Open-access O uso da folha de coca em comunidades tradicionais: perspectivas em saúde, sociedade e cultura

The use of coca leaves in traditional communities: perspectives in health, society, and culture

Resumos

Aborda as questões socioculturais que envolvem o uso da folha de coca nas regiões andina e amazônica. O estudo é de natureza teórica, sendo privilegiados artigos científicos e entrevistas com profissionais conceituados em revistas e jornais. Os resultados da pesquisa sugerem que a associação indiscriminada da coca à cocaína e, consequentemente, ao narcotráfico, parte de um preconceito construído historicamente que se sobrepõe às raízes históricas e culturais do uso milenar da planta. Cabe à psicologia, como ciência, romper o silêncio frente às questões indígenas e compreender a dinâmica dos processos socioculturais desses povos para se fazer atuar em espaços que exigem tratamentos diferenciados.

folha de coca; cultura; saúde; psicologia


The article focuses on the sociocultural issues associated with the use of coca leaves in the Andes and Amazon regions. Approaching from a theoretical perspective, it explores scientific articles and magazine and newspaper interviews of distinguished professionals. The study's findings suggest that the tendency to indiscriminately link coca to cocaine, and consequently to drug-trafficking, stems from a historically constructed bias that eclipses the historical and cultural roots of the age-old use of this plant. It is up to psychology as a science to break the silence surrounding indigenous issues and come to understand the dynamics of these peoples' sociocultural processes so that it can figure in spaces where differentiated treatment is required.

coca leaf; culture; health; psychology


O presente artigo discorre a respeito de questões, sobretudo socioculturais e de saúde, relativas ao uso da folha de coca. Discutem-se as variantes terapêuticas e políticas que envolvem esse uso, permitindo, assim, abrir possibilidades para questionamentos e reflexões. Considerando que a saúde não pode ser compreendida separadamente dos aspectos socioculturais, busca-se aqui alcançar entendimentos, sobre os usos da folha de coca, que vão além de seus efeitos farmacológicos, mas encontram-se estritamente integrados em categorias que privilegiam o contexto social e cultural dessa prática.

O reconhecimento das identidades dos povos amazônico e andino contribui para um movimento de inclusão e respeito às suas especificidades culturais. Por outro lado, os valores simbólicos relacionados ao uso dessa planta configuram-se como aliados ao processo de integridade psíquica e da coesão grupal a favor da manutenção da cultura cocaleira. Entende-se a expressão cultura cocalera abrangendo todo aspecto identitário relativo às cosmologias e práticas ancestrais ligadas à folha de coca e seus derivados adotadas pelos povos andinos e amazônicos.

Por ser um assunto pouco estudado e, principalmente, por dizer respeito a questões brasileiras, pois diversos povos indígenas no alto do rio Negro-Amazonas fazem uso da planta em rituais religiosos, é necessário que o profissional de psicologia esteja preparado para lidar com essas questões culturais específicas, principalmente no que concerne à sua atuação em saúde mental no universo do Sistema Único de Saúde (SUS).

As comunidades indígenas ... têm constantemente solicitado junto aos órgãos públicos atenção em saúde mental por psicólogos/as que conheçam e respeitem as suas especificidades culturais, seus modos de subjetivação, a complexidade da vida em comunidade, a cosmologia e o perspectivismo de cada etnia, mas, sobretudo, suas histórias de luta pela terra e por dignidade (CRPRS, 2009).

A folha de coca, em seu estado natural, tem uso cultural/ancestral aparentemente inofensivo à saúde. Geralmente, é mascada ou utilizada em forma de chá. Por conter quantidades, ainda que pequenas, de cocaína em suas propriedades naturais, é constantemente associada ao narcotráfico, e essa imagem é muitas vezes reforçada pelo discurso midiático indiscriminado.

Esse imaginário compartilhado e a discussão sobre supostos danos à saúde geraram planos políticos de controle da produção da folha de coca e do combate ao narcotráfico. Entre as principais medidas, Francisco Thoumi (citado em Gusmão, 2009) enumera a erradicação de cultivos ilegais, incentivos à substituição de cultivos ilegais por culturas alternativas, interdição e controle de insumos químicos, reforço da interdição em portos e águas internacionais, extradição dos principais traficantes andinos, programas de fortalecimento do sistema de justiça e aplicação da lei e programa de treinamento de forças armadas e policiais.

Diante desse quadro, questiona-se o sentido e as consequências da criminalização da coca para povos que mantêm as tradições cocaleiras e fazem usos terapêuticos da planta há milhares de anos. Serão abordadas neste artigo as propriedades básicas da coca, seu uso tradicional, o movimento cocaleiro e o narcotráfico, suas utilizações terapêuticas e o posicionamento da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre a planta.

As origens do uso da folha de coca

O uso da folha de coca na América do Sul remonta a um passado de mais de oito mil anos, observado pelos estudos de Dillehay e colaboradores (2010), em ruínas encontradas no vale Nanchoc, Peru. É importante reconhecer que não somente a arqueologia, mas outros campos do saber, como a antropologia e a etno-história, apresentam contribuições significativas na compreensão da temática. Comentam Karsh, Hernández e Sánchez (citados em Ferreira, Martini, 2001) que seu nome deriva da palavra aimará khoka, cujo significado seria 'a árvore'. Para os incas, a planta era sagrada, um presente do Deus Sol (Inti), relacionada à lenda de Manco Capac, o primeiro inca ou o filho do sol que desceu do céu sobre as águas do lago Titicaca para ensinar aos homens as artes e a agricultura, e para presenteá-los com as primeiras sementes.

