Resumos
Este artigo analisa, em especial, um dos instrumentos de anamnese produzido e aplicado pelos médicos do Asilo de São João de Deus, em Salvador (Bahia), a partir de 1874, ano da sua instalação. A pesquisa localizou, no Arquivo do Estado da Bahia e no da Santa Casa da Misericórdia da cidade do Salvador, acervo documental importante para a compreensão não só da história asilar, mas da história da psiquiatria na Bahia. Entre esses documentos foram encontrados cerca de vinte questionários preenchidos pelos médicos baianos daqueles dias. O nosso interesse nesses questionários, desenvolvidos pelos alienistas baianos, é analisar o conhecimento médico sobre a loucura e o seu tratamento, como também identificar as maneiras engendradas na condução do cotidiano asilar, numa tentativa hermenêutica de privilegiar o simbólico do passado tendo em vista o presente.
história da loucura; história dos asilos; alienismo; século XIX; Bahia (Brasil)
The article relies on a collection of documents located at the Bahia State Archives and the city of Salvador's Santa Casa da Misericórdia Archives to gain an understanding of the history of asylums and of psychiatry in Bahia. The analysis is centered on one of the tools applied in taking anamneses, designed and employed by Bahian alienists at the São João de Deus Asylum in Salvador, Bahia, starting when the institute opened its doors in 1874. In a hermeneutic effort to view the symbolism of the past in light of the present, the article uses twenty of these questionnaires as a way of analyzing medical knowledge of madness and its treatment and further of identifying the methods devised for guiding daily life in an asylum.
history of madness; history of asylums; alienism; nineteenth century; Bahia; Brazil
ANÁLISE
"O 'Asylo', uma necessidade indeclinável de organização social": indagações em torno do questionário de internamento do Asilo São João de Deus
"The 'asylum', an undeniable need in social organization": questions about the commitment questionnaire at the São João de Deus Asylum
Venetia Durando Braga Rios
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Universidade Católica do Salvador. Av. Garibaldi, 707/1302 Garibaldi. 40170 -130 Salvador - BA Brasil. bragarios@ig.com.br
RESUMO
Este artigo analisa, em especial, um dos instrumentos de anamnese produzido e aplicado pelos médicos do Asilo de São João de Deus, em Salvador (Bahia), a partir de 1874, ano da sua instalação. A pesquisa localizou, no Arquivo do Estado da Bahia e no da Santa Casa da Misericórdia da cidade do Salvador, acervo documental importante para a compreensão não só da história asilar, mas da história da psiquiatria na Bahia. Entre esses documentos foram encontrados cerca de vinte questionários preenchidos pelos médicos baianos daqueles dias. O nosso interesse nesses questionários, desenvolvidos pelos alienistas baianos, é analisar o conhecimento médico sobre a loucura e o seu tratamento, como também identificar as maneiras engendradas na condução do cotidiano asilar, numa tentativa hermenêutica de privilegiar o simbólico do passado tendo em vista o presente.
Palavras-chave: história da loucura; história dos asilos; alienismo; século XIX; Bahia (Brasil).
ABSTRACT
The article relies on a collection of documents located at the Bahia State Archives and the city of Salvador's Santa Casa da Misericórdia Archives to gain an understanding of the history of asylums and of psychiatry in Bahia. The analysis is centered on one of the tools applied in taking anamneses, designed and employed by Bahian alienists at the São João de Deus Asylum in Salvador, Bahia, starting when the institute opened its doors in 1874. In a hermeneutic effort to view the symbolism of the past in light of the present, the article uses twenty of these questionnaires as a way of analyzing medical knowledge of madness and its treatment and further of identifying the methods devised for guiding daily life in an asylum.
Keywords: history of madness; history of asylums; alienism; nineteenth century; Bahia; Brazil.
A velha cidade da Bahia necessitava 'modernizar-se'. Era preciso trilhar os caminhos que outras já haviam feito. Salvador precisava perder o seu ar de cidade colonial. Seu modo oitocentista de ser e de viver os problemas não combinava com a aceleração que os novos tempos anunciavam para o mundo. Era preciso 'civilizar-se' - este era o discurso corriqueiro apregoado nos jornais, nas falas dos homens ilustres da terra; certeza dos vanguardistas de plantão, convicção de higienistas, razão da nostalgia de muitos pelo retorno a uma posição influente da Bahia na vida política e cultural do país.
A situação dos alienados não era um problema novo. Novo mesmo era o discurso higienista e seu peso. A cidade suja justificava a cidade doente, e esta, para resolver seus problemas, teria que se submeter ao conhecimento médico, à medicalização de seus espaços, lugares, à medicalização dos homens e das mulheres, da casa, do trabalho, do lazer e, sobretudo, submeter-se ao médico, e só a ele, na doença. Esse foi o sonho higienista, um sonho tão sonhado, tão pregado, cristalizado nos textos de foucaultianismo raso, vulgari-zando termos e expressões utilizadas por Foucault, como 'discurso' e 'saber médico', que "usados como sinônimos de conhecimento em sua acepção puramente lexicográfica perderam as suas originais implicações epistemológicas" (Coelho, 1999, p.67).
Foi nesse quadro que o higienista Góes Sequeira lançou-se à cruzada pela construção de um asilo de alienados, reivindicando para a cidade do Salvador sua inclusão no mundo 'civilizado', higiênico, medicalizado. Não era uma luta particular do higienista, tampouco um movimento particular vivenciado na Bahia. Muito ao contrário; desde muito tempo havia um movimento em prol da laicização da saúde, do tratamento da loucura e da direção dos hospitais por médicos. Um movimento em oposição ao poder das Misericórdias na administração da doença e de sua cura era abertamente travado na corte, em São Paulo e também na Bahia. Os médicos reivindicavam, justificando-se em sua formação e seu preparo, a direção e o controle dos hospitais e o tratamento dos doentes. Verdadeiro modismo, o higienismo buscou o Estado como seu aliado nessa luta contra o predomínio das Santas Casas, na tentativa de abocanhar cargos na administração pública.
Foram muitas as tentativas para encontrar o melhor lugar para instalar do asilo - a Quinta dos Lázaros, o Paço de Itapagipe, uma chácara no Ferraro, no Campo da Pólvora -, até que, em 1869, a lei 1080 autorizou a compra do Solar da Boa Vista. Naquele momento o solar respondia a todas as exigências higiênicas propagadas pelos médicos: salubridade, clima, local aprazível e distante da aglomeração do Centro e a visão de um "pitoresco lago que lhe ficava aos pés" (Sequeira, 15, 31 jul. 1874). Logo esse quadro iria mudar. A peleja para conduzir a cidade desordenada, doente, na direção de cidade 'civilizada', medicalizada evidenciou, para seus idealizadores, os inimigos de sempre, vilões tão temidos que se reproduziam de forma descontrolada. Eram eles a mendicância, o vício, a prostituição e a loucura, e sobre eles a teoria da degenerescência iria atuar como 'anjo exterminador': "hoje que o alienado deixou de ser o paria da sociedade para ser o próximo doente, hoje que a loucura não é um castigo de Deus, e que se derrubarão as masmorras para se elevarem asylos cheios de torrentes de ar, de luz e de flores, hoje dizemos a Bahia, terra enexcedivel na caridade ergue um padrão de seus sentimentos religiosos, elevando os alienados a dignidade de enfermos (GMB, 1874).
De pária a doente, de doente a enfermo. O alienado conquistou um lugar no mundo do conhecimento médico. Passava a ser responsabilidade do médico encontrar a 'verdade da loucura' de cada louco, identificar e diagnosticar seu delírio, a sua desrazão. Para realizar tarefa tão meritória, trabalho tão particular, será necessário antes conquistar a credibilidade de seu conhecimento, o reconhecimento de seus colegas médicos e, principalmente, conquistar o espaço da cura, o asilo. Afinal, a máxima de Esquirol é o farol: "Uma casa de alienados é um instrumento de cura; nas mãos de hábil médico ela é um agente terapêutico mais poderoso contra as doenças mentais" (Esquirol, 188?, p.398). Essa luta tem antecedentes.
O discurso pronunciado na abertura da aula de clínica médica, em 16 de março de 1867, pelo doutor A.J. de Faria, professor da cadeira, insiste naquilo que, desde a década de 1850, tornara-se para alguns lentes uma luta constante e sem tréguas - o ensino prático, o ensino clínico: "A observação é a primeira condição de todo progresso positivo" (Faria, 25 maio 1867). Com essa máxima, o médico introduz o seu discurso apelando para os manuais utilizados na época na condução das aulas de clínica médica. Um desses manuais, as lições do doutor Graves, era considerado uma bíblia da medicina prática. A luta para superar o modelo teórico, a tradição da oratória, quase duas décadas após a reforma de 1854, evidenciavam a ineficácia de sua proposta. Entretanto não se pode dizer que nada acontecia. A possibilidade de serem utilizadas as enfermarias das Santas Casas da Misericórdia como hospital-escola, em razão da inexistência de hospitais do estado, foi um avanço inques-tionável para a clínica médica.
