar de escravos que senhores à beira da morte ou os seus herdeiros davam por inapelavelmente perdidos, anotados ademais no intuito de dirimir dúvidas acerca dos valores a partilhar, esses índices parecem bastante confiáveis. Eles sugerem terem sido menos frequentes do que se costuma supor as evasões que permitiam aos cativos se organizar, mais ou menos rapidamente, em bandos, sob a chefia de um deles, ou a reunir-se a quilombos preexistentes. Poucas e circunscritas a poucos plantéis, a essas fugas definitivas, muitas vezes designadas grands marronages, chamaremos de agora em diante fugas-rompimento.
Fontes qualitativamente distintas dos inventários post-mortem, os avisos de fugas de escravos publicados em jornais coevos desvelam outros aspectos desse tipo de resistência ao cativeiro. Em primeiro lugar porque, ao assumir que o fugitivo podia ser recuperado, seus responsáveis obrigavam-se a detalhar as circunstâncias das escapadas, as origens e os traços físicos dos fugitivos, além das expectativas de captura, aspectos que permitem ao historiador montar perfis sociodemográficos e abordar as percepções dos atores envolvidos nas evasões. Em segundo lugar, embora abarquem também as fugas-rompimento, os avisos permitem melhor conhecer as ausências temporárias, muito mais frequentes, resultantes do impacto do desembarque do africano nas Américas, do humor do cativo ou da natureza do trabalho a ele demandado, quando não da vontade explícita de mudar de senhor. Parte expressiva das ausências temporárias derivava do rompimento de acordos fundados na tradição, como o que ocorreu em 1745, na Bahia, quando, em sua conturbada gestão do engenho de Petinga, o padre Luís da Rocha vendera uma escrava para um vizinho, fazendo com que seu companheiro fugisse para encontrar a amada e se recusasse a regressar (Assunção, 2002, p.126).
Também chamadas petits marronages, ausências desse tipo eram efetuadas mais individualmente do que por reduzidos grupos de escravos, que se escondiam nos arredores dos locais de trabalho, nas casas de parentes ou nas senzalas vizinhas. Com alguma prudência, pode-se chamá-las fugas-reivindicativas ou escapadelas, pois muitas vezes seu objetivo final era tão somente obter pequenas conquistas tendentes a alargar a autonomia do escravo na escravidão. Sem nenhuma garantia de êxito, fugia-se para extrair dos senhores melhores condições de vida, o que inseria esse tipo de evasão em um conjunto de atitudes de resistência cotidiana cuja sistematicidade podia reordenar alguns cânones da escravidão. Documentos oficiais e eclesiásticos confirmam, desde o século XVI, na América espanhola e no Brasil, a existência de uma espécie de população flutuante entre os escravos, indivíduos que escapavam das plantations e das minas para unir-se aos cimarrones1 1 Cumbes, palenques, mainels etc. são termos pelos quais os quilombos são conhecidos no mundo hispano-americano, do mesmo modo que cimarrones e marrons equivalem a quilombolas, respectivamente na América espanhola e nos Estados Unidos. das montanhas próximas, mas que logo regressavam, para visitar parentes ou simplesmente para pressionar seus senhores a, por exemplo, aceder a seus pedidos para casar com escravas de outros proprietários.2 2 Documento raro é o da fuga de Mahommah Gardo Baquaqua não apenas pelas circunstâncias em que ocorreu (fugiu de um navio brasileiro atracado no porto de Nova York), como igualmente por se tratar da única biografia de escravo que viveu no Brasil que descreve sua vida antes do apresamento na África (cf. Law, Lovejoy, 2001).
Do reconhecimento da diferença entre as fugas-reivindicativas e as fugas-rompimento falam as próprias leis coloniais francesas e espanholas, ao prescrever punições distintas para ambas. Os jornais da cidade do Rio de Janeiro também confirmam que, no início do século XIX, a rebeldia encarnada na fuga não se restringia ao definitivo rompimento com o cativeiro. Por meio dos anúncios publicados nas edições do Jornal do Commercio (RJ) das décadas de 1830 a 1860, observa-se que a quantidade de evasões anunciadas podia alcançar cerca de 2% da população escravizada da urbe, cifra mais de três vezes superior à de fugas-rompimento expressa pelos inventários post-mortem urbanos da época. De moto próprio ou como resultado da infatigável recaptura, a maior parte dos fugitivos retornava a seus donos: o vezeiro em escapar, anotado como 'fujão', 'calhambola' ou 'muito calhambola' nos inventários, que não raro se escondia com correntes presas ao corpo; o bêbado contumaz e o demente, que em seus delírios recusavam-se a crer que o futuro era apenas mais passado à espera de se repetir e despertavam a quilômetros de casa; o ladrão que levava o dinheiro e as joias dos amos na esperança de assim poder recomeçar vida nova; o espancado, que nos ares da cidade ou da mata secava as fístulas e mitigava a sede de vingança; a mulher grávida a vagar por becos e vielas na ilusão de impedir que o rebento herdasse seu destino infeliz; o crioulo ou o africano aculturado que acabaram de ser comprados, regressando ao antigo lar para reencontrar parentes e amores; sobretudo o boçal, africano com poucos meses nas Américas, cujas escarificações ainda frescas no corpo denunciavam a sua meninez, que apenas balbuciava alguns termos em português, errante por ruas que também desconhecia, muitas vezes sem saber sequer o nome de seu dono - desconhecendo, portanto, o poder que o encarnava propriedade.
Delicados são os procedimentos que permitem avaliar quão generalizáveis podem ser os números encontrados para a América portuguesa. Isso porque, fascinados pelas grandes revoltas de escravos e pelas bem estruturadas comunidades de fugitivos, os pesquisadores geralmente relegam a plano secundário a análise da resistência quotidiana e não necessariamente tendente à superação da escravidão, como foi o caso da maioria das fugas. Além disso, muitos aceitam sem prudência algumas estimativas produzidas por senhores e autoridades coloniais, cujo afã de controlar a escravaria às vezes levava-os a superestimar a envergadura das fugas e dos quilombos. Não poderia ser de outro modo, aliás, pois as evasões frequentemente expunham os limites do poder senhorial. Eis a origem de uma espécie de paranoia senhorial, sempre pronta a exagerar a escala real das fugas, revoltas e quilombos nas Américas. Um dos primeiros a trilhar semelhante caminho talvez tenha sido o castelhano, que em meados do século XVI calculou em sete mil o número de cimarrones africanos a habitar assentamentos dispersos pela ilha de La Española, cifra dificilmente aceitável por estudiosos do tráfico atlântico de escravos (Landers, 2001, p.145). Acompanhou-o a Coroa portuguesa ao determinar que, no Brasil de meados do século XVIII, por quilombo deveria ser entendido todo agrupamento superior a cinco fugitivos que habitasse zona despovoada, mesmo sem nenhuma evidência de que se podiam sustentar por si próprios.3 3 Resposta do Rei de Portugal a consulta do Conselho Ultramarino, de 2 de dezembro de 1740, citado por Moura (1972, p.87). Documentos oficiais anteriores (1722) consideravam quilombo todo grupo "acima de quatro negros, com ranchos, pilões e modo de aí se conservarem..." Cf. Amantino, 1998, p.109. Por isso, não surpreende saber que, de setenta insurreições de escravos tidas como ocorridas no Caribe britânico entre 1649 e 1833 - incluindo aí as de larga escala e a violência de pequeno escopo - , 32 tenham resultado da paranoia senhorial ou simplesmente não se materializaram (Beckles, 1991, p.364).
Grandes estâncias jesuíticas do vice-reino do Rio de la Plata apresentavam baixos índices de fugas - em 1768, logo após a expulsão dos religiosos, não se registravam evasões entre os escravos que viviam nas estâncias de San Miguel de Tucumán e de Santiago del Estero; na de La Rioja, apenas 1,1% dos 273 cativos estavam ausentes (Andrés-Gallego, 1996). A institucionalização da cultura da manumissão, mais comum em regiões de colonização ibérica e católica, por certo contribuía para frequências baixas assim. Maiores, mas nem por isso extravagantes, eram os índices observados em colônias protestantes como as ilhas dinamarquesas de St. Croix, St. Thomas e St. Jan. Em 1789, o pedagogo Hans West reportou 1.340 fujões contumazes ou definitivamente evadidos em St. Croix, ou seja, 6% de 22.448 escravos. Estimativa mais precisa foi feita em 1792 por P. L. Oxholm, engenheiro militar que depois se tornou governador-geral - 96 escravos para sempre evadidos, ou apenas 0,5% dos 18.121 escravos de St. Croix. Seu relatório revelava ainda um total de 2.082 fugas-reivindicativas nesse ano (11,5% da população escrava), o que torna a quantidade de fugas definitivas vinte vezes menor do que a dos fujões que regressavam a seus senhores ou eram capturados. Em 1802, os 86 cativos definitivamente fugidos representavam menos de 3% dos 3.150 escravos de St. Thomas (Hall, 1991, p.389).
Em contextos localizados, os índices de fugas podiam ser bem maiores do que o expresso por esses poucos casos. Tratava-se de evasões maciças, ocorridas tanto em fases de depressão quanto de expansão econômica, não raro em situações de pré ou de pós-revolta de escravos, ou ainda no bojo de conflitos entre as diferentes metrópoles coloniais. Por exemplo, fugas maciças seguiram-se à derrota dos africanos que, em 1522, visando criar uma república africana, mergulharam os arredores da cidade de São Domingos em uma onda de assassinatos de senhores e de destruições de colheitas. O mesmo ocorreria 15 anos depois na Cidade do México, na esteira de uma abortada conspiração de escravos (Klein, 1987, p.227). Quando piratas holandeses saquearam partes de La Española, em 1626, muitos escravos aproveitaram para escapar para as montanhas, e outros até acompanharam os flibusteiros (Thornton, 1992, p.278). As famosas comunidades marrons da Jamaica surgiram quando das invasões inglesas de meados do século XVII, ocasião em que inúmeros escravos de espanhóis fugiram para o interior. Do mesmo modo, muitos quilombos das Guianas tiveram origem ao tempo de invasões militares estrangeiras, que desestruturavam os mecanismos de controle e vigilância das plantations e propiciavam evasões de dezenas de escravos de uma só vez (Klein, 1987, p.218). Em 1687, Diego de Quiroga, governador da Flórida, informou a Madri que 11 escravos haviam chegado da Carolina em uma canoa roubada e logo requereram seu batismo na "verdadeira fé" católica. As fugas se incre-mentaram quando o número de negros superou o de brancos na Carolina, especialmente depois de 1741, quando a Coroa espanhola reafirmou a liberdade de "todos aqueles [escravos] que no futuro fugirem das colônias inglesas" (Landers, 1999, p.24-33).4 4 Nesta e nas demais citações de texto em espanhol, a tradução é livre. Em 1690, na paróquia de Clarendon, cerca de quatrocentos escravos atearam fogo em uma plantation, pertencente a um certo Sutton, e logo fugiram para os bosques do centro-sul da Jamaica, onde por algum tempo viveram de roubos às propriedades vizinhas (Schuler, 1991, p.376). Mesmo nas pequenas ilhas dinamarquesas, famílias de plantadores se arruinaram devido a evasões de grupos de 20-25 escravos em uma única noite, como relata Reimert Haageenssen, que viveu em St. Croix na década de 1750 (Hall, 1991, p.391).
