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Saúde e dietética na medicina preventiva medieval: o regimento de saúde de Pedro Hispano (século XIII)

Resumos

Analisa o Livro sobre a conservação da saúde, obra médica preventiva, composta no século XIII pelo físico/médico português Pedro Hispano (?1210-1277), que nos permite observar as concepções de saúde e higiene e compreender o papel social dos físicos universitários na medicina preventiva medieval. A obra mostra sempre a noção de equilíbrio na saúde corporal entre os elementos internos, as coisas naturais (compleição, por exemplo), e os externos, as coisas não naturais (ar, sono, exercício, alimentos, banhos, paixões da alma).

dietética; regimento de saúde; mestres físicos; medicina preventiva; século XIII


This text is an analysis of a preventive medical work, Liber de conservanda sanitate, composed in the thirteenth century by the Portuguese physician and doctor, Peter of Spain (?1210-1277). His work enables us to look at the conceptions of health and hygiene and understand the social role of university physicians in medieval preventive medicine. The work constantly displays the notion of the balance in corporal health between internal elements, or natural things (complexion, for example), and external ones, or non-natural things (air, sleep, exercise, food, baths, passions of the soul).

dietetics; health regimen; physician professors; preventive medicine; thirteenth century


ANÁLISE

Saúde e dietética na medicina preventiva medieval: o regimento de saúde de Pedro Hispano (século XIII)* * Este texto faz parte da pesquisa histórica intitulada O Percurso Intelectual do Físico Pedro Hispano: as Relações Entre a Medicina Universitária e a Sociedade Europeia no Século XIII, financiada pelo CNPq.

Dulce O. Amarante dos SantosI; Maria Daílza da Conceição FagundesII

IProfessora do Programa de Pós-graduação em História/Universidade Federal de Goiás. Rua do Babaçu, quadra 29, lote 15, n.151, 74663-110 - Goiânia - GO - Brasil. doas@prppg.ufg.br

IIProfessora de história medieval/Universidade Estadual de Goiás. Rua 209A, Edifício Los Angeles, apt.315d., 74645-010 - Goiânia - GO - Brasil. dailzafagundes@yahoo.com.br

RESUMO

Analisa o Livro sobre a conservação da saúde, obra médica preventiva, composta no século XIII pelo físico/médico português Pedro Hispano (?1210-1277), que nos permite observar as concepções de saúde e higiene e compreender o papel social dos físicos universitários na medicina preventiva medieval. A obra mostra sempre a noção de equilíbrio na saúde corporal entre os elementos internos, as coisas naturais (compleição, por exemplo), e os externos, as coisas não naturais (ar, sono, exercício, alimentos, banhos, paixões da alma).

Palavras-chave: dietética; regimento de saúde; mestres físicos; medicina preventiva; século XIII.

Entre os diversos gêneros de textos médicos medievais em latim, figuram os regimentos de saúde, compostos a partir do final do século XII e início do XIII, no contexto europeu do surgimento da medicina universitária urbana. Trata-se de manuais de orientações dietéticas à margem das ideias religiosas ou mágicas, que denotam preocupação com a manutenção da saúde corporal. O Liber de conservanda sanitate (Livro sobre a conservação da saúde), atribuído ao físico português Pedro Hispano (?1210-1277), objeto de análise deste artigo, constitui exemplo concreto desse interesse pela preservação da saúde e da luta para evitar as doenças.

