Acessibilidade / Reportar erro

O saber nos labirintos do poder: a Europa e a (inter)nacionalização da ciência na primeira metade do século XX

Knowledge in the labyrinths of power: Europe and the (inter)nationalization of science in the first half of the twentieth century

Resumo

A primeira metade do século XX foi globalmente marcada por uma vaga nacionalista que não deixou a ciência incólume. As iniciativas de bloqueio de algumas “ciências nacionais” (em particular a ciência oriunda da Alemanha) e as ruidosas discussões que então inundaram o espaço público ocidental constituem marcas ineludíveis das transformações radicais que o saber, o poder e a relação entre ambos então conheceram. O artigo explora, com base na literatura histórica da época, a crescente politização do discurso científico na primeira metade do século XX. É dada especial atenção ao período entreguerras, à (re)fundação, após 1918, dos organismos científicos internacionais sediados na Europa (como o International Research Council), e à proibição, em 1937, da revista Nature na Alemanha nazista.

nazismo; internacionalismo; nacionalismo; entreguerras; história da ciência

Abstract

The first half of the twentieth century was marked globally by a nationalist shift, which also affected science. The initiatives to block some “national science” (especially from Germany) and the discussions that flooded Western public space are hallmarks of the radical transformations that knowledge and power underwent at the time. Based on historical literature from the time, the article explores the growing polarization of scientific discourse in the first half of the twentieth century. Special attention is given to the interwar period, the (re)founding (after 1918) of international scientific organisms based in Europe (like the International Research Council), and the prohibition of the journal Nature in Nazi Germany in 1937.

Nazism; internationalism; nationalism; interwar period; history of science

A ciência, a história, a política e o público

Entre o final da Primeira Guerra Mundial e o início da Segunda, o diálogo científico internacional conheceu transformações significativas. A onda internacionalista que varrera toda a segunda metade do século XIX deu lugar a uma vaga de nacionalismos que procurou bloquear várias “ciências nacionais,” em particular a ciência oriunda da Alemanha.

O radicalismo que tomou conta de algum discurso científico da época e os bloqueios nacionalistas que então se ergueram foram por vezes violentos, outras vezes excessivos e quase sempre muito ruidosos. Ora esse ruído então produzido constitui um sinal ineludível de uma importante transformação do papel da ciência na sociedade e do próprio espaço que ela ali ocupava. Com efeito, e independentemente dos argumentos esgrimidos por cada um dos lados, as discussões da época evidenciam que o discurso científico se desloca de um espaço relativamente reservado, e que se sentira até aí em grande medida alheio às tensões políticas internacionais, para um espaço público e político de primeiro plano.

Mais de duas décadas passadas sobre o final da Segunda Guerra Mundial, Thomas S. Kuhn (1971KUHN, Thomas S. The relations between history and history of science. Daedalus, v.100, n.2, p.271-304, 1971., p.275) registava que “a bomba tinha [finalmente] persuadido os historiadores a terem em linha de conta o papel da ciência” na história da humanidade. Subjacente à afirmação está reconhecidamente o fato de a Segunda Guerra Mundial ter sido decidida num laboratório de física, e não no tradicional campo de batalha. Sob esse ponto de vista, a observação de Kuhn afigura-se convincente, sobretudo atendendo aos argumentos que o autor desenvolve no sentido de mostrar que, efetivamente, só após 1945 a história política – e destaco “política” – parece conceder algum relevo à ciência e à própria história da ciência.

De facto, a Segunda Guerra Mundial parece marcar decisivamente o início do protagonismo da ciência no espaço político público. O modo como figuras como Albert Einstein ou J. Robert Oppenheimer foram tratadas e escrutinadas politicamente nos EUA do pós-guerra é um indício claro disso mesmo (cf. Jerome, 2002JEROME, Fred. The Einstein File: J. Edgar Hoover’s secret war against the world’s most famous scientist. New York: St. Martin’s Press, 2002.; Bernstein, 1990BERNSTEIN, Barton J. The Oppenheimer Loyalty-Security Case Reconsidered. Stanford Law Review, v.42, n.6, p.1383-1484, 1990.). O que Kuhn assinala e sublinha, portanto – além, naturalmente, do défice de atenção dos historiadores –, é a entrada de um novo e importante ator no palco público internacional em que as questões (e as tensões) políticas são debatidas. Essa presença, de resto, já tinha sido devidamente notada em meados dos anos 1950 por John Desmond Bernal (1969BERNAL, John Desmond. Science in History. 4 v. London: Penguin, 1969., v.III, p.703), que no início do terceiro volume da sua obra A ciência na história, publicada originalmente em 1954, registava que “pela primeira vez na história, a ciência e os cientistas estiveram direta e abertamente envolvidos nos mais importantes progressos económicos, industriais e militares do seu tempo”. E o mesmo autor sublinhava ainda que, na verdade, a questão de “demonstrar como a ciência afetou o curso da história” já não se colocaria para o século XX, mas sim apenas para o passado, em que “os efeitos da ciência foram sem dúvida reais, mas era preciso ir à sua procura”, para perceber a dimensão da sua influência (p.703). Esta última observação é importante, entre outras razões, porque obriga a reconsiderar a centralidade atribuída por Kuhn ao momento final da Segunda Guerra Mundial como o momento em que a ciência se inscreve definitivamente no espaço público.

Com efeito, importa recordar que, muito antes de 1945, a ciência estava já bem integrada no tecido das sociedades ocidentais, fosse de uma forma deliberada e intencional, fosse de uma forma involuntária, ou ainda porque a sociedade se interessava pontualmente por fenómenos invulgares que a ciência produzia. A antologia de ensaios sobre a educação científica compilada por Edward Livingston Youmans (1867)YOUMANS, Edward Livingston (ed.). Modern culture: Its true aims and requirements: a series of addresses and arguments on the claims of scientific education. London: Macmillan, 1867. e a história popular da ciência da autoria de Robert Routledge (1881)ROUTLEDGE, Robert. A popular history of science. London: G. Routledge, 1881. são obras bem ilustrativas do modo como a ciência procura deliberadamente um público ao mesmo tempo que a sua publicação procura corresponder aos interesses desse mesmo público. Por seu turno, as polémicas em torno das teorias de Darwin constituem um exemplo claro de como as teorias científicas afetam a sociedade, perturbando os fundamentos da sua própria identidade e obrigando a reescrever toda a história social (cf. Ruse, 2009RUSE, Michael. The evolution wars: A guide to the debates. Millerton, NY: Grey House, 2009.). Finalmente, cumpre recordar que fenómenos como o magnetismo ou a eletricidade proporcionaram já à ciência de finais do século XVIII uma visibilidade pública e uma popularidade que não podem nem devem ser menosprezadas nesse contexto (cf., entre outros, Bensaude-Vincent, Blondel, 2008BENSAUDE-VINCENT, Bernadette; BLONDEL, Christine (ed.). Science and spectacle in the European Enlightenment. Aldershot: Ashgate, 2008.). O que significa então que 1945 e “a bomba” não marcam tanto o momento da entrada da ciência na história ou no espaço público, mas constituem, muito mais, o culminar de um processo que vem, pelo menos, desde finais do século XVIII e que se acentua ao longo dos séculos seguintes.

A análise que aqui se ensaia debruça-se sobre esse processo, refletindo historicamente sobre os modos de articulação do saber1 1 Os termos “saber” e “ciência” são usados ao longo destas páginas numa acepção alargada, inclusiva e, muitas vezes, relativamente indiferenciada. Na origem dessa acepção alargada está a sugestão recente de Jürgen Renn (2015) sobre a necessidade de enquadrar a história da ciência numa história mais global do “saber” ou do “conhecimento”. Trata-se de uma sugestão particularmente pertinente nesse caso dado que só uma noção alargada de “ciência” como “saber” parece estar em condições de traduzir com algum rigor o uso dos termos Wissenschaft (em alemão) ou (em parte também) Science (em inglês) ao longo do período aqui em análise. e do poder na primeira metade do século XX, nomeadamente no período entre as duas guerras. Nesse sentido, questiona-se a historicização da ciência na sua dupla dimensão, pública e política, dando particular atenção a dois momentos que se diriam simultaneamente marcantes das transformações que a cultura científica do mundo ocidental então conheceu: a refundação, após 1918, de organismos científicos internacionais (como o International Research Council) e a proibição, em 1937, da revista Nature na Alemanha nazista.

Da (inter)nacionalização das ciências

É sobretudo no período entre as duas guerras que os efeitos da presença da ciência na sociedade se fazem sentir de uma forma decisiva. Para o fato concorrem diversos elementos: as novas teorias da física de Einstein, a crescente visibilidade das teorias eugénicas (produtos do desenvolvimento da sociologia, por um lado, e da biologia e da medicina, por outro), o surgimento, já desde a viragem para o século XX, de objetos novos como a fotografia ou o filme (produtos de uma técnica fortemente enraizada na ciência da época que parece prometer a realização de alguns dos sonhos mais miticamente ansiados pela humanidade, como, por exemplo, o voo); enfim, para a importância pública do discurso técnico-científico concorre ainda a muito significativa presença da ciência no domínio da ficção (Jules Verne, H.G. Wells), que reentra assim no tecido social de uma forma duplamente poderosa, moldando-lhe não apenas o quotidiano, mas também a imaginação.

Essa projeção utópica de uma ciência que não conhece fronteiras e que coopera internacionalmente para resgatar os sonhos de toda a humanidade dificilmente corresponde, porém, à realidade histórico-política de inícios do século XX. Os documentos da época são, a este título, bastante claros. De um lado estão certamente os herdeiros de um internacionalismo científico e técnico e de um internacionalismo pacifista que, em grande medida, moldaram o mundo já altamente globalizado da segunda metade do século XIX. Vejam-se, por exemplo, o extenso diretório das instituições envolvidas na cooperação científica internacional coligido pelo holandês Pieter Hendrik Eijkman (1911)EIJKMAN, Pieter Hendrik (ed.). L’internationalisme scientifique (sciences pures et lettres). La Haye: Stockum, 1911. ou o panfleto de Louis P. Lochner (1913LOCHNER, Louis Paul. Internationalism among universities. Boston: World Peace Foundation, 1913., p.3) sobre o internacionalismo nas universidades, que abre com um axioma digno de nota: “A erudição [scholarship] é, pela sua própria natureza, internacional”.

