IMAGENS
A dama branca e suas faces: a representação iconográfica da tuberculose
Pedro Paulo Soares
Especialista em história da cultura
Desde a Antiguidade, a tuberculose, com sua presença impiedosa e diferentes denominações tísica, consunção, peste branca , influenciou o comportamento daqueles a quem atingiu. Sob o nome de consunção esteve ligada à idéia de combustão do ser, gradualmente produzida pela febre. Sua ligação com os pulmões engendrou metáforas aéreas, voláteis, espirituais e profanas. Tais concepções constituíram o eixo da representação idealizada da tuberculose, existente desde a Idade Média e o Renascimento, com sensível reforço durante o século XIX, quando ficou conhecida como 'mal do século'.
A idealização da doença propiciou sua aceitação, bem como o embelezamento do lado triste e repugnante a ela associado. A febre, a tosse, o emagrecimento e a hemoptise foram cantados em verso e prosa. O espírito romântico do século XIX exacerbou essa mórbida afetividade, esse apaixonado fascínio pelo mal. A tuberculose, no século passado, foi uma doença da paixão, ceifando a vida de literatos, poetas, músicos, filósofos e mundanas célebres. Na virada do século XX, passou a ser considerada um mal social e sua ocorrência encontra-se, desde então, associada às condições de vida.
Quanto a sua iconografia, há inúmeras referências materiais apoiadas em técnicas e suportes diversos, autênticos documentos visuais, entre os quais citamos as litografias de costumes publicadas pelos jornais ilustrados do século XIX, os desenhos produzidos para campanhas de educação sanitária e divulgados para o público sob a forma de almanaques, folhetos e cartazes, distribuídos ou fixados em locais de movimento, e, por fim, as incontáveis fotografias, tomadas como simples registro, como instrumento na observação clínica ou no cotidiano do fotojornalismo.
De modo breve, a seleção adiante apresentada sintetiza um trajeto para as representações iconográficas da tuberculose.
Trata-se de um itinerário que nos conduz de uma idealização do mal na figura do doente, representada principalmente sob a forma de ilustrações alegóricas, a uma interferência direta sobre a doença, um olhar desmistificador que utiliza modernas técnicas de reprodução e novas formas de linguagem fotografias ou histórias em quadrinhos para construir representações 'realistas' para a enfermidade.
No detalhe de A Primavera, de Sandro Boticelli, a modelo coberta por flores: Simonetta Vespucci, célebre tísica, musa do pintor e dama de Giuliano de Médicis. A seu lado, uma ninfa em vestes diáfanas verte flores negras pela boca, em uma hemoptise floral, uma referência clássica retirada da tradição renascentista. Na alegoria, a valorização da jovem tuberculosa sublinha o efêmero de sua existência, sinalizado pela passagem das estações. O artista contribuiu para estabelecer, no plano dos cânones do belo físico, alguns parâmetros relativos à descrição dos tipos femininos. A beleza pálida, frágil, fugaz de Simonetta transformou-se em uma das matrizes arquetípicas da iconografia ocidental.
Em 'História de uma cocote', desenhada por Vale e publicada no jornal O Tupy em agosto de 1872, constatamos a permanência do modelo feminino como suporte para mais uma representação alegórica da tuberculose. Mistura de romantismo e darwinismo social, a narrativa acompanha a trajetória alegre de uma
Dama das Camélias tupiniquim. Após uma infância saudável, abençoada por anjos, a jovem libertina desperdiça a saúde e a vida entre danças, namoros e orgias, terminando tísica em um leito de hospital. A seu lado, como única companhia, uma escarradeira testemunha a presença da Peste Branca, cruel destino para uma vida degenerada.
Dois cartazes da Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose, confeccionados no Rio de Janeiro na década de 1920, são exemplos de uma iconografia com sentido de campanha, voltada para a educação do povo. Representando uma era de avanços, tanto na área do conhecimento científico sobre a doença quanto na compreensão do papel do Estado na luta contra o mal, essas imagens nos mostram um momento de transição entre o mórbido sensualismo predominante no passado e a visão social da tuberculose que prevalecerá por todo o século XX. Apesar do conteúdo didático implícito no primeiro cartaz que adota a linguagem dos quadrinhos, sugerindo uma nova postura de vida orientada por formas de conduta 'saudáveis', notamos que a influência romântica na descrição da doença situa-se no centro da composição, área estratégica, onde um grupo de mulheres simboliza a luta entre o mal, indicado por corpos que despencam em torpor, e sua prevenção, outro corpo feminino em postura ascensional, portador dos emblemas do conhecimento e da ação: o fogo e a espada.
O segundo cartaz sugere ainda mais claramente a tradição romântica que associa Eros a Tanatos, representados por uma mulher que, seminua e com as vestes esvoaçantes metáfora aérea por excelência , apaga com gesto delicado uma morte negra e pestilencial que se espalhou pelo país.
Observando as fotografias que adotam a linguagem do fotojornalismo, notamos a inclusão de novos personagens entre os elementos que compõem as representações iconográficas da tuberculose. Surgem pela primeira vez as imagens do sistema de saúde e de seus representantes: médicos, enfermeiras e visitadoras sanitárias.
A fotografia, em seu 'compromisso com o real', retratou a atuação dos profissionais nos sanatórios, dispensários e ambulatórios, em visitas domiciliares nos morros e cortiços do Rio, ajudando a fixar para o público a 'face' social da tuberculose, deslocando sua representação da idealização do doente para o conhecimento e a desmistificação da doença.
No entanto, observando a fotografia que retrata uma cena de ambulatório, notamos a total inadequação na 'construção' da imagem. A postura do médico que ausculta a paciente revela um equívoco de procedimento, expondo-o à infecção pela proximidade com a respiração da doente.
'O bacilo da tuberculose', do desenhista Luís Sá, ele próprio tuberculoso, reafirma a importância do meio social e das condições de vida na propagação do terrível inimigo, jocosamente descrito como um malandro bêbado, vivendo em meio à sujeira. O que poderia ser menos romântico?
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Jul 2006 -
Data do Fascículo
Out 1994