Pesquisas arqueológicas, como a de Belmonte et al. (2001), investigaram as evidências de coca em 51 tumbas de três sítios arqueológicos - situados no vale de Azapa, na costa de Arica, no Chile - , onde foi possível definir taxonomicamente o material vegetal que aparece nas bolsas das tumbas funerárias, pertencentes ao período cultural intermediário e intermediário tardio, incluídos na fase Tiwanaku e início do desenvolvimento local, abarcando de 300 a.C. a 1300 d.C. No cemitério AZ-140, por exemplo, das 149 tumbas, foram analisados 87 sujeitos (unhas e cabelos) cujos metabolismos secundários revelaram a ingestão de coca em, ao menos, 56%. Essa população pode ser descrita como, majoritariamente, pobre se comparada a outros sítios arqueológicos, devido à má qualidade de seus tecidos.

Henman (1981) informa que as primeiras folhas de coca e recipientes de cal identificáveis foram descobertas no sítio de Huaca Prieta, na costa norte peruana, nas camadas correspondentes ao quarto período pré-cerâmico, datado entre os anos 2500 e 1800 antes de nossa era. Discorre ainda que parece difícil evitar a verdade trivial de que a folha de coca se expandiu até a Colômbia a partir das sociedades mais avançadas do Peru e do Equador. Explica ainda que a fase antiga da cerâmica titishcainyo na bacia de Ecayali, próximo à atual cidade de Pucallpa, Peru, poderia facilmente representar um dos primeiros grupos a levar coca às terras baixas do Amazonas.

Além disso, a pesquisa de Salas (1986) refere-se a descobertas arqueológicas no Equador apresentando um dos mais antigos testemunhos do uso original da coca. Trata-se de uma figura moldada em 3000 a.C. que representa um homem cuja protuberância na bochecha caracteriza o chacchador. Os autores Henman (1981), Salas (1986) e Gagliano (1994) fazem eco à ideia de que pesquisas antropológicas, etno-históricas e arqueológicas têm recohecido o uso da planta há quatro mil anos, existindo ainda a certeza de que todas as pessoas do mundo andino consumiam coca, fosse por contatos culturais ou espontaneamente.

O ouro verde dos Andes estimulava outrora não somente a energia dos vivos, suprimindo a fadiga, a sede e a fome, anestesiando a dor dos feridos ou operados, como também 'agradava as múmias' e o Sol. Suas folhas verniz estavam na primeira fila nas oferendas sacrificiais, a fim de honrar ídolos, huacas, divindades, montanhas, fontes e apachetas (montes de pedras piramidais dispostos pelos indígenas nos desfiladeiros e passagens montanhosas. Queimadas, elas constituíam o 'incenso' do Sol) (Waisbard, 1974, p.208).

Seu valor cultural e mitológico explica o costume de aplicar a folha no cordão umbilical do recém-nascido para que, após a mumificação, que era acelerada pelas folhas, fosse enterrado juntamente com elas, como um talismã para dar sorte àquele indivíduo por toda a vida (Muakad, 2009). Além disso, os feiticeiros de Machu Picchu mastigavam coca durante os preparativos rituais de união das virgens e do inca que encarnava o Sol sobre a terra (Waisbard, 1974).

Muitas histórias permeiam o imaginário popular. Na literatura, mitologias fazem alusão ao surgimento da planta sagrada. García (2006) cita, em sua pesquisa, alguns autores que esclarecem o mito do nascimento da coca. Contam que, segundo a tradição, existia uma jovem índia, muito bonita, que vivia na aldeia de Collasuyu. Coca era vaidosa e egoísta, seduzia os homens, enganando-os com seus atrativos físicos, rejeitando-os depois. As queixas pelos enganos de Coca chegaram ao imperador inca, que escutou com tristeza a decisão dos sacerdotes de sacrificá-la. Coca, então, foi morta em uma cerimônia solene, e os pedaços de seu corpo foram enterrados nos quatro cantos do Império. Não demorou muito e observaram que, em cada um desses lugares, crescia um arbusto com formosas folhas verdes, chamado, posteriormente, de Mama Coca, em recordação da mulher sacrificada.

Uma ligação mitológica entre o consumo da coca e as relações sexuais foi estabelecida por M. Cohen em "Archaeological plant remains from the central coast of Perú" (citado em García, 2006), sendo a planta considerada regalia dos deuses. A estima por sua folha era tanta, que só a comiam os reis e nobres. Aos plebeus era proibido o uso sem autorização dos governantes. Waisbard (1974) afirma que, em virtude do tabu, suas folhas mágicas só poderiam ser mastigadas pelos homens depois do ato sexual.