Do outro lado, porém, está o forte crescendo dos nacionalismos europeus ao longo do mesmo período,2 2 A literatura sobre o nacionalismo durante o período aqui em análise é imensa. Neste contexto bastará chamar a atenção para o modo lúcido como o antropólogo Franz Boas (1915a, 1915b) caracteriza e problematiza os nacionalismos europeus da época, sua lógica, sua história e também as ficções que lhes estão subjacentes, em duas conferências realizadas em 1915. que vai progressiva e consistentemente minando a visão épica dessa ordem internacional(ista). A Guerra Franco-prussiana de 1870-1871 (da qual emerge uma Alemanha finalmente unida e todo-poderosa) havia já proporcionado um vislumbre premonitório do poder conflitual e destrutivo dos nacionalismos europeus, mas seria com o início da Primeira Guerra Mundial e com a multiplicação de incendiárias declarações patrióticas e nacionalistas que se atingiria o ponto definitivo de viragem e ruptura. O apelo “ao mundo da cultura” e o “manifesto dos 93” (An die Kulturwelt, 1914AN DIE KULTURWELT. Freiburger Zeitung, Morgenausgabe, n.5.10.1914, p.2, 1914.; Erklärung, 1914ERKLÄRUNG der Hochschullehrer des Deutschen Reiches/Déclaration des professeurs des Universités e t des Écoles supérieures de l’Empire allemand. Berlin: [Klokow], 1914.), documentos tornados públicos em outubro de 1914 e assinados por cientistas e intelectuais alemães contra “as armas envenenadas da mentira” dos inimigos da Alemanha, são produtos indiscutíveis do importante realinhamento do saber e do poder que então ocorre e para o qual, de resto, ambos os documentos contribuem muito significativamente. Além disso, acresce ainda que a importância e a repercussão dessas duas publicações extravasam as condições locais e temporais que lhes estiveram na origem: por um lado, pela dimensão das reações internacionais que suscitaram e que foram coligidas, entre outros, pelo jornal norte-americano New York Times (The New York Times..., 1914); por outro lado, porque são documentos que de modo nenhum se esgotam no momento em que foram escritos e divulgados. Com efeito, importa não esquecer que, já depois de terminada a guerra, regressam à praça pública pela mão do então primeiro-ministro francês, Clemenceau, que num discurso no Senado em 1919 se terá referido ao “manifesto dos ditos 93 intelectuais alemães” como um documento “vergonhoso,” um “crime pior do que todos os outros de que temos conhecimento” (citado em Wehberg, 1920WEHBERG, Hans. Wider den Aufruf der 93! Das Ergebnis einer Rundfrage an die 93 Intellektuellen über die Kriegsschuld. Charlottenburg: Deutsche Verlagsgesellschaft für Politik und Geschichte, 1920., p.27-28).3 3 Sobre o “manifesto dos 93”, vejam-se também os documentos contemporâneos coligidos na Alemanha por Kellermann (1915) e por Wehberg (1920), assim como os estudos de Chagnon (2012) ou MacLeod (2018).

Paralelamente, e tendo em conta o polémico conjunto dos textos em questão – o “apelo”, o “manifesto”, assim como as reações de intelectuais, académicos e cientistas britânicos, franceses e americanos –, há ainda dois aspetos importantes a reter: em primeiro lugar, deve salientar-se que todos eles são marcados por um profundo nacionalismo que naturalmente os antagoniza, mas que é comum a todos; em segundo lugar, interessa recordar que todos eles, apesar de se apresentarem num espaço público mediático e de se dirigirem a um público generalista, têm origem direta ou indireta em instituições que produzem ciência (academias, universidades), as mesmas instituições, portanto, que, ao longo do século XIX, promoviam as virtudes da cooperação internacional e do internacionalismo científico.

Haveria inúmeras ilações a retirar dessas e de outras publicações similares sobre a ciência, a universidade e as academias, e sobre o seu papel – para o melhor e para o pior – na própria história do mundo ocidental. Aqui importará sobretudo notar que (1) a ciência transporta deliberadamente o seu discurso para o espaço público mediático e politiza-o; (2) os movimentos nacionalistas conservadores não se reduzem às humanidades nem a um quadro dito genericamente cultural – como mais tarde, já depois da Segunda Guerra Mundial, as teses de C.P. Snow sobre as “duas culturas” parecem querer insinuar –, ao contrário, a ciência e alguns dos seus principais protagonistas (nomeadamente alemães) estão neles envolvidos desde a primeira hora (vejam-se os casos de Max Planck, Philipp Lenard ou Fritz Haber, todos eles signatários do “apelo” e com funções de relevo nas estruturas científicas da Alemanha da época); (3) as últimas décadas do século XIX e o início do século XX são, portanto e em boa verdade, marcados por um conflito latente que se materializa na Primeira Guerra Mundial e de que Ramsay Muir (1916)MUIR, Ramsay. Nationalism and internationalism: the culmination of modern history. London: Constable, 1916., professor de história na Universidade de Manchester, dá bem conta num livro notável, cuja primeira edição data precisamente de 1916: Nationalism and internationalism: the culmination of modern history.

Em 1918, o que restou das mais de seiscentas instituições internacionais listadas no diretório de Eijkman de 1911EIJKMAN, Pieter Hendrik (ed.). L’internationalisme scientifique (sciences pures et lettres). La Haye: Stockum, 1911. foi muito pouco, ou quase nada. O nacionalismo havia-se claramente sobreposto ao internacionalismo no espaço da opinião pública, e era necessário reconverter muito rapidamente algumas daquelas instituições, nomeadamente as que estavam relacionadas com a ciência, que não estava já em condições de poder abdicar da cooperação internacional, sobretudo em áreas como a astronomia.4 4 Sobre a deriva internacionalista que o discurso científico então conhece vejam-se os estudos pioneiros de Schroeder-Gudehus (1966, 1978), Kevles (1971) e Forman (1973), assim como diversos dos ensaios incluídos em Sluga, Calvin (2016), que refletem um renovado interesse pela temática da internacionalização em contextos académicos. Neste âmbito, importa deixar aqui ainda uma referência a trabalhos similares produzidos em zonas geográficas porventura mais periféricas em relação aos conflitos que assolaram o mundo na primeira metade do século XX, mas que não são menos relevantes, uma vez que proporcionam uma visão mais alargada e completa do alcance daquela deriva internacionalista: vejam-se, por exemplo, os ensaios reunidos por Salgueiro et al. (2014), ou em particular os estudos de Ninhos (2016), Lopes (2017) e Silva (2018). Compreende-se assim a necessidade de fundar uma metainstituição científica que sucedesse à Association Internationale des Académies, uma associação nascida em 1899 e que teve uma vida breve, naturalmente interrompida pela guerra (cf. Schroeder-Gudehus, 1966SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte. Deutsche Wissenschaft und internationale Zusammenarbeit 1914-1928: Ein Beitrag zum Studium kultureller Beziehungen in politischen Krisenzeiten. (PhD These) – Université de Genève, Genève, 1966., p.43-47; Alter, 1980ALTER, Peter. The Royal Society and the International Association of Academies 1897-1919. Notes and Records of the Royal Society of London, v.34, n.2, p.241-264, 1980.).

A formação do International Research Council

Logo a partir de finais de 1918, revistas especializadas como a Nature ou a Science (entre muitas outras) dão conta da realização em Londres, de 9 a 11 de outubro de 1918, de uma “conferência interaliada sobre as organizações científicas internacionais” (Inter-Allied Conference..., 1918INTER-ALLIED CONFERENCE on International Scientific Organisations. Nature, v.102, n.2555, p.133, 1918.; International Scientific..., 1918INTERNATIONAL SCIENTIFIC Organization. Science, v.48, n.1247, p.509-510, 1918.). Na origem da maioria dessas notícias está um relatório que dois dos representantes franceses presentes na reunião apresentaram aos seus congéneres da Academia das Ciências francesa (Picard, Lacroix, 1918PICARD, Émile; LACROIX, Alfred. La Conférence Interalliée des Académies Scientifiques à Londres. Comptes Rendus. Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences, v.167, n.17, p.566-570, 1918.). Em todos esses textos merece particular destaque a declaração “unânime” então aprovada pelos delegados das nações aliadas. A declaração é evidentemente um documento importante, até porque as resoluções ali adotadas determinariam o futuro da cooperação científica internacional nos anos seguintes, mas é também importante pelo modo como deixa entrever as estruturas mentais que iriam presidir a assinatura de um futuro tratado de paz. De fato, todo o documento gira em torno da ideia do carácter único e inaudito daquela guerra, carácter esse que mereceria, por conseguinte também, medidas de represália únicas e até então desconhecidas (Picard, Lacroix, 1918PICARD, Émile; LACROIX, Alfred. La Conférence Interalliée des Académies Scientifiques à Londres. Comptes Rendus. Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences, v.167, n.17, p.566-570, 1918., p.567):

Quando, há quatro anos, a guerra eclodiu, dividindo a Europa em campos inimigos, os cientistas ainda tinham esperança que a conclusão da paz restaurasse os elos quebrados e que os inimigos da véspera pudessem voltar a encontrar-se novamente em conferências amistosas e pudessem de novo unir os seus esforços para o progresso da ciência. …

Anteriormente, a guerra interrompia frequentemente a cooperação dos indivíduos sem destruir a sua estima mútua, baseada no sentimento do valor da ciência; a paz rapidamente apagava as marcas das lutas passadas.

Se hoje os delegados das Academias Científicas das Nações Aliadas e dos Estados Unidos da América se declaram impossibilitados de retomar as relações pessoais, mesmo em matérias científicas, com os cientistas das Potências Centrais, enquanto estes não tiverem sido de novo admitidos no concerto das nações civilizadas, fazem-no com total consciência da sua responsabilidade.5 5 Nessa e nas demais citações de textos em outras línguas, a tradução é da responsabilidade do autor.

Dito de outro modo: a guerra acabara, mas o conflito não. E os aliados são os primeiros a afirmar que o conflito não terminou. Deve aliás acrescentar-se que o status quo conflitual patente nessas declarações, e que o Tratado de Versalhes haveria posteriormente de confirmar, não foi de modo algum indiferente à comunidade científica da época, nomeadamente porque algumas publicações da especialidade dão com frequência voz a apelos à “generosidade” dos aliados, no sentido de não excluir a Alemanha das novas organizações internacionais, e à necessidade de retomar a vocação verdadeiramente universal e internacionalista da ciência (cf. International Science..., 1919INTERNATIONAL SCIENCE and the war. Science, v.50, n.1298, p.453-454, 1919.).