Casos como esses desvelam o quão complexos podiam ser os processos sociais de fugas. Eles ensejam prudência na generalização das frequências detectadas para o Sudeste brasileiro e ilhas do Caribe dinamarquês, as quais, para ser analiticamente úteis, devem ser tomadas, sobretudo, como 'ordens de grandeza' das evasões. Nesse sentido, não é de todo implausível que, em condições normais, no máximo dez entre cada cem escravos se vissem envolvidos em fugas nas Américas e menos de um deles lograsse abandonar definitivamente o cativeiro. A baixa frequência de fugas era uma das mais contundentes expressões da multissecular estabilidade do escravismo americano, resultante tanto da força dos mecanismos de controle social quanto, em especial, dos processos que aceleravam a aculturação e mitigavam parte da opressão. No limite, era efeito da progressiva afirmação de uma cultura escrava de feição camponesa ou protocamponesa, expressa na busca de conquistas como o trabalho por tarefas e a obtenção de tempo livre para se engajar em suas próprias atividades. Tratava-se de um traço cultural presente tanto no Brasil quanto no Caribe e no sul dos EUA, cuja visibilidade tornava-se maior em conjunturas de menor integração ao tráfico atlântico.
Dito de outro modo, as atitudes de protesto escravo tendiam a situar-se menos no campo político formal e mais no plano de demandas de relativa autonomia econômica e social na escravidão. Aspirava-se a ser livre, por certo, mas o conteúdo dessa liberdade remetia ao ideal de reprodução de um campesinato mais ou menos independente, ou de trabalhadores que pudessem controlar parcialmente seu tempo e suas atividades (Beckles, 1991, p.372). Semelhante elaboração demandava tempo, sobretudo o tempo de se aculturar, de vivenciar na carne e na alma a pedagogia que aos poucos transformava cativo - isto é, prisioneiro - em escravo.
Padrões
A Tabela 1 reafirma também uma antiga sugestão de clássicos da historiografia, segundo a qual haveria uma correlação positiva entre frequências de fugas e flutuações dos desembarques de escravos nas Américas.5 5 De acordo com Genovese (1983, p.19-20), "os escravos do Velho Sul sublevaram-se menos vezes, em menores contingentes e com menor sucesso do que os da região do Caribe e da América do Sul". Sobre a América Central (excluindo o México), "vários processos econômicos e sociopolíticos evitaram que [ela] se convertesse em um universo quilombola. O mais importante foi a substituição do cacau pelo anil" cuja produção tornou-se um dos principais elementos de ligação com o mercado internacional, mas produzidos basicamente pelo campesinato mulato, e não pelas grandes haciendas. Ver Fernández, 2001, p.329 e Herzfeld, 2001, p.371-372. Importa aqui a constatação de que eram pouco frequentes as fugas e a constituição de palenques na América Central. É, portanto, plausível que, ao concentrar 2/3 de todas as viagens negreiras, o século XVIII tenha representado a época áurea das fugas de escravos no continente. O mesmo raciocínio sugere que, embora se registrem fugas em todas as Américas, as evasões podem ter sido mais frequentes no Brasil e no Caribe do que na América espanhola continental e, sobretudo, do que no sul dos EUA, onde mesmo os quilombos congregavam menores contingentes e obtinham menores êxitos do que naquelas regiões (Tabela 2).
Já se escreveu que todo recém-chegado da África é um cimarrón de fato ou potencialmente (Casimir, 1977, p.401). Afora o romantismo que cerca assertivas desse tipo, remontam aos primórdios da colonização registros de fugas de boçais ou bozales. Na Guatemala de 1640, por exemplo, entre o porto de desembarque e o interior evadiram-se 17 dos 98 escravos que vieram de Angola no Nuestra Señora de los Remedios y San Lorenzo (cinco morreram). Os jornais caribenhos não raro alertavam para a presença de boçais nos arredores dos portos de desembarque, tentando voltar para a África. O desfecho podia ser trágico: em 1801, na Jamaica, quatro fantes convenceram outros africanos a acompanhá-los na fuga da plantation para a qual haviam sido vendidos; dirigiram-se ao litoral e apossaram-se da primeira canoa que encontraram para nela rumarem para a terra natal, sem a menor noção da distância que os separava da África (Mullin, 1994, p.14 e Cáceres, 2001, p.92-93).
A forte presença de boçais entre os fugitivos anotados nos inventários post-mortem e, sobretudo, nos avisos dos jornais sugere terem sido eles os principais vetores da relação de causalidade entre as frequências de fugas e as flutuações do tráfico atlântico de escravos. Os boçais representavam de 20 a 30% de todos os fugitivos denunciados nos jornais do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX, perfil mais ou menos semelhante ao detectado em diferentes regiões de colonização britânica entre 1730 e 1805. Uma amostragem de quase dez mil fugitivos denunciados em jornais do Caribe britânico e do sul dos EUA mostra que em Barbados e na região de Chesapeake Bay, onde se logravam saldos positivos entre natalidade e mortalidade escravas, a menor ligação com o tráfico atlântico redundava em menores frequências de evasões e em menores índices de participação de africanos recém-desembarcados entre os fugitivos (3,8%). Na Jamaica, Carolina do Sul e na Geórgia, ao contrário, regiões muito mais dependentes do comércio negreiro, o peso dos boçais alcançava um índice três vezes superior (12,5%) - Tabela 3. Em suma, embora fugir representasse a outra face da escravidão colonial, é plausível que em grande medida se escapasse como resposta à solidão e à subtração dos códigos culturais que na África estruturavam a vida. Até certo ponto, portanto, as evasões podem ser encaradas como os efeitos mais tangíveis de uma espécie de seasoning cultural, cujo impacto era obviamente mais frequente nas regiões escravistas mais caudatárias do tráfico atlântico.
A dinâmica das alforrias também reforçava a correlação positiva entre fugas e grau de integração ao tráfico, havendo fortes indícios de que a frequência de evasões era tanto maior quanto menor fosse a incidência de alforrias (Merrick, Graham, 1981, p.76 e ss.). Do ponto de vista senhorial, épocas de expansão econômica implicavam não apenas incorporar mais mão de obra, mas também limitar a sua perda mediante poucas libertações. Do mesmo modo, a maior frequência de manumissões nas fases de recessão encontraria justificativa em evitar custos de manutenção e/ou em reaver parte do preço pago por cativos agora não tão necessários. Na primeira conjuntura, de elevados preços dos escravos, tendiam a pre-dominar as alforrias gratuitas, e o número de forros não era tão expressivo quanto na segunda, de predomínio da liberdade comprada. Sem que ainda se possa estabelecer a justa dimensão de cada uma dessas etapas, é provável que as sucessivas conjunturas de alta dos preços dos cativos tenham restringido as suas possibilidades de constituir o pecúlio adequado à autoaquisição, redefinindo parte das expectativas, opções e atitudes dos escravos frente à liberdade. Nesses momentos, fugia-se mais do que quando seus preços eram menores, e a compra da liberdade, mais factível.
Óbvio, semelhante modelo se aplica basicamente a regiões onde as libertações eram elementos culturalmente incorporados às relações entre senhores e escravos, o que, por exemplo, exclui a Virgínia de fins do século XVII. Ali, em 1691, chegou-se a proibir toda manumissão privada, a menos que o senhor deportasse o forro da colônia; mulher branca que parisse filho mulato era pesadamente multada, ou se tornava serva por cinco anos, seus filhos por trinta (Davis, 1997, p.21-22). Nas colônias católicas ibéricas, ao contrário, as épocas de pouca integração ao tráfico atlântico resultavam em preços relativamente baixos das alforrias, e os escravos obtinham-nas sobretudo mediante compras. Na Guatemala do século XVIII, por exemplo, 70% dos escravos manumissos - quase sempre mulheres - haviam comprado sua liberdade, gerando uma expressiva população livre de cor. Poucos fugiam, não raro para organizar-se em palenques como os existentes nas imediações da montanha do Mico, de onde se dedicavam a pilhagens de caravanas, além de arregimentar novas fugas nas plantations vizinhas (Palomo-Lewin, 2001, p.203). Do mesmo modo, a península de Yucatán (Nueva España) apresentou parca integração ao tráfico, pois o grosso de sua demanda por mão de obra era plenamente atendida pelos indígenas. Os poucos escravos ali existentes ou bem eram gratuitamente alforriados ou, caso mais comum, compravam a sua liberdade com o apoio de algum parente ou por meio de fundos comunitários de liberdade reconhecidos pela legislação castelhana. Os escassos casos de fuga ocorriam tanto dentro quanto para Yucatán, e a maioria dos escravos era devolvida a seus donos no prazo de duas a oito semanas. Não há evidências confiáveis de que em Yucatán houvesse palenques, embora seja possível que San Fernando de los Negros, em Ake, tenha servido de refúgio aos fujões (Restall, 2001, p.298).
Embora homens e mulheres escravizados constantemente fugissem, os adultos do sexo masculino tenderam a predominar no universo dos fugitivos. No Sudeste brasileiro da virada do século XVIII, três entre cada quatro fugitivos que para sempre abandonavam o cativeiro eram homens, na maioria congos ou angolanos, devido à intensa ligação da região com a África central atlântica. Os inventários post-mortem dos senhores indicam tratar-se de adultos fixados em grandes plantéis, nos quais realizavam tarefas diversas e pouco especializadas. Alguns traziam no corpo as marcas do trabalho pesado e do choque microbiano, e o fato de muitas vezes fugirem em pequenos grupos sugere que parte das fugas-rompimento obedecia a um planejamento, com definição de destino e amparo logístico em redes sociais engendradas dentro e fora dos plantéis, e que não necessariamente se rompiam após a fuga. No que tange às fugas-reivindicativas, eram homens quatro de cada cinco fugitivos denunciados em jornais do Sudeste brasileiro, com esmagador predomínio dos africanos (de cinco a dez para cada crioulo). Embora os congo-angolanos predo-minassem, era igualmente expressiva a quantidade dos oriundos de outras regiões africanas (sobretudo de Moçambique), além dos crioulos provenientes de províncias do Nordeste e do Sul do Brasil. As crianças entre dez e 14 anos alcançavam 1/3 de todos os fugitivos e 45% dos africanos evadidos (Gomes, Soares, 2002, p.8-9). Como os que para sempre partiam, a maioria dos denunciados nos jornais desempenhava tarefas rudimentares, embora alguns tivessem ocupações estáveis e especializadas (sapateiros, alfaiates, marceneiros e, sobretudo, marinheiros e domésticos), o que afiança a ideia de que havia escravos que acreditavam poder viver indefinidamente de seu próprio trabalho fora do cativeiro, mas dentro da sociedade escravista. Fugia-se em grupos de dois ou três, mas sobretudo isoladamente, e, embora alguns recebessem a ajuda de escravos e livres que os escondiam e empregavam, na maioria das vezes a evasão não se fazia de acordo com meticuloso planejamento nem se amparava em redes de sociabilidade sólidas ou muito amplas.