A primeira notícia sobre a folha de coca deve-se a Cristóvão Colombo que, em 15 de outubro de 1492, referia-se, em seu diário, a "umas folhas secas muito apreciadas pelos nativos e que trouxeram a ela já no São Salvador" (citado em García, 2006, p.83). Gagliano (1994) destaca Ramón Pané, missionário durante os anos de 1490, que talvez seja o primeiro a descrever a coca e suas qualidades, relatando que os nativos comiam uma folha refrescante semelhante ao manjericão mediterrâneo que eles chamavam de grayo e que também usavam-na frequentemente como erva medicinal e em ritos de morte. Ferreira e Martini (2001) comentam que outro importante escrito foi o de Américo Vespúcio, em 1499, com publicação em 1507, que já descrevia a coca sendo mastigada com cinzas. Esclarecem que o uso concomitante, no ato da mastigação, de cinza ou bicarbonato de sódio, utilizado até hoje, deve-se ao fato de sua absorção pela mucosa da cavidade oral só se realizar em pH alcalino. Calculam que a sua ação farmacológica, quando mascada, é semelhante ao estímulo provocado pela ingestão de doses elevadas de cafeína, não sendo, no entanto, acompanhada de euforia. Gagliano (1994) acrescenta que Américo Vespúcio, em 1504, relatou a prevalência do consumo de coca desde Cumaná, na Venezuela, ao rio Pará, situado no território brasileiro.

Somente mais tarde, no período colonial, foi que o uso da folha se popularizou, apesar da resistência da Igreja católica. Conta-se que, naquela época, os hispânicos não reconheceram esse valor cultural e, em 1551, o Conselho Eclesiástico de Lima declarou ser a coca uma planta enviada pelo demônio para destruir os nativos; ela seria um obstáculo para a difusão do cristianismo, explicando o insucesso de muitas campanhas de conversão. A proibição não durou muito tempo, pois os espanhóis constataram que os índios não conseguiam fazer o trabalho pesado sem o uso de coca. Mais tarde, em 1569, o rei Felipe II da Espanha declarou o ato de mascar a coca hábito essencial à saúde do índio (Ferreira, Martini, 2001).

Esse talvez seja um dos primeiros indícios de uma ação política organizada, tendo como eixo central a discussão sobre a folha de coca. A leitura sugere que a intolerância religiosa e o domínio político da Igreja, na época, misturavam-se a interesses econômicos e de conversão cultural. As autoridades religiosas espanholas chegaram a coletar dízimos do comércio de coca, e como os nativos não valorizaram o ouro e a prata, os espanhóis pagavam os serviços prestados com folhas de coca e outros produtos. É nessa perspectiva que avançamos na história para compreender melhor os processos pelos quais a folha de coca se transformou de produto demoníaco em alvo de medidas que criminalizam e estigmatizam o seu uso.

A cocaína: de alcaloide milagroso a droga ilícita

Com a descoberta da cocaína, em 1860, pelo químico alemão Albert Niemann, a folha de coca e o mais novo e milagroso alcaloide tomavam lugar de destaque nas ciências médicas da época. Entretanto, as percepções sobre a cocaína sofreram transformações ao longo de mais de um século, tornando-se uma droga ilícita e alvo de ações internacionais proibicionistas. O resultado desse processo foi não somente uma radical mudança estrutural com fundo econômico e político no Peru, mas, sobretudo, a consequente estigmatização da folha de coca e do seu uso tradicional, que se reflete até os dias atuais.

Paul Gootenberg (2003) elucida três momentos históricos, construindo uma interessante genealogia da cocaína (e consequentemente da folha de coca), com destaque para as relações internacionais que envolviam principalmente os EUA e o Peru.

As três fases descritas na genealogia da cocaína são: 1) 1885-1910: a promoção das redes interamericanas da coca e cocaína (um período inicial quando EUA e Peru trabalharam ombro a ombro para converter a cocaína em uma mercadoria médica moderna e global); 2) 1910-1940: uma era de transição em que os EUA mudaram de opinião e lançaram uma cruzada nacional e mundial para prescrever a droga (tanto que o Peru mostrou maior autonomia e ambivalência e crise cultural à sua coca e cocaína nacionais); 3) 1940-1980: época em que as proibições à cocaína contemporânea tiveram um alcance global, acompanhadas por um alto grau de cooperação entre EUA e Peru. Contudo, esse período e processo final também foram testemunhas do nascimento das redes internacionais ilícitas da droga e, com elas, dos persistentes e completamente paradoxos dilemas em torno das drogas que enfrentariam os EUA nos finais do século XX (Gootenberg, 2003, p.7). 1

A descoberta da cocaína em 1860 causou grande excitação na comunidade científica internacional da época. Gootenberg (2010) comenta os entusiamos gerados na França, Inglaterra e EUA, pela possibilidade de uso da planta na prática médica. Além disso, a identificação de suas propriedades anestésicas pelo austríaco Carl Köller, em 1884, revolucionaria as aplicações cirúrgicas do primeiro anestésico local verdadeiramente efetivo.

Nesse mesmo período, o químico farmacêutico franco-peruano Alfredo Bignon lançou uma série de estudos científicos sobre a cocaína que, segundo Gootenberg (2010), assumiam fundo nacionalista e comercial. Foi quase uma dezena de produções em três anos (1884-1887) e, entre elas, seu novo, autêntico e econômico método de produção de cocaína que revolucionou a comunidade médico-científica da época.

Com o crescente interesse gerado pela expectativa de um futuro promissor da nova substância psicoativa, o Peru se organizava para atender às demandas do mercado legal que começava a se configurar mais intensamente em torno da coca. Foram cerca de 15 anos abastecendo o mercado mundial com coca e cocaína, como um aliado ao desenvolvimento econômico nacional, até meados da primeira década do século XX.

Foi em 1900, no pico de sua comercialização, os produtos de coca alcançaram o quinto lugar entre as exportações mais lucrativas do Peru: cerca de dois milhões de libras de coca (enviada em sua maioria aos estado-unidenses) e mais de dez toneladas de cocaína (destinada principalmente à Alemanha) (Gootenberg, 2003, p.13).