Mas os apelos foram em vão. À reunião de Londres seguir-se-ia outra em Paris, onde ficaria definida a criação de um novo organismo científico internacional, o International Research Council, que sucederia à Associação Internacional das Academias. O novo organismo teria a sua sede em Londres e seria composto exclusivamente por representantes das nações que tinham estado em guerra contra a Alemanha, pelo que os cientistas alemães ficavam assim explicitamente excluídos dessa nova organização internacional. A situação – sem dúvida paradoxal para um saber que se queria universal e para uma instituição que adotava a designação de “internacional” – não deixou de ser objeto de duras críticas, nomeadamente por parte de cientistas dos países aliados. Em 1921, o matemático britânico Godfrey H. Hardy (1921HARDY, Godfrey. The International Research Council. Nature, v.107, n.2682, p.107-108, 1921., p.108) explicava de uma forma contundentemente clara nas páginas da Nature que “o objetivo deste conselho não é promover a cooperação internacional, mas sim excluir os alemães”, enquanto o zoólogo norte-americano William J. Holland (1918HOLLAND, William J. Shall writers upon the Biological Sciences agree to ignore systematic papers published in the German language since 1914? Science, v.48, n.1245, p.469-471, 1918., p.470-471) já usara as páginas da Science dois anos antes para recordar que “a ciência é de fato internacional e universal. Não há uma entomologia inglesa nem uma paleontologia francesa, do mesmo modo que não há uma álgebra católica romana ou uma geometria presbiteriana”. E terminava com um conselho que era simultaneamente um aviso: a comunidade científica devia “evitar cair no erro de se prussianizar a si própria ao tentar derrotar a Prússia”.6 6 Na Alemanha da época, as reações a esse bloqueio não foram, como seria de esperar, menos contundentes, nem menos críticas (cf. Karo, 1919; Kerkhof, 1922). Sobre a exclusão dos cientistas alemães, vejam-se Cock (1983), Kevles (1971) e Crawford (1988).

As delegações francesa e belga às conferências de Londres e Paris foram, no entanto, surdas a esses apelos e críticas (cf. Cock, 1983COCK, Alan G. Chauvinism and internationalism in science: The International Research Council, 1919-1926. Notes and Records of the Royal Society of London, v.37, n.2, p.249-288, 1983.). Os estatutos do International Research Council, significativamente redigidos em francês e aprovados em reunião que teve lugar em Bruxelas em julho de 1919, mantiveram a exclusão das nações das potências centrais. No final da reunião, o comitê executivo foi unanimemente reeleito. A instituição, que passava a ter a sua sede na capital belga, era presidida pelo matemático francês Émile Picard e tinha como secretário-geral o físico britânico (nascido na Alemanha) Arthur Schuster (cf. Campbell, 1920CAMPBELL, William W. Report of the meetings of the International Research Council and of the Affiliated Unions held at Brussels, July 18-28, 1919. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v.6, n.6, p.340-348, 1920.).

Schuster nascera efetivamente em Frankfurt, em 1851, no seio de uma família judaica, e fez na sua cidade natal o percurso escolar alemão habitual. Em 1870, com o agravar das tensões antissemitas na Alemanha, a família decidiu mudar-se definitivamente para Manchester, na Inglaterra, e foi ali que Schuster fez a sua carreira académica, ao longo da qual deixou importantes contribuições para as áreas de espectroscopia, radioscopia, astronomia e meteorologia, tendo mantido sempre fortes ligações à Alemanha (Schuster, 1932SCHUSTER, Arthur. Biographical fragments. London: Macmillan, 1932.; Simpson, 1935SIMPSON, George C. Sir Arthur Schuster 1851-1934. Obituary Notices of Fellows of the Royal Society, v.1, n.4, p.409-423, 1935.). É evidente que o fato de a direção executiva de um organismo científico internacional, do qual a Alemanha estava expressamente excluída, ser entregue a um judeu de origem alemã não pode deixar de levantar múltiplas interrogações. É certo que Schuster era então cidadão britânico e participou nas conferências interaliadas na qualidade de representante da Inglaterra, mas, quando a guerra começou, a sua origem alemã já tinha sido objeto de ataques pessoais no quadro da Royal Society britânica, para a qual de resto fora eleito em 1879 (Alter, 1980ALTER, Peter. The Royal Society and the International Association of Academies 1897-1919. Notes and Records of the Royal Society of London, v.34, n.2, p.241-264, 1980., p.263), e no âmbito do International Research Council a sua posição em relação à exclusão da Alemanha foi em alguns momentos “decididamente enigmática” (Cock, 1983COCK, Alan G. Chauvinism and internationalism in science: The International Research Council, 1919-1926. Notes and Records of the Royal Society of London, v.37, n.2, p.249-288, 1983., p.256). Não obstante, a sua escolha parece obedecer a uma lógica pertinente. De fato, já em 1899 Schuster tinha sido incumbido de representar a Royal Society na Associação Internacional das Academias e, quando se reformou da universidade em 1907, passou a dedicar-se quase exclusivamente à organização da cooperação científica internacional no quadro da sociedade científica britânica, publicando diversos ensaios sobre a matéria em revistas da especialidade (Schuster, 1913SCHUSTER, Arthur. International cooperation in research. Science, v.37, n.958, p.691-701, 1913., 1915SCHUSTER, Arthur. The common aims of science and humanity. Science, v.42, n.1082, p.397-413, 1915.). Uma escolha lógica, portanto, mas que não deixa de ter zonas susceptíveis de serem lidas como ambíguas.

De qualquer modo, o panorama resultante da destruição trazida pela guerra, por um lado, e dessa exclusão, por outro, seria verdadeiramente devastador para a “ciência alemã”. O clima que então se vivia fica bem patente na violenta animosidade do breve texto publicado na Nature de 5 de setembro de 1918 e assinado pelo entomólogo britânico Lord Walsingham (1918WALSINGHAM, Lord. German naturalists and nomenclature. Nature, v.102, n.2549, p.4, 1918., p.4):

Estou em crer que a grande maioria dos naturalistas concordará com a seguinte frase do artigo de Sir Georg Hampson sobre as ‘Pyralidae’, publicada nos Proceedings of the Zoological Society, 1918 (p.55): “Não há citações de autores alemães publicadas depois de agosto de 1914. ‘Hostes humani generis’”. …

Esperemos que nos próximos vinte anos, pelo menos, todos os alemães sejam relegados para a categoria de pessoas com quem homens honestos recusarão ter qualquer tipo de relação.

Como é sabido, a reação da Alemanha de Weimar traduz-se, logo em 1920, na fundação da Associação de Emergência da Ciência Alemã (Notgemeinschaft der deutschen Wissenschaft), com o objetivo de tentar ultrapassar o isolamento a que o país fora votado e as sérias dificuldades que essas áreas sentiam,7 7 Recorde-se que os cientistas alemães estavam também individualmente impedidos de participar de qualquer tipo de atividade científica internacional. Esclarecedores, em termos do momento difícil que então se vivia, são, por exemplo, os relatórios de Adolf Jürgens (1922, 1923), bibliotecário da Associação de Emergência da Ciência Alemã. dificuldades que então se viam ainda substancialmente agravadas por um quadro económico calamitoso. A partir de 1926 a situação parece conhecer algum desanuviamento, com o convite endereçado a cientistas alemães e austríacos para se juntar ao International Research Council (cf. Alter, 1980ALTER, Peter. The Royal Society and the International Association of Academies 1897-1919. Notes and Records of the Royal Society of London, v.34, n.2, p.241-264, 1980., p.264; Schroeder-Gudehus, 1966SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte. Deutsche Wissenschaft und internationale Zusammenarbeit 1914-1928: Ein Beitrag zum Studium kultureller Beziehungen in politischen Krisenzeiten. (PhD These) – Université de Genève, Genève, 1966., p.213-259). Se bem que comedido, o otimismo que se apoderou de diversos cientistas e intelectuais alemães da época fica bem patente num livro de homenagem a Friedrich Schmidt-Ott, antigo ministro da cultura da Prússia e então presidente da Associação de Emergência da Ciência Alemã (Abb, 1930ABB, Gustav (ed.). Aus fünfzig Jahren deutscher Wissenschaft: Die Entwicklung ihrer Fachgebiete in Einzeldarstellungen. Berlin: de Gruyter, 1930.), onde se dá conta de uma atmosfera internacional “descontraída” e se projeta para a Alemanha um “novo tempo” e uma nova “missão”, ambos virados agora para as relações culturais e científicas com o estrangeiro na “linha universalista da Sociedade das Nações” (Schreiber, 1930SCHREIBER, Georg. Auslandsbeziehungen der deutschen Wissenschaft. In: Abb, Gustav (ed.). Aus fünfzig Jahren deutscher Wissenschaft: Die Entwicklung ihrer Fachgebiete in Einzeldarstellungen. Berlin: de Gruyter, 1930. p.9-21., p.21). A verdade, porém, é que essa atmosfera de desanuviamento e esperança duraria pouco tempo, já que a chegada dos nazistas ao poder voltaria de novo a alargar e a agravar o conflito entre a Alemanha e as instâncias científicas e políticas dos países aliados. A resistência que o novo regime nacionalista alemão oferecia ao diálogo e à cooperação internacionais, e os novos temas que a Alemanha hitleriana trouxe para o espaço político internacional ditariam inevitavelmente o fim das ilusões universalistas. Entre esses novos temas a questão da raça adquire um destaque muito particular, seja porque atravessa de uma forma dramática todo o período nazista, seja porque envolve diretamente a ciência da época, arrastando-a para discussões acesas que têm lugar num plano claramente político.

Como Wilhem Reich (1933REICH, Wilhelm. Massenpsychologie des Faschismus: Zur Sexualökonomie, der politischen Reaktion und zur proletarischen Sexualpolitik. Kopenhagen: Verlag für Sexualpolitik, 1933., p.115) certeiramente afirmava na sua Psicologia de massas do fascismo, obra publicada no mesmo ano em que os nazistas tomaram o poder, “o eixo teórico do fascismo alemão é a sua teoria da raça”. Lida hoje, a afirmação impressiona por sua lucidez e sua simplicidade. Contudo, é importante não esquecer que o surgimento de discussões em torno da questão da raça no espaço público ocidental não constitui propriamente uma novidade (ainda que o possa parecer a um olhar contemporâneo marcado por uma visão que atribui ao regime nazista um carácter de exceção no quadro da história da humanidade). Com efeito, a questão da raça não é de modo algum uma questão ignorada pela opinião pública ocidental do século XIX, mas em países diferentes tinha adquirido matizes temáticos diferentes. Nalguns casos surge diretamente ligada ao colonialismo, noutros está relacionada com o esclavagismo e a segregação racial, e noutros ainda é objeto de discussões centradas em torno de comunidades minoritárias específicas (cf., entre muitos outros, Manias, 2013MANIAS, Chris. Race, science, and the nation: reconstructing the ancient past in Britain, France and Germany. Abingdon: Routledge, 2013.). No caso específico da Alemanha, a questão da raça adquire contornos porventura mais vincados, na medida em que na sociedade da época estão presentes vários destes matizes: o colonialismo está evidentemente na ordem política do dia, por força da perda das colónias imposta pelo Tratado de Versalhes, e o mesmo se diria em relação às discussões em torno da segregação racial (e social) da comunidade judaica, uma questão que no contexto alemão remonta, pelo menos, ao século XIX e que após a derrota na Primeira Guerra Mundial vai progressivamente assumindo proporções cada vez mais agressivas.