Em 1867 o doutor Faria vivia a situação caótica do ensino superior, que somente teria seu modelo alterado com a reforma Leôncio Carvalho, em 1879. A liberdade de ensino protagonizada pela reforma foi, no dizer do doutor Pacífico Pereira, "a Lei Áurea do ensino médico no Brasil". Entretanto, desde 1866 a Gazeta Medica da Bahia inaugurara um espaço de diálogo, de possibilidade de troca de informações, com o fim de promover discussões acerca da prática, da experiência, da habilidade do cirurgião, da capacidade do médico em diagnosticar a doença. A Gazeta Medica, que surge de encontros e trocas de informações entre os médicos baianos liderados por Paterson, Silva Lima, Otto Wucherer, Pires Caldas, Pacífico Pereira, Maia Bittencourt, Silva Araújo e Américo Marques, apontava o impasse da medicina, que naquele momento ainda não possuía produção própria, nem autonomia, nem prestigio científico. Criada com o propósito de ser porta-voz das exigências da categoria médica em busca de respeitabilidade, passa a ser, ao mesmo tempo, uma fonte de divulgação de idéias e do trabalho dos médicos na Faculdade de Medicina e nas atividades cotidianas nas enfermarias do Hospital da Caridade. Circulou pela primeira vez em julho de 1866.
Para Flávio Edler (1992, p.26), "o jornalismo médico foi a forma mais eficaz de cimentar um diagnóstico preciso à doença que atrofiava as instituições médicas do Império ... foi um instrumento típico pelo qual uma vanguarda formada sob a orientação do novo ideal pôde militar sem os constrangimentos impostos pelos entraves burocráticos da administração imperial.
Um ano antes, em julho de 1866, a Gazeta Medica, na sessão Hygiene Pública, trazia o texto do higienista baiano de maior renome na sua geração, José de Góes Sequeira, que reivindicava para a Bahia, a exemplo do que já se dava em outras partes do mundo e mesmo no Rio de Janeiro, um hospital para o tratamento de alienados. O texto do doutor Sequeira (25 jul. 1866) retomava a trajetória de Pinel e Esquirol e lembrava que, antes deles, "a sorte dos míseros alienados attrahiu a atenção e cuidados de alguns homens notáveis e philantropos; mas infelizmente suas louváveis intenções e esforços foram mallogrados, e nenhuns resultados práticos apresentaram, continuando esses desgraçados a jazer entregues ao mais horrivel abandono".
Toda a construção do artigo está baseada no discurso moral, isto é, o higienista baiano está convencido de que a loucura é apenas uma desordem do comportamento e que o seu tratamento implica a reformulação dos padrões morais pervertidos, das paixões desvirtuadas. Dentro dessa crença pineliana, o asilo é o espaço privilegiado da cura, o local onde os alienados terão a sua loucura classificada para "fornecer-lhes identidade própria, em função de cada paixão ou distúrbio moral para, posteriormente, produzir os tratamentos morais específicos para cada um deles", como diz Paulo Amarante (1982, p.76). Para Robert Castel (1978, p.83), o ato fundador de Pinel "não foi retirar as correntes dos alienados, mas sim o ordenamento do espaço hospitalar ... dessa maneira ela se tornou doença. A partir do momento em que é isolado em seu próprio espaço, o insano aparece, sem dúvida, seqüestrado como os outros, porém, por outras razões. Por causa da doença".
Góes Sequeira reproduzia o pensamento de toda a classe médica, não só da Bahia mas da corte, em especial da Escola de Medicina do Rio de Janeiro. O Asilo de Pedro II teve nas figuras de Sigaud e De-Simoni críticos incansáveis da forma com que se tratavam os 'loucos' no Rio de Janeiro. Esses médicos logo conquistaram o apoio do doutor Cruz Jobim, que encabeçou uma luta contra o "desumano modo como eram tratados os 'insanos'".
Para alguns, o movimento em prol dos asilos fazia parte da luta que se travava entre os médicos e a administração pública, pela conquista de espaço de poder no projeto de 'civilização', reordenação do espaço urbano e seus sujeitos, estabelecendo, de forma definitiva, sua autoridade sobre o insano e sua loucura. Não foi sem motivo que o doutor Sigaud escreveu, em 1835, o artigo intitulado "Reflexões sobre o transito livre dos doidos pelas ruas do Rio de Janeiro". Essa luta não seria travada apenas entre médicos e poder público, mas, numa escala muito maior, entre os médicos e as Santas Casas, isto é, entre os médicos e o poder secular da Igreja.
Desconstruindo a capacidade dos religiosos e de sua religião no trato com os alienados, os médicos, através da 'religião' do higienismo, instauravam um novo poder, cujo soberano absoluto no reino da loucura foi o alienista. Em 1873 o higienista baiano de maior respeitabilidade, doutor José de Góes Sequeira (15 out. 1873), em palestra no Lyceu de Artes e Offícios, definiu para a platéia a ciência higiênica.
Com efeito senhores, se quisermos saber em que consiste a Higyene em geral, olhemos para as variadas influencias, que ela estuda ... o exame das aguas, dos ares, dos lugares, dos alimentos que sustentão os homens, das roupas, das habitações, que o abrigão: - O Conhecimento e a apreciação dos hábitos e costumes dos povos, das leis, que os regem e das crenças que professão, e por fim o pensamento philosófico que domina, generalisa e systematisa todos esses elementos, fazendo-os convergentes para o alvo supremo de conservar e de melhorar o homem ...
Da substância dessa definição podemos sacar um conteúdo oculto, que logo se revelaria através da prática médica, de sua atuação junto aos poderes na busca de um espaço que não se satisfazia com o reconhecimento de seu saber, de sua ciência. Ambicionavam o lugar de demiurgo e para isso era necessário esquadrinhar a vida dos homens e das mulheres, tornar-se a palavra definitiva e última sobre tudo e sobre todos. Outros trechos da fala do higienista baiano apontam de forma mais direta para essa 'religião' que tem a solução e a resposta para todos os males da humanidade. A longa citação se justifica pela importância do seu conteúdo:
Outros paizes cultos, como a Bélgica, a França, e a Alemanha, etc., etc., se não tem conservado immoveis diante desta crusada de civilização, e reformas hygienicas as mais profícuas teem effectuado. Desde as mais remotas eras, que são reconhecidas, e proclamadas estas verdades, à saber: - que tornar uma população mais robusta, e vigorosa, é exercer uma elevada , e salutar influencia sobre sua moralidade: - que a alma assim como abate-se, e humilha-se, quando mergulhada no pélago da desgraça, e da adversidade, fortifica-se... - que desenvolver, e augmentar a aptidão para o trabalho é concorrer para desviar e aniquillar causas poderosas de molestias de misérias de vícios, e de embrutecimento.
Reportando-me às palavras de Habermas, "não há conhecimento sem interesse", ou ainda de Lenoble, "ao lado de todo laboratório existe um oratório", saliento que, no caso específico dos médicos, o oratório sempre foi um lugar que usaram sem reservas ou incômodo. Mas, qual seria o interesse dos médicos acerca da loucura? O que estava por trás do discurso asilar, seqüestrador, excludente?
No dia 24 de julho de 1874 a luta em prol do asilo pareceu ter sido ganha pelos ilustrados médicos baianos, pelos cientistas da 'vanguarda civilizatória'. O 'tratamento moral' de Pinel e Esquirol alimentava os discursos proferidos pelo conselheiro provedor, pelo escrivão da mesa da Santa Casa, pelo doutor Demétrio Ciríaco Tourinho, primeiro diretor do Asilo, pelo higienista José de Góes Sequeira e pelo comendador Cruz Machado. Também a redação do Diário de Notícias fez seu discurso dentro da mesma regência. Contudo é preciso observar a distorção estabelecida no entendimento do que é 'tratamento moral' para os alienistas europeus, e a tradução desse conceito feita pelos médicos brasileiros e baianos. Alguns termos e expressões colhidos nos textos ilustram o tom dos 'discursos morais' a que me refiro: 'doçura', 'desditosos', 'torrentes de luz e de flores', 'caridade', 'sentimentos religiosos', 'enfermos', 'consolo das almas', 'salvação', 'acolhidos com abraços', 'progresso', 'futuro', 'asilo da liberdade universal', 'abnegação', 'amor', 'vivenda espaçosa, franca e risonha', 'asilo misericordioso', 'templo de Deus vivo', 'templo de Cristo', 'alienado artífice', 'trabalhador', 'missão sublime e cristã', 'suaviza as dores da alma', 'terrível afecção', 'pobres doentes', 'movimento progressivo e civilizador', 'necessidade indeclinável de organização social' etc. O excesso de expressões caritativas, de fé e de religiosidade parece contrastar com o que definem os estudos de Pinel e Esquirol sobre o tratamento que o primeiro esboçou e o segundo deu continuidade. A evidente confusão acerca do tratamento moral é resultado do longo tempo em que a loucura esteve afastada do mundo da doença, do mundo da cura, do mundo dos médicos. Mergulhada no contexto religioso da caridade, a loucura só seria atingida pelo braço da ciência quando obtivesse o status de doença, como um campo de intervenção médica.
Segundo Paulo Amarante (1982, p.65), Pinel e Esquirol definiram a loucura como "uma doença moral, um distúrbio das paixões artificiais, distantes da realidade objetiva, seus impulsos subjetivos dominam sua determinação e ele se torna assediado pela fantasia, pelas ilusões, pelas idéias distorcidas; ora agressivos e perigosos, ora indiferentes e irresponsáveis, estão invariavelmente alheios aos que os cercam e aos princípios e regras da ordem e da moral".
Caracterizado como distúrbios, impulsos incontrolados, fantasias, ilusões e idéias distorcidas, o tratamento moral incidiria nesses pontos, reforçando outros valores, incutindo outros interesses, de certa forma adestrando para o convívio em sociedade e, principalmente, reeducando para o trabalho. Era necessário devolver aos 'loucos' a vontade e o desejo, dar-lhes energia e inspiração, incutir neles novos hábitos e responsabilidades, mas para tanto era de fundamental importância o trabalho. Ainda segundo Amarante, a contradição do discurso moral é que o trabalho exercido nos asilos não promoveria a liberdade, já que o princípio fundamental do 'tratamento moral' era a convicção de que o espaço asilar e, conseqüentemente, a exclusão do louco do convívio social e familiar eram, em si mesmos, o objeto da cura. Contradições postas, é preciso voltar para o ponto de vista dos médicos baianos sobre o asilo e o tratamento dos alienados, e para isso recorro aos discursos de inauguração e aos desdobramentos da sua aplicação no cotidiano.