Entretanto, em finais da década de 1890, como sugere Gootenberg (2010), a cocaína já havia perdido o esplendor de remédio milagroso que gozara na década anterior e passara a ser considerada droga com efeitos secundários potencialmente perigosos, além de preocupantes consequências sociais. Surgem então as primeiras medidas estadunidenses seguidas de internacionalização das mesmas, que regulam o comércio de cocaína.

O ano de 1906 marcou o início e o fim da livre e fácil distribuição de cocaína ... em 1912 quase todos os estados [dos EUA] haviam proibido a venda de cocaína sem prescrição médica ... nem o Ato Puro de Comida e Drogas, nem as várias leis anticocaína promulgadas antes de 1914 reduziram o consumo de cocaína nos EUA. Nem a passagem da Lei Harrisson de 1914 ... Pelo contrário, em 1906 cerca de 21 mil quilos de cocaína estavam distribuídos pelo país e em 1919 a quantidade de cocaína distribuída legalmente havia crescido para 26 mil quilos - sem contar toda cocaína distribuída pelo ativo tráfico ilícito que se desenvolveu ao longo do anos anteriores (Ashley, 1975, p.65-66).

Gootenberg (2003) menciona a Convenção de Haia em 1912 que visou determinar a produção e comercialização de cocaína, heroína, morfina e ópio, bem como a primeira lei federal da história das nações sobre narcóticos, nos EUA, em 1914: a Lei Harrison. Essa restringia o uso de cocaína à prescrição médica. Mais tarde, em 1922, o Congresso estadunidense estabeleceu a Lei Jones-Miller, que proibiria todas as importações de narcóticos como a folha de coca e cocaína, com exceção de uma das maiores indústrias de refrigerantes do mundo, fato que só seria escancarado pela mídia algumas décadas depois.

A própria palavra 'narcótico' que em sua etimologia sinifica entorpecedor ou substância que faz adormecer, caracterizaria a classificação errônea da folha de coca e da cocaína, que são estimulantes. Ashley (1975) argumenta que a intencionalidade dessa (des)classificação encontra-se baseada na (1) arte de mentir, por qualquer ação ou omissão, para o propósito de influenciar opiniões; (2) técnica utilizada pelos governos, corporações e salafrários para manter os cidadãos separados da verdade.

Todo o esquema proibicionista estadunidense, além de negligenciar a grande diferença entre a coca e a cocaína, considerando o hábito milenar de mascar coca um tipo de adição, pautou-se, como afirma Gootenberg (2003), em resultados contraditórios de boletins e resoluções da Liga das Nações, publicados pelas grandes potências com estatísticas irregulares, descontínuas e resumidas sobre a cocaína. Por outro lado, o Peru de 1910 a 1940 continuava, mesmo em crise econômica e política, a sua produção legal de cocaína, reduzida a 5% em relação à da década de 1910.

Algumas décadas depois, os EUA já haviam persuadido e organizado uma política mundial proibicionista da cocaína (e da folha de coca) envolvendo ainda países europeus e americanos, o Brasil incluído. Essa fase foi marcada pela crescente organização de antigos grupos cocaleiros no Peru que já traçavam novas rotas de produção e escoamento de cocaína ilícita e ampliavam suas redes pela Bolívia, Argentina, Colômbia e Venezuela de modo a atender os mercados internacionais.

Entre 1947 e 1964, em resposta à invasão de proibições globais da cocaína, aparece uma grande rede hemisférica de produção e comercialização ilícitas. Essa rede integrava, pela primeira vez, campesinos cocaleiros das selvas alto andinas com químicos, traficantes da droga provenientes do Peru e da Bolívia com destino a Chile, Cuba ou México, e consumidores novatos em Havana e nos Estados Unidos (Gootenberg, 2010, p.68-69; grifo no original).

Já em 1952, a Organização Mundial de Saúde (OMS) concluiu que o hábito de mascar coca tinha todas as características da dependência e do vício, definido como uma forma de 'cocainomania'. Desde o último relatório de 1959, a pedido do representante peruano na Organização das Nações Unidas (ONU), uma comissão realizou uma visita relâmpago no Peru e na Bolívia para investigar os efeitos da mastigação da folha. Em conclusões apressadas, a comissão julgou que a mastigação da coca provocava má nutrição, além de efeitos indesejáveis de caráter intelectual e mental. A planta foi ainda considerada responsável pela pobreza do continente sul-americano, pois se convencionou que seu consumo diminuía a capacidade de trabalho. Até hoje, a ONU adota o relatório de 1959 como critério determinante de atitudes frente ao uso tradicional e medicinal da folha de coca (Levy, 2009).

Como medida culminante do processo proibicionista, em 1961, componentes da Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU assinaram, juntamente com representantes do Peru e da Bolívia, acordo que visava limitar a produção de coca apenas a níveis científicos e médicos, bem como erradicar o costume tradicional de mascar coca dentro de um período de 25 anos. Embora representantes do Peru tenham assinado o acordo na época, essa ação levanta suspeitas. Gagliano (1994) aponta que os principais antagonistas dos debates referentes à coca ao longo de quatro séculos vieram da elite litorânea, entre quem o uso da folha tem sido desprezado desde o século XVI.