Ao trazer para o debate político nacional a sua teoria pseudocientífica da raça, o novo regime alemão parecia ir ao encontro de uma ideia que reuniria naturalmente consenso entre o seu eleitorado (e provavelmente muito para além dele). Mas, num contexto internacional, uma teoria que via nos alemães uma “raça superior” e que defendia que a principal e “mais nobre” missão do Estado seria “conservar a pureza da raça e do sangue” da sua população (Reich, 1933REICH, Wilhelm. Massenpsychologie des Faschismus: Zur Sexualökonomie, der politischen Reaktion und zur proletarischen Sexualpolitik. Kopenhagen: Verlag für Sexualpolitik, 1933., p.115) colocava questões mais complexas. O consenso iria previsivelmente dar lugar a acesas discussões, e o conflito latente entre a Alemanha e as instâncias internacionais iria alargar-se, como de fato sucedeu.

De todo o modo, o que aqui importa sublinhar é que, ao transportar para o centro do debate político-ideológico internacional essa teoria pseudocientífica da raça, a Alemanha de Hitler estava também a proporcionar à ciência (da antropologia à biologia, sem esquecer a medicina e a sociologia) um protagonismo político que até aí lhe fora relativamente desconhecido. Que esta “viragem científica,” “biológica” ou “orgânica” imposta pela Alemanha nazista tenha tido sucesso – e por sucesso deve entender-se aqui fundamentalmente o ruído e as polémicas que a “viragem” provocou – dificilmente surpreende. Tratava-se de uma questão sensível na época, sobretudo atendendo ao fato de que a opinião pública do mundo ocidental estava também, desde meados do século XIX, particularmente recetiva às ideias que sugeriam ser possível e mesmo necessário “melhorar” o ser humano, de forma a travar aquilo que se acreditava ser a decadência da espécie e que a industrialização e a proletarização das cidades tinham posto à vista de todos. Aliás, a testemunhar o sucesso dessa “viragem orgânica” da política e da opinião pública internacionais estão precisamente as inúmeras publicações de cientistas anglo-americanos de renome que se sentem obrigados a contestar cientificamente e a repudiar publicamente a visão rácica alemã (Benedict, 1940BENEDICT, Ruth. Race, science and politics. New York: Modern Age Books, 1940.; Boas, 1915b; Fleure, 1937FLEURE, Herbert John. Nordic race and culture and German nationality. German Life and Letters, v.1, n.3, p.171-181, 1937.). A ciência tinha sido arrastada para um novo epicentro temático do debate político, e isso iria transformar o saber, o poder e, principalmente, a relação entre ambos.

Acresce que a agravar esse conflito latente se assiste, paralelamente, a um agudizar das tensões públicas entre as instâncias científicas internacionais e a Alemanha nazista, com a declaração de apoio a Hitler e ao Estado nacional-socialista subscrita em 1933 pelos professores das universidades alemãs (Bekenntnis..., 1933BEKENNTNIS der Professoren an den deutschen Universitäten und Hochschulen zu Adolf Hitler und dem nationalsozialistischen Staat überreicht vom nationalsozialistischen Lehrerbund. Dresden: Limpert, 1933.), declaração essa que não vem fazer mais do que encenar, deliberada e claramente, os apelos da mesma classe académica em 1914. A guerra acabara, portanto, mas o conflito não. O sinal de que a guerra iria recomeçar em breve estava agora dado, e, de novo, o sinal tinha sido dado pelos principais protagonistas da “ciência alemã:” os professores universitários alemães. O saber científico não estava apenas na linha da frente da luta política, mas na frente de todas as futuras linhas de combate. A expulsão dos cientistas e académicos judeus alemães em abril de 1933 é mais um passo nesse mesmo sentido, um passo que assinala, simbolicamente, a vitória do “nacionalismo orgânico” sobre o internacionalismo científico. Cerca de quatro anos mais tarde, com o regime de Hitler já consolidado no poder, a proibição da revista Nature na Alemanha nazista constitui um episódio elucidativo das transformações que os modos de relacionamento entre o saber e o poder então conheciam.

A Nature e a Alemanha nazista

A ordem de exclusão da prestigiada revista britânica das bibliotecas universitárias e científicas alemãs é enviada às administrações das universidades em 12 de novembro de 1937. De acordo com a nota então emitida pelo Ministério da Ciência e da Educação, “na revista científica semanal Nature publicada em Londres surgem frequentemente ensaios que contêm ataques baixos e ultrajantes à ciência alemã e ao Estado nacional-socialista. Essa revista tem por isso de ser excluída da zona de usuais das bibliotecas científicas” (citado em Hossfeld, Olsson, 2007).8 8 Os documentos alemães relativos à proibição são disponibilizados por Hossfeld, Olsson (2007, 2006). O texto refere ainda que a ordem não será publicada no jornal oficial do ministério, não sendo por isso do conhecimento público. Depreende-se que o assunto deveria ser tratado de forma discreta. Não deixa por isso de ser curioso registar que quem torna pública a notícia da proibição da Nature na Alemanha é justamente a própria Nature. No seu número de 22 de janeiro de 1938, um breve editorial não assinado (provavelmente da autoria de sir Richard Gregory, então editor da revista britânica) transcreve parcialmente a ordem alemã, nega as acusações de que a revista é alvo, lamenta a sua exclusão das bibliotecas alemãs, mas reafirma a sua intenção de continuar a lutar pela “liberdade científica,” e termina salientando que “a retirada da Nature das bibliotecas e de outras instituições será mais sentida por alguns dos nossos leitores na Alemanha do que por nós próprios” (Gregory, 1938GREGORY, Richard. Prohibition of NATURE in Germany. Nature, v.141, n.3560, p.151, 1938., p.151).

Na Alemanha nazista a notícia só é tornada pública em março de 1938, e é-o de uma forma que merece alguma atenção, na medida em que se tornam perfeitamente claras as implicações do deslocamento de um discurso científico para um espaço público político. No número 12 do terceiro volume da Revista para todas as Ciências Naturais (Zeitschrift für die gesamte Naturwissenschaft) é publicada uma comunicação relativamente extensa sobre a Nature. Assinada por Hans Rügemer, diretor do observatório astronómico de Munique, e intitulada “A ‘Nature’, uma revista abominável”, a comunicação procura no essencial justificar a proibição da revista britânica em face dos relatos “lacunares e a destilar ódio sobre a ciência alemã” que nela são publicados, especialmente notórios após a chegada ao poder dos nazistas (citado em Hossfeld, Olsson, 2007). Ora, o que aqui importa reter é que esta Revista para todas as Ciências Naturais não é exatamente uma revista científica da área das ciências naturais, apesar de o parecer: foi publicada de 1935 a 1944 e era o órgão da seção de ciências naturais da Liga Nacional-Socialista dos estudantes do Reich (Organ der Reichsfachgruppe Naturwissenschaft der Reichsstudentenführung). Acresce ainda que o título principal da revista é idêntico ao de outro períodico científico alemão publicado em Halle de 1853 a 1881, sugerindo que a nova publicação procura reatar uma tradição de “ciência alemã” que remonta ao século XIX. Por outro lado, é também, e sobretudo, importante sublinhar que a revista não deve ser confundida com a sua quase homónima e contemporânea As Ciências Naturais (Die Naturwissenschaften), que era na época a revista científica alemã de referência e havia sido fundada em 1913 pelo judeu-alemão Arnold Berliner, tendo justamente a britânica Nature por modelo. O modus operandi parasitário dos nazistas, nessa como em diversas outras áreas, está bem patente na dupla apropriação da tradição histórica e da reputação contemporânea da ciência produzida na Alemanha.

Quanto à razão de ser da proibição da Nature na Alemanha nazista não é propriamente difícil de descortinar. Se o status quo conflitual entre a Alemanha e os países aliados se mantinha nessas áreas desde o início da Primeira Guerra Mundial, a chegada dos nazistas ao poder agravou substancialmente o tom das discussões: uma boa parte dos académicos judeus expulsos da Alemanha em 1933 encontraram refúgio precisamente na Inglaterra, e os cientistas ingleses foram dos primeiros a denunciar as transformações que o Estado Nacional-Socialista estava a imprimir a instituições científicas alemãs, que gozavam ainda de algum prestígio internacional, e a chamar a atenção para o modo como conceitos oriundos da antropologia ou da biologia estavam a ser vulgarizados e deturpados no espaço público político.

Em todo o caso, valerá a pena olhar com algum detalhe para o modo como a revista britânica, desde a sua fundação em 1869, lidara com a ciência oriunda da Alemanha, até porque se trata de uma ciência que até 1914, pelo menos, teve um importante e reconhecido peso na teia das relações científicas internacionais (Figura 1).9 9 Os dados que estão na base desses gráficos têm origem nos índices da Nature e foram coligidos e trabalhados pelo autor. Os números apresentados pecam por defeito, uma vez que foram apenas considerados os títulos dos artigos. Além disso, os termos pesquisados limitaram-se ao nome do país, a alguns topónimos mais relevantes, e ainda a instituições e cientistas alemães com elevado grau de exposição no espaço científico internacional durante o período em questão. O corpus dos textos considerados é muito diversificado e inclui a carta do leitor, a notícia breve, o editorial ou o ensaio.

Figura1
: Gráfico do número de artigos da Nature relacionados com a Alemanha, 1869-1945 (Elaborado pelo autor)

Durante o período em análise, os anos do regime nazista sobressaem de uma forma exuberante. De fato, cerca de metade dos artigos relacionados com a Alemanha surgidos na Nature durante todo o período são publicados entre 1933 e 1945. Até ali, a Alemanha tem uma presença modesta, apesar de constante, nas páginas da revista britânica. De uma forma geral, as notícias são fundamentalmente informativas e dão conta de cursos de língua alemã para cientistas (recorde-se que, ao longo do século XIX, muitos cientistas britânicos se doutoraram na Alemanha; cf. Ellis, Kirchberger, 2014ELLIS, Heather; KIRCHBERGER, Ulrike (ed.). Anglo-German scholarly networks in the long Nineteenth Century. Leiden: Brill, 2014.), da fundação de novas instituições alemãs dedicadas à ciência, da realização de congressos internacionais na Alemanha, ou de expedições científicas que contaram com a participação de instituições e cientistas daquele país. Com o início da Primeira Guerra Mundial, o tom transforma-se radicalmente. O discurso até aí informativo (e, não raro, também encomiástico) dá lugar a denúncias dos “objetivos e ambições da Alemanha,” a qual, no dizer inequívoco do prestigiado cientista escocês William Ramsay (1914RAMSAY, William. Germany’s aims and ambitions. Nature, v.94, n.2345, p.137-139, 1914., p.137), Nobel da química em 1904, “pretende assegurar a supremacia do mundo para a sua raça”. Ao longo da guerra, essa visão é corroborada por diversos textos que se debruçam criticamente sobre o “carácter alemão,” a que se seguem, já no final do conflito, os apelos veementes ao boicote da ciência alemã (veja-se o caso já citado de Walsingham, 1918WALSINGHAM, Lord. German naturalists and nomenclature. Nature, v.102, n.2549, p.4, 1918.).