Nossos oradores carregaram nas expressões caridosas e na crença de que era essa a proposta pineliana. O relatório apresentado em 30 de julho de 1875 pelo médico diretor Demetrio Cyriaco Tourinho minudencia o cotidiano do Asilo no seu primeiro ano de funcionamento. Sobre o tratamento moral, o item traz informações muito pertinentes. Tourinho diz que, a esse respeito, a mesa administrativa não poupou despesas
para que o asylo apresentasse aos seus doentes todas as impressões agradáveis, todas as distrações, todo o conforto que os tira das condições delirantes, das idéias fixas que lhes são habituais e das allucinações. Tendo observado que ao entrar o alienado para este Asylo fica muitas vezes apoderado de admiração, e surpresa ao ver-se no meio dos jardins ... e é, provavelmente dessa impressão que o vejo ficar tranquillo, e ir-se habituando tão facilmente ao tractamento ... continúo a ministrar-lhe todas as distrações compatíveis com a classe a que pertence. Hábitos de ordem, regularidade, disciplina, sobriedade, junto as condições favoráveis do regimen alimentar, da hygiene e da habitação salubre que o alyenado encontra no Asylo, constituem o tractamento moral (Relatório, 1875, p.21).
Mesmo que se reconheça a tentativa de Demétrio Cyriaco Tourinho em introduzir o sistema inglês de no restrain (Pessotti, 1994), estimulando exercícios físicos, instalando uma sala de costura e oferecendo aulas de música aos alienados, em pouco tempo o São João de Deus transbordaria de problemas. O discurso de Pinel ficou reduzido a nada, e o discurso caritativo mergulhou numa avalanche de denúncias, justas e injustas. O Asilo foi-se transformando em espaço de lutas políticas, lutas partidárias, em celeiro de acusações de prevaricação, incúria, má administração, abusos, precariedade do atendimento e descrença nos médicos.
O discurso do higienista Góes Sequeira confirma a crença de ser a loucura, naqueles dias, o resultado da aceleração da vida, da mudança dos hábitos, dos excessos praticados no trabalho, nos esportes, na bebida e nas paixões, sentimento muito ligado à idéia de vida política. Essa não era uma crença recente. A tese para obtenção do título de doutor, apresentada em 1857 pelo acadêmico Cid Emiliano de Olinda Cardozo inspira-se na máxima de Esquirol (188?), "Os vícios da sociedade augmentão o numero de pobres e dos criminosos, os progressos da civilização multiplicão os loucos", ratificada por Chomel, que considerava a participação nos "negocios públicos, a atividade intelectual constante, os estudos das ciências e das artes, as grandes especulações mercantis e industriais" causas incontestes da freqüência das moléstias nervosas. O doutor Chomel estava convencido de que os "povos que vivem na aphatia, na occiosidade, na ignorância e na escravidão" não apresentam a mesma incidência das moléstias nervosas. O texto de Cardozo, embora não conste entre os mais estudados ou citados, é de inegável importância por trazer o pensamento mais vivo acerca das doenças nervosas, da alienação e do seu diagnóstico num período em que as discussões eram, ainda, acanhadas. Tem como certa a relação entre progresso, civilização, atividade intelectual, "lutas políticas ardentes, desesperadas e férteis de clamorozas conseqüências, atividades comerciais, sujeitas aos caprixos da fortuna" (Cardozo, 1857, p.10), a alienação e suas manifestações doentias.
Assim, foi em meio às contradições vividas entre a medicina e sua prática, o médico e sua formação, o conhecimento e sua aplicabilidade que o tratamento moral, aquele pensado por Esquirol, tornou-se alvo da má interpretação e de equívocos e, ao fim, transformou-se em outra coisa; não foi nesse momento, ainda, a psiquiatria, mas já se tratava de seu começo na Bahia.
Ainda que se tenha certo perfil das condições favoráveis ao aparecimento e desenvolvimento da loucura, é preciso recuperar a definição do louco. A quem cabia o diagnóstico de louco, alienado, morador privilegiado da 'bela vivenda'? Jurandir Freire Costa (1989, p.42) lembra que ele já foi "aquele outro da razão, o outro da vontade, alguém que perdeu parte da humanidade; alienou-se de uma parte de si mesmo, alguém alheio à própria vontade...". Para Costa, foi a era do alienismo, a transição entre o delírio, que pode ser curado, e a doença. É importante refletir sobre esse aspecto. Isto porque, para a medicina, a psiquiatria e o psiquiatra, a luta era para afirmar o seu conhecimento sobre a loucura como um conhecimento científico, valendo dizer que seu profissional merecia pertencer à categoria dos cientistas; que a loucura e a alienação fazem parte das categorias de enfermidades submetidas ao tratamento médico. Ainda assim, foi para os delirantes que os asilos, por definição, trabalharam. É importante dizer que duas categorias já estavam postas, para os médicos, sobre a loucura: a dos curáveis e a dos incuráveis (Castel, 1978). E acrescentamos: os curáveis em lugar dos intratáveis. Segundo Francisco de Souza Pondé (1906), em tese defendida em 1902 na Faculdade de Medicina da Bahia, uma vez recolhidos em hospitais ordinários, os alienados eram classificados em duas categorias: a "dos curáveis e a dos incuráveis. Em Paris, foi o Hotel-Dieu o escolhido para este fim: a enfermaria São Luiz para os homens e o Santo Martinho para as mulheres; d'ahi os julgados incuráveis eram transferidos, conforme o sexo para Salpétrière ou Bicêtre".
O regulamento provisório do Asilo de São João de Deus deixa claro que para ali devem ser encaminhados os alienados curáveis: "Art. 28. Os médicos do asylo, em execução do art. 24, terão sempre em mente que os alienados classificados de idiotas, paralyticos ou outros, incuráveis, os quaes podem viver inoffensivos ao asylo, destinado somente aos curáveis" (Livro de Registro..., 1869-1914).
Sobre a classificação de idiotia e paralisia, cabe aqui uma análise mais acurada acerca dos dois diagnósticos. Não é uma tarefa fácil, mesmo porque o avanço de algum teórico faz acrescentar um novo elemento no verbete. Conforme o conceito médico do período, a paralisia é uma situação provocada pela demência, e segundo a definição de D'Amount, "é uma abolição da faculdade de raciocinar; as fibras do cérebro não são suscetíveis de impressão e os espíritos animais não mais são capazes de movê-las" (citado em Foucault, 2003). Isto é, o espírito é tomado por um sobressalto, e as fibras tensionadas do sistema nervoso não são capazes de produzir resposta, não reelaboram as informações para a solução da questão ou do problema. Assim sendo, não haveria como ter sucesso nenhum tipo de tratamento. Incurável, o doente de paralisia não necessitava permanecer no asilo, lugar para os curáveis. Nesse caso, o que se tem é um diagnóstico dentro do quadro das doenças do sistema nervoso. São os nervos que, submetidos à situação extrema, não conseguem superar a tensão.
O artigo será mencionado logo no segundo ano de funcionamento, em 9 de julho de 1875, em ofício ao administrador do Asilo. Nele, o secretário da Santa Casa da Misericórdia informa ter notícia da existência de "pacientes cuja alienação apresenta caracteres de incurável, e que, portanto, segundo o dispositivo no Regulamento Geral provisório não podem permanecer no asilo" (Livro de Registro..., 1875). Outro ofício do administrador Antonio Circundes de Carvalho, datado de 25 de fevereiro de 1881, adverte para o mesmo artigo 24 do regulamento ao referir-se ao paciente Antonio Cezar Bittencourt, que "por soffrer de imbecilidade não deve permanecer em tractamento, visto ser isto contrario ás disposições do artº 28 do Regulamento geral e provisório... assignado Almeida Couto. Eu José Pereira de Mello Moraes o copiei conforme original". (Provedoria, 1881).
A 'bela vivenda', como lugar privilegiado da cura, não podia receber crônicos, paralíticos, imbecis, isto é, a ciência não se responsabiliza pelos doentes que não possam dar uma resposta aos seus cuidados, tampouco os médicos se sentem responsáveis em promover qualquer amparo a esses doentes e suas famílias. O regulamento do São João de Deus segue o modelo do regulamento do Pedro II no Rio de Janeiro, e esse texto é um resumo da compreensão que tinham as Santas Casas sobre o significado dos asilos, da loucura, dos alienados, dos médicos e de como administrar não somente a instituição, mas sobretudo os homens e mulheres submetidos a seu tratamento.
Nesse sentido, o asilo será o espaço privilegiado do monomaníaco, aquele que, segundo Machado (1978), "é o doente com idéia fixa, de um sentimento ou de uma paixão; a atividade da inteligência é normal em todos os outros que não seja objeto de delirio". Sendo o delírio apenas uma desordem da inteligência e não seu aniquilamento, o doente pode ser tratado, pode ser recuperada a sua condição de inteligência plena.
Quem pergunta também responde
Na documentação datada do início das atividades do Asilo de São João de Deus encontramos um questionário que, tudo leva a crer, foi aplicado aos familiares e aos responsáveis pelos pacientes por um curto período e que é, na sua formulação, a síntese do conhecimento médico sobre a loucura e seu tratamento.