Mais tarde, na década de 1990, a OMS e o Instituto Inter-regional de Pesquisas da ONU sobre a Criminalidade e a Justiça (OMS/Unicri) lançaram um programa em parceria que, durante quatro anos, em 19 países dos cinco continentes, com 45 pesquisadores internacionais associados, elaborou um relatório que enfatizava os benefícios para a saúde humana do uso da folha de coca. Esse estudo provocou exaltação na 48aAssembleia Mundial da Saúde, reunida em Genebra em 1995. Neil Boyer, representante dos EUA, acusou o estudo de ser "uma defesa da cocaína por argumentar que a utilização da coca não produzia danos perceptíveis sobre a saúde física ou mental" de seus consumidores (Forty-Eight World Health Assembly, 1995, citado em Levy, 2009). Boyer ameaçou suspender o apoio financeiro de seu governo ao projeto, caso as conclusões apresentadas fossem oficialmente adotadas por aquela Assembleia. O relatório foi arquivado (Levy, 2009).

A OMS ressalta as indicações fitoterápicas da folha de coca nas medicinas tradicional e alternativa, afirmando que ainda não há pesquisas suficientes que demonstrem que a folha de coca só traz benefícios à saúde. Contudo, também não diz quais seriam essas contraindicações (WHO, 2006).

É fato que as medidas proibicionistas fracassaram na tentativa de conter a produção e distribuição ilegal de cocaína, bem como o hábito de mascar coca. Em contrapartida, houve na verdade um aumento significativo de grupos cocaleiros motivados pela perspectiva de lucro alimentado também pelo mercado ilícito da coca.

O movimento cocaleiro na Bolívia e o narcotráfico

A relação entre o movimento cocaleiro e o narcotráfico constitui um forte ponto de tensão. Estão em jogo tradições, costumes, desdobramentos com consequências sociais, políticas e econômicas. Considerando que os movimentos sociais são aqueles em que determinados grupos lutam em prol de seus direitos frente à sociedade e às autoridades competentes, o movimento cocaleiro é um exemplo vigente de um povo que luta pelo reconhecimento de seus ideais e costumes. Envolvem-se, nesse movimento, países como Bolívia, Peru e Colômbia.

O movimento cocaleiro na Bolívia assume, nessa seção, caráter representativo. Essa ideia é sustentada por compreender que se trata de um dos maiores movimentos sociais da América Latina, por apresentar repercussões em nível global, e por ser mais bem estruturado se comparado a outros movimentos cocaleiros, no Peru e na Colômbia, por exemplo.

Maciel e Pinheiro (2008) contam que a organização do Movimento Cocaleiro se deu por volta do final dos anos 1980 e surgiu, inicialmente, em contexto sociopolítico, com a demissão em massa de mineiros bolivianos. Conforme Gonçalves e Santos (2008), os camponeses quíchuas deslocaram-se até o Chapare, ao norte de Cochabamba, para encontrar uma alternativa de sobrevivência. A situação de pobreza em que a população boliviana vivia fez com que outros grupos migrassem para a mesma região do Chapare. Esses grupos apoiaram-se no plantio da folha de coca para sobreviver. Além de garantir a subsistência de milhares de bolivianos, a coca é símbolo de uma milenar atuação cultural entre os povos andinos e amazônicos.

O Movimento ao Socialismo (MAS), partido boliviano, surgiu durante o processo de reabertura política do período pós-ditadura militar (1964-1982) e ganhou força no cenário internacional ao conseguir eleger, pela primeira vez na história da América Latina, um índio para o cargo de presidente da República, Evo Morales (Maciel, Pinheiro, 2008). Esse movimento político marca, então, a mudança de um discurso campesino para um reconhecido movimento indígena em favor da defesa da folha de coca, a partir da década de 1990.

O MAS está diretamente ligado ao Movimento Cocaleiro e vem atuando desde a década de 1970. Composto por membros reconhecidamente indígenas e demais defensores da causa, o MAS luta pelo reconhecimento dos direitos de manifestação da cultura andina. O combate desses grupos pela despenalização da coca torna-se visivelmente um combate por suas identidades (Maciel, Pinheiro, 2008). O Seminário Internacional para Despenalização da Coca, ocorrido em 2005, cujo tema foi Coca no es cocaína - es medicina, alimento y cultura, foi exemplo de uma mobilização internacional em torno dessa causa.

Esses movimentos são justificados pela preservação de um hábito indígena milenar - parte integrante da identidade dos povos andinos e amazônicos que já utilizavam a coca muito antes do aparecimento dos espanhóis. A censura e repressão ao uso da coca têm suas origens históricas, caracterizando as tentativas de desculturação de um povo. Essas atitudes, encontradas até hoje na política dos EUA com o plano 'Dignidade', por exemplo, põe em risco a expressão cultural dos povos ancestrais da região. Não devem ser penalizadas as antigas tradições por causa de utilizações desvirtuadas do uso da planta da coca.

Foi em resposta aos grupos ligados ao narcotráfico que os Estados Unidos lançaram uma política para combater o plantio de coca com os planos Dignidade, Colômbia e Panamá. Maciel e Pinheiro (2008) apontam que a ação norte-americana se deu, principalmente, como um meio de intervenção na América Latina, criminalizando os integrantes desses movimentos, na tentativa de 'desmoralizá-los' - na maioria dos casos, os cocaleiros são configurados como terroristas ou narcotraficantes - a fim de interferir econômica e politicamente nos países.

Para Rippel (2006), a iniciativa não obteve o sucesso pretendido. As comunidades que aceitaram substituir a cultura tradicional da coca por outras vivenciaram dificuldades, como a falta de mercados para comercializar seus produtos, vias de comunicação precárias para escoar a produção, créditos insuficientes e os efeitos nocivos à saúde causados pelos produtos herbicidas utilizados na erradicação da coca.