Pedro Hispano, homem de ciência ou saber, integrava a minoria de físicos, estudantes e mestres universitários que, naquele momento, buscavam abordar racionalmente, no plano teórico, o mundo da natureza e os fenômenos naturais, tais como a saúde e a doença. Um dos fatores que contribuíram para isso foi a divulgação de um corpus de textos médicos gregos e árabes traduzidos para o latim, no século XII, sobretudo na cidade de Toledo. De autores da Antiguidade, tais como Aristóteles, Hipócrates, Galeno e Dioscórides, e de médicos e filósofos naturais árabes, como Avicena, Averróis, Haly Abbas, entre outros, esses textos compunham os chamados libri naturales, ensinados no curso da Faculdade de Artes (trivium e quadrivium), pré-requisito para quem quisesse estudar medicina nas universidades medievais de Paris, Montpellier e Siena. Algumas vezes essas obras foram proibidas pela Igreja católica, em especial na Universidade de Paris, embora continuassem a ser lidas e comentadas por mestres e seus alunos. Dessa maneira, a filosofia natural helenística ofereceu diversos modelos de pensamento que serviram de instrumentos na elaboração de explicações racionais da natureza humana e suas relações com o mundo e o cosmo. Surgiu, então, um novo modelo de relação entre o conhecimento religioso adquirido pela fé (fide) e a razão humana (ratione), incentivado pela introdução, no currículo universitário, de outras disciplinas laicas originárias do mundo islâmico, tais como a astronomia, a medicina, a filosofia natural, a metafísica e a ética.

Saúde e dietética constituem os conceitos básicos da medicina preventiva construída pelo galenismo medieval e latino, ou seja, as teorias médicas de Galeno (século II) transmitidas pelos comentadores árabes (Avicena, entre outros). Ao longo dos tempos, o conceito de saúde em relação ao corpo humano alterou-se conforme os contextos sócio-históricos específicos. Assim, a partir do aparecimento das universidades, nos meados do século XII e ao longo do XIII, uma minoria de intelectuais, entre eles Pedro Hispano, transformou a saúde humana em objeto de especulação acadêmica e preocupação social (García Ballester, 2004, p.533-534). O corpo humano era considerado o microcosmo, ou seja, o espelho do universo, o macrocosmo. Constituía-se de quatro humores líquidos, relacionados aos quatro elementos da matéria, segundo a Física, de Aristóteles: o sangue (ar), a fleuma (água), a bílis amarela (fogo) e a bílis negra (terra). A saúde resultava da harmonia ou equilíbrio ideal interno dos quatro humores e de suas qualidades (quente, frio, seco e úmido) no corpo humano. Uma vez, porém, que todos os corpos estavam sujeitos à mudança e à corrupção, o desequilíbrio interno desses humores (e as respectivas qualidades) provocava a enfermidade.

No trecho a seguir, Hispano, de um lado, revela o interesse pela dietética e a influência do galenismo medieval em sua obra e, por outro, procura precisar a concepção de saúde, justificando também o papel social dos físicos (intérpretes da natureza) como guias em sua prevenção e manutenção, e demonstrando a importância da arte da medicina:

Saúde é uma disposição que conserva o que é natural no homem, segundo o curso da natureza. Pois, como o corpo humano é susceptível de corrupção e está submetido a um fluxo quádruplo, são-lhe necessárias regras dos físicos, pelas quais se defenda dos acidentes. É que é mais útil prevenir as doenças do que, uma vez contraídas, andar a pedir auxílio, que provavelmente é impossível (Hispano, 1997, p.3).

A dietética, a farmácia e a cirurgia compunham os três ramos da arte médica prática e terapêutica da Antiguidade greco-romana e helenística. O termo dieta (diaeta) era utilizado, tanto na área científica quanto na literatura ou filosofia, para designar o modo de vida ou o conjunto de hábitos corporais e mentais de um indivíduo. O regimento de saúde, Esse gênero de obra médica do qual tratamos aqui, remonta aos textos da Escola Hipocrática da ilha de Cós, aos da ciência helenística e à síntese de Galeno.