O que se devia saber para autorizar a admissão de um 'alienado' no São João de Deus? O documento deve ser tratado com muita cautela, para que não deixemos escapar o seu conteúdo médico e sua historicidade. Tem no cabeçalho o texto: "Quesitos a que tem de satisfazer os Facultativos ou constantes nos attestados que passam aos alienados remettidos para o Asylo de São João de Deus, a fim de que sejam admittidos na conformidade do regulamento respectivo". Todos os quesitos referentes ao estado de alienação dizem respeito ao delírio, sua manifestação, duração, se é fixo sobre um objeto ou vários, se é furioso e se ocorre alucinação. Entretanto, podendo aparentar certa superficialidade, o questionário e, certamente, as respostas colhidas formam um todo explicativo daquele momento da medicina, das instituições de saúde e da nascente psiquiatria brasileira.
Esse questionário, que parece ter sido aplicado na chegada do doente ao asilo, teve várias versões, em razão de muitos alienados serem encaminhados pelos chefes de polícia e seus distritos e mesmo pela provedoria, como comprova a documentação analisada. Sobre esse aspecto, devemos atentar para o conflito entre o desejo dos médicos em serem os senhores absolutos da loucura e dos loucos, e o fato de serem, mesmo contra vontade, obrigados a partilhar a decisão sobre o internamento com o provedor, os chefes de polícia, o juiz dos órfãos e os familiares. Aliás, a luta pelo poder e pela autoridade na relação entre médico e alienado não se verificava apenas no internamento do doente. Uma vez internado, o louco era a 'presa' de todos, em primeiro lugar das irmãs da caridade e também dos enfermeiros. Os médicos tiveram que enfrentar a tradição das irmãs de São Vicente de Paulo e seu autoritarismo, para em seguida superar a truculência dos enfermeiros. Essa não foi uma prática exclusiva dos baianos. Magali Engel (1995, v.2, p.292) relata situação idêntica no procedimento de internação no Pedro II (Rio de Janeiro) e os diversos modos de o doente chegar lá:
De acordo com a perspectiva de medicalização da loucura, a entrada, a permanência e a saída dos loucos da instituição asilar deveria ser um assunto estritamente médico, mas no caso do Hospício de Pedro II tratava-se de uma decisão compartilhada por várias outras instâncias de saber/poder - o provedor da Santa Casa, o juiz dos órfãos, o chefe de policia ou delegado de polícia, os familiares, tutores, curadores ou senhores de alienados etc. -, cabendo ao médico apenas a tarefa de contribuir com uma avaliação científica acerca do assunto.
Assim, os ofícios originários dos diversos setores da administração tentam reproduzir as informações necessárias para o internamento. O ofício referente a Josefa Barbuda é um bom exemplo, mas outros tantos podem ser citados com maior ou menor riqueza de detalhes. É o caso deste:
Secretaria de Polícia da Bahia 13 de Abril de 1881. Illmº Sr
De conformidade com os artos 23 e 24 §1º do regulamento geral provisório d'este estabelecimento, passo às mãos de VSª as notas de filiação e signais característicos dos alienados Evaristo Ladisláo e Silva e Manuel Francisco de Christo, mandados admitir ao Asylo de São João de Deus; ficando assim satisfeita a ultima parte do meo offi/cio de nº 1271 de 31 do mez passado (Provedoria..., 1881).
Embora não tenha sido encontrada a parte que se refere aos 'sinais característicos', essa correspondência atesta a preocupação em responder aos pré-requisitos necessários à internação.
Cada item do questionário pode ser entendido dentro de modelos e escolas, como a escola de François Victor Broussais e seu tratamento antifilogéstico, de sangrias abundantes e dietas, ou o ecletismo em que são misturadas as escolas de Broussais, Laennec e Louis. Já Claude Bernard, com sua 'medicina experimental', leva adiante as idéias vitalistas, prenunciadas pelo doutor Joseph Bartez , em 1772, na França. Para ele, "o princípio vital não é idêntico á alma, mas também é um principio natural e unitário, que manifesta sua atividade entre outras formas, pela sensibilidade, contração, tonus etc., e que se encontra unido á matéria orgânica" (citado em Diepgen, Real, 1932).
A Escola de Medicina de Montpellier, um dos centros de aplicação do vitalismo, afirmava que uma das maiores preocupações desse princípio era negar a importância da física e da química na explicação dos 'processos vitais', e ressaltava a primazia da biologia na explicação daqueles processos. Ou seja, não se admitia que a compreensão sobre os fenômenos da vida no corpo humano fosse reduzida a explicações físicas e químicas, pois o princípio vital seria responsável por isso. Ainda assim, o que predomina é a medicina anatomoclínica de Paris. No dia-a-dia do Asilo de São João de Deus os alienados experimentaram todos os modelos de tratamento e de possibilidades de cura. Ou, melhor dizendo, praticou-se toda forma de submissão para manter o doente sob o controle dos enfermeiros, para que o bom andamento da instituição não fosse afetado - e para isso o uso da casa-forte era uma solução sempre disponível.
No primeiro quesito, quando indaga sobre o temperamento e constituição do doente, o médico está aplicando o princípio vitalista, buscando o temperamento, isto é, se é linfático, bilioso, misto ou nervoso. Identificar o temperamento do doente era encontrar o seu princípio. Galeno fundamentou sua medicina humorística estabelecendo, para os homens e para as mulheres, a relação entre os quatro elementos - fogo, água, terra e ar - e a possível relação entre os estados de quente, úmido, frio e seco. Nessa composição, os homens e as mulheres, a depender dessa relação entre elementos da natureza e comportamento dos líquidos corporais, seriam classificados como tendo temperamentos dos tipos bilioso amarelo, bilioso negro, sanguíneo ou fleumático. A doença, por sua vez, seria o desequilíbrio na proporção desses humores.
Nas respostas para essa questão, estão registrados cinco indivíduos sanguíneos, nove linfáticos, quatro nervosos, um epilético débil, um de temperamento misto e um bilioso fraco. Em alguns casos as respostas são mais detalhadas, acrescentando-se alguns adjetivos ao temperamento, como "sanguíneo nervoso", "lymphatico de constituição fraca", "nervoso regular", "mixto de constituição fraca" e "sanguíneo nervoso de constituição fraca" - composições que certamente deveriam dizer muito para os médicos, naqueles anos de alienismo rumo à psiquiatria. Essas expressões ultrapassaram os muros do Asilo e da Faculdade de Medicina, até serem incorporadas ao vocabulário leigo, popular. Até os anos 70 era comum as pessoas fazerem referência à aparência física de alguém, a partir dessas composições: sanguíneo, bilioso...
O segundo quesito do questionário indagava sobre os hábitos. Invariavelmente as respostas vão na direção das relações de trabalho, da vida doméstica (no caso das mulheres) e dos vícios - se fazem uso de bebidas alcoólicas, se praticam alguma atividade física, se são sedentários etc. Nesse quesito pretendíamos encontrar aquilo que o médico Cid Emiliano de Olinda Cardozo (1857) apontou como "influencias physico-nervosas e physico-psyco-nervosas". Na primeira estariam os "alimentos modificados no crescer da 'civilização' nas diversas formas, porque são preparados e adubados, afim de se tornarem mais agradáveis ... que excitão, e até irritão o systema nervoso, e occasionando assim quase todas as nevralgias, e com especialidade gastralgias e enteralgias" (p.7). O médico enumera outros fatores que podem interferir na saúde 'físico-nervosa' dos pacientes:
as roupas e leitos (colchões) por serem mais quentes os feitos de penas, mantêm o corpo em um calor excessivo, que enlanguece as principais funções, e entre outras moléstias dá lugar a manifestações de nevralgias; os banhos, utilizados não como lei de higiene, inspirados pela própria natureza, porém como uma satisfação da vaidade e da luxúria - tem se abusado muito dos banhos e os tornado por isso perniciosos; os perfumes cujos cheiros atacam os nervos, afugentam o sonno, exaltam certos sentidos (p.7)
Sobre o perigo do uso imoderado dos perfumes, o médico narra a morte de uma jovem que, após ser submetida a uma "impressão abrupta do cheiro de uma perfumaria, que ali existia soffreo um choque nervoso tal, que occasionou-lhe immediatamente suspensão das regras, que bem cedo atirou-a no tumulo ainda no sorrir da vida" (Cardozo, 1857, p.7). Também o tabaco é mencionado, por produzir palpitação nervosa do coração e torpor das faculdades mentais, além de tremor convulsivo. As profissões mecânicas e industriais, pelo excesso de trabalho, podem dar lugar a uma "enervação considerável, ou a uma super exicitação nervosa ... donde podem provir varias affecções: como muitas paralysias occasionadas por profissões, cujo trabalho se executam exclusivamente dentro d'agoa" (p.7).
No caso das influências 'físico-psico-nervosas', Cardoso (1857) inclui a música, por causar excitação e desviar as paixões. E indaga: "quem é que ouvindo tocar por uma orchestra marcial o expressivo hymno nacional, não sente ferver-lhe a cabeça, o coração, e a economia inteira ao jodo do enthusiasmo, que lhe abrase o coração?" (p.7). Também o teatro, os bailes, o jogo, o onanismo, as paixões em geral e o trabalho intelectual são referidos. Quanto ao primeiro deles, o doutor Cid Emiliano alerta para a "fragilidade feminina" diante das "scennas tocantes e trágicas paixões de diversas naturezas, sempre excitadas pelas impressões causadas pelas acções, que se representam no scennario ... abalão profundamente o systema nervoso, mormente nas senhoras que tendo nascido mais para o sentir que para o pensar, tem o systema nervoso muito mais excitável, ou impessoal" (p.4).