Segundo Barrientos e Schug (2006), os fazendeiros da região de Cochabamba, na Bolívia, decidiram manter o cultivo da planta porque, além de a coca ser uma planta mais robusta que outras, necessitando de menos cuidados, menos agrotóxicos, sacolas plásticas etc., a técnica de cultivo já era bastante familiar aos povos da região. Os investimentos são quatro vezes mais baratos em relação ao cultivo da banana e custam vinte vezes menos que os relativos a pimentas. Além disso, a despesa envolvendo uma nova plantação só aparece após quarenta ou sessenta anos, e aquela relativa às ferramentas, apenas depois de três ou cinco anos, vantagens significativas para os fazendeiros que têm pouco capital disponível.

Os 12 mil hectares reservados por lei à plantação legal de coca na Bolívia (destinados à mastigação, indústria farmacêutica, chás etc.) contrastam com cerca de 30 mil hectares efetivamente cultivados. A maior parte da coca plantada é destinada a abastecer o mercado ilegal da cocaína. As medidas de combate ao cultivo excedente de coca na Bolívia, embora tenham sido mais significativas nos últimos anos, ainda são insuficientes para conter o tráfico ilícito da planta. Essa realidade configura claramente o conflito existente entre a cultura e o tráfico.

Por outro lado, a possível erradicação da folha de coca nas regiões andinas e amazônicas pode ter consequências graves, não só por se tratar de uma forma de agressão às práticas culturais tradicionais, mas também por eliminar a possibilidade de subsistência de muitas famílias que dependem do cultivo da folha de coca. Abolir a folha de coca poderia gerar uma verdadeira crise identitária e econômica. Jung (2002) comenta que, para os antropólogos, quando os valores espirituais de uma sociedade sofrem o impacto da civilização moderna, sua gente perde o sentido da vida, sua organização social se desintegra e os sujeitos entram em decadência moral.

A cultura da coca e a promoção da saúde

As formas de utilização da folha de coca não se dão necessariamente pela sua ação farmacológica em si, mas principalmente pelo contexto sociocultural em que está inserida. Na verdade, a compreensão científica das substâncas psicoativas que valorizam os aspectos bioquímicos tem-se mostrado insuficiente para entender e organizar medidas de saúde, educacionais e políticas.

uma perspectiva biofarmacológica reducionista que toma o consumo dessas substâncias como o contato entre um indivíduo universal e uma molécula capaz de engendrar sempre os mesmos efeitos, ignorando as dimensões históricas, simbólicas, políticas e morais envolvidas na produção dos sentidos de todas as ações humanas, terminam por condenar o debate científico sobre o uso de 'drogas' a uma estéril divisão entre partes - entre ciências biológicas e ciências humanas, entre realismo e construtivismo, entre objetividade e subjetividade e assim por diante (Labate et al., 2008, p.37; destaque no original).

Gagliano (1994) relata muito bem diversos usos sociais da coca, confirmando o valor intrínseco desse produto na identidade dos povos andinos. A coca, nesse sentido, é símbolo de camaradagem quando um anfritião a oferece ao hóspede brindando sua hospitalidade. Significa ainda confiança e amizade quando contratos são negociados. Está presente em cerimônias de casamento. É oferecida às divindades e utilizada na fundação das valas durante a construção de casas para assegurar boa fortuna e proteger dos maus espíritos. Abençoa os andarilhos pelas sendas perigosas das montanhas incas. Xamãs a utilizam na interpretação de sonhos e predição de eventos. É utilizada nos ritos funerais, celebração de vida nova, na oferenda à natureza para acalmar tempestades e abalos sísmicos, proteger as plantações e prover colheitas abundantes.

A indissociabilidade entre cultura e saúde faz-se presente posto que se afirma o valor do reconhecimento de uma cultura milenar na manutenção da integridade psíquica desses povos. O sentido de pertencimento e as significações quanto à identidade, aos costumes, à culinária e aos rituais presentes no contexto refletem-se diretamente no bem-estar físico, psicológico e social dos sujeitos.

A identidade serve igualmente para designar o princípio da permanência, que permite ao indivíduo continuar o 'mesmo', de 'persistir no seu ser', ao longo de sua existência narrativa, malgrado as mudanças que ele provoca, sofre ou aquelas que podem ocorrer de forma mais inesperada e repentina (Grubits, Harris, 2003, p.186; destaques no original).

Está em pauta o conceito de segurança ontológica remetendo ao sentido de continuidade e existência real do sujeito. Constitui-se por uma rede de significados e percepções referentes a diversos aspectos da vida da pessoa e sua consequente segurança e consistência subjetiva. A ideia de continuidade pressupõe em si mesma a noção de temporalidade. Significa dizer que o sujeito, estando no mundo, reconhece a si mesmo e mantém sua estabilidade em meio às mudanças. Dessa forma, qualquer intervenção no sentido de destituir determinado aspecto da identidade de um indivíduo poderá ser interpretada como ameaça ao princípio da permanência, podendo desencadear instabilidade psíquica e refletir-se em sintomas de ansiedade, sentimento de menos valia, revolta, falta de perspectivismo etc.