Já na Alta Idade Média, segundo Isidoro de Sevilha, em sua obra Etimologias (século VII), tratar era, em primeiro lugar, restaurar a energia vital, considerada o verdadeiro agente de cura e manutenção da saúde. A partir do século XII, o termo dieta limitou-se ao significado médico, relacionado, entre outros, ao conhecimento dos alimentos, que poderiam igualmente servir para curar doenças e desencadeá-las. Higiene era outro termo cujo significado abrangia, além do regime alimentar, os fatores externos do meio circundante. Ao longo da Idade Média acrescentaram-se os regimes de saúde da medicina árabe, e esse conjunto de influências produziu variações nos formatos e conteúdos dos regimentos. A dietética sempre teve o homem como centro de suas preocupações, voltando-se para a filosofia natural a fim de compreender a interação entre saúde e doença e aprofundar os conhecimentos sobre o humano (Jacquart, 1995, p.178; Nicoud, 2007, p.339). Não se tratava, contudo, de pura especulação teórica desvinculada da vida prática, pois a partir do século XIII os conceitos de saúde e dietética integravam a medicina preventiva, entrelaçando-se assim na teoria médica escolástica e na prática terapêutica. A obra de Pedro Hispano, de meados do século XIII, apresenta, portanto, essa diversidade de influências. O objetivo final dos textos, contudo, era sempre a prevenção das enfermidades, no sentido da pre-servação da saúde.

Um dos textos mais famosos desse gênero foi o Regimen sanitatis Salernitanum (Regimento de saúde de Salerno), do século XI e de autoria desconhecida, composto originalmente em 370 versos, na Escola de Medicina de Salerno. Esse gênero poético tinha como objetivo o estímulo à memorização de conselhos de saúde: comer e beber com moderação, não se enraivecer, alegrar-se e descansar. No século XIII, editado pelo homem de saber Arnaldo de Vilanova, mestre da Escola de Medicina de Montpellier, na França, esse texto começa com estes preceitos gerais:

Ao rei dos ingleses escreve toda a Escola de Salerno

Se queres viver incólume, se queres viver são,

afasta os cuidados graves, crê que é funesta a ira,

sê parco na bebida, ceia pouco; não te pareça vão

levanta-te depois de comer, evita a sesta da tarde,

não retenhas a urina, não aperte o ânus com força.

Se isto bem observares, longo tempo viverás.

E se médicos te faltarem, médicos para ti serão

estas três coisas: alegria, descanso, dieta com moderação (Regimen..., 1963, p.46).

Esse regimento, escrito em forma epistolar e dirigido ao monarca inglês, constitui um dos vários exemplos de textos muitas vezes feitos sob encomenda para papas, reis e nobres da cristandade ocidental.

Pedro Hispano

A trajetória intelectual de Pedro Hispano iniciou com estudos na catedral de Lisboa e, depois, na Universidade de Paris, na década de 1230, quando recebeu a designação de Hispano, em virtude de os discentes se organizarem em nações, de acordo com a região de origem - no caso de Pedro, a Península Ibérica. Depois esteve na corte de Frederico II - rei da Sicília, imperador do Sacro Império Romano Germânico e rei de Jerusalém -, em Palermo, onde entrou em contato com Teodorus, o físico do imperador (Schipperges, 1978, p.378; Thorndike, 1934, p.490). Em seguida, foi mestre na Escola de Medicina, na Universidade de Siena (1245-1250), Itália, provavelmente na disciplina dietética. Nesse período produziu parte de sua obra médica e escolástica, inclusive o Livro sobre a conservação da saúde, e em alguns manuscritos remanescentes aparecem dedicatória a Frederico II. A partir de 1260 sua carreira eclesiástica e médica sobrepôs-se à de mestre, sendo então encontrado na cúria pontifícia, onde atuou como físico dos cardeais e papas desde a época de Urbano IV (1261-1264), depois Gregório X (Tedaldo Visconti, 1 set. 1271-10 jan. 1276), Inocêncio V (Pierre de Tarentaise, 21 jan.-22 jun. 1276) e Adriano V (Ottobono Fieschi, 11 jul.-18 ago. 1276), seu antecessor. Ocupou também o cargo de arquiatra, chefe do corpo de médicos da cúria. No século XIII, a ciência médica teve grande prestígio na corte pontifícia de Viterbo, um dos grandes centros culturais do Ocidente latino, onde viviam físicos, juristas, matemáticos e astrônomos - 40% dos familiares dos papas do período tinham o título de magister. Pedro Hispano tornou-se cardeal de Túsculo (Itália) em 1273, integrando o Colégio dos Cardeais, e dois anos depois ascendeu ao trono pontifício com coroação na catedral de São Lourenço de Viterbo, com o nome de João XXI. Seu pontificado foi breve (setembro de 1276 a maio de 1277), em virtude de sua morte no desabamento de uma das alas em construção do palácio de Viterbo.