O médico tem opinião muito particular sobre a influência perniciosa dos bailes e o perigo que correm as moças no "rodopio vertiginoso de uma valsa immoral e assassina com o cérebro a voltejar, com todo o organismo convulso" (Cardozo, 1857, p.4). Sua preocupação alcança os diálogos entabulados durante as danças e contradanças. Para ele as palavras dos rapazes, "impudicos e desregrados, palavras cheias de fogo e de veneno, que lhes vão abrasar o cérebro e o coração, corrompem-lhe a doce e tranqüila existência, que levavam" (p.4). Seu diagnóstico para a jovem que seja submetida a tal experiência é muito ruim: "Pallida, desfigurada, inquieta, a soffrer vários e pertinases incomodos, que podem caracterizar nevroses de diversos generos; uma vez - entorcendo-se no leito entregue as convulsões e aos arrancos desesperados da hysteria se uma afecção mais grave não há fizer mais cedo victima" (p.5).
O texto de Cid Emiliano expressa toda a crença e o desconhecimento sobre o corpo feminino. Para ele, a certeza da fragilidade feminina, a convicção de ter a mulher nascido "mais para o sentir do que para o pensar" (Cardozo, 1857, p.5) justifica a construção dos personagens da literatura contemporânea e a caracterização das mulheres sempre às voltas com 'ataques', desmaios, choros convulsos, torpor, e horas e horas sobre o leito mergulhadas em mezinhas e chávenas. Na velha cidade da Bahia, a passagem da Procissão do Senhor Morto, na Sexta-Feira Santa, era uma celebração proibida para muitas mulheres. O espetáculo de desmaios e gritos femininos incomodara o arcebispo, e muitos homens proibiram esposas e filhas de acompanharem o cortejo, em razão do "triste espetáculo das mulheres". Essas são cenas presentes na literatura de Machado de Assis, Xavier Marques, José de Alencar, nos folhetins do século XIX, nas muitas histórias encenadas nos palcos nacionais e fora do país. São crenças e certezas médicas que diagnosticaram a loucura de muitas mulheres que passaram pela 'bela vivenda', como Leonídia Fraga, Joana Autran de Sá e inúmeras anônimas.
O texto do doutor Cid Emiliano não pode ser recortado de forma inadvertida; por essa razão, optamos por trazer suas idéias de forma mais completa. Escrita em 1857, a tese é, de certa forma, um texto pioneiro e emblemático, não só por trazer o que se tinha acumulado como conhecimento sobre os problemas 'nervosos', mas por desvelar a relação entre o mundo da moral e a manifestação da loucura.
Ainda sobre as discussões que sugerem esse quesito do questionário, M.J. Baillarger (1844, p.4) lembra que "a loucura é frequentemente produzida pelo desenvolvimento das paixões, por vivas emoções morais, por desgostos etc. Também os conflitos de consciência e os remorsos a provocam frequentemente, sobretudo nas mulheres. Depois vêm os excessos de todo tipo, a devassidão, a miséria e as privações que ela provoca". Baillarger escreveu esse texto em 1844. Acreditamos que seu trabalho era um dos manuais de ensino utilizados na Faculdade de Medicina da Bahia.
O terceiro item do questionário indaga sobre "os sentimentos predominantes". A respeito dele, as respostas, quando ocorrem, tratam do que parecia ser um indício de alienação ou o seu delírio. São sentimentos religiosos, ciúme, hipocondrias, manias de riqueza e de perseguição, cólera etc. É preciso dizer que esse item do questionário, pelo menos nos casos levantados, é pouco respondido. A maioria tem como resposta a expressão 'ignora-se'. É que um número considerável de internos chegava ao Asilo encaminhado pelos chefes de policia, pela administração do Asilo de Mendicidade e pela Casa de Correção, que invariavelmente ignoravam os antecedentes dos doentes, muitas vezes mal lhes sabendo os nomes. O Asilo de São João de Deus tinha como ocupantes mais comuns de suas alas os pensionistas do estado ou os indigentes, o que leva a crer que não se sabia de pessoas próximas a eles que pudessem responder a tais indagações.
O quesito de número quatro indaga sobre o histórico familiar, sobre uma possível hereditariedade ou tendência à loucura, entre os parentes próximos do doente: "Algum de seus parentes em 1º ou 2º grau soffreu de alienação mental?". Sendo aplicado na segunda metade do século XIX, o questionário avança na direção da degenerescência, da hereditariedade do mal. Nesse quesito estão presentes as abordagens de Morel e Magnan, transformando as monomanias de Esquirol em degenerações, "só que agora com status etiopatogênico, hereditário. O louco moral vira degenerado moral" (Carrara, 1998). Os degenerados substituem os monomaníacos com mais vantagens para os médicos brasileiros; afinal, a idéia do louco degenerado, perigoso, aquele que traz uma anomalia congênita justifica, entre outras crenças, aquela que identifica no negro e nos mestiços os portadores da marca indelével do degenerado. Segundo Carrara, o conceito de degenerescência se ampara entre outros fatores, na busca da possível herança familiar, nos costumes, na miséria etc. Nas suas palavras,
entre as principais fontes de degeneração alinhavam-se: o paludismo, o álcool, o ópio, a constituição geológica do solo, as fomes, as epidemias, as intoxicações alimentares, as indústrias, as profissões insalubres, as doenças infecciosas ou congênitas, miséria, temperamento doentio, imoralidade dos costumes e influencias hereditárias... desse modo para avaliar a saúde mental de alguém, o médico deveria levantar, em sua história individual e familiar, não somente a incidência de doenças nervosas, mas também a existência de atos extravagantes ou excêntricos, de crimes e suicídios, pois qualquer comportamento singularizado e excessivo dos antepassados poderia ser sinal de quer as perturbações apresentadas pelo paciente tivessem por origem a degeneração do sistema nervoso (p.108).
Em 1895 Emilio Champion defendeu a tese "Considerações sobre a loucura de dupla forma ou loucura circular" (cf. Del Porto, 2004). No texto sobressai o caso de R.L., de 54 anos, estudado por Juliano Moreira e citado como exemplo. O médico busca os antecedentes hereditários do doente, como forma de estabelecer o seu diagnóstico. Anota, sobre o paciente, que "sua avó materna fora diagnosticada como sendo louca puerperal. O tio materno era alienado, depois de desempenhar o cargo de cônsul brasileiro em Liverpool. Tinha uma irmã lypemaniaca e com mutismo. Sobrinho, filho de um irmão, epiléptico. Filho mais velho é rheumático, melancólico, deixou o curso de médico no anno de doutorar-se. Outro mais moço é ticoso" (Champion, 1895, p.81). Vê-se que o peso dado ao caráter hereditário é muito grande e quer fortalecer o conceito de loucura circular ou de dupla forma, seu objeto de estudo. Contudo o trabalho do médico confirma também a importância atribuída ao perfil hereditário do doente, quando de sua admissão no Asilo.
O quinto item do questionário pergunta sobre possível alteração no comportamento fisiológico do paciente: "Houve suppreção de alguma evacuação habitual?". A questão reproduz a formação do médico, desde os humores hipocráticos ao vitalismo francês de Bichat e Broussais, através da observação e descrição, como parece ser o caso, ou Claude Bernard e a função particular dos líquidos. Talvez o aumento ou a supressão dos 'humores' dos líquidos pudessem configurar uma patologia, isto é, "a doença é igualmente uma alteração, seja por aumento ou, ao contrário, por diminuição, mas é uma alteração da própria vida" (Laplantine, 1991).
Do levantamento das respostas dadas a essa questão, tem-se que 12 responderam 'não'; três, 'ignora-se'; dois, que houve supressão do 'fluxo catamenial'; um está ilegível; e dois não responderam. A resposta sobre supressão do catamênio é muito significativa para a compreensão dos tabus em torno da menstruação e da relação que se fazia, tanto no meio leigo quanto no médico, entre a saúde mental das mulheres e a presença ou ausência do fluxo. Quando a menstruação está desregulada ou deixou de manifestar-se, é expressão comum entre pessoas das classes populares dizer que ela teria "subido para a cabeça", numa alusão a um comportamento pouco normal, fora do costume da doente. Fernando São Paulo (1970), em seu trabalho sobre a linguagem médica popular, encontrou a expressão 'desmantelada' para a mulher que tem irregularidades menstruais. Desmantelar significa derrubar, arruinar, demolir, mas também denota desarticulação e desorganização, todas expressões que indicam desordem, falta de controle, perda de orientação, ou seja, a um passo de alienação, do estado de delírio, da loucura. A falta do fluxo menstrual era indicativa de predisposição a problemas mentais.
George Rosen (1994) confirma a prática da reclusão dos doentes nas prisões, casas de correção, asilos e hospícios, mas salienta que, no século XVIII e certamente no XIX, a insanidade era ainda atribuída ao "pecado e à atividade do diabo, como também à retenção de excreções do corpo, distúrbios emocionais, dieta ruim e falta de sono e outras causas" (p.117). Dessa forma, é preciso desvelar o questionário, buscando compreendê-lo não só pelo que está dito, mas sobretudo pelo que esconde por trás do cientificismo de seu tempo.
Na sexta pergunta, os médicos inquerem sobre o conhecimento da causa ou presumível causa da alienação. Na maioria dos casos a resposta é a mesma expressão, já citada: 'ignora-se'. Entretanto, naqueles em que se obteve resposta, podemos verificar que quase sempre são apresentadas, como motivo desencadeador, situações em que o doente esteve exposto a agressões contra a sua vida, ao seu patrimônio, sentimentos de perda ou consternação diante de algum episódio doloroso. Nos 21 questionários analisados, as respostas giram em torno de situações como causas morais, temor ou susto, desgosto de família, afazia, cisma, supressão da função periódica, morte de parente, excesso venéreo, alcoolismo, ou não respondeu.