A intensa ligação da América portuguesa com o comércio negreiro por certo colaborava para o predomínio dos fugitivos do sexo masculino em idade adulta. Evidências relativas a outras regiões americanas sugerem, no entanto, que tal padrão não constituía mero reflexo da estrutura sexualmente desequilibrada da população escravizada. Por exemplo, sabe-se que, entre 1730 e 1805, economias pouco dependentes do tráfico atlântico como Virgínia, Maryland e Barbados conheceram uma porcentagem de 85% de homens entre os fugitivos. Tratava-se de índice maior do que os 78% detectados para a Carolina do Sul, Geórgia e Jamaica, zonas bem mais integradas ao tráfico atlântico de escravos onde, ademais, a participação de cativos recém-desembarcados entre os evadidos era três vezes superior à detectada em Chesapeake Bay e em Barbados (em todos os casos, os adultos predominavam sobre as outras faixas de idade); cf. Tabela 3.
Logo, para além do perfil sexual e etário demograficamente desequilibrado da população escrava, outros fatores deviam colaborar para o predomínio de adultos masculinos entre os fujões. Sintomaticamente, entre os fugitivos da Carolina que fundaram o santuário de Gracia Real de Santa Teresa de Mose, em 1738, havia pouquíssimas mulheres. Isso se devia em grande medida ao fato de que os filhos dificultavam a participação de mães nas perigosas jornadas através dos pântanos da Flórida, em que somente os mais fortes e velozes escapavam dos caçadores de escravos e de predadores naturais (Landers, 1999, p.31). Do mesmo modo, os inventários post-mortem de senhores da América portuguesa mostram que, no fim do século XVIII, poucos escravos aparentados deixavam o cativeiro definitivamente para trás. Mesmo os jornais poucas vezes anunciavam fugas conjuntas de parentes. Tudo isso sugere que, até certo ponto, a família escrava operava como um forte mecanismo de estabilização social, criando vínculos de adesão de seus principais componentes - mães e filhos - ao status quo escravista.
A horda quilombola
Embora alguns fugitivos lograssem se reinventar forros, mudando de nome e passando a viver de ganhos eventuais no campo e nas cidades, e outros, raros, se engajassem em navios mercantes e regressassem à África, a maior parte dos que jamais foram recapturados encontrava alternativa distinta. Do rio da Prata ao sul dos EUA, os palenques, quilombos, cumbes, marrons e mainels se constituíam e reconstituíam nas franjas das plantations, minas e cidades. Só em Nueva Granada, entre os rios Cauca e Magdalena e ao redor de Cartagena, foram identificados mais de meia centena de palenques entre os séculos XVI e XVIII, dos quais os de San Basílio, La Ramada, Santa Cruz de Mazinga, Betancur, Uré, Matuderé e San Jacinto são os mais famosos (Friedemann, 1998, p.87-89). Em Minas Gerais (Brasil), havia pelo menos 166 quilombos entre 1711 e 1795 (Amantino, 2003). Ainda hoje há descendentes de cimarrones vivendo em enclaves no Caribe, América Central e América do Sul.
Costumavam refugiar-se em bosques e regiões pantanosas, então abundantes nas Américas. E faziam-no não apenas em busca da necessária proteção contra os caçadores de escravos e milícias coloniais, mas também por causa da infinidade de recursos que semelhantes meios ofereciam, representados pela possibilidade de caçar e pescar e de obter lenha e cipós, por exemplo - assim atuando, alguns poucos fugitivos até conseguiam prescindir por anos a fio de todo e qualquer contato social (Barnet, 1986). De fato, segurança e abastecimento eram requisitos iniciais imprescindíveis para a sobrevivência de pequenos assentamentos que, com alguma sorte, podiam transformar-se em núcleos estáveis de camponeses autônomos. Devido à remoção, pelas plantations açucareiras, das florestas e pântanos que até a primeira metade do século XVIII garantiam-lhes proteção e alimentos, muitos fugitivos das ilhas de St. Croix, St. Thomas e St. Jan navegavam para Porto Rico ou se misturavam às populações negras das cidades das ilhas dinamarquesas (Hall, 1991, p.389). Movimentos semelhantes ocorreram em Barbados e em Antígua (Thornton, 1992, p.285).
Tão frequente quanto os palenques era a repressão que sobre eles se abatia, os recapturados punidos com centenas de chicotadas, postos a ferros e mesmo mutilados. O Codigo Negro de Santo Domingo (1768) previa que os ausentes por até quatro dias deveriam ser punidos com cinquenta chibatadas e atados ao tronco até o pôr do sol. O número de chibatadas subiria para cem se a fuga se estendesse por mais de oito dias, caso em que, ao pé do escravo, seria preso, por dois meses, um ferro de 12 libras. Evasões por intervalos maiores, porém inferiores a quatro meses e sem contato entre o fugitivo e os quilombolas, eram castigadas com duzentas chicotadas, acrescentando-se outras duzentas no caso de associação com cimarrones. O desterro da ilha de Santo Domingo era o destino em caso de reincidência. O Code Noir para a Louisiana (1724) era, de certo modo, mais sintético e brutal: ausências de mais de um mês implicariam o corte das orelhas do fugitivo, que, além disso, teria as costas marcadas com uma fleur-de-lys, o símbolo da realeza francesa. Se reincidisse, um braço lhe seria amputado e o fujão teria gravada no corpo mais uma fleur-de-lys. A terceira fuga redundaria em execução (Salmoral, 1996, p.172-193). Açoites, marcações com ferro em brasa, corte de mãos e de orelhas, degola de cadáveres e exposição pública das cabeças foram práticas que se sucederam também na repressão aos quilombos brasileiros durante o Setecentos, em frequências variáveis de acordo com as circunstâncias (Guimarães, 2002).
Circunstâncias houve em que violência e persuasão se alternaram, sobretudo ao longo dos dois primeiros séculos da colonização. Em La Española de meados do século XVI, por exemplo, em resposta aos ataques de cimarrones contra os mineradores e haciendas do vale central de La Veja, as autoridades locais mesclaram intentos de "pacificação", mediante o envio de religiosos aos palenques, com a mais pura repressão militar (Landers, 2001, p.145-150). Em 1577, no que hoje é o Equador, os sacerdotes estiveram igualmente incumbidos de contatos com os fugitivos que duas gerações antes haviam fundado o palenque de Esmeraldas. Os líderes cimarrones aceitaram os primeiros contatos, participaram de ofícios sagrados, fingiram aceitar a fé católica e logo escaparam dos religiosos. Do mesmo modo, em meados do século XVII, o arcebispo de La Española, Francisco de la Cueva Maldonado, tentou por meios pacíficos atrair os cimarrones reunidos em quatro palenques nas fraldas das montanhas da costa meridional da ilha. Conhecidos como Bahoruco, eles já haviam rejeitado outras ofertas de paz e rechaçaram mais essa, argumentando não acreditar em palavra de branco. Pouco tempo depois, os espanhóis lançaram uma série de ataques quase fatais contra eles, mas as comunidades de cimarrones Bahoruco persistiram até quando bem adiantado ia o século XVIII (Landers, 2001, p.145-150).
Por resultar basicamente da ação de forças repressivas, as fontes para a reconstituição da história dos palenques são em geral fragmentárias e prenhes de etnocentrismo, sobretudo quando descrevem a dinâmica interna dos assentamentos. Em pouquíssimos casos - particularmente no Suriname e na Jamaica, onde os quilombolas conseguiram estabelecer tratados com as autoridades coloniais, ganharam grande autonomia política e seus descendentes sobrevivem até os dias atuais - dispõe-se de fontes tão ricas como a tradição oral. Ainda assim, os interrogatórios de quilombolas da baixa Louisiana oferecem um vivo panorama das situações experimentadas pelos recém-fugidos e pelos assentamentos apenas formados. Na década de 1760, após se evadirem por causa de castigos injustificados e de alimentação inadequada, os escravos vagavam desarmados pelos pântanos, alimentando-se do milho e das batatas que conseguiam levar das plantations e daquilo que coletavam e caçavam. Amiúde regressavam em menos de um mês. Os que não voltavam construíam cabanas ou, mais frequentemente, buscavam integrar-se aos frágeis assentamentos existentes em zonas de ciprestes não muito longe das plantations, ao longo dos rios e das baías pantanosas, de onde continuavam a roubar, sobretudo alimentos das propriedades escra-vistas. Outros abraçavam atividades alternativas com que proviam a subsistência, cultivando ralos campos de milho e de arroz, a maior parte vivendo da caça a jacarés e a pequenos animais, pescando, coletando palmito. Uns poucos produziam excedentes suficientes e vendiam-nos nos mercados de Nova Orleans. Listas de recapturados revelam um perfil demográfico extremamente desequilibrado, com mais de três homens para cada mulher. Devido à fraca inserção dos EUA no tráfico atlântico, os fugitivos da baixa Louisiana eram quase todos crioulos, cujos renitentes contatos com os escravos das plantations contribuíam para que o espírito de insubordinação não se extinguisse na região. Na época da Revolução Americana, surgiu entre os maroons da região entre a boca do rio Mississipi e Nova Orleans (Bas du Fleuve) a carismática liderança de St. Maló, fundador de assentamentos como Ville Gaillarde e Chef Menteur. Os interrogatórios revelam que a esses locais continuavam chegando novos evadidos, não raro trazendo consigo barris de arroz, varas de pescar, mosquetes e pólvora, além de facas para caça, o que fazia com que a comunicação entre os quilombolas e os escravos das plantations assumisse feições de suporte para o abastecimento e de mútua inteligência. Havia inclusive quilombolas associados aos donos de serrarias, para quem cortavam pinheiros e vendiam as toras (Hall, 1992, p.201-236).
As normalmente baixas frequências de evasões definitivas e os fortes desequilíbrios sexuais e etários tendiam a reduzir quilombolas como os do Bas du Fleuve à condição de meras hordas - isto é, ajuntamentos fundados mais no princípio da adesão do que em saldos entre natalidade e mortalidade, mais na coleta, caça e roubos do que na agricultura como estratégia de reprodução econômica, ausentes de um poder civil ou militar estável e claramente legitimado. Dos roubos e do mero aproveitamento dos recursos naturais preexis-tentes derivava seu nomadismo; da adesão como estratégia de reprodução demográfica resultava a exiguidade dos grupos - geralmente inferiores a dez pessoas - e a falta de coesão adequada, posto que a união tendia a exercer-se tão somente em torno de objetivos ime-diatos, como a busca de alimentos e proteção. Tal era a configuração da maioria dos palenques, cumbes, quilombos, marrons e mainels americanos, o que, em determinados aspectos, podia favorecer-lhes. Afinal, reduzidos e socialmente porosos, dispersavam-se facilmente quando atacados e tinham grande facilidade para abrigar-se em locais de difícil acesso - havia quilombolas vivendo em lapas e cavernas. Mas o risco de desaparição era igualmente constante, e, depois de algum tempo, as dificuldades tornavam-nos presas de recaptura, não sem antes ceifar boa parte dos quilombolas devido a inanição, sarampo, malária, disenteria e, sobretudo, varíola. Eis a razão pela qual as hordas de fugitivos se encontravam em uma posição em princípio defensiva, incessantemente buscando refúgio em zonas cuja geografia dificultasse a sua localização e destruição. Eis também o motivo pelo qual, em vez de fundarem seus próprios agrupamentos, boa parte dos recém-evadidos optava por integrar-se a assentamentos preexistentes (Thornton, 1992, p.282).