Livro da conservação da saúde

A obra compõe-se de três opúsculos escritos em latim, a língua universitária e científica do período: Summa de conservanda sanitate (Suma da conservação da saúde), De his que conferunt et nocent (Coisas que fazem bem e mal) e Qui vult custodire sanitatem (Preservação da saúde). No primeiro, Hispano trata da saúde em geral e dos hábitos salutares nas quatro estações do ano; no segundo, faz recomendações sobre os órgãos corporais, listando as substâncias nocivas e as benéficas para cada um deles; e, no terceiro, centra-se nos cuidados com a alimentação, indicando a dieta alimentar medieval e outros cuidados relacionados às "seis coisas não naturais", presentes no galenismo medieval.

A obra é precedida por breve prólogo, gênero de texto comum em obras literárias e científicas medievais, em que o autor se apresenta ao leitor como médico, valoriza a arte da medicina e aponta o objetivo geral do texto: a preservação da saúde, destacada devido às dificuldades de tratar as doenças:

Eu, Pedro Hispano, considerando que os diversos padecimentos mórbidos se originam no corpo humano por negligência, encontrei e provei com razão verdadeira algumas observações úteis e experimentadas para conservar a saúde da vida humana, as quais só se encontram no seio da arte da medicina. Uma vez que é melhor preservar a saúde do que lutar com a doença, deve tratar-se da dita saúde (Hispano, 1997, p.3)

No prólogo, Pedro Hispano enuncia a concepção do homem como parte da natureza - physis, em grego, que inclui a natureza interna e externa comum aos seres; por isso o corpo humano não pode ser compreendido sem ela, a essência a que se vincula sua constituição. Portanto, a concepção de saúde do autor sofre influência da filosofia e medicina antigas e do galenismo medieval.

Em sua obra De sanitate tuenda, Galeno concebeu os elementos constituintes da fisiologia ou as 'seis coisas naturais', que no final da Idade Média receberam a denominação de 'coisas necessárias' ao bom funcionamento do corpo humano, sobre as quais a ação humana é inoperante: (1) os quatro elementos que compõem o universo: terra, água, ar e fogo; (2) as compleições; (3) os humores (sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma); (4) as partes sólidas do corpo humano (o cérebro, o coração, o fígado etc.); (5) as operações (funções das partes sólidas do corpo humano); a propagação da espécie (órgãos genitais); a manutenção da vida (cérebro, coração e fígado); e a qualidade de vida (olhos, nariz, orelhas e mãos); (6) as faculdades (grandes funções biológicas) ou dynamis, que contribuem para as grandes funções biológicas (formação, crescimento, locomoção e nutrição).

No século IX, o médico árabe Hunain ibn Ishaq, conhecido como Joahnitius, acrescentou, em sua obra Ysagoge (Introdução), a sétima coisa natural a esse esquema, o pneuma ou espíritos: o espírito animal do cérebro, o espírito vital do coração e o espírito natural do fígado. Esses espíritos veiculam as três faculdades e correspondem à tripartição da alma de origem platônica e aristotélica. O espírito animal ou psíquico subdivide-se, por sua vez, nas três partes do cérebro: a racional, a sensorial e a motora (Jacquart, 1995, p.178; Nicoud, 2007, p.4-5).