Essa questão, como as outras, certamente inspiradas nas "Quatorze proposições relativas ao tratamento das moléstias mentais", apresentadas na tese de doutoramento do médico Francisco Júlio de Freitas e Albuquerque, em 1858, revelam, de forma muito significativa, como diz Paulo Dalgallarrondo (1999), "as noções dominantes deste período sobre a doença mental e seu tratamento. Indicam sobretudo, como o meio médico brasileiro vinha incorporando alguns pontos cruciais do alienismo europeu da primeira metade do século XIX". Assim, a primeira proposição de Albuquerque afirma a importância do conhecimento, por parte do médico, das causas da doença. Certo de que não há uma única causa para os transtornos mentais e que fatores físicos e psicológicos estão presentes no quadro, o médico considera que o tratamento deve enfocar esses múltiplos fatores. Vejamos as duas proposições do médico sobre a terapêutica do alienismo: "1º É principalmente sobre o conhecimento das causas que está baseado o melhor método de tratamento das moléstias mentais. 2º Não se pode adotar um método exclusivamente moral ou físico no tratamento destas moléstias" (Albuquerque, 1858).
Cotejando cuidadosamente o questionário do Asilo com as proposições do doutor Júlio de Freitas, pretendemos reencontrar um tempo de crenças e certezas e em torno delas encontrar pessoas e suas histórias, os pacientes e os médicos, a loucura e sua possível cura. Os textos dos médicos estão repletos de teorias que asseguram a eficácia da medicina e dos médicos na arte de curar os alienados e seus delírios. Sobre os homens, mulheres e crianças, a abundância de documentação informa seus nomes, sua cor, condição jurídica, idade, estado civil etc, entretanto muito pouco restou dos vestígios de seus dias no asilo. Suas histórias cotidianas estão rarefeitas e são de difícil recuperação. Em poucos casos pode ser recuperada a memória de seus dias, antes, durante e depois do asilo. Por essa razão, o quesito de número 6 foi auscultado com muito cuidado, na tentativa de recuperar essas histórias. É significativo, por exemplo, que entre as 21 respostas três tenham definido 'causas morais' como agente da alienação. O que devemos entender por tal expressão? Estariam contidas nela respostas como 'desgosto de família', 'roubo de seu dinheiro', 'constrangimento', 'excesso venéreo' e 'alcoolismo'? Outro dado citado nesta resposta e em outros quesitos, e que pode parecer pouco significativo por ter sido registrado uma única vez, refere-se à 'supressão da função periódica'. Nos textos médicos analisados observa-se que os males da mente, o universo feminino e suas especificidades, tais como sangramento mensal, gestação e parto, estiveram por muito tempo envolvidos por uma aura de mistério e desconhecimento, em virtude do pouco conhecimento médico acerca do corpo feminino, dos tabus que envolviam tocar o corpo da mulher e, sobretudo, do quase completo desconhecimento do seu funcionamento, em razão de todos esses mesmos pontos. O laconismo das respostas pode ser indicativo de muitas questões, mas, de certa forma, o pesquisador experimenta certa frustração com tais lacunas.
O quesito de número 7 continua buscando o princípio de tudo, o começo da doença, a sua origem. Indaga: "Quais foram os primeiros indícios da alienação?". A busca da origem da doença era uma constante na relação médico/doente porque, a partir da confiança estabelecida entre os dois (confiança na capacidade de cura), pretendia-se estabelecer uma conduta médica que evoluísse para o temor e o respeito, sem os quais, ainda segundo o doutor Francisco Júlio (Albuquerque, 1858), não haveria cura possível. As respostas colhidas são vagas e imprecisas: 'privacidade e loquacidade', 'visões', 'receio de ser assassinado', 'agitação e insônia', 'melancolia', 'por não poder ganhar dinheiro'; muitos não responderam. Nas respostas anotadas pelos médicos, eles induzem um diagnóstico provável.
A oitava questão indaga acerca do número de 'ataques', isto é, quer saber da incidência das emergências, a sua freqüência. Isso porque a repetição, o intervalo entre os ataques e o modo como a alienação se manifesta para o alienista indicam o tratamento a ser proposto. Por outro lado, o completo conhecimento da doença e do paciente favorece a "submissão à autoridade médica, visto que essa se instituía como o recurso e a necessidade terapêutica sobre a qual se firmava todo o arcabouço teórico do instrumental de combate à doença mental" (Castel, 1978). Sobre esse domínio, esse poder que o alienista deve impor ao doente, algumas passagens de Lima Barreto, muitas vezes citadas, transmitem a força do depoimento de quem viveu e sobreviveu ao asilamento. No texto Diário do hospício: cemitério dos vivos, Lima Barreto (1993, p.173-174)) registrou seu temor por alguns médicos do Asilo de Pedro II, especialmente um que, segundo ele, "era muito amante das novidades, de experiências ... viesse ele a cismar que eu era um magnífico campo para alguma delas". Trata-se de um trecho significativo para a análise do questionário empregado no Asilo de São João de Deus.
Faziam-me perguntas de confessor, e eu as respondia com toda a veracidade de catecúmeno obediente; mas, no meu íntimo, eu tinha para mim que tudo aquilo era inútil. Há uma classificação, segundo este ou aquele; há uma terminologia sábia; há descrições argutas de tais e quais casos, revelando pacientes observações; mas uma explicação da loucura, mecânica, científica, atribuída a falta ou desarranjo de tal ou qual elemento ou órgão da nossa natureza, parece, só há para raros casos, se há. Procuram os antecedentes, para determinar a origem do paciente que está ali, como herdeiro de taras ancestrais; mas não há homem que não as tenha, e se elas determinam loucura, a humanidade toda seria de loucos... . Eu tinha muito medo de meu médico da secção Pinel; ele tinha o orgulho e a fé na sua atividade intelectual, e os pontos de dúvida que deviam tirar do seu espírito o sentimento de sua evidência, pareciam que antes reforçavam-no.
Não sendo louco (era alcoólatra), Lima Barreto foi muito lúcido ao refletir sobre o comportamento dos médicos que o atendiam. Uma postura ameaçadora, invasiva, capaz de revelar as razões da loucura alheia, de penetrar esse mundo particular, refúgio, abrigo. A psiquiatria prometeu curar a loucura; para isso exigiu a reclusão, a submissão inquestionável.
Buscando encontrar registros físicos, traços ou marcas identificadoras do mal, o que tornava o diagnóstico menos inseguro, os médicos indagavam no quesito de número 9: "Quais as alterações físicas ou mentais depois do primeiro ataque?". Analisando as respostas obtidas e anotadas no questionário, verificamos que algumas informações reproduzem certos detalhes comumente identificados como sinais de alienação. Vejamos: melancolia, emagrecimento progressivo, perversão das faculdades, injeção dos olhos, incoerência das idéias, loquacidade, rubor excessivo, excitação, paralisia da pálpebra, esquecimento, congestão cerebral, insônia. Segundo o já citado doutor Francisco Júlio de Freitas e Albuquerque (1858), a sintomatologia das monomanias pode ser descrita desta forma: "faces afogueadas, olhar vivo e brilhante, expressivo, outros, porém, é macilenta, amarellada, lívida, contraída, olhar fixo, sombrio, ameaçador...". A identificação desses traços de alienação faz parte do texto dos médicos nos pedidos de internação no Asilo de São João de Deus, da seguinte forma:
Tendo Vª Sª assignado, segundo a sua informação exposta em officio de 3 do corrente que os enfermos Theresa de Jesus, João Gomes Moreira, Ernesto Ribeiro Lima, José Jacyntho dos Passos, Maria Rosalina, Maria Leonor, Francisco Antonio da Silva, Francisco José Pinto, Ernesto José Bento Pereira, Manoel Franco Ramos e Maria Izabel de Moraes Barreto, apresentam em si os sinais característicos da alienação mental, queira continuar a tel-os ahi recolhidos a esse Asylo sob o tratamento conviniente.
Deus Guarde a Vª Sª
Ilmo Sr Medico Diretor
Do Asylo de S. João de Deus
O Provedor
Manoel Pereira de Souza Dantas (Ofícios..., 1875, 9 jul. 1875).
Outra informação que aparece em alguns quesitos do questionário, mas que também está presente em ofícios encaminhados a subdelegados e chefes de polícia, refere-se à 'conjunção lunar' e sua interferência no comportamento dos doentes mentais. Um desses ofícios, solicitando internação da alienada Guilhermina Maria da Natividade, aponta o fenômeno lunar como desencadeador de alterações no comportamento de Guilhermina, moradora de um arraial da freguesia de São Tiago.
Ilmo Senr. Subdelegado
Francisca Xavier Marinho, tendo uma irmã de nome Guilermina Maria da Natividade, moradora n'este arraial, a qual sofre a mais de seis annos de alienação como é publico a ponto de em certas conjuncções da lua tornar-se quase furioza sem attender a péssoa alguma passando até a lansar pedras pelas janelas e opor si a sahida de pessoas de suas casas e a insultal-as em suas passagens, e como a Supp quer ver se pode fazer admittir no hospl de S João de Deus, p ser ella desvalida ... (Ofícios..., 1875)
A crença, já confirmada, na influência das fases da lua no comportamento dos alienados ou como razão do desencadeamento da doença em homens e mulheres, não é um fato novo. No caso das mulheres, existe ainda o agravante de que, quando as conjunções lunares coincidem com distúrbios ligados ao período menstrual - suspensão do fluxo catamenial - ou a situações de transtorno na gestação ou no parto, essa combinação pode dar origem a ataques, delírios etc. Michel Foucault (2003) afirma que "o 'lunatismo' era uma constante nunca contestado, no século XVI; freqüente ainda no decorrer do século XVII, aos poucos desaparece. Com efeito, ressurge completamente transformado e carregado de significações que antes não possuía".