O discurso informativo regressa depois de 1918, mas a subida ao poder dos nazistas traz uma importante alteração quantitativa no número de notícias sobre a Alemanha publicadas pela Nature. Um olhar mais detalhado permite perceber que a larga maioria dos textos é publicada no período que antecede o início da Segunda Guerra Mundial (Figura 2), mas o que aqui importa verdadeiramente sublinhar é que a essa alteração quantitativa corresponde também uma profunda alteração qualitativa e temática dos textos.

Figura 2
: Gráfico do número de artigos da Nature relacionados com a Alemanha, 1933-1945 (Elaborado pelo autor)

Desde logo porque a primeira notícia sobre a Alemanha nazista data do final de abril de 1933 e dá conta da situação dos cientistas e intelectuais judeus na Alemanha e da sua exclusão das profissões liberais e das universidades. O texto refere o gesto solidário exemplar de James Franck (Nobel da física em 1925), que decidiu demitir-se da sua cátedra da universidade de Göttingen por entender que “os alemães de ascendência judaica estão a ser tratados como estrangeiros ou inimigos da pátria”, e termina sublinhando justamente a importância dos judeus para a cultura e a ciência alemãs, recordando os nomes de Moses Mendelssohn, Albert Einstein ou Heinrich Heine entre outros (Jews..., 1933).

Essa primeira notícia do ano de 1933 é, a vários títulos, significativa. Por um lado, porque a questão judaica atravessa de fato boa parte das notícias sobre a Alemanha nazista publicadas ao longo de todo esse período; por outro lado, porque o tema não só é novo (não há registo de textos desse teor durante o conflito anterior) como foi, quer se queira quer não, imposto pela política racial do regime alemão, que assim vê o núcleo central da sua ideologia ser objeto de discussão pública internacional; finalmente, porque a presença da questão judaica nas páginas da Nature reflete uma forte politização dessas áreas científicas. Com efeito, trata-se de uma questão indissociavelmente ligada à biopolítica ou, se se preferir, à “política orgânica” do regime nazista e que, a partir de 1933, parece estar sempre de alguma forma subjacente aos modos de pensar a ciência, a política e as relações entre ambas.

A esse respeito vale a pena seguir com algum detalhe a polémica que o texto de uma conferência do fisiólogo britânico Archibald Vivian Hill (Nobel da fisiologia ou medicina em 1922) despoleta na revista britânica a partir de dezembro de 1933. Refletindo sobre “A situação internacional e as obrigações da ciência”, Hill começa por recordar a histórica e tradicional “imunidade” dos cientistas num cenário de conflito bélico, reafirma a necessidade de um ambiente internacionalista, pautado pela liberdade de “pensamento”, “crença”, “ação” e “palavra”, para o avanço da ciência, e conclui denunciando os “milhares” de “advogados, médicos e professores” impedidos de exercer a sua profissão pelo regime nazista, os “100 mil que se encontram em campos de concentração” e a exclusão de “mais de mil intelectuais e cientistas, entre eles alguns dos mais eminentes na Alemanha” (Hill, 1933HILL, Archibald Vivian. International status and obligations of science. Nature, v.132, n.3347, p.952-954, 1933., p.954). Logo em janeiro de 1934, o tema da conferência de Hill volta às páginas da Nature, agora pela mão do também britânico J.B.S. Haldane, então diretor de investigação genética no centro Hortícola John Innes. Num texto intitulado “Ciência e política”, Haldane agradece a Hill em nome dos “trabalhadores científicos ter levantado a questão da sua situação num mundo em profunda tensão política,” mas também se distancia criticamente da “imunidade” que Hill reclama para a ciência, e chama a atenção para o fato de tanto a ciência como os cientistas estarem integrados numa sociedade e, como tal, não poderem (nem deverem) abdicar da sua capacidade de intervenção social nem dos seus direitos políticos (Haldane, 1934aHALDANE, John Burdon Sanderson. Science and politics. Nature, v.133, n.3350, p.65, 1934a.).10 10 Haldane estava longe de ser o único a ter essa visão mais radical sobre a “função social da ciência”. Alguns anos mais tarde, essa perspetiva torna-se cada vez mais consensual; ver, entre outros, o editorial da Nature de 24 de agosto de 1935 (Mechanism..., 1935) e Bernal (1939).

No mês seguinte, fevereiro de 1934, é a vez da Alemanha nazista reagir. Johannes Stark, Nobel da física em 1919 e então presidente do Instituto Meteorológico Imperial alemão (Physikalisch-Technische Reichsanstalt), envia uma carta ao editor da revista constestando as afirmações de Hill em relação ao modo como o governo nacional-socialista tratava os cientistas alemães, contrariando os números dos excluídos e dos internados em “campos de concentração” apresentados pelo cientista britânico (mas não negando a sua existência) e salientando que “as medidas que afetaram os cientistas judeus se destinavam a pôr um fim à enorme e injustificada influência” que estes tinham em algumas instituições científicas alemãs (Stark, 1934aSTARK, Johannes. International status and obligations of science. Nature, v.133, n.3356, p.290, 1934a., p.290). A resposta de Hill (1934)HILL, Archibald Vivian. International status and obligations of science. Nature, v.133, n.3356, p.290, 1934., que reafirma os dados antes avançados e se abstém de comentar o “absurdo” antissemitismo de Stark, é publicada imediatamente a seguir à carta deste, e ambos os documentos são precedidos de uma nota do editor da Nature declinando qualquer “responsabilidade em relação às opiniões expressas pelos seus correspondentes” (Letters..., 1934, p.290). Finalmente, em abril de 1934, Stark volta a endereçar nova carta ao editor da revista com o objetivo de desfazer alguns mal-entendidos sobre a “atitude do governo alemão em relação à ciência” e convidar Hill a visitar a Alemanha para verificar in loco a “realidade dos fatos” (Stark, 1934bSTARK, Johannes. The attitude of the German Government towards science. Nature, v.133, n.3364, p.614, 1934b., p.614). Um mês mais tarde, Haldane ainda regressa ao assunto usando as palavras do reitor da universidade de Frankfurt para descrever a crua “realidade dos fatos” na Alemanha nazista: “Hoje em dia, a missão das universidades não é cultivar a ciência objetiva, mas sim uma ciência militante e soldadesca, e a sua principal tarefa é formar o carácter e a vontade dos seus estudantes” (Haldane, 1934bHALDANE, John Burdon Sanderson. The attitude of the German Government towards science. Nature, v.133, n.3367, p.726, 1934b., p.726).

O tom e os temas das páginas da Nature tinham mudado significativamente no período entre as duas guerras. O padrão das polémicas e discussões era cada vez mais assumidamente político. A exclusão da Nature das bibliotecas alemãs em finais de 1937 decorre desse indisfarçável crescendo conflitual e do acumular de tensões entre o regime nazista e a comunidade (científica) britânica. De acordo com Hossfeld e Olsson (2007)HOSSFELD, Uwe; OLSSON, Lennart. Nature under Hitler. Nature, p.d41586-019- 01800-8, 2007. Disponível em: http://www.nature.com/articles/d41586-019-01800-8. Acesso em: 6 jan. 2020.
http://www.nature.com/articles/d41586-01...
, a causa próxima da proibição da revista britânica estará numa série de notícias sobre as comemorações do 550º aniversário da universidade de Heidelberg que revisitam, no fundamental, muitos dos argumentos já presentes na polémica despoletada pelo texto de Hill. E, de fato, as notícias então publicadas pela revista britânica são particularmente críticas em relação ao evento, ridicularizam a comemoração de cinco centenários e meio (que de resto consideram baseada em cálculos errados sobre a fundação da universidade de Heidelberg), denunciam a falta de liberdade académica na Alemanha e dão conta do teor fortemente antissemita dos discursos proferidos por ocasião da dedicação do centro de física daquela universidade a Philipp Lenard (cf. Heidelberg, Spinoza..., 1936HEIDELBERG, SPINOZA and academic freedom: from a correspondent. Nature, v.137, n.3460, p.303-304, 1936.; University of Heidelberg..., 1937UNIVERSITY OF HEIDELBERG and new conceptions of science: from a correspondent. Nature, v.139, n.3507, p.98-100, 1937.). Ora, esse agudizar das críticas à política científica da Alemanha nacional-socialista torna cada vez mais evidente que, na base do conflito entre cientistas ingleses e cientistas alemães ligados ao regime nazista, estão causas mais profundas que radicam na incomensurabilidade de duas visões antagónicas do mundo e da ciência.

Esse antagonismo fica exposto de uma forma particularmente elucidativa no primeiro volume de uma obra intitulada Física alemã, publicada em 1936, mesmo ano em que a universidade de Heidelberg celebrava o seu 550º aniversário e batizava o seu centro de física de Instituto Philipp Lenard. O seu autor é justamente o próprio Lenard, Nobel da física em 1905 e acérrimo opositor das teorias de Einstein (cf. Schönbeck, 2000SCHÖNBECK, Charlotte. Albert Einstein und Philipp Lenard: Antipoden im Spannungsfeld von Physik und Zeitgeschichte. Heidelberg: Springer, 2000.), que curiosamente sente a necessidade de justificar o seu título no prefácio (Lenard, 1936-1937LENARD, Philipp. Deutsche Physik. 4v. München: Rehmann, 1936-1937., [1936, v.1], p.IX):

‘Física alemã?’ – perguntará o leitor. Eu podia também ter dito física ariana ou física dos povos nórdicos, física dos que exploram a realidade, dos que buscam a verdade, física daqueles que fundaram a investigação científica. ‘A ciência é internacional e continuará sempre a sê-lo!’ – quererá o leitor objetar. Mas esta ideia é baseada numa falácia. Na realidade, a ciência é determinada pela raça e pelo sangue, tal como tudo o que é criado pelo ser humano. ... As nações de raças diferentes praticam a ciência de forma diferente.

O livro de Lenard é objeto de uma interessante recensão crítica na Nature da autoria de Edward Neville da Costa Andrade, cientista britânico que tinha se doutorado em Heidelberg, onde, aliás, trabalhara também sob a orientação de Lenard. A crítica é especialmente deferente em relação a Lenard e, nessa medida, parece adotar um tom bem diferente de diversos outros artigos publicados pela revista sobre a ciência na Alemanha nazista. Mas na verdade o texto corresponde a um (bem-sucedido) exercício de retórica que oscila entre a ironia e o sarcasmo, já que o estilo polido da escrita do cientista britânico contrasta flagrantemente com o absurdo das visões rácicas e antissemíticas de Lenard.