A segunda coisa natural, as compleições, constitui o conceito-chave adotado por Pedro Hispano e aparece já no primeiro opúsculo, "Suma da conservação da saúde". O conceito engloba a constituição física, a disposição do espírito e os temperamentos dos indivíduos. O jogo dos quatro elementos constituintes do universo (terra, água, ar e fogo), dos humores (sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma) e da mistura das qualidades (quente, fria, seca e úmida) compõe a compleição (em latim, complexio; em grego, krasis) ou temperamento individual, em número de quatro: sanguínea, colérica, fleumática e melancólica. Assim, segundo Galeno, o físico deveria estudar a compleição individual para depois compor as necessárias e devidas prescrições dietéticas. A esse respeito, Pedro Hispano (1997, p.11) afirma, referindo-se ao estômago vazio: "Deves, por conseguinte, vigiar solicitamente quanto a tua compleição pede e requer". A compleição, no entanto, se alteraria ao longo da vida, sendo por isso necessário também levar em consideração a variável idade. A compleição é quente e úmida na infância (primavera), quente e seca na juventude (verão), fria e úmida na maturidade (outono) e fria e seca na velhice (inverno) (Pena, Girón, 2006, p.23).

A compleição tornou-se o princípio organizador de cada organismo humano, considerado em sua totalidade. A par de uma teoria geral do funcionamento dos corpos humanos integrada ao mundo natural e cósmico, fundamentada nas autoridades, há também, na proposição de medidas preventivas, uma preocupação com a especificidade corporal de cada indivíduo, isto é, a particularidade da experiência. Dessa forma, verifica-se certa abertura aos dados da experiência individual, aos comportamentos e hábitos sociais (Siraisi, 1990, p.85; Vigarello, 2001, p.20).

Outro conceito galênico relacionado ao equilíbrio dos humores, e portanto à saúde corporal, é o de humedo radicalis, ou seja, o calor inato ou natural do corpo humano. O elemento era considerado fundamental para a manutenção da vida e da saúde (Silva, 1999). Hispano a ele se refere em várias passagens do regimento e faz recomendações físicas (banhos frios) e morais (honestidade, sabedoria e o caráter) para o restabelecimento dele:

Em junho e julho, encontrei que é coisa experimentada um banho de água fria depois de comer, quando se está com cólicas, porque chama de novo o calor natural no interior dos órgãos, e assim a falta de calor natural dos espíritos e dos humores é restabelecida pela exsudação (Hispano, 1997, p.15).

Portanto, conserve-se com todo cuidado o calor natural ... . Pois a sabedoria, o caráter e a honestidade de vida corrigem a inclinação natural e fortalecem o calor vital por forma excelente (p.19).

A segunda parte da "Suma", intitulada Divisões do Ano, trata de conselhos para as quatro estações, na ordem natural a partir da primavera. Os físicos medievais acreditavam que as estações possuíam qualidades semelhantes às dos humores: a primavera era quente e úmida; o verão, quente e seco; o outono, frio e seco; e o inverno, frio e úmido. Os cuidados diferenciavam-se nas épocas do ano porque em cada uma delas havia predisposição para determinadas doenças. Esse esquema de cuidados específicos a cada estação originou-se da Epístola da vida saudável, de Diocles de Caryste, do século IV a.C., que propunha uma ética do corpo. Os conselhos baseiam-se em dieta alimentar, banhos e sangrias. A dieta alimentar para a prevenção das doenças fazia uso de elementos similares. Para a cura, seguindo Galeno, empregavam-se os contrários (Sotres, 1995, p.256; Pena, Girón, 2006, p.25), que se repelem, a exemplo do quente/seco, que repele o frio/úmido. "Por isso diz Galeno: no verão multiplica-se a cólera, no inverno a fleuma, porquanto um contrário repele o outro. E assim por diante" (Hispano, 1997, p.85).