A criminalização do cultivo e do uso da coca caracteriza-se por ser um ato grave de reducionismo, pois, ao fazê-lo, resume a apenas uma a quantidade grandiosa de usos que a folha da coca possui para essas comunidades (Maciel, Pinheiro, 2008). Ela faz parte de ritos que envolvem, na maior parte dos casos, a religiosidade desses povos, como em algumas comunidades no alto rio Negro, próximo à fronteira com a Colômbia. É o caso dos povos Arapado, Bará, Barasana, Cobeus, Desana, Hupda (Makus), Miriti-Tapuya, Piratapuya, Wanano, Witoto, Yepamashã-Tukano. Os Tuyuka, por exemplo, utilizam a folha de coca juntamente com um cipó alucinógeno para invocar espíritos da floresta e pedir suas bênçãos.

O resgate e a valorização das tradições milenares indígenas nos Andes é um fato que muito interessa a toda a humanidade. Isso porque a trajetória da cultura andina não se constituiu por meio de teorias ou abstrações filosóficas, mas se forjou, na vivência, na experimentação e na prática, em um longo e lento caminhar dos seus habitantes, em um movimento milenar e perene que sempre se moldou por valores essencialmente ecológicos (Ribas, 2008, p.54).

No Brasil, a lei 11.343 de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, pautada na Convenção de Viena nas Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, autoriza e regulamenta o uso de plantas em contexto ritualístico-religioso. Porém, não é o que ocorre com a folha de coca, embora as evidências arqueológicas, históricas e vigentes confirmem o uso da planta por parte de comunidades tradicionais no alto rio Negro. As autoridades permanecem inertes e simplesmente silenciam frente a essa questão, ignorando as especificidades socioculturais no país.

As medidas proibicionistas internacionais relativas à folha de coca e a outras substâncias psicoativas em geral configuram-se como posições muito mais pautadas em interesses políticos e econômicos do que na preservação da vida das pessoas. O ato de criminalização de determinadas substâncias psicoativas em detrimento de outras transforma compreensões que envolvem a saúde, a cultura e as responsabilidades individuais em um discurso que alcança a esfera penal, a violência e a estigmatização.

Não cabe aqui estabelecer a separação de tipos de substâncias (a folha de coca e a cocaína) como justificativa de regulação ou proibição de um ou outro psicoativo. Nesse sentido, Henman (2008) aponta que a separação por substâncias é a versão do baixo clero, dos fundamentalistas que veem o próprio como bom e o alheio como pecado. Comenta ainda a respeito de um modelo etnocêntrico dos donos da verdade, dos que creem que seu próprio contexto social é o único que sabe disciplinar o uso de um determinado psicoativo.

O que está em crise não é somente a apodrecida estrutura da proibição, senão o próprio princípio do dualismo, a divisão entre o Bem e o Mal. Contra a separação de substâncias, contra a qualificação e desqualificação dos contextos sociais, contra a aprovação apenas dos usos devidos e a desaprovação dos usos indevidos, devemos responder com um modelo que respeita a singularidade de cada momento e de cada lugar, e o caráter particular de cada usuário e de cada experiência (Henman, 2008, p.379).

A guerra contra as 'drogas' com base no modelo proibicionista completou, em 2012, cem anos de fracasso desde a Convenção Internacional do Ópio, em Haia. Durante esse período, não conseguiram nem reduzir o consumo de substâncias psicoativas tampouco a sua produção. O resultado tem sido percebido no aumento da violência, esquemas de lavagem de dinheiro, tráfico de armas, corrupção etc.

A humanidade, por sua vez, sempre fez e fará uso de psicoativos. Além disso, com a constante modernização tecnológica, novas substâncias entrarão no mercado e serão capazes de alterar de formas distintas a percepção, o humor, o comportamento e a consciência. Há que refletir, portanto, no que fazer para enfrentar essa realidade, parecendo razoável pensar em um novo modelo para lidar com a questão das 'drogas'.

Não é novidade que o atual sistema de classificação das substâncias psicoativas é obsoleto e nada tem a ver com os riscos e danos que podem causar à saúde individual e coletiva. A interpretação corrente é que quanto mais bem construída alguma coisa, mais o evento torna-se 'real', justificando medidas que apenas provocam estigmatizações, preconceitos e desinformação.

Independente da condenação e censura da coca, sua folha é ainda empregada de diversas maneiras, seja na produção de farinha, podendo ser misturada em pães, arroz, chicletes, tortas; ingerida na forma de chá, vinhos, refrigerantes, energéticos, sorvetes; ou usada como pomadas, além de outros usos medicinais já empregados há milênios.

Freud (2004) distinguia duas recomendações sobre o uso da coca: para os tratamentos bem-sucedidos de doenças e para os que se relacionavam aos efeitos psicológicos do estimulante. Como estimulante, a folha aumenta a capacidade física do corpo por um determinado e curto período de tempo, especialmente quando as circunstâncias externas eliminam a possibilidade do descanso e da alimentação normalmente necessários ao grande esforço. Pode ser utilizada para remediar distúrbios digestivos, eliminando indisposições dispépticas, resultando em uma sensação de bem-estar físico.

O médico austríaco defendia ainda a utilização da coca na caquexia, em doenças que envolvem degeneração dos tecidos, tais como anemia grave, tuberculose pulmonar, doenças febris de longa duração etc. A folha é também utilizada largamente para evitar os sintomas do chamado mal das montanhas, que inclui dificuldade de respiração, palpitação cardíaca e vertigem. Há inúmeros relatos de que acessos asmáticos de pacientes foram interrompidos com a coca.