Esconder-se em matas e pântanos podia garantir por algum tempo a sobrevivência das hordas, mas não afiançava a sua reprodução demográfica simples (um por um) e menos ainda o seu crescimento. No caso dos fugitivos da baixa Louisiana, por exemplo, St. Maló acabou traído e morto. Sintomaticamente, a decadência dos assentamentos do Bas du Fleuve parece ter-se acentuado quando, sob ataque das forças espanholas, auxiliadas por milícias de homens livres de cor e por alguns escravos, as comunicações com as plantations foram cortadas e, com elas, o acesso a fontes vitais de informação e suprimentos. A lista dos escravos recapturados mostra que pertenciam a senhores facilmente identificáveis, em clara alusão a um alto grau de fluidez social. Os quilombolas estavam longe de fincar raízes por crescimento endógeno positivo, não obstante a agregação de algumas famílias escravas formadas ainda no cativeiro. Em meados de 1784, contavam-se 103 capturados, mas talvez houvesse mais. No total, os quilombolas equivaliam à parcela pouco expressiva da população escrava da baixa Louisiana (Hall, 1992, p.201-236). Tampouco lograram ultrapassar a condição de horda quilombola os cinquenta ou mais escravos do Engenho Santana (Bahia) que, em 1789, liderados por um crioulo de nome Gregório Luiz, assassinaram o feitor e fugiram para as matas próximas. Durante dois anos infernizaram a vida do senhor de todos, Manuel da Silva Ferreira. Acossados por expedições militares, acabaram por enviar a este, por escrito, uma notável proposta de paz por eles elaborada, na qual estabeleciam os termos pelos quais retornariam voluntariamente ao cativeiro. Pediam melhores condições de trabalho, a oportunidade de cultivar gêneros alimentícios e de comercializá-los, mais conforto material e o direito de "brincar, folgar e cantar" quando lhes conviesse (Reis, Silva, 1989, p.123-124). Ferreira fingiu aceitar os termos da proposta, viu-os retornar ao Santana, vendeu os líderes da revolta para o Maranhão, mandou prender Gregório, e a vida no engenho retornou ao normal.
Portadoras de menor complexidade demográfica e social e, por isso mesmo, capazes de se disseminar pelas Américas, as hordas quilombolas encarnavam o principal vetor de intranquilidade da população livre, especialmente quando se associavam a grupos socialmente desviantes, como os garimpeiros clandestinos e os bandidos que povoavam as estradas. A afirmação de Souza (1999, p.23) "Amiúde [torna-se] difícil distinguir os homens livres pobres dos escravos e dos quilombolas, sobretudo se os primeiros são forros" é uma explícita referência à fluidez dos limites entre as camadas sociais mais pobres e os grupos de fugitivos. De fato, muitas vezes os próprios documentos não deixam claro se eram quilombolas ou homens livres pobres que viviam à margem da sociedade formal, já que, ao abraçar formas alternativas de vida e não se submeter facilmente ao controle das autoridades, ambos eram vistos como agentes sociais perniciosos. A esse respeito, a trajetória de Bento Correia de Melo na metade do século XVIII é emblemática. Bento invadiu a região do Sapucaí, destituiu e prendeu a autoridade local, nomeou um de seus companheiros para o cargo e logo tomou posse das terras e lavras auríferas dos colonos. Os prejudicados remeteram ao governador da capitania de Minas Gerais uma petição em que solicitavam providências, alegando que Bento já havia se envolvido em revoltas e crimes em outra área, razão pela qual fugira para o quilombo próximo a Sapucaí, de onde comandava ataques à população livre (Souto Maior, 1751). Por outro lado, os sistemas de captura também favoreciam a confusão entre o cimarrón e o mero fujão, como no Sudeste brasileiro do século XVIII, onde o capitão do mato recebia vinte oitavas de ouro para cada quilombola apanhado e muito menos nos casos de capturas de simples fujões errantes (Amantino, 2008, p.143). Resultava que quase todo escravo capturado fosse imediatamente classificado como quilombola, o que naturalmente ajudava a superestimar a quantidade de cimarrones.
A comunidade quilombola e redes de sociabilidade
Alguns raros palenques, de cuja existência apenas hoje podem ser encontrados indícios, conseguiram permanecer radicalmente isolados, sobretudo no interior da América do Sul. Não gratuitamente, porém, o Código Negro de Santo Domingo prescrevia a forca para o fugitivo que, ausente por mais de seis meses, houvesse mantido contato com quilombolas. Outros códigos espanhóis e o Code Noir proibiam dar emprego a fugitivos, impediam os escravos de comercializar qualquer bem sem comprovada autorização senhorial e o auxílio aos quilombolas (Salmoral, 1996, p.168-194). O motivo era simples: os palenques mantinham graus razoáveis de interação com escravos, indígenas, forros e homens livres que viviam em seu entorno, e senhores e autoridades coloniais sabiam que as redes que os uniam eram fundamentais para a reprodução e o crescimento dos grupos de fugitivos. Por isso é que, em 1795, uma carta ao governador denunciava que os escravos das fazendas de Minas Gerais se aliam "com os do mato [e com eles] repartem os mantimentos dos paióis de seus senhores" (Amantino, 2008, p.149). Outro documento reiterava que pequenos armazéns eram estratégicos para a reprodução dos quilombos, sobretudo porque neles se comercializava o resultado dos assaltos e o excedente agrícola e pecuário. As lojas de secos e molhados se tornaram tão importantes para a reprodução quilombola, que, em 1754, a Câmara da cidade de Vila Rica denunciou que "cada venda é um quilombo" (p.147).
De fato, redes estáveis de sociabilidade e auxílio permitiam a obtenção de alimentos, armas, munição, dinheiro e informações que garantiam a sobrevivência presente e futura. Através delas, os cativos eram conduzidos aos quilombos, parentes fugidos e escravizados se encontravam, e alguns quilombolas vendiam autonomamente a sua força de trabalho para as plantations. Por ensejar o escoamento de parte do que se coletava e produzia, tais redes modulavam a inserção quilombola no mercado. Em suma, aliadas à proteção representada por locais de difícil acesso, as informações e os bens obtidos por meio da interação com o entorno funcionavam como uma espécie de "acumulação primitiva", que sedimentava a eventual transição da horda instável e constantemente à beira da extinção para a comunidade rural quilombola plena de sentido histórico - ou seja, para o está-gio de grupo funcionalmente agregado que ocupava um determinado espaço e época, portador de estrutura social e política razoavelmente complexa, cujos membros -eram conscientes de sua singularidade e identidade. Efetuada a transição, a combinação entre essas redes, a segurança derivada de refúgios estrategicamente localizados e a maior capa-cidade de reprodução econômica e demográfica podiam transformar algumas comunidades em uma espécie de extensão da escravaria submetida ao cativeiro e vice-versa, permitindo-lhes desfrutar de razoável controle sobre as suas vidas, os seus bens e o seu território (Hall, 1992, p.201-236). Dialeticamente, isso aumentava as chances de agregar novos fujões, processo cuja continuidade reiterava o crescimento econômico e demográfico autos-sustentável.
É possível que os palenques do Valle de Carabayllo, no Peru, no século XVIII, estivessem em transição para o estágio de comunidade camponesa estável. Eram assentamentos não fortificados, cuja defesa parece ter-se apoiado especialmente em sua capacidade de proliferar-se de modo disperso em refúgios naturais. A existência de inúmeras fontes de água potável favorecia a sua disseminação, havendo indícios de que cada assentamento controlava um determinado território ao redor de um manancial. A contribuir para a sedimentação havia o fato de que a relativa escassez de mão de obra para o corte de madeira fazia com que muitos fugitivos de Carabayllo fossem contratados pelos administradores das propriedades vizinhas. Em troca, eles eram autorizados a vender parte da lenha em seu próprio benefício, o que por certo ajudava a incrementar as redes de sociabilidade com estratos da sociedade colonial peruana. De todo modo, em todas as Américas, a transição para a comunidade nutria-se especialmente das dificuldades de sobrevivência dos recém-fugidos, que por isso geralmente buscavam integrar-se a comunidades quilombolas preexistentes. "Há boas razões para se julgar que esteja no quilombo do Tijuco", observava, por exemplo, o aviso da fuga de Félix Moçambique, referindo-se a um dos vários grupos de fugitivos que desde o século XVII encontravam abrigo nas montanhas que cercam a cidade do Rio de Janeiro (Anúncios..., 6 jul. 1830). Sabe-se que, na Jamaica, onde os indígenas desapareceram como comunidade distinta logo após a conquista espanhola, tanto por ocasião da invasão inglesa de 1655 quanto das violentas revoltas escravas do final do século, muitos cativos aproveitaram para fundar novos palenques, enquanto outros, muito mais numerosos, simplesmente se agrega-ram aos assentamentos de marrons das montanhas (Thornton, 1992, p.282-285).
Nas regiões de fronteira aberta, era frequente a criação de redes de interação com as comunidades indígenas, com as quais os fugitivos se mesclavam e até se diluíam, seja porque o poder militar dos nativos inibia as forças coloniais, seja pelo fato de sua existência minorar as dificuldades dos recém-escapados. Trata-se de movimento tão antigo na história colonial que já em 1503 Nicolás de Ovando, governador de La Española, denunciava que africanos encontravam refúgio entre os índios tainos das montanhas da ilha - os cimarrones africanos auxiliariam o taino Enrique em sua derrotada sublevação contra os espanhóis em 1519-1532 (Landers, 2001, p.145; Thornton, 1992, p.285). Em Porto Rico, aborígines e negros conviviam nas matas, de onde levavam tanto pânico aos colonos espanhóis que, em 1526, Francisco de Ortega denunciava estar a ilha se despovoando de metropolitanos (em dezembro de 1550 o governador enviava carta ao rei afirmando que a situação ainda não se resolvera) (Moscoso, 1995). Durante o século XVI, cooperação entre fugitivos e aborígines foi igualmente detectada na região Zapoteca da Nueva España (1523), em Cuba (1529), na Nicarágua (1540), na zona venezuelana de Santa Marta (1550) e no Panamá (1546-1550) (Thornton, 1992, p.286).