O segundo opúsculo, "Coisas que fazem bem e mal", enuncia recomendações para órgãos e partes do corpo: cérebro, olhos, ouvidos, dentes, pulmões, coração, estômago, fígado, baço e mãos. Adota o esquema binário e antitético do bem/mal, um dos princípios de inteligibilidade da cultura ocidental, presente na retórica romana, no maniqueísmo persa e na dialética: "A experiência é, como quer o Filósofo [Aristóteles], o conhecimento das coisas particulares. De onde vem que, tendo conhecimento do contrário, se torna mais claro o de cada um de per si" (Hispano, 1997, p.25).

Pedro Hispano apresenta uma lista de substâncias e alimentos benéficos e maléficos a cada órgão do corpo humano. Sempre começando pela definição do órgão, mescla a concepção médica com a religiosa, indício de sua dupla formação. Os três órgãos principais, por exemplo, são assim descritos: o cérebro é "órgão esponjoso, de cor branca, composto de três partes, base de todo o corpo, e denominado sede da alma pelos profetas" (Hispano, 1997, p.21); o coração é "órgão côncavo, cavernoso embaixo, amplo em cima, e é o termo de todas as operações da alma, segundo o testemunho de Galeno. As operações do espírito começam no cérebro e recebem seu complemento no coração" (p.41); o fígado é "órgão principal, funcional, oculto por veias e artérias, colocado a serviço da natureza e repleto dos quatro humores naturais" (p.53). Nas duas primeiras definições, revela o autor sua formação religiosa e médica quando mistura Galeno com referências aos profetas bíblicos.

Em contrapartida ao esquema das 'sete coisas naturais' referidas, os físicos adotaram a lista galênica das seis 'coisas não naturais', externas à natureza do corpo humano, mas essenciais para seu funcionamento e para a preservação da saúde. Elas estão presentes (em pares opostos ou não) nos regimentos de saúde medievais e também no de Pedro Hispano, embora não de forma tão sistemática: (1) o ar e o meio ambiente; (2) os alimentos e as bebidas; (3) o exercício e o repouso; (4) o sono e a vigília; (5) a retenção e a expulsão; e (6) as paixões da alma.

Primeira menção a 'coisa não natural', o ar e o meio ambiente aparecem, no segundo opúsculo, sobretudo na parte benéfica aos órgãos do corpo humano, como por exemplo, nos males do cérebro frio, a apoplexia (fria e seca) e a epilepsia, e no mal feminino relacionado ao útero, a chamada sufocação da madre: "Na epilepsia, na apoplexia maior e menor e, nas mulheres, na sufocação da madre, em primeiro lugar escolha-se um ar bom, onde não haja pântanos nem rios infectos, e à vista das montanhas" (Hispano, 1997, p.23).

No caso dos olhos, as "janelas da alma" (Hispano, 1997, p.28-29), faz bem "olhar para as montanhas e a verdura" (p.29) e, no caso do coração, "todo o cheiro aprazível que há nos pomares e prados, na primavera faz bem aos melancólicos e cardíacos" (p.43). Considerava-se a primavera a estação do ano em que o ar temperado era favorável à saúde. Pensava-se nos benefícios em agradar os sentidos da visão e do olfato. No caso do primeiro sentido, a paisagem rural valorizada era a das montanhas e o verde dos campos e, no caso do olfato, o ar bom (sem rios infectos e pântanos) dos pomares e prados na primavera.

No último opúsculo, "Preservação da saúde", a advertência inicial diz respeito à dieta alimentar e às bebidas, seguida da segunda coisa não natural, o exercício moderado, que deveria ser feito antes da alimentação para não atrapalhar o calor natural. Esse exercício consumiria umidades e excessos, origem de muitas doenças. O autor segue o Pantegni, de Constantino, o Africano, que atribuía ao exercício três funções precisas: aumentar o calor inato, facilitar a expulsão do supérfluo pela dilatação dos poros e fortalecer os músculos. "E desse modo o corpo humano se dispensa algumas vezes de laxantes, desde que se faça exercício devidamente" (Hispano, 1997, p.71).

Pedro Hispano revela logo depois a ordenação da dieta, terceira coisa não