Há ainda investigações que estão sendo feitas, principalmente no âmbito da saúde mental. É o caso da pesquisa do peruano Teobaldo Llosa - psiquiatra, doutor em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador de dependência de drogas pelo norte-americano ARN/Nida (Addiction Research Center of National Institute on Drug Abuse) - que defende a utilização da erva no tratamento da dependência da cocaína (Cavalheiro, 5 out. 2006).

O pesquisador explica que existem duas terapias desse tipo aprovadas no mundo: os adesivos de nicotina, para controlar o tabagismo, e a metadona, para controlar o vício em heroína. A utilização da folha de coca segue o mesmo princípio, ou seja, usar a cocaína contida na folha (ainda que em quantidades mínimas) para ajudar a libertar o sujeito da dependência. Llosa afirma ter tratado duzentos pacientes ao longo de 15 anos com infusões da coca ou cápsulas de farinha de coca, e a efetividade chega a mais de 70% (Cavalheiro, 5 out. 2006).

Em consonância com esses estudos, o psiquiatra boliviano Jorge Gumusio, do Instituto de Investigação da Coca, de La Paz, desenvolve pesquisa juntamente com o apoio de entidades internacionais. De acordo com seus dados, de cinquenta dependentes acompanhados em um dos estudos, cerca de 60% conseguiram reinserção social, e o número daqueles que precisavam de medicação psicotrópica caiu de 54 para 32%. Gumusio esclarece que o tratamento é ambulatorial e que essas pessoas apenas são incentivadas a mascar coca. Além disso, o acompanhamento feito com pessoas que mascam folha de coca a vida inteira mostra que não foram registrados danos físicos ou psíquicos (Biancarelli, 17 mar. 1998).

Questionado sobre quais outros benefícios estão presentes no uso da folha de coca, o psiquiatra aponta para a propriedade anestésica local e para o valor nutritivo - possui o dobro de cálcio que o leite, vitaminas B, C, D, além de fósforo e ferro (Loewy, s.d.). Outrossim, Llosa é enfático ao afirmar que a coca é muito utilizada como suplemento alimentar, contendo minerais, melhorando o apetite, a atenção, concentração ou mesmo combatendo males como a osteoporose em idosos.

Considerações finais

É importante para a psicologia a reflexão sobre os aspectos psicossociais do uso da folha de coca nas regiões andina e amazônica, a fim de não se deixar influenciar por uma associação indiscriminada da folha de coca à cocaína. Esta investigação aponta para os aspectos ligados à cultura e à saúde dos povos que fazem uso tradicional da planta há milhares de anos. No entanto, abordagens políticas, sociais e econômicas tornam-se também complementares para o entendimento das discussões sobre a temática.

O estudo sugere mais investigações no que se refere ao uso da coca no tratamento da dependência da cocaína. A dificuldade em encontrar pesquisas nesse campo aponta para o tabu relativo à planta, ainda existente na comunidade científica de forma geral. Sua utilização na indústria farmacêutica poderá ainda ser de grande valia, isolando seus componentes, a fim de compor medicamentos específicos destinados à população.

As posições contrárias à legitimação do uso e cultivo da coca, por parte de autoridades políticas mundo afora, colocam em xeque as raízes socioculturais dos povos amazônicos e andinos. No momento em que as comunidades tradicionalmente usuárias de coca são privadas de exercitar suas práticas culturais, elas perdem referências, comprometem suas identidades, os sentidos e desintegram-se. É nesse momento que se percebe a ligação indissociável entre cultura e saúde mental.

Este artigo contribui com a colocação de um novo olhar frente ao uso da coca, distinguindo as ações que se enquadram no movimento cocaleiro e as que fazem parte do narcotráfico. É claro que movimento cocaleiro e narcotráfico compreendem termos que são muitas vezes sinônimos. Porém, o argumento é de uma possível realização de melhorias sociais com respaldo de legislação específica, estimulando o uso racional dessa planta, absorvendo por completo todo o plantio legalizado para a indústria farmacêutica, sem deixar margens para a comercialização ilegal, ao mesmo tempo em que mantém espaço para preservação dos costumes das comunidades que utilizam a coca.

Diante desse quadro, a psicologia, em um contexto multidisciplinar, apresenta sua contribuição tanto para reformulação de políticas públicas sobre a legalização do uso da folha de coca no Brasil quanto para ações voltadas à atenção em saúde mental das populações indígenas. Esses profissionais encontram-se diante de um campo de atuação emergente, no qual são convidados a considerar e respeitar as particularidades de cada comunidade indígena, sendo provocados a formular novas estratégias na promoção da saúde.

A(o) psicóloga(o), dentro de uma equipe multidisciplinar, muito poderá contribuir com intervenções nas comunidades no momento em que elas têm sua identidade ameaçada, como é o caso de alguns grupos que fazem uso da folha de coca. Por meio de uma abordagem psicossocial, que relacione de modo indissociado a cultura e a saúde, pode-se fortalecer a autoestima desses grupos e reafirmar seus valores culturais. Para tal e não menos diferente do que deve ser, faz-se necessário intervir utilizando-se a escuta dos diversos atores sociais, compreendendo a dinâmica psicossocial das relações que se dão nas teias inter-relacionais. A partir da atitude, devem-se observar os fatos, compreender os acontecimentos e analisar os resultados obtidos para o benefício dessas comunidades.

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    Nessa e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    abr-jun 2013

Histórico

  • Recebido
    Set 2011
  • Aceito
    Abr 2012
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