Mais no Brasil do que em qualquer outra parte, em muitas ocasiões, os indígenas serviam às autoridades como forças repressoras de quilombolas, como no caso dos tapuias que ajudaram os portugueses a destruir o quilombo de Palmares em fins do século XVII. Por sua vez, uma carta de Sancho de Alquiza ao rei, de fevereiro de 1612, afirmava que os caribes possuíam dois mil escravos africanos nas ilhas que habitavam nas Antilhas (Thornton, 1992, p. 290). Há evidências de que, também no sul dos EUA, os aborígines mantinham negros fugidos como escravos ou com eles estabeleciam uma espécie de arranjo feudal no qual os negros residiam em seus próprios assentamentos (as "aldeias negras" de que falam as fontes inglesas) e davam tributos anuais e serviços aos seus "senhores" nativos (Landers, 1999, p.68). Em contrapartida, há inúmeros episódios de negros escravizados e livres que contribuíam para sufocar indígenas inassimiláveis, além dos casos em que autoridades metropolitanas utilizavam-se abertamente dos quilombos para seus próprios objetivos, como no Panamá de 1570, onde os ingleses conseguiram a aliança dos cimarrones contra os espanhóis.
Como padrão geral, quando os indígenas eram finalmente conquistados ou mantinham alianças estáveis com as autoridades coloniais, tendiam a rejeitar contatos com quilombolas, chegando mesmo a devolver muitos deles aos europeus, como fizeram os caribes na Martinica e em San Vicente após 1660-1680 (Thornton, 1992, p.286-288). Mas mesmo no sul dos EUA, alguns fugitivos que alcançavam a Flórida durante o século XVIII haviam antes lutado ao lado dos índios Yamasee contra os ingleses (Landers, 1999, p.26-27). Na mesma época, detectou-se na Louisiana francesa a existência de assentamento de africanos e aborígines que, juntos, se dedicavam a roubar suprimentos, armas e munição de seus senhores. Em interrogatório a que foi submetido em 1727, um escravo indígena recapturado revelou a existência do assentamento de Natanapallé, habitado por 15 outros fugitivos indígenas e africanos fortemente armados. Ainda na Louisiana, em 1748, os choctaw ocidentais que haviam atacado colonos alemães da Côte d'Allemagne igualmente derrotaram uma guarnição militar mandada para capturá-los, feito para o qual contaram com o auxílio de fugitivos negros e de escravos indígenas que antes haviam acolhido (Hall, 1992, p.40 e ss).
Interação ainda mais forte é sugerida pela análise da cerâmica encontrada em sítios arqueológicos dos arredores da cidade de Santo Domingo. Embora produzida por cimarrones africanos, ela incorpora elementos de tradição indígena, em uma configuração que denota intensas trocas culturais entre ambos, o que inclusive tem levado à reavaliação de estilos antes tidos como exclusivamente aborígines (Landers, 2001, p.150-151). Cerâmica indígena tem sido encontrada também no coração de Palmares, a serra da Barriga, sugerindo que ali a mescla cultural devia ser igualmente intensa - a partir do perfil dos prisioneiros capturados pelos holandeses, afirma-se ser de 20% a população ameríndia no assentamento central do quilombo em 1644 (Funari, 1996, p.31-46). Tais exemplos apontam para a possibilidade de que cimarrones e indígenas pudessem unir-se a ponto de criar comunidades mestiças, perfil efetivamente detectado em outras regiões antilhanas, na Amazônia, na Bahia, no Equador e em algumas áreas da Flórida colonial (Gomes, 2002, p.43). Quilombos mestiços uniam indígenas e cimarrones africanos nas montanhas ao redor das minas de cobre da região de Buria, Venezuela, em 1552. Comunidades mestiças caribenhas parecem ter-se originado de naufrágios de naus com escravos, como os zambos mosquitos da Nicarágua (1641) e os black caribs de San Vicente (1675) (cf. Thornton, 1992, p.284-286).
A mestiçagem era igualmente comum na capitania do Mato Grosso (Brasil), onde, em 1770, o quilombo do Piolho fora destruído pela primeira vez. Embora nessa ocasião tenham sido capturados 79 negros e 30 aborígines, os negros que escaparam logo voltaram ao assentamento original e constituíram famílias com mulheres indígenas. Vinte e cinco anos depois, durante uma nova batida das autoridades, foram capturados seis negros idosos, os patriarcas da comunidade, oito índios, 19 índias e 21 caburés (filhos de índios com negros) com idades de dois a 16 anos (Volpato, 1993, p.188). O elevado número de mulheres, quando comparado aos oito índios, sugere a preferência pela permanência de mulhe-res indígenas no quilombo, prática que remetia a um crônico deficit de mulheres negras e à incorporação das índias como recurso demográfico para a constituição de famílias. A esse respeito, quando Diego de Frías ocupou o assentamento de rio Piñas (Panamá), em 1580, observou que a comunidade possuía algumas mulheres indígenas, capturadas em guerras contra nativos das proximidades (Thornton, 1992, p.297). Podiam ter de suprir deficit semelhante ao detectado para o Mato Grosso. Em outros casos, a natureza camponesa das comunidades mestiças adquiria tons ainda mais destacados, como no caso do palenque de Esmeraldas, cujas origens remontam ao encalhe na costa do Equador, em 1533, de uma embarcação proveniente do Panamá com escravos originários da Guiné. O negro Antón liderou a fuga de 16 homens e seis mulheres em direção à mata densa, onde se uniram aos índios pidi. De acordo com o relato do sacerdote Miguel de Cabello Balboa, embora inicialmente os africanos tenham servido aos pidi como guerreiros, logo as suas demandas por recursos e mulheres provocaram conflitos, resultando em enfrentamentos. Os africanos remanescentes mesclaram-se aos nativos da costa, formando o primeiro assentamento camponês mestiço de Esmeraldas (Landers, 2001, p.146-147).
Entre os quilombos que certamente atingiram o estágio de comunidades camponesas estiveram aqueles poucos que conseguiram estabelecer tratados formais de paz com as autoridades de algumas colônias americanas. Em sua forma típica - conforme se registrou na Colômbia, México, Brasil, Cuba, Equador, Jamaica, La Española e Suriname - , os tratados de paz incluíam a aceitação da liberdade dos cimarrones, o reconhecimento da integridade territorial do grupo e até mesmo o envio de provisões para atender a suas necessidades imediatas. Em troca, os cimarrones deveriam pôr fim a toda hostilidade contra o poder colonial e as plantations, devolver os escravos que dali por diante procurassem refúgio entre eles, além de ajudar a capturar novos fugitivos. Não há certeza absoluta de que os tratados tenham sido integralmente cumpridos. Os saramakas do Suriname, por exemplo, embora se tivessem comprometido a devolver aos senhores todos os companheiros que não fossem membros de suas comunidades antes do tratado, escondiam dos brancos parcela de sua população tida, desde então, como ilegal (Price, 1996, p.55).
Um dos primeiros a assinar tratado de paz com o poder colonial foi Yanga (ou Ñanga), um africano possivelmente de linhagem real na África, que, em 1570, assentou-se com outros fugitivos na serra de Zongolica, região açucareira de Orizaba (Nueva España). Em 1609, o palenque sofreu um forte ataque por parte das forças coloniais, Yanga liderou a retirada para outro forte próximo e logo estabeleceu um tratado com as autoridades mediante o qual obteve liberdade para todos os que com ele viviam antes de 1608, assim como a incorporação de um povoado (San Lorenzo de los Negros) e de uma igreja consagrada - um forte indício de aculturação. Ele e seus herdeiros governariam o lugar, do qual estariam excluídos os espanhóis, exceto em dias de mercado. Em troca, os cimarrones juraram viver pacificamente, devolver a seus donos os fugitivos que no futuro ali buscassem abrigo e servir ao rei com armas quando requisitados (Landers, 2001, p.147-149).
Após viverem algum tempo por meio de roubos, as centenas de fugitivos da plantation de Sutton, na Jamaica, responderam à repressão colonial unindo-se sob o comando de um Acã de nome Kwadwo. Por anos a fio seus ataques dificultaram o estabelecimento de novos assentamentos ingleses. Impossibilitadas de derrotar os maroons no campo militar, após inúmeros enfrentamentos as autoridades inglesas decidiram que a paz deveria ser alcançada. Para tanto, firmaram em 1739 um tratado com Kwadwo garantindo 1.500 acres de terra aos quilombolas. Tratado similar foi assinado no ano seguinte com os maroons da paróquia de St. George. Reconhecia-se assim a liberdade dos cimarrones, os quais, entretanto, não mais poderiam admitir novos fugitivos em suas comunidades. Com-prometiam-se, ademais, a debelar qualquer rebelião escrava na ilha, por sua iniciativa ou sob o comando do governador da Jamaica. A linhagem dos chefes quilombolas foi igualmente reconhecida, e dois europeus escolhidos pelo governador deveriam residir em suas comunidades, servindo de intermediários entre eles e os colonos ingleses (Schuler, 1991, p.376).
Há exemplos de tratados que na verdade faziam parte de estratégia de extermínio dos cimarrones, como no caso do mais famoso palenque da Nueva Granada, San Basílio. Localizado próximo à região de Cartagena, San Basílio foi organizado no início do século XVII por Domingo Bioho, de alegada origem governante na África, que ali recriou uma dinastia com o nome de rei Benkos. Depois de haver chegado a um acordo com Benkos, o governador de Cartagena o traiu, enforcando-o em 1619. Não obstante a perda de seu líder, o assentamento de San Basílio não foi destruído senão em 1686, depois de sobreviver por mais de sessenta anos, período em que chegou a contar com três mil habitantes, dos quais seiscentos guerreiros (Landers, 2001, p.150-151).
Por vezes, as relações das comunidades com o entorno prescindiam por completo de tratados formais para assemelhar-se a tratos relativamente harmoniosos entre camponeses. A esse respeito, de modo bastante sugestivo, uma carta de janeiro de 1770 relatava às autoridades judiciárias da América portuguesa a prisão de alguns negros que viviam em um quilombo: "a informação que passo dos negros apreendidos no Quilombo é a que me dão alguns moradores da Estrada, que me dizem que não consta que estes negros tenham feito mortes, nem roubo, porque meteram-se para aquelas gerais, aonde plantavam para comer e algodão para se vestir, o que eles assim mesmo indiciavam porque não tinham armas e menos vestuário, que só constava de couros e algodão, e por armas, flechas" (Cartas e ofícios..., 1770). Embora não se possa saber a exata localização do quilombo nem seu nome, apenas que se localizava em Minas Gerais, observe-se que o documento sugere um cenário de plácida convivência, sedimentada certamente por décadas de interação entre camponeses livres e camponeses quilombolas.