Andrade (1937ANDRADE, Edward Neville da Costa. Deutsche Physik. Nature, v.139, n.3528, p.983-984, 1937., p.983) começa por assinalar que “o Professor Lenard é conhecido pela sua fama ... como cientista ... e como político, [enquanto] fervoroso combatente do mal judeu”, sendo o livro o produto de um “patriota e pensador político profundo, por um lado, e de um físico, por outro”. Sempre contido nos adjetivos, o crítico expõe o absurdo da visão rácica da física projetada por Lenard num registo simples e direto, que se diria quase infantil:

O autor afirma que todas as raças tiveram a sua própria física: no passado houve a física dos Árabes, hoje pode talvez falar-se de uma física dos Japoneses. Não há uma física dos Negros, mas o reconhecimento de que há uma física dos Judeus foi retardado apenas porque os Judeus não escrevem numa língua, mas sim em muitas (Andrade, 1937ANDRADE, Edward Neville da Costa. Deutsche Physik. Nature, v.139, n.3528, p.983-984, 1937., p.983).

Salientando a autoridade de Lenard nessas áreas, uma vez que havia sido “incumbido da tarefa de fazer um relatório sobre o ‘judaísmo na ciência’ para o Instituto Histórico Imperial [Reichsinstitut für Geschichte]” (Andrade, 1937ANDRADE, Edward Neville da Costa. Deutsche Physik. Nature, v.139, n.3528, p.983-984, 1937., p.983), Andrade tem ainda tempo para uma apreciação genérica dos conteúdos científicos e pedagógicos da “obra de um grande conferencista e professor”, obra essa que, no entanto, considera irremediavelmente ultrapassada do ponto de vista científico dado que “não aborda os trabalhos recentes [nesta área] e se limita à física tal como era conhecida, digamos assim, no final do século passado” (p.984).

A resposta da Alemanha nazista tarda mas chega em 1938, significativamente no mesmo ano em que fora tornada pública a exclusão da Nature das bibliotecas alemãs, e vem pela mão de um dos mais assíduos correspondentes alemães da revista britânica durante o período: Johannes Stark. Num texto sobre o espírito pragmático e o espírito dogmático na física, Stark (1938)STARK, Johannes. The pragmatic and the dogmatic spirit in Physics. Nature, v.141, n.3574, p.770-772, 1938. faz a sua profissão de fé nos princípios da “física ariana” delineados por Lenard e põe desse modo um ponto final num diálogo que, apesar de tudo, tinha sido possível manter até então. Era mais que evidente que a guerra estava de novo ao virar da esquina.

O saber nos labirintos do poder

Tanto a constituição de um International Research Council, em finais de 1918, um conselho – recorde-se – que, apesar de se dizer “internacional”, era composto apenas pelos países aliados, como a proibição da revista Nature na Alemanha em 1937 correspondem a dois momentos importantes da reconfiguração do discurso científico no período entre as guerras. A retórica aparentemente contraditória dos argumentos que se esgrimem publicamente nesses dois momentos decisivos não deve porém iludir em relação à sua origem comum: o pensamento nacionalista. De um lado está obviamente o ultranacionalismo explícito do regime nazista, mas do outro lado está também o nacionalismo implícito (ou o “internacionalismo nacionalista”) que presidiu à fundação do International Research Council, já que como significativamente recordava em 1918 o então reitor da Universidade norte-americana de Columbia numa frase que sintetiza bem o pensamento da época, “na base do verdadeiro internacionalismo está o espírito nacionalista” (Butler, 1918BUTLER, Nicholas Murray. A nationalistic internationalism. The Advocate of Peace (1894-1920), v.80, n.10, p.302-303, 1918., p.303). Em ambos os momentos se assiste portanto a um deslocamento do discurso científico para um espaço público e político então dominado por ideias e ideais nacionalistas que inevitavelmente transformaram a ciência da época.

O processo de nacionalização do discurso científico que então se observa e que marca toda a primeira metade do século XX não é um fenómeno novo. Já em 1883 se constatava que “as publicações científicas de cada nação são características e, vistas como um todo, apresentam qualidades distintas” (National traits..., 1883NATIONAL TRAITS in science. Science, v.2, n.35, p.455-457, 1883., p.455). Essa visão evoluiria, entretanto, e os traços distintivos que aqui se registavam iriam adquirir novos contornos e dimensões bem mais claros a partir de 1914. Passadas algumas décadas, e mesmo antes da ascensão dos regimes autoritários europeus ou do totalitarismo na Alemanha, o consenso em torno dos ideais nacionalistas e da ideia de uma ciência ao serviço da nação estava já firmemente enraizado no quadro mental do mundo ocidental. “Toda a ciência [Wissenschaft] é fortemente determinada pelo nacional” (Schreiber, 1930SCHREIBER, Georg. Auslandsbeziehungen der deutschen Wissenschaft. In: Abb, Gustav (ed.). Aus fünfzig Jahren deutscher Wissenschaft: Die Entwicklung ihrer Fachgebiete in Einzeldarstellungen. Berlin: de Gruyter, 1930. p.9-21., p.9) é justamente a frase que abre um dos textos da homenagem a Friedrich Schmidt-Ott, antigo ministro da cultura da Prússia e então presidente da Associação de Emergência da Ciência Alemã, a que já se fez referência.

A afirmação tem o seu quê de paradoxal, seja porque o seu autor, Georg Schreiber, está muito longe de ser um seguidor das ideias de Lenard ou um adepto do nacional-socialismo (de 1920 a 1933 foi na verdade deputado pelo Partido do Centro no Reichstag), seja porque todo o seu texto gira em torno da necessidade de proporcionar à ciência alemã uma rede de relações internacionais que se enquadre na “linha universalista da Sociedade das Nações” (Schreiber, 1930SCHREIBER, Georg. Auslandsbeziehungen der deutschen Wissenschaft. In: Abb, Gustav (ed.). Aus fünfzig Jahren deutscher Wissenschaft: Die Entwicklung ihrer Fachgebiete in Einzeldarstellungen. Berlin: de Gruyter, 1930. p.9-21., p.21). O aparente paradoxo, contudo, não é do autor nem das ideias que desenvolve no seu texto, mas sim da própria época. A nacionalização do discurso científico é um processo complexo que está profundamente ligado ao processo de internacionalização que o mundo vive ao longo do século XIX. Ao contrário, no entanto, daquele que parece ser o entendimento geral e mais popularizado (também da época aqui em análise), o nacionalismo não se afirma contra o internacionalismo (exceção feita para o internacionalismo comunista). Não é um projeto concorrente ou antitético do internacionalismo como ideia, abstração ou mesmo ideal. É antes um processo afim dele, nas suas origens, bem como nos seus momentos mais radicais (cf. o passo citado de Butler, 1918BUTLER, Nicholas Murray. A nationalistic internationalism. The Advocate of Peace (1894-1920), v.80, n.10, p.302-303, 1918.; Muir, 1916MUIR, Ramsay. Nationalism and internationalism: the culmination of modern history. London: Constable, 1916.; Zimmern, 1923ZIMMERN, Alfred E. Nationalism and internationalism. Foreign Affairs, v.1, n.4, p.115-126, 1923.).

De qualquer modo, o que de fato merece destaque nas observações de Schreiber (1930SCHREIBER, Georg. Auslandsbeziehungen der deutschen Wissenschaft. In: Abb, Gustav (ed.). Aus fünfzig Jahren deutscher Wissenschaft: Die Entwicklung ihrer Fachgebiete in Einzeldarstellungen. Berlin: de Gruyter, 1930. p.9-21., p.9) é o consenso, por ele também corroborado, em torno de uma ciência “fortemente determinada pelo nacional”. Sob esse ponto de vista, a subida dos nazistas ao poder em 1933 constitui menos um momento de ruptura do que um momento de continuidade. Com efeito, num movimento que é bem característico dos regimes populistas, o regime nazista apropria-se parasitariamente desse consenso em torno de uma ciência nacional, consenso esse que, além do mais e por paradoxal que soe, se encontra na época internacionalmente generalizado. Porém, por circunstâncias várias, o processo de nacionalização do discurso científico é sobretudo e particularmente visível, em toda a sua exuberância e seu radicalismo, no espaço alemão, ainda que, como se teve a oportunidade de demonstrar, a exuberância e o radicalismo não estejam ausentes de outras visões nacionalistas das ciências.

De fato, é na Alemanha nazista que o nacionalismo – na sua vertente mais radical de nacionalismo rácico – permeia e se sobrepõe mais eficazmente ao discurso científico. O pedagogo nazista Ernst Krieck, professor em Heidelberg e um dos oradores nas comemorações do 550º centenário daquela universidade já anteriormente mencionadas, é particularmente claro em relação ao modo como o espaço social e o espaço científico se devem articular na perspetiva do pensamento nazista (Krieck, 1936KRIECK, Ernst. Nationalpolitische Erziehung. Leipzig: Armanen-Verlag, 1936., p.164): “Na sua essência a ciência continua a ser livre em termos do caminho e direção que a sua investigação toma. ... Porém, a futura ciência alemã deve assumir o compromisso de, à sua maneira e pelos seus próprios meios, contribuir para a tarefa histórica global exigida ao nosso povo”.

E mais adiante Krieck (1936KRIECK, Ernst. Nationalpolitische Erziehung. Leipzig: Armanen-Verlag, 1936., p.165) explicita com mais detalhe de que modo a atividade científica deve funcionar de forma a integrar-se plenamente na sociedade nacional-socialista em que se inscreve:

A vida comunitária do nosso povo [völkisches Gesamtleben] coloca à ciência questões e atribui-lhe tarefas, e, na medida em que com o seu método procura respostas para estas perguntas e cumpre as tarefas que lhe foram atribuídas, a ciência está também, do seu olhar inicial aos seus objetivos, centrada na realidade, toma parte no devir popular.

O ponto de partida e o ponto de chegada de toda a atividade científica, os princípios e os fins da ciência, eram, na visão de Krieck, determinados pela sociedade e estavam, portanto, subordinados aos poderes nacionais constituídos que dela emanavam. O poder tinha claramente capturado o saber. Mas mais: na medida em que o “devir popular” dessa sociedade se estruturava em torno de uma noção alegadamente científica de “raça”, a ciência via-se desse modo transportada para o centro do palco político, onde era chamada a desempenhar funções que antes lhe eram alheias. Ou seja, os labirintos do poder não se tinham apenas apropriado do saber, tinham-no funcionalizado, transformando-o, desse modo, num importante recurso do poder.