Essa transformação, esse novo conteúdo de interpretação se refere ao reconhecimento pela física da influência das fases da lua no movimento das marés e, se ela tem o poder de interferir em uma massa como o oceano, certamente pode influir sobre o organismo humano em sua 'fragilidade'. Ainda segundo Foucault, no século XVIII, a crença da intervenção da lua na variação do estado de saúde de homens e mulheres se mantém e é acrescida de uma nova compreensão acerca da sensibilidade do organismo humano, mais do que do poder cósmico.
O décimo quesito não acrescenta muita informação às nossas indagações, apenas quer saber se "a alienação tem progredido, declinado ou estacionado depois do primeiro ataque". Feita a quantificação das respostas obtidas, constatamos que, nos 21 questionários encontrados, o item de número 10 obteve as seguintes respostas: 12 disseram ter progredido; três não responderam; um diz ignorar; um que tem declinado; um que tem piorado; um respondeu que mais ou menos, e um respondeu que tem estacionado. O número significativo de 12 afirmativas para o progresso da alienação certamente quer justificar a necessidade do internamento.
Já a 11ª questão traz mais elementos para nossa tarefa de desvelar o ingresso no Asilo de São João de Deus. "O delírio é sobre todos ou determinados objectos, ou sobre um só?" Esse tema retoma a discussão em torno das monomanias e do delírio. Segundo Isaias Pessotti (1994), Pinel entende que alienação e loucura são manifestações diferentes. Para ele, o primeiro quadro clínico da loucura é a mania ou o delírio, "independentemente da forma que possa apresentar, a mania é essencialmente agitação com delírio geral, um delírio que pode ter como objeto qualquer coisa, ou tudo. Tudo, seja algo moral ou físico, e até os vãos produtos da imaginação, pode ser o objeto do delírio". Nesse quesito, apenas um traz como resposta a expressão 'ignora-se'; dez responderam que o delírio é sobre todos os objetos; um que o delírio é variável; um para dinheiro e mulheres; um respondeu que o delírio é sobre um único objeto; um, sobre ciúmes e idéia fixa; um que tem delírio de ser o imperador e que é rico; e um que tem delírios assassinos e ciúmes. Uma resposta está ilegível. Especialmente nesse ponto, as respostas confirmam a análise de Vera Portocarrero (2000) sobre o saber psiquiátrico brasileiro do século XIX: "é uma repetição da argumentação dos alienistas franceses, apresentada irrefletidamente, sem qualquer vínculo com a prática. As questões dos métodos de classificação - a natureza da doença mental, sua etiologia, os tipos de terapia mais eficazes - são apenas retomadas dos debates europeus e não têm entre nós nenhuma relevância" (p.41).
É necessário refletir sobre o que se acumulou de conhecimento acerca do delírio como expressão da loucura. Ao longo da história da loucura, daquilo que se tem reunido como a história dos comportamentos desviantes, dos desajustados, dos mentalmente insanos, dos alienados, muitos estudiosos enfrentaram a questão do delírio e seu diagnóstico, especialmente para chegar a uma definição acerca da loucura e suas formas de manifestação.
Recorrendo ao texto contemporâneo do doutor Julio de Matos (1898),encontramos a discussão entre Felret, Esquirol, Delasiauve, entre outros, acerca do delírio. Matos lembra que estes teóricos "negavam a existência de delírios circunscriptos a uma só idéia...". Essas discussões, ao fim e ao cabo, estão questionando o conceito de monomania, conceito que foi o alvo da ironia de Machado de Assis na obra O alienista, de 1881-1882. Simão Bacamarte, o alienista do conto, está convencido de que as manias se expressam através dos delírios; sendo necessário, proceder-se-á à classificação dos doentes. Vejamos a classificação proposta por Simão Bacamarte:
Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor (Machado de Assis, 1996, p.14).
O texto de Machado é anterior ao estudo do alienista português Júlio de Matos (1898). Comparando-se a classificação de Simão Bacamarte e o questionário aplicado no São João de Deus, não será descabido pensar que a prática médica dos alienistas não tinha a credibilidade e a força que querem fazer crer que tinha alguns estudiosos da história da medicina e da saúde no Brasil.
Os quesitos 12 e 13 indagam sobre o intervalo dos delírios, sobre sua intensidade e se são 'furiosos'. Do total, apenas obtivemos 12 respostas: seis negativas (que não são 'furiosos') e seis confirmam que são intermitentes.
A pergunta de número 14 quer saber se "Tem-se empregado meios de coação e quaes?". Como resposta, obtivemos no levantamento feito os números seguintes: seis responderam que não; dois responderam que fazem uso de alguns; um que faz uso de poucos; um que faz uso de coação branda e persuasiva; um que recorre à reclusão; um que faz uso de prisão celular; um disse ignorar; três não responderam; e cinco responderam não usar coação alguma.
As respostas obtidas no questionário levantam outros alvos importantes na discussão acerca da loucura e o seu tratamento: a reclusão, o asilamento, a força física, a submissão do doente pelo uso de correntes, até a instalação da casa-forte. O quartinho infecto nos fundos da casa, para aqueles que ainda tinham uma família, mesmo envergonhada de ter entre os seus um alienado; ou as ruas onde ficavam entregues a toda sorte de violências, até que a força policial os recolhesse à Casa de Correção para lá dividir uma cela suja, mal iluminada, era a trajetória seguida por aqueles que, com alguma sorte, depois de muito esperar, seriam encaminhados para o Asilo de São João de Deus. Isto depois de sua inau-guração, somente em 1874. Antes, somente o Hospital São Cristóvão da Santa Casa da Misericórdia da Bahia recebia os loucos da terra. As descrições sobre as acomodações dos alienados nesse hospital são, de fato, denúncias do estado de abandono em que viviam: "O que direi dos infelizes alienados? Causa horror e compaixão vel-os reclusos em quartos escuros, baixos, humidos e fétidos, isolados de tudo, sem que recebam aquelles cuidados que a sciencia moderna recommenda e aconselha como poderosos e eficazes meios de cura" (Sequeira, 25 jul. 1866).
O uso da força para conter os doentes mentais, alienados, os loucos sempre foi uma atitude justificada, aceita, compreendida. Mesmo depois de Pinel e Esquirol disseminarem o conceito de 'tratamento moral', isto é, entendiam a loucura como a quebra do pacto com a sociedade, que espera de seus membros um comportamento adequado ao projeto de 'civilidade', trabalho e 'progresso'. Para corrigir essa fuga ao pacto, é necessário afastar o doente do meio que o corrompeu, fazê-lo adotar uma rotina de conduta e atividades próprias de um ser produtivo de pensamento e atitude 'elevados'. No dizer de Roberto Machado (1978, p.448), a "existência da doença mental pede um tratamento moral. Daí a intervenção da psiquiatria ser menos uma medicação do que uma educação".
Auscultando as respostas obtidas nessa questão, inquietamo-nos. Por exemplo, respostas como 'coação branda'. Magali Engel (1995) descreveu alguns meios repressivos autorizados pelos médicos do Rio de Janeiro: "privação de alimentos, uso de colete de força e os banhos de emborcação, manutenção dos agitados em quartos fortes". No Asilo de São João de Deus não foi diferente. O uso da casa-forte como meio de conter os 'furiosos' e os rebeldes está presente em muitos ofícios e foi alvo de muitas denúncias e acusações contra a direção do asilo. Em 1898 o doutor Antonio Victorio de Araújo Falcão informa ao provedor da Santa Casa da Misericórdia, Manuel de Souza Campos, que o alienado italiano Eugenio Cansoni "depois de um acesso de fúria foi recolhido durante dois dias a casa forte não sendo necessário o emprego de outros meios de coacção ou de rigor. Tendo prescrito alguns medicamentos apropriados para diminuir sua exaltação (Correspondência São João de Deus, 1889).
Em 1905 o enfermeiro Candido Marinho de Oliveira, inconformado com sua demissão, encaminha ao provedor Manuel de Souza Campos uma carta denunciando o administrador pelo descumprimento do regulamento, segundo diz. O enfermeiro denuncia o abuso do administrador na retirada de alimentos destinados à manutenção dos doentes, a má qualidade das refeições oferecidas e o uso da casa-forte fora da prescrição médica. "Quando algum doente se exalta o que é natural, o Sr. Administrador manda logo botar na casa forte. Enquanto a dormida é péssima, sem roupa de cama, esta mesma só se bota quando sabem que V.Exª está para fazer visita" (Provedoria..., 1905).
Outra forma empregada para conter os doentes, e que está no bojo das concepções de tratamento, são os banhos de emborcação, uso da camisola-de-força, restrição alimentar, também encontrados nos documentos do São João de Deus.