O quilombo de Bacaxá, na capitania do Rio de Janeiro, também exemplifica uma interação razoavelmente pacífica (Monteiro, 1730b). Surgido talvez no século XVII, foi localizado pelas autoridades em agosto de 1730 em uma região pouco povoada, embora possuidora de alguns engenhos de cana-de-açúcar. Habitavam-no mais de sessenta pessoas, entre homens, mulheres e crianças, número que, embora restrito, sugere grande estabilidade temporal, já que todos haviam nascido no quilombo. Sustentavam-se "em parte de suas roças e, em parte, de furtos nas fazendas vizinhas", e ainda assim viviam em relativa harmonia com a população local (Souza, 1961, p.6). Incomodava principalmente às auto-ridades que, ao se reconhecer impotentes para destruí-lo, acabaram por aceitá-lo de fato. A situação mudou quando dois homens livres foram barbaramente assassinados por um grupo de indivíduos: "os negros são muitos e estão situados com casas e roças há muitos anos, o que naturalmente pode ser enquanto não faziam insultos, mas depois destes, é impraticável dissimular semelhantes atrevimentos; à vista do que é necessário não só extinguir o dito quilombo, mas prender todos os negros e negras e filhos que tiverem no mato", afirmava logo depois uma carta enviada ao governador do Rio de Janeiro. Vinte e três quilombolas foram presos, mas o restante conseguiu fugir para o mato e para povoados vizinhos, misturando-se à população local (Monteiro, 1730a).
Em conclusão, embora os quilombos em princípio representassem ameaça real ou potencial à segurança e à propriedade de muitos, as comunidades locais de livres se relacionavam com eles de modo desigual, em claro questionamento da ideia de que todo quilombo necessariamente constituísse uma espécie de 'contrassociedade' ou foco de inassimilável resistência ao sistema escravista. Do ponto de vista dos responsáveis pela manutenção do status quo, ao apontar para alternativas de vida possíveis, os quilombos eventualmente expunham as fragilidades da própria sociedade colonial. Eis por que, embora a maioria dos quilombos americanos fosse formada tão somente por negros - em geral com predomínio dos nascidos na África, até que o tráfico atlântico fosse abolido - , existiam algumas comunidades plenamente constituídas que, além de índios, acolhiam brancos e mulatos livres pobres. Para não falar nos casos em que colonos e autoridades metropolitanas utilizavam-se abertamente dos quilombos em função de seus próprios objetivos. Assim, se no Panamá de 1570 os ingleses conseguiram a aliança com os cimarrones contra os espanhóis, em Saint Domingue e nas regiões de Chesapeake Bay e da Carolina Lowcountry a fuga associada de escravos negros e servos brancos ingleses e irlandeses era tão antiga quanto a escravidão (Landers, 1999, p.33). No Brasil de 1769, uma expedição de combate a um quilombo redundou na prisão de oitenta pessoas de procedências diversas, algumas das quais, mesmo sem serem quilombolas, haviam-se "estabelecido em terras do mesmo qui-lombo com famílias, roças, crianças e mulheres", informa uma fonte. Vinte e cinco anos depois, em Minas Gerais detectou-se a existência de mais um grande quilombo "muito antigo, [formado] não só de negros e mulatos fugidos, mas também de alguns brancos", descreve carta do governador Luiz da Cunha Meneses (Meneses, 1785).
Comunidade, população, parentesco e agricultura
Além dos variados tipos de relações com o entorno, a reiteração temporal das grandes comunidades palenqueras repousava na possibilidade de combinar eficientemente uma população em crescimento, mantida por sistemas agrários razoavelmente produtivos, um panorama de significativo incremento de relações de parentesco a unir seus membros, hierarquias internas bem estruturadas.
É possível tomar o número de casas, jiraus e ranchos dos assentamentos como um importante elemento de aproximação às populações de grandes quilombos. Em 1645, o diário do capitão Johann Blaer, comandante de uma expedição holandesa, descrevia o assentamento de Velho Palmares como sendo uma aldeia abandonada de meia milha, com uma rua principal de 2,2 metros de largura, duas cisternas ao centro e um pátio onde o rei tinha sua casa e se exercitava militarmente com seus seguidores. Três dias depois, Blaer (1988, p.22) encontrou o assentamento de Novo Palmares, onde contou 220 casas. Assumindo que cada casa acolhesse cinco pessoas, sua população alcançaria 1.100 quilombolas, o que, considerando os dez grandes assentamentos de Palmares, sugere um mínimo de 11 mil habitantes para a federação quilombola. Aplicado a Minas Gerais, semelhante procedimento indica uma média de seiscentos habitantes por grande quilombo da segunda metade do século XVIII (Tabela 4). Eram assentamentos cujas origens remontavam ao início do século XVIII, quando das intensas importações de africanos para a exploração dos veios auríferos. Desde então, vinham crescendo por meio da agregação de novos fugitivos e da reprodução natural. Da expressiva variação dos seus contingentes - dos 350 habitantes do Pernaíba aos 1.100 do Indaiá - , infere-se que as populações dos grandes palenques apresentavam enorme amplitude, inclusive em uma única região. O caso mineiro sugere também terem sido poucas as comunidades que congregavam milhares de quilombolas, embora algumas pudessem alcançar o milhar.
Os sistemas agrários dessas grandes comunidades talvez encontrassem nas famílias nucleares o eixo da repartição dos campos de cultivo, embora não se descarte a existência de parcelas cultivadas por toda a comunidade. De acordo com o censo populacional do santuário de Gracia Real de Santa Teresa de Mose, de 1759, vinte anos depois da sua fundação persistia o desequilíbrio sexual entre os adultos (havia duas vezes mais homens do que mulheres), em parte devido à atração que continuava a exercer sobre os fugitivos provenientes da Carolina. Entretanto, pouco mais de uma geração bastara para que se ultrapassasse o panorama de desarraigo familiar de 1738, mediante a afirmação de sólidas redes parentais e de expressivo crescimento populacional endógeno. Agora, quase ¼ da população tinha menos de 15 anos de idade, todos nascidos no santuário. Treze das suas 22 casas eram habitadas por famílias nucleares, e três em cada quatro moradores viviam com parentes imediatos em arranjos estabelecidos basicamente no próprio Mose. Registros eclesiásticos revelam que os escravos fundadores teceram intrincadas redes entre si, afiançadas, sobretudo, por relações de compadrio, com forte sugestão de prevalência da anterioridade como princípio organizativo fundamental da comunidade (Landers, 1999, p.49 e 261-263). Eis indicações de que, em determinadas condições, os palenques rapidamente alcançavam expressivos índices de reprodução por meio de famílias nucleares e que essas se hierarqui-zavam, com as mais antigas assumindo papel de destaque nas comunidades, administrando o mercado matrimonial e promovendo a distribuição das parcelas a cultivar.
Dados relativos ao Caribe são ainda mais esclarecedores, mostrando que, às vezes, paradoxalmente, a contínua agregação de novos membros causava transtornos para os que os acolhiam. Fontes de fins do século XVIII indicam que o mainel de Neyba, na parte espanhola de La Española, era habitado por 133 pessoas, distribuídas em 57 casas. A reduzida proporção de habitantes por casa (menos de três) era explicada pelos próprios cimarrones como resultante de recentes epidemias de sarampo e de disenteria, signos da presença de razoável número de boçais no grupo. O peso social dos mais velhos indica uma comunidade camponesa fortemente organizada ao redor do princípio da anterioridade, em moldes vigentes tanto na África quanto entre as sociedades ameríndias, em que os anciãos eram depositários da memória coletiva e dos conhecimentos relativos à agricultura, arquitetura, feitiçaria e guerra, e da própria linguagem. Havia 80 adultos - 43 homens e 37 mulheres, das quais vinte haviam nascido no próprio mainel - e todos os outros eram crianças, em clara indicação de que a população vinha aumentando, apesar das epidemias. A idade de mulheres idosas como Catalina e Maria (60 anos), naturais de Neyba, sugere que o mainel pode ter sido fundado no início do século XVIII. O incremento do tráfico em Saint Domingue (atual Haiti) contribuía para o crescimento de Neyba, e 11 mulheres e 31 homens haviam sido escravos de plantações francesas. Sem fortificações e edifícios públicos, em seu relativo isolamento, os cimarrones viviam em condições semelhantes às dos pobres camponeses de origem espanhola da ilha, em parcelas individuais de mil varas em média, cultivando arroz, milho, banana, cana-de-açúcar e outros alimentos, organizados em famílias nucleares com muitos filhos, trabalhando em geral em duas parcelas. Ao que parece, quando não havia filhos, trabalhava-se em uma parcela apenas. É possível que o tempo e a idade garantissem parcelas adicionais a alguns, com casais de 60 anos trabalhando em duas delas (Landers, 2001, p.153-155).
Demografia e agricultura razoavelmente pujantes e trocas com o entorno estiveram na raiz do fortalecimento do palenque de Yanga, no México, ajudando-o a extrair do poder colonial um tratado de paz no início do século XVII. No terreno inicialmente abandonado por seus seguidores, encontraram-se plantações de produtos da milenar dieta indígena, tais como pimenta, batata-doce, tabaco, zapallos, feijão e milho, sem contar cana-de-açúcar e algodão, além de criações de galinhas, cavalos e gado. Em sessenta casas, que talvez abrigassem trezentas pessoas, foram encontradas espadas, arcabuzes e dinheiro, obtidos a partir de trocas com comunidades próximas. Tratava-se de uma estrutura com forte tendência à estabilização enquanto economia camponesa, que longe de ser autárquica, combinava estratégias diversas de sobrevivência, inclusive comerciais. Plenamente estabelecidas e em crescimento parecem ter estado as comunidades Bahoruco de La Española, bem conhecidas por meio de descrições de eclesiásticos. As seiscentas famílias ali assentadas talvez somassem três mil quilombolas em meados do século XVII, o que, dada a baixa frequência de fugas definitivas, indica um longo processo de sedimentação demográfica, remetendo provavelmente ao século anterior. Por volta de 1660, elas já não se reproduziam por meio de roubos, mas sim pela combinação entre agricultura, pecuária e caça. Os homens eram bons arqueiros e ferreiros, e as mulheres também se dedicavam à mineração de aluvião, cujo produto permitia-lhes comprar roupas, bebidas, ferro e demais gêneros na capital de Santo Domingo (Landers, 2001, p.149-150).
Também para Nueva Granada há evidências de que o essencial da capacidade de reiteração de alguns grandes palenques derivava da tríade representada por relações parentais, população e interação com o exterior. Antes de ser destruído por forças espanholas, em fins do século XVII, o palenque de Matuderé congregava cerca de 250 pessoas que, inter-rogadas, revelaram traços de sua organização. Aparentemente, sofisticadas instituições políticas e militares se desenvolveram ao longo de muitas décadas de existência. Cada família semeava seus próprios campos com milho, arroz, feijão-preto, banana e batata, em um perfil que sugere relações muito estreitas e antigas entre os homens e a terra. Mantinham contatos com os ararás de Cartagena, com os quais adquiriam armas e pólvora. Não é difícil que panorama semelhante predominasse no conjunto de assentamentos das montanhas de Santa Maria, que em 1683 foi atacado por forças coloniais. Ali foi encontrada uma aldeia fortificada, com armamento espanhol que os cimarrones haviam obtido em enfrentamentos anteriores, assim como lanças, arcos e flechas. Antes de escapar, os fugitivos queimaram suas edificações e destruíram as plantações de milho e mandioca, em um clássico exemplo de tática militar quilombola. O panorama vigente no palenque mestiço de Esmeraldas durante o último quarto do século XVI descortina um êxito igualmente calcado na população, na família e no comércio. Seus membros possuíam mais de cem canoas para a exploração dos recursos fluviais, o que pode indicar a presença de pelo menos duzentos adultos na população do palenque. Dedicavam-se também à coleta e à caça, cultivavam milho, mandioca e cacau, além de tabaco, banana, arroz, algodão e cana-de-açúcar. Praticavam a metalurgia e criavam porcos e galinhas, não apenas para consumo interno como também para venda às populações vizinhas (Landers, 2001, p.146-153).