REFERÊNCIAS

  • ABB, Gustav (ed.). Aus fünfzig Jahren deutscher Wissenschaft: Die Entwicklung ihrer Fachgebiete in Einzeldarstellungen. Berlin: de Gruyter, 1930.
  • ALTER, Peter. The Royal Society and the International Association of Academies 1897-1919. Notes and Records of the Royal Society of London, v.34, n.2, p.241-264, 1980.
  • AN DIE KULTURWELT. Freiburger Zeitung, Morgenausgabe, n.5.10.1914, p.2, 1914.
  • ANDRADE, Edward Neville da Costa. Deutsche Physik. Nature, v.139, n.3528, p.983-984, 1937.
  • BEKENNTNIS der Professoren an den deutschen Universitäten und Hochschulen zu Adolf Hitler und dem nationalsozialistischen Staat überreicht vom nationalsozialistischen Lehrerbund. Dresden: Limpert, 1933.
  • BENEDICT, Ruth. Race, science and politics. New York: Modern Age Books, 1940.
  • BENSAUDE-VINCENT, Bernadette; BLONDEL, Christine (ed.). Science and spectacle in the European Enlightenment. Aldershot: Ashgate, 2008.
  • BERNAL, John Desmond. Science in History. 4 v. London: Penguin, 1969.
  • BERNAL, John Desmond. The social function of science. London: G. Routledge, 1939.
  • BERNSTEIN, Barton J. The Oppenheimer Loyalty-Security Case Reconsidered. Stanford Law Review, v.42, n.6, p.1383-1484, 1990.
  • BOAS, Franz. Nationalism in Europe. Chicago: Germanistic Society of Chicago, 1915a.
  • BOAS, Franz. Race and nationality. New York: American Association for International Conciliation, 1915b.
  • BUTLER, Nicholas Murray. A nationalistic internationalism. The Advocate of Peace (1894-1920), v.80, n.10, p.302-303, 1918.
  • CAMPBELL, William W. Report of the meetings of the International Research Council and of the Affiliated Unions held at Brussels, July 18-28, 1919. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v.6, n.6, p.340-348, 1920.
  • CHAGNON, Marie-Eve. Le Manifeste des 93: la mobilisation des académies françaises et allemandes au déclenchement de la Première Guerre mondiale (1914-1915). French Historical Studies, v.35, n.1, p.123-147, 2012.
  • COCK, Alan G. Chauvinism and internationalism in science: The International Research Council, 1919-1926. Notes and Records of the Royal Society of London, v.37, n.2, p.249-288, 1983.
  • CRAWFORD, Elisabeth. Internationalism in science as a casualty of the First World War: relations between German and allied scientists as reflected in nominations for the Nobel prizes in physics and chemistry. Social Science Information, v.27, n.2, p.163-201, 1988.
  • EIJKMAN, Pieter Hendrik (ed.). L’internationalisme scientifique (sciences pures et lettres). La Haye: Stockum, 1911.
  • ELLIS, Heather; KIRCHBERGER, Ulrike (ed.). Anglo-German scholarly networks in the long Nineteenth Century. Leiden: Brill, 2014.
  • ERKLÄRUNG der Hochschullehrer des Deutschen Reiches/Déclaration des professeurs des Universités e t des Écoles supérieures de l’Empire allemand. Berlin: [Klokow], 1914.
  • FLEURE, Herbert John. Nordic race and culture and German nationality. German Life and Letters, v.1, n.3, p.171-181, 1937.
  • FORMAN, Paul. Scientific internationalism and the Weimar physicists: the ideology and its manipulation in Germany after World War I. Isis, v.64, n.2, p.151-180, 1973.
  • GREGORY, Richard. Prohibition of NATURE in Germany. Nature, v.141, n.3560, p.151, 1938.
  • HALDANE, John Burdon Sanderson. Science and politics. Nature, v.133, n.3350, p.65, 1934a.
  • HALDANE, John Burdon Sanderson. The attitude of the German Government towards science. Nature, v.133, n.3367, p.726, 1934b.
  • HARDY, Godfrey. The International Research Council. Nature, v.107, n.2682, p.107-108, 1921.
  • HEIDELBERG, SPINOZA and academic freedom: from a correspondent. Nature, v.137, n.3460, p.303-304, 1936.
  • HILL, Archibald Vivian. International status and obligations of science. Nature, v.133, n.3356, p.290, 1934.
  • HILL, Archibald Vivian. International status and obligations of science. Nature, v.132, n.3347, p.952-954, 1933.
  • HOLLAND, William J. Shall writers upon the Biological Sciences agree to ignore systematic papers published in the German language since 1914? Science, v.48, n.1245, p.469-471, 1918.
  • HOSSFELD, Uwe; OLSSON, Lennart. Nature under Hitler. Nature, p.d41586-019- 01800-8, 2007. Disponível em: http://www.nature.com/articles/d41586-019-01800-8 Acesso em: 6 jan. 2020.
    » http://www.nature.com/articles/d41586-019-01800-8
  • HOSSFELD, Uwe; OLSSON, Lennart. Freedom of the mind got Nature banned by the Nazis. Nature, v.443, n.7109, p.271, 2006.
  • INTER-ALLIED CONFERENCE on International Scientific Organisations. Nature, v.102, n.2555, p.133, 1918.
  • INTERNATIONAL SCIENCE and the war. Science, v.50, n.1298, p.453-454, 1919.
  • INTERNATIONAL SCIENTIFIC Organization. Science, v.48, n.1247, p.509-510, 1918.
  • JEROME, Fred. The Einstein File: J. Edgar Hoover’s secret war against the world’s most famous scientist. New York: St. Martin’s Press, 2002.
  • JEWS in Germany. Nature, v.131, n.3313, p.612, 1933.
  • JÜRGENS, Adolf. Aus der Arbeit des Bibliotheksausschusses der Notgemeinschaft der Deutschen Wissenschaft. Zentralblatt für Bibliothekswesen, v.40, n.8-9, p.442-447, 1923.
  • JÜRGENS, Adolf. Bericht über die Tätigkeit des Bibliotheksausschusses der Notgemeinschaft der Deutschen Wissenschaft bis zum März 1922. Zentralblatt für Bibliothekswesen, v.39, n.7-8, p.247-255, 1922.
  • KARO, Georg Heinrich. Der Krieg der Wissenschaften gegen Deutschland: Dokumente feindlicher Wissenschaft. München: Bruckmann, 1919.
  • KELLERMANN, Hermann (ed.). Der Krieg der Geister: Eine Auslese deutscher und ausländischer Stimmen zum Weltkriege 1914. Weimar: Duncker, 1915.
  • KERKHOF, Karl. Der Krieg gegen die deutsche Wissenschaft: Eine Zusammenstellung von Kongressberichten und Zeitungsmeldungen. Wittenberg: Herrosé & Ziemsen, 1922.
  • KEVLES, Daniel J. “Into hostile political camps”: the reorganization of international science in World War I. Isis, v.62, n.1, p.47-60, 1971.
  • KRIECK, Ernst. Nationalpolitische Erziehung. Leipzig: Armanen-Verlag, 1936.
  • KUHN, Thomas S. The relations between history and history of science. Daedalus, v.100, n.2, p.271-304, 1971.
  • LENARD, Philipp. Deutsche Physik. 4v. München: Rehmann, 1936-1937.
  • LETTERS to the e ditor. Nature, v.133, n.3356, p.290, 1934.
  • LOCHNER, Louis Paul. Internationalism among universities. Boston: World Peace Foundation, 1913.
  • LOPES, Quintino Manuel J. A Junta de Educação Nacional (1929-1936): traços de europeização na investigação científica em Portugal. Tese (Doutorado em História e Filosofia da Ciência) – Universidade de Évora, Évora, 2017.
  • MACLEOD, Roy. The mobilisation of minds and the crisis in international science: the Krieg der Geister and the Manifesto of the 93. Journal of War & Culture Studies, v.23, n.1, p.58-78, 2018.
  • MANIAS, Chris. Race, science, and the nation: reconstructing the ancient past in Britain, France and Germany. Abingdon: Routledge, 2013.
  • MECHANISM of society. Nature, v.136, n.3434, p.275-276, 1935.
  • MUIR, Ramsay. Nationalism and internationalism: the culmination of modern history. London: Constable, 1916.
  • NATIONAL TRAITS in science. Science, v.2, n.35, p.455-457, 1883.
  • NINHOS, Cláudia S. Para que Marte não afugente as musas: a política cultural alemã em Portugal e o intercâmbio (1933-1945). Tese (História Contemporânea) – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2016.
  • PICARD, Émile; LACROIX, Alfred. La Conférence Interalliée des Académies Scientifiques à Londres. Comptes Rendus. Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences, v.167, n.17, p.566-570, 1918.
  • RAMSAY, William. Germany’s aims and ambitions. Nature, v.94, n.2345, p.137-139, 1914.
  • REICH, Wilhelm. Massenpsychologie des Faschismus: Zur Sexualökonomie, der politischen Reaktion und zur proletarischen Sexualpolitik. Kopenhagen: Verlag für Sexualpolitik, 1933.
  • RENN, Jürgen. From the history of science to the history of knowledge – and back. Centaurus, v.57, n.1, p.37-53, 2015.
  • ROUTLEDGE, Robert. A popular history of science. London: G. Routledge, 1881.
  • RUSE, Michael. The evolution wars: A guide to the debates. Millerton, NY: Grey House, 2009.
  • SALGUEIRO, Ângela et al. (ed.). Internacionalização da ciência: internacionalismo científico. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2014.
  • SCHÖNBECK, Charlotte. Albert Einstein und Philipp Lenard: Antipoden im Spannungsfeld von Physik und Zeitgeschichte. Heidelberg: Springer, 2000.
  • SCHREIBER, Georg. Auslandsbeziehungen der deutschen Wissenschaft. In: Abb, Gustav (ed.). Aus fünfzig Jahren deutscher Wissenschaft: Die Entwicklung ihrer Fachgebiete in Einzeldarstellungen. Berlin: de Gruyter, 1930. p.9-21.
  • SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte. Les scientifiques et la paix: la communauté scientifique internationale au cours des années 20. Montreal: Presses de l’Université de Montréal, 1978.
  • SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte. Deutsche Wissenschaft und internationale Zusammenarbeit 1914-1928: Ein Beitrag zum Studium kultureller Beziehungen in politischen Krisenzeiten. (PhD These) – Université de Genève, Genève, 1966.
  • SCHUSTER, Arthur. Biographical fragments. London: Macmillan, 1932.
  • SCHUSTER, Arthur. The common aims of science and humanity. Science, v.42, n.1082, p.397-413, 1915.
  • SCHUSTER, Arthur. International cooperation in research. Science, v.37, n.958, p.691-701, 1913.
  • SILVA, André Felipe Cândido da. Dimensões históricas da internacionalização: o papel da diplomacia cultural alemã na mobilidade acadêmica transnacional (1919-1945). Política & Sociedade, v.17, n.38, p.256-303, 2018.
  • SIMPSON, George C. Sir Arthur Schuster 1851-1934. Obituary Notices of Fellows of the Royal Society, v.1, n.4, p.409-423, 1935.
  • SLUGA, Glenda; CLAVIN, Patricia (ed.). Internationalisms: a Twentieth-Century history. Cambridge: Cambride University Press, 2016.
  • STARK, Johannes. The pragmatic and the dogmatic spirit in Physics. Nature, v.141, n.3574, p.770-772, 1938.
  • STARK, Johannes. International status and obligations of science. Nature, v.133, n.3356, p.290, 1934a.
  • STARK, Johannes. The attitude of the German Government towards science. Nature, v.133, n.3364, p.614, 1934b.
  • THE NEW YORK TIMES current history of the European war, v.1: What men of letters say. New York: The New York Times, 1914.
  • UNIVERSITY OF HEIDELBERG and new conceptions of science: from a correspondent. Nature, v.139, n.3507, p.98-100, 1937.
  • WALSINGHAM, Lord. German naturalists and nomenclature. Nature, v.102, n.2549, p.4, 1918.
  • WEHBERG, Hans. Wider den Aufruf der 93! Das Ergebnis einer Rundfrage an die 93 Intellektuellen über die Kriegsschuld. Charlottenburg: Deutsche Verlagsgesellschaft für Politik und Geschichte, 1920.
  • YOUMANS, Edward Livingston (ed.). Modern culture: Its true aims and requirements: a series of addresses and arguments on the claims of scientific education. London: Macmillan, 1867.
  • ZIMMERN, Alfred E. Nationalism and internationalism. Foreign Affairs, v.1, n.4, p.115-126, 1923.