As questões de número 15 e 16 pretendem saber algo sobre a alienação: se está acompanhada de 'alucinação', se tem manifestado 'tendências ao suicídio' ou a 'ações mal fazejas'. Como resposta para a questão 15, pouca coisa se pode obter para análise, isto é, para a expectativa que se tinha acerca dela. Entretanto, a maneira esquiva das respostas, concentradas nas expressões: 'ignora-se', 'não respondeu', 'não sabe', 'muitas', 'várias' ou simplesmente 'houve', pode proporcionar algumas interpretações como: não sabiam como responder, não tinham de fato conhecimento sobre esses aspectos, quem responde ao questionário tem pouca intimidade com o cotidiano do doente etc. Queremos, de novo, salientar que os alienados nem sempre eram acompanhados por seus familiares e que, também, expressões e vocabulários médicos nem sempre são compatíveis com a vivência e com as formas de identificação das doenças no âmbito popular. Alucinação, por exemplo, não consta do trabalho, já citado, do professor Fernando São Paulo, como também não consta de sua pesquisa expressões como: doido, maluco, alienado ou mesmo louco. No seu Linguagem médica popular (1970), os verbetes referentes às manifestações de doenças mentais são: aluado (lunático, maluco, adoidado), distraviado, destino e desatino, danar do juízo, lesado, etc. Na questão 16 a preocupação é saber se o doente manifestou alguma tendência ao suicídio. 12 responderam que não; quatro deram respostas afirmativas como: 'tentar matar-se'; 'suicidar-se e matar pessoas da família'; 'sim, contra pessoas'; 'maltratado a mulher'.
As questões 17 e 18 buscam informar-se sobre algum tratamento anterior. A de número 17 é bem direta: "Qual tem sido o tratamento empregado e quaes os resultados?". As respostas tratadas podem ser resumidas assim: 12 responderam nenhum; dois que foram realizadas emissões sanguíneas e clister; um que nada fez por não ter meios; dois que fizeram uso de revulsivos internos e externos; um que foi tratado com anti-sifilíticos; um, com purgativos e narcóticos; um ignora-se; e um não respondeu. Para compreender a questão 17, encontrei nos textos médicos da época já algumas posições negativas, como por exemplo o uso de sangrias abundantes, tidas como prejudiciais. O doutor Júlio de Freitas e Albuquerque (1858) considerava que "a medicação drástica sistematizada, com fim de combater a constipação, deve ser proscrita da terapêutica dos alienados".
Ainda sobre os tratamentos empregados, a leitura das teses, já citadas, dos médicos Joaquim Vieira (1882), Emilio Champion (1895) e Júlio de Freitas e Albuquerque (1858) traz informações esclarecedoras. Tratando da epilepsia, em 1882, o médico Joaquim Vieira recomendava o uso de vermífugos e tenífugos - para o caso de helmintos - e emissões sanguíneas (ventosas ou sanguessugas na nuca), em casos de excitabilidade; também o uso de brometo de potássio, de ação calmante na medula, agente vascular diminuindo a excitabilidade. Recomendava ainda o uso da "beladona, do valerianto de atropina, valeriana, preparado de zinco, oxido d'este metal, vesicatória na região cervial posterior, sanguessugas sobre as paphises mostardes, anus purgativas, sulfato de morfina em doses fraccionadas e o curare em injeções hypodermicas" (Vieira, 1882). O doutor Júlio de Freitas (Albuquerque, 1858) recomendava para os monomaníacos "viver em local seco e ventilado, praticar exercicios corporaes, equitação, gymnastica e dança, esgrima, aceo, boa alimentação e agoa em qualquer tempe-ratura". Também recomendava as emissões sanguíneas, os purgantes, os narcóticos, antiespasmódicos, os tônicos, 'mercuriaes' e a eletricidade. Essas são concepções terapêuticas hipocráticas no alienismo nascente, pois recomenda o uso com restrições dos métodos agressivos (emissões sanguíneas e o emprego dos drásticos) no tratamento da alienação mental, como informa Paulo Dalgalarrondo (1999). Também na sua recomendação se pode observar a predominância do tratamento moral de Pinel e Esquirol.
Em 1895 o doutor Emilio Champion acreditava no tratamento químico à base de haschich e stramonium, mas também recomendou, em sua tese, a hidroterapia, as bebidas ácidas, os opiáceos, as injeções subcutâneas de morfina, o brometo de potássio e o cloral.
Em relatório apresentado à Mesa e Junta da Santa Casa da Misericórdia, o doutor Augusto Freire Maia Bittencourt deixou um registro precioso sobre o tratamento terapêutico:
O tratamento therapeutico tem sido variado; muitos dos preparados da matéria medica, aconselhados para diversas formas de loucura tem sido empregados.
Para combater a constipação, que é regra nos loucos, tenho empregado em maior escala os purgativos dialiticos, o sulphato de magnésia, o sulphato de soda, as águas mineraes; algumas vezes tenho lançado mão do óleo de rícino, só ou associado apo calomelanos, os drásticos uma ou outra vez.
Das sangrias geraes ainda não lancei mão, mas as sangue-sugas tenho principalmente no anus.
Os sedativos são largamente utilisados, especialmente o bromureto de potássio, a morfina, ou em poções ou em injeções hypodermicas, o chloral, só ou associado à morfina, a belladona, o valerianato de ammoniaco, etc.
Tenho empregado com bom resultado a digitalis, ou a sua alcoholatura, ás gottas, ou o decocto.
O aloés em suppusitorios tem prestado algum serviço.
Tenho empregado em larga escala os tônicos, como a quina (o vinho de quinio), os saes de ferro, principalmente o sulphato e o lactato nos casos em que há depauperamento do sangue em conseqüência da intoxicação miasmática lenta que se dá em muitos loucos.
Dos revulsivos tenho feito uso limitado.
Fiz grande uso do chlorhydrato de pilocarpina, na dose de 2 centigrammas por dia, nos casos de beribéri edematoso para combater a infiltração.
Os banhos mornos muito prolongados, nos quaes a temperatura d'agua se mantem a 35º, tem sido vantajosamente empregados nos agitados e os frios de chuva nos atacados de stupôr, lypemania, nos tranqüilos etc.
Tem-se prestado relevantes serviços uma maquina electrica que o asylo fez acquisição a meu pedido, quer nos beribericos paralyticos, quer como ameaça aos loucos que se obstinão a não comer (aphagia) ou não fallar (Relatório..., 30 jun. 1882).
O relatório do médico confirma o levantamento feito nos questionários, mas é na sua conclusão que experimentamos um diálogo potencialmente mais rico com a fonte. Os nossos doentes mentais chegavam tarde ao asilo, e o tratamento já era inútil. Um ano depois da primeira manifestação, não tendo sido submetido a tratamento, o doente estava fadado à sua loucura.
Todos esses meios, porem, não tiverão applicação oportuna como era para desejar, porquanto ordinariamente, salvo excepções bem raras, os loucos são para aqui recolhidos depois da phase aguda da moléstia, já no período chronico, e pelas estatísticas da Europa vê-se que o resultado entre os indivíduos entrados no primeiro mez da moléstia é de 75%, no segundo é de 50%, do terceiro ao sexto é de 30 a 40%, e do sexto a um anno é de 20 a 30% (Relatório..., 30 jun. 1882).
No quesito de número 18, a pergunta é direta: "Tem-se usado de sangrias, purgantes, narcóticos, dietas e em que escala?". Resgatada do mundo da panacéia, do mundo das poções à base de zinabre, do pó de ouro, pó de crânio dos enforcados, do leite de mulher, o lápis-lazúli que "purga o homem melancólico, sem perigo algum", a loucura vai, pouco a pouco, sendo incorporada à dinâmica da clínica médica. Isto quer dizer que os avanços conseguidos, a compreensão da doença no mundo da medicina anatomopatológica e a loucura através do alienismo objetivam a inserção nessa disputa pelo poder de curar o louco e sua loucura. Essa luta passa por uma renovação no modo de identificar, diagnosticar o alienado, e no tratamento empregado. Segundo Michel Foucault, negar as curas 'fantásticas' permitiu o nascimento de uma psiquiatria de observação, de um internamento de aspecto hospitalar, e desse diálogo do louco com o médico novas formas terapêuticas irão constituir-se. As práticas levantadas no questionário remontam a tempo bem recuado. Em 1785, o doutor Doublet recomendava aos diretores de hospitais o uso de sangrias, purgações, banhos e duchas. Não sendo observado nenhum resultado favorável, apelava para os 'cautérios' aos sedenhos, aos abscessos superficiais, à inoculação da sarna. A presença das duas primeiras (sangrias e purgações) no questionário do São João de Deus permite afirmar que as práticas de cura se mantinham presas a experiências e vivências que atestam permanências, certamente convivendo com práticas mais contemporâneas.
Conclusão
O esforço de compreensão do questionário, sua linguagem, seu conteúdo, o dito, o não dito, o que se respondeu, o que não foi possível obter como resposta são exercícios de análise que permitem uma aproximação com esse tempo, esse cotidiano e a compreensão dessas vivências. Afinal, tudo em história está irremediavelmente preso às vivências. Nesse caso, a vivência desses homens e mulheres, desses médicos e desses loucos para, de certa forma, questionar o pensamento expresso por Nina Rodrigues (1904) quando diz: "Ora, na Bahia em regra, nos, os psiquiatras e especialistas, nascemos dos nossos esforços, não tivemos mestres, não tivemos escolas, viemos do ensino theorico dos livros e da observação, da experiência desse Asylo S. João de Deus, que nos estafamos em proclamar, com justiça, uma vergonha para a assistencia médica dos alienados".
Esse ato de confissão do doutor Nina Rodrigues é a expressão das dificuldades vivenciadas pelos médicos e que nos esforçamos nesse artigo para trazer como forma de discussão a partir de fontes inéditas, preciosas para essa abordagem e outras tantas que se aventurem pela pesquisa nos arquivos e nas investigações acerca da história da loucura no Brasil do século XIX.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Jan 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
-
Recebido
Maio 2007 -
Aceito
Abr 2008