Outras comunidades quilombolas do Sudeste brasileiro combinavam largos campos e horticultura, capacidade de armazenamento e até produção para exportação. Em 1770, nas imediações de Serra Negra, aprisionou-se um negro que dizia ter fugido de um quilombo e que contou que ele e mais quatro parceiros haviam sido levados a "uma grande povoação dos mesmos pretos [onde] há grandes roças e canaviais, bananas, laranjeiras e descaroçadores e muito algodão, que sendo como ele diz é cousa grande" (Cartas e ofícios..., 1770). Vastas plantações foram igualmente detectadas em um quilombo em Mariana, em 1733 (Carta..., 1733). O quilombo de Pitangui (1767) plantava em abundância milho, feijão, algodão, melancia e outras frutas, assim como os de Catiguá (1769) e Santos Fortes (1769) - (cf. Rebelo, 1767). Mandiocais cobriam os campos de cultivos do quilombo de Samambaia (1769) e do rio da Perdição (1769), onde se plantava algodão. A horticultura era um dos aspectos mais sobressalentes do quilombo de São Gonçalo (1769), e os do Campo Grande (1746) e Paracatu (1766) possuíam, além de vastos campos de cultivo, armazéns e paióis onde estocavam seus excedentes. O quilombo do Moquim, no Rio de Janeiro, dava-se ao luxo de não apenas possuir plantações de cana-de-açúcar, mas igualmente de produzir cachaça, o que remete à necessária existência de uma engenhoca em seu interior (Amantino, 1996, p.194). Casos como esses pressupõem altos graus de divisão social do trabalho, técnicas agrícolas sofisticadas e contingentes populacionais não apenas expressivos, mas, também, há muito estabelecidos.
A presença de plantações de algodão sugere a confecção de tecidos e a existência de grupos especializados na realização de algumas atividades. Nos mapas dos quilombos de Minas Gerais pode-se perceber que também as construções expressavam especialização. Alguns mencionam a presença de casas e forjas de ferreiro, aspecto reiterado por achados arqueológicos posteriores (Figuras 1, 2, 3, 4 e 5). No quilombo da Cabaça foram encontrados dezenas de fragmentos de ferro fundido, chapas de metal e tiras de estanho, além de panelas, caldeirões, chaleiras, colheres e demais utensílios. Alguns desses objetos apre-sentavam reparos feitos com rebite, o que demonstra certo grau de conhecimento dessa técnica pelos quilombolas (Guimarães, Lanna, 1980, p.150). O diário de Johann Blaer (1988, p.22) afirma que, em um dos assentamentos de Palmares, erguia-se uma igreja e quatro forjas, "havendo entre os habitantes toda sorte de artífices".
Fontes relativas a áreas escravistas mais urbanizadas da América portuguesa são pródigas em enumerar pequenos estabelecimentos comerciais que serviam de palco de encontros entre mocambeiros e escravos. Em 1769, em Minas Gerais, o conde de Valadares havia ordenado ao capitão-mor Manuel Rodrigues da Costa que entrasse na fazenda Azevedos e localizasse os quilombolas que lá costumavam buscar contatos com os escravos. Ordenava ainda que fossem utilizados todos os meios possíveis para fazer com que os escravos denunciassem os quilombolas, devendo-se fazer o mesmo com os cativos de outras fazendas das imediações e com os roceiros livres do caminho (Cartas e ofícios..., 1769). Em carta de 1795, enviada ao governador da capitania, o lavrador Marcelino da Costa Gonçalves afirmava que os escravos das fazendas mineiras mantinham "aliança com os do mato ... [e] ... repartem os mantimentos dos paióis de seus senhores ... [com os quilombolas]" (Gonçalves, 1795). Outro documento reiterava que pequenos armazéns eram estratégicos para a reprodução dos quilombos, sobretudo porque ali se comercializava o resultado de razias e assaltos, e mesmo o excedente agrícola ou pecuário. As vendas se tornaram tão importantes para a reprodução dos quilombos que, em 1754, a Câmara da cidade de Vila Rica chegou a denunciar que "cada venda é um quilombo", não havendo distinção entre as vendas controladas por brancos ou por negros, quase todos acusados de receptação dos furtos dos escravos, fugidos ou não (Documento..., 1754).
Defesa e hierarquia
Na capitania brasileira do Rio Grande do Sul da primeira metade do século XIX (1829) localizava-se o quilombo do Barba Negra, com cerca de trinta homens e um número indeterminado de mulheres. Durante a época de maior demanda por mão de obra, de dezembro a fevereiro, eles eram sistematicamente utilizados pelos estancieiros, que lhes pagavam salários. Várias vezes o quilombo escapou da destruição, pois a população local sempre os alertava para as expedições que reiteradamente buscavam liquidá-los (Bakos, 1988, p.167-180). Eis um exemplo de como as redes de interação e sociabilidade dos quilombolas com o entorno por vezes também constituíam sua principal defesa. Outras comunidades, ao contrário, longe de se aliarem aos vizinhos, mostravam-se bem eficientes em atacá-los. Para tanto, contribuía o fato de que, embora os quilombos constantemente mesclassem padrões culturais ameríndios e europeus, parcela expressiva de seus fundadores era africana, e nascer na África e não em outro lugar conferia uma especial dimensão a determinadas práticas, crenças e tipos de organização prevalecentes entre eles. Os contornos específicos dessa dimensão variavam de acordo com a experiência dos africanos nas Américas, os padrões do tráfico atlântico que os reproduzia e, em última instância, a natureza das sociedades africanas das quais provinham. É plausível, no entanto, que uma das mais importantes contribuições da herança africana se relacionasse à destreza militar, pois muitos fugitivos haviam sido soldados na África. Em muitos casos, as culturas aristocrática e militar herdadas da África se associavam, influenciando poderosamente não apenas as estratégias de ataque e defesa adotadas pelos quilombolas, mas também a emergência de fortes lideranças, de um apurado sentido de hierarquia e, mesmo, da escravidão em alguns grandes palenques (Thornton, 1992, p.273-293).
Defender-se representava a obsessão dos palenques, e não apenas contra caçadores de escravos e milícias coloniais, mas igualmente contra ataques de indígenas e de outros quilombolas. Para tanto, armas mais toscas, mas nem por isso menos eficientes, como arcos, flechas e lanças eram por eles próprios produzidas. Pólvora e chumbo, para armas de fogo - já se disse - eram obtidos mediante trocas com a sociedade colonial ou resulta-vam de ataques periódicos a fazendas, vilas e andarilhos. Em pelo menos um caso, o dos cimarrones de La Española, destacava-se a cavalaria quilombola, que por volta de 1540 fustigava as plantations da ilha (Thornton, 1992, p.294). Os ataques e raptos que perpetravam abalavam a economia de muitas regiões, sendo abundantes os relatos acerca de ações que arruinavam colonos. No Brasil, em 1746, as autoridades afirmavam que os quilombolas do Campo Grande entravam nas pequenas fazendas e nos povoados, deles retirando "não só os bons escravos e escravas mas [também] matando os senhores [e] cuidando em tirar negros em lotes de 10-12 de cada sítio, os quais com pouca violência os seguem" (Andrade, 1746). Em 1770, os ataques a fazendas seguiam "destruindo tudo, pondo em miserável estado, ultimamente levando os escravos e escravas, sem um só deixarem" (Cartas e ofícios..., 1770).
Os ataques naturalmente despertavam a fúria dos escravocratas, que logo retrucavam. Em resposta, os quilombolas se defendiam de modos que variavam de acordo com a localização e o tipo de assentamento. Os cimarrones, que em 1603 se defendiam dos espanhóis em Ciénega de Mantua, Nueva España, faziam-no combinando o uso de espadas e arcabuzes e lanças, arcos e flechas (Thornton, 1992, p.296). Muitos lançavam mão de armadilhas de origem africana, outros de sistemas de armadilhas próprios da América. No quilombo Buraco do Tatu (1764), na Bahia, os mecanismos de defesa e sua disposição assumiam uma configuração e funcionalidade claramente africanas, com armadilhas cobertas e estacas pontiagudas que eram igualmente usadas para proteção de aldeias desde a atual Nigéria até o antigo reino do Congo, e que também foram encontradas em Palmares e em outros palenques das Américas (Schwartz, 1987, p.74). Em grande número de quilombos havia uma área claramente estabelecida para a localização dos sistemas de segurança, entre o núcleo dos assentamentos e as matas. Em geral, em tal área se encontravam fortalezas, estrepes e fossos, como no caso do assentamento de Yanga que, segundo relatos do padre Juan Laurencio, resistiu aos ataques ordenados pelo vice-rei Luís de Velasco com defesas constituídas por espessos muros de pedra, terrenos plenos de armadilhas em vime, além de matreiras pontes. Os cimarrones tentavam deter os espanhóis utilizando ainda foices, flechas com pontas de metal e pedra (Landers, 2001, p.147-149).
Mesmo quilombos que não apresentavam semelhantes armadilhas estavam construídos de modo a obter proteção. Na América portuguesa, o quilombo da Tábua, destruído em 1769, possuía duzentas casas cobertas com telhas, metade delas protegidas por uma fortificação (Cartas e ofícios..., 1770). No Quilombo do Campo Grande, em 1746, foram detectados mais de seiscentos negros vivendo com "fortaleza, cautelas e petrechos tais que se entende pretenderem se defender". Seus membros resistiram aos ataques dos colonos por mais de 24 horas, fazendo com que as forças repressoras tivessem de fustigá-los "com fogo e dar terceiro assalto para render uma forma de trincheira a que recolheram depois de destruído o primeiro palenque" (Amantino, 2008, p.138). Os mapas dos quilombos de São Gonçalo, de 1769 (Figura 3), da Samambaia, do mesmo ano (Figura 4), e do Ambrózio, de 1757 (Figura 5) - muito antigos e estáveis social e demograficamente - , indicam que todos eles tinham seu território delimitado por fossos, estrepes e trincheiras. O quilombo de Boucou (1772), na Guiana, apresenta ainda edificações próprias para a morada dos guerreiros que deviam defendê-lo (Figura 6).
Os quilombolas contavam ainda com as próprias características do terreno para a sua segurança. Dados arqueológicos referentes ao Sudeste brasileiro mostram que no sítio onde existira o quilombo do Ambrózio havia restos de um fosso de proteção cujas dimensões variavam entre 1,5 e 2m de largura por 2m e 3m de profundidade, circundando uma área de cerca de 90m de comprimento por 70m de largura. Ao norte, além do fosso, os quilombolas contavam com a proteção de um brejo; a oeste, situava-se o morro do Espia, ponto mais alto da região, usado como ponto de observação (Guimarães e Lanna, 1980, p.150). Em regiões pantanosas, as constantes inundações formavam brejos que, dificultando o acesso, apenas tornavam-se acessíveis por meio de pequenas embarcações, o que por si só já dificultava o deslocamento de grandes grupos de atacantes. Não raro, após ultrapassá-los devia-se caminhar por extensos campos abertos, o que aumentava as chances de os invasores acabarem descobertos.
Sistemas de defesa como esses eram tanto mais eficazes quanto mais complexa fosse a comunidade quilombola, o que quase sempre incluía forte diferenciação interna. A hierarquização estava intimamente relacionada à adoção da agricultura como estratégia econômica, o que por si mesmo já implicava a constituição de relações sociais mais estáveis e fundadas no princípio da anterioridade (Meillassoux, 1976, p.74 e ss.). A hierarquização era ainda mais incentivada pela necessidade de defesa, permanente em função do status desviante dos palenques. Detectam-se instituições políticas nos mapas de quilombos que mencionam 'Casas de Audiência com assentos' (quilombo da Samambaia), 'Casa do Conselho' (rio da Perdição) e 'Casa do Rei' (Braços da Perdição), remetendo a sistemas talvez bem estruturados, embora não haja como saber exatamente a que tipo de organização eles se referem. De fato, menções à presença de reis, rainhas, príncipes e capitães entre os quilombolas, termos de fundo europeu, por isso mesmo quase nunca refletiam o exato conteúdo do que nomeavam. Em 1604, Domingos Bioho dividia as responsabilidades de mando com seu 'capitán general' Lorencillo, e seu assentamento possuía um complexo sistema organizacional que incluía a presença de um 'teniente de guerra' e de um 'alguazil mayor'. O 'rei' Bayano, a quem se reputava origens aristocráticas, liderava cimarrones em Castilla del Oro (Venezuela) e obrigava os indígenas das vizinhanças a cultivar para ele. Habitantes do quilombo de Palmares relataram à expedição do holandês Johann Blaer (1645) que seu 'rei' exigia obediência absoluta a qualquer ordem ou prescrição (Thornton, 1992, p.294-295). Um documento oficial de 1764 afirma que quilombolas do Sudeste brasileiro roubavam mulheres brancas dos povoados e que também levavam escravos para "reforçar as tropas de seus parciais erigindo-se nelas os mais temerários e absolutos com o distintivo de capitães, tenentes, alferes e sargentos na ideia de se constituírem de maior terror ao público e de dificultarem a destruição de tão prejudiciais quadrilhas" (Bando..., 1769). Em 1776, ainda na América portuguesa, foi destruído um quilombo nas matas do Forquim, e entre os prisioneiros então constava, segundo correspondência oficial, um "rei" e uma "rainha", o primeiro, um escravo fugido há mais de dez anos, a segunda, uma fugitiva que fora dar ao quilombo por vontade própria (Rabelo, 1776). Independentemente dos títulos, entretanto, a natureza subversiva das comunidades fazia com que parte expressiva de seu êxito dependesse das qualidades de seus líderes. Entre as mais capazes lideranças do Caribe estavam Nanny - uma mulher - e Cudjoe na Jamaica; Macandal em Saint Domingue; e Ventura Sanchez em Cuba, os quais combinavam funções religiosas e políticas, reforçando a sua autoridade. A habilidade nos contatos e negociações com as autoridades coloniais, como nos casos de Yanga e Kwadwo, também cumpria semelhante papel (Knight, 1990, p.96).
A hierarquia nas comunidades quilombolas muitas vezes levava em conta a origem dos que nelas eram introduzidos e os meios pelos quais se agregavam, não sendo gratuito que, em alguns palenques caribenhos, os novos ingressantes fossem escrupulosamente testados, e os desertores e espiões brutalmente assassinados (Knight, 1990, p.96). A hierarquia por vezes refletia as dificuldades de convivência que crioulos e africanos mantinham desde as plantations e cidades coloniais, cuja preferência por uniões matrimoniais endogâmicas por naturalidade é um entre vários indícios (Florentino, Góes, 1997). Muitos relatos de viajantes chamam a atenção para essa peculiaridade da escravidão, e um dos poucos testemunhos diretos de escravos com que se conta para o Brasil diz o mesmo. É o caso da já mencionada proposta de paz elaborada pelos escravos crioulos que fugiram do Engenho Santana, na Bahia, em 1789. Nela, além de demandarem ao senhor melhores condições de trabalho e a chance de cultivar e de vender os seus gêneros alimentícios, exigiam ainda que as atividades mais árduas e arriscadas, relacionadas à pesca de mergulho, fossem realizadas pelos "seus pretos Minas". Todos os fugitivos eram crioulos (Reis, Silva, 1989, p.123-124). Há igualmente indícios de fortes distinções entre os que eram absorvidos pelos quilombos por livre e espontânea vontade e os que eram agregados por meio de sequestros. No quilombo do Forquim, embora a "rainha" se houvesse juntado ao quilombo por vontade própria, a maioria das mulheres que nele vivia, ao contrário, teria sido levada à força ou roubadas de fazendas - "só uma das escravas, a que tinham por rainha, não foi [levada de maneira] violenta para o quilombo" (Rabelo, 1776). Quando da destruição do quilombo, em 1776, determinou-se que todas teriam de ser devolvidas a seus respectivos senhores, embora as que se houvessem juntado ao quilombo por moto próprio devessem antes ser castigadas. Em outros casos, a forma diferenciada podia até determinar os rumos da escravidão interna. Se é certo que alguns ataques de quilombolas visavam trazer a liberdade a escravos das fazendas, em outras circunstâncias, os cativos raptados mantinham seu status na nova sociedade, como no caso de algumas comunidade de La Española em 1540 e de Cartagena em 1632, sem contar Palmares. Neste último, de acordo com fontes holandesas, somente os escravos que fugissem dos seus senhores por seus próprios meios e assim chegassem a Palmares seriam considerados livres. Os escravos palmarinos podiam obter a liberdade se conseguissem capturar outros cativos que os substituíssem (Thornton, 1992, p.298).
Semelhantes dados indicam que, ao menos em alguns casos, havia graus razoáveis de tensão nas comunidades quilombolas, tendendo a apartar líderes entre si, mas princi-palmente os da base social quilombola. Não se pode esquecer, por exemplo, que, ao estabelecer formalmente a paz com autoridades coloniais, Yanga se comprometeu a devolver fugitivos, auxiliar na sua captura e pagar tributo em troca da garantia espanhola de que ele continuaria 'rei' da comunidade, e que a sucessão permaneceria em sua família. Do mesmo modo, se os portugueses, depois de muito tempo, tiveram sucesso em destruir Palmares, foi porque, até certo ponto, puderam contar com cisões na própria aristocracia do quilombo (Thornton, 1992, p.300).
Considerações finais
Há muitos aspectos nas histórias de escravos fugidos e quilombos nas Américas que escapam ao esquema bipolar que opõe escravidão e liberdade. Além dos casos que, com igual simplicidade, contrapõem europeus, indígenas e africanos, ou ainda - mais recen-temente - negros e brancos. Contas feitas, a época áurea dos grandes quilombos, palenques e cumbes ocorreu antes da chamada Era das Revoluções no mundo atlântico, o que significa, simplesmente, que não se pode tornar os quilombolas americanos suportes anacrônicos nem do abolicionismo nem da democracia, tal como vieram a vicejar depois.
O que decorre de tudo o que expusemos é que os fugitivos escravizados eram parte da realidade cotidiana dos sistemas escravistas americanos; mas, igualmente, que as fugas permanentes - grand marronage - não enlaçaram a maioria dos cativos que se evadiam. As comunidades de fugitivos certamente nutriam a esperança de se constituir em alternativas à dura existência nas plantations, mas grupos assim não foram numerosos nem extensos. E mais: jamais lograram ameaçar os sistemas escravistas como um todo. Os quilombos não foram responsáveis pela Revolução Haitiana que acabou por destruir a mais rica colônia americana do século XVIII. O continente americano jamais sentiu o impacto de algo como a ação dos escravos rebeldes sobre o sistema de plantations escravistas da ilha de São Tomé, no golfo da Guiné, onde comunidades de fugitivos e evasões levaram à superação da economia de exportação por dois séculos ou mais.
Um último comentário, à guisa de conclusão, concernente à bibliografia utilizada na elaboração deste artigo. Na maior parte das Américas, até a década de 1970, tomava-se a escravidão apenas como uma forma de organização social de efeitos tão deletérios, que transformava o escravo em ator social anômico. Somente alguns poucos cativos lograriam ultrapassar semelhante estigma, não raro por meio do cristianismo ou da proximidade para com os seus senhores, o que por vezes lhes permitia alcançar a tão almejada alforria. Até essa época, as fugas e as eventuais constituições de comunidades de quilombolas eram concebidas sobretudo como uma espécie de esforço 'contra-aculturativo', resistência à 'aculturação' promovida pelos europeus e que a todos se impunha. Insistia-se especialmente em encontrar nos quilombos traços de restauração da África tradicional no Novo Mundo.
O ponto de vista culturalista acabou sucedido por ou simplesmente passou a conviver com as explicações materialistas de viés marxista e neomarxista, tendentes a reforçar a ideia de que a fuga e os quilombos representavam os típicos suportes da resistência - não raro militar - à ordem escravocrata. Paradoxalmente, cada um a seu modo, culturalistas e materialistas acabaram por estimular o senso comum de que os quilombos, palenques e cumbes eram, no essencial, comunidades alternativas e à margem das sociedades escravistas. Muitos marxistas reafirmavam, ademais, a falta de 'clareza' no que tange à consciência de classe do fugitivo, o que lhe impossibilitaria destruir o regime escravocrata.
Embora não estejam hoje em dia totalmente superadas, as perspectivas culturalista e marxista rapidamente cedem terreno. Com exceção de uns poucos enclaves, já não se insiste tanto na ideia de que os palenques, cumbes e quilombos estivessem radicalmente isolados da sociedade escravista, e muitos estudos se debruçam especialmente sobre a interação entre fugitivos e escravos do eito ou urbanos. Alguns autores têm buscado reduzir a escala de análise, havendo já estudos específicos sobre a mulher quilombola, os sistemas de parentesco de algumas comunidades de fugitivos, a demografia desses grupos e questões relativas às suas identidades. Muitos autores procuram resgatar as comunidades de fugitivos enquanto elementos de reafirmação de categorias sociais específicas, inseridas em sociedades multiculturais, o que, por certo, somente com muita dificuldade pode ser aplicado a sociedades que apresentam alto grau de mestiçagem. Com exceção de um ou outro autor, a bibliografia a seguir busca indicar apenas trabalhos que se inserem nessa etapa mais recente da historiografia americanista sobre fugas e comunidades de fugitivos.
NOTAS
Recebido para publicação em outubro de 2011.
Aprovado para publicação em janeiro de 2012.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Mar 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2012
Histórico
-
Recebido
Out 2011 -
Aceito
Jan 2012