NOTAS

  • 1
    Os termos “saber” e “ciência” são usados ao longo destas páginas numa acepção alargada, inclusiva e, muitas vezes, relativamente indiferenciada. Na origem dessa acepção alargada está a sugestão recente de Jürgen Renn (2015)RENN, Jürgen. From the history of science to the history of knowledge – and back. Centaurus, v.57, n.1, p.37-53, 2015. sobre a necessidade de enquadrar a história da ciência numa história mais global do “saber” ou do “conhecimento”. Trata-se de uma sugestão particularmente pertinente nesse caso dado que só uma noção alargada de “ciência” como “saber” parece estar em condições de traduzir com algum rigor o uso dos termos Wissenschaft (em alemão) ou (em parte também) Science (em inglês) ao longo do período aqui em análise.
  • 2
    A literatura sobre o nacionalismo durante o período aqui em análise é imensa. Neste contexto bastará chamar a atenção para o modo lúcido como o antropólogo Franz Boas (1915aBOAS, Franz. Nationalism in Europe. Chicago: Germanistic Society of Chicago, 1915a., 1915bBOAS, Franz. Race and nationality. New York: American Association for International Conciliation, 1915b.) caracteriza e problematiza os nacionalismos europeus da época, sua lógica, sua história e também as ficções que lhes estão subjacentes, em duas conferências realizadas em 1915.
  • 3
    Sobre o “manifesto dos 93”, vejam-se também os documentos contemporâneos coligidos na Alemanha por Kellermann (1915)KELLERMANN, Hermann (ed.). Der Krieg der Geister: Eine Auslese deutscher und ausländischer Stimmen zum Weltkriege 1914. Weimar: Duncker, 1915. e por Wehberg (1920)WEHBERG, Hans. Wider den Aufruf der 93! Das Ergebnis einer Rundfrage an die 93 Intellektuellen über die Kriegsschuld. Charlottenburg: Deutsche Verlagsgesellschaft für Politik und Geschichte, 1920., assim como os estudos de Chagnon (2012)CHAGNON, Marie-Eve. Le Manifeste des 93: la mobilisation des académies françaises et allemandes au déclenchement de la Première Guerre mondiale (1914-1915). French Historical Studies, v.35, n.1, p.123-147, 2012. ou MacLeod (2018)MACLEOD, Roy. The mobilisation of minds and the crisis in international science: the Krieg der Geister and the Manifesto of the 93. Journal of War & Culture Studies, v.23, n.1, p.58-78, 2018..
  • 4
    Sobre a deriva internacionalista que o discurso científico então conhece vejam-se os estudos pioneiros de Schroeder-Gudehus (1966SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte. Deutsche Wissenschaft und internationale Zusammenarbeit 1914-1928: Ein Beitrag zum Studium kultureller Beziehungen in politischen Krisenzeiten. (PhD These) – Université de Genève, Genève, 1966., 1978SCHROEDER-GUDEHUS, Brigitte. Les scientifiques et la paix: la communauté scientifique internationale au cours des années 20. Montreal: Presses de l’Université de Montréal, 1978.), Kevles (1971)KEVLES, Daniel J. “Into hostile political camps”: the reorganization of international science in World War I. Isis, v.62, n.1, p.47-60, 1971. e Forman (1973)FORMAN, Paul. Scientific internationalism and the Weimar physicists: the ideology and its manipulation in Germany after World War I. Isis, v.64, n.2, p.151-180, 1973., assim como diversos dos ensaios incluídos em Sluga, Calvin (2016)SLUGA, Glenda; CLAVIN, Patricia (ed.). Internationalisms: a Twentieth-Century history. Cambridge: Cambride University Press, 2016., que refletem um renovado interesse pela temática da internacionalização em contextos académicos. Neste âmbito, importa deixar aqui ainda uma referência a trabalhos similares produzidos em zonas geográficas porventura mais periféricas em relação aos conflitos que assolaram o mundo na primeira metade do século XX, mas que não são menos relevantes, uma vez que proporcionam uma visão mais alargada e completa do alcance daquela deriva internacionalista: vejam-se, por exemplo, os ensaios reunidos por Salgueiro et al. (2014)SALGUEIRO, Ângela et al. (ed.). Internacionalização da ciência: internacionalismo científico. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2014., ou em particular os estudos de Ninhos (2016)NINHOS, Cláudia S. Para que Marte não afugente as musas: a política cultural alemã em Portugal e o intercâmbio (1933-1945). Tese (História Contemporânea) – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2016., Lopes (2017)LOPES, Quintino Manuel J. A Junta de Educação Nacional (1929-1936): traços de europeização na investigação científica em Portugal. Tese (Doutorado em História e Filosofia da Ciência) – Universidade de Évora, Évora, 2017. e Silva (2018)SILVA, André Felipe Cândido da. Dimensões históricas da internacionalização: o papel da diplomacia cultural alemã na mobilidade acadêmica transnacional (1919-1945). Política & Sociedade, v.17, n.38, p.256-303, 2018..
  • 5
    Nessa e nas demais citações de textos em outras línguas, a tradução é da responsabilidade do autor.
  • 6
    Na Alemanha da época, as reações a esse bloqueio não foram, como seria de esperar, menos contundentes, nem menos críticas (cf. Karo, 1919KARO, Georg Heinrich. Der Krieg der Wissenschaften gegen Deutschland: Dokumente feindlicher Wissenschaft. München: Bruckmann, 1919.; Kerkhof, 1922KERKHOF, Karl. Der Krieg gegen die deutsche Wissenschaft: Eine Zusammenstellung von Kongressberichten und Zeitungsmeldungen. Wittenberg: Herrosé & Ziemsen, 1922.). Sobre a exclusão dos cientistas alemães, vejam-se Cock (1983)COCK, Alan G. Chauvinism and internationalism in science: The International Research Council, 1919-1926. Notes and Records of the Royal Society of London, v.37, n.2, p.249-288, 1983., Kevles (1971)KEVLES, Daniel J. “Into hostile political camps”: the reorganization of international science in World War I. Isis, v.62, n.1, p.47-60, 1971. e Crawford (1988)CRAWFORD, Elisabeth. Internationalism in science as a casualty of the First World War: relations between German and allied scientists as reflected in nominations for the Nobel prizes in physics and chemistry. Social Science Information, v.27, n.2, p.163-201, 1988..
  • 7
    Recorde-se que os cientistas alemães estavam também individualmente impedidos de participar de qualquer tipo de atividade científica internacional. Esclarecedores, em termos do momento difícil que então se vivia, são, por exemplo, os relatórios de Adolf Jürgens (1922JÜRGENS, Adolf. Bericht über die Tätigkeit des Bibliotheksausschusses der Notgemeinschaft der Deutschen Wissenschaft bis zum März 1922. Zentralblatt für Bibliothekswesen, v.39, n.7-8, p.247-255, 1922., 1923JÜRGENS, Adolf. Aus der Arbeit des Bibliotheksausschusses der Notgemeinschaft der Deutschen Wissenschaft. Zentralblatt für Bibliothekswesen, v.40, n.8-9, p.442-447, 1923.), bibliotecário da Associação de Emergência da Ciência Alemã.
  • 8
    Os documentos alemães relativos à proibição são disponibilizados por Hossfeld, Olsson (2007HOSSFELD, Uwe; OLSSON, Lennart. Nature under Hitler. Nature, p.d41586-019- 01800-8, 2007. Disponível em: http://www.nature.com/articles/d41586-019-01800-8. Acesso em: 6 jan. 2020.
    http://www.nature.com/articles/d41586-01...
    , 2006HOSSFELD, Uwe; OLSSON, Lennart. Freedom of the mind got Nature banned by the Nazis. Nature, v.443, n.7109, p.271, 2006.).
  • 9
    Os dados que estão na base desses gráficos têm origem nos índices da Nature e foram coligidos e trabalhados pelo autor. Os números apresentados pecam por defeito, uma vez que foram apenas considerados os títulos dos artigos. Além disso, os termos pesquisados limitaram-se ao nome do país, a alguns topónimos mais relevantes, e ainda a instituições e cientistas alemães com elevado grau de exposição no espaço científico internacional durante o período em questão. O corpus dos textos considerados é muito diversificado e inclui a carta do leitor, a notícia breve, o editorial ou o ensaio.
  • 10
    Haldane estava longe de ser o único a ter essa visão mais radical sobre a “função social da ciência”. Alguns anos mais tarde, essa perspetiva torna-se cada vez mais consensual; ver, entre outros, o editorial da Nature de 24 de agosto de 1935 (Mechanism..., 1935MECHANISM of society. Nature, v.136, n.3434, p.275-276, 1935.) e Bernal (1939)BERNAL, John Desmond. The social function of science. London: G. Routledge, 1939..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2020
  • Aceito
    16 Nov 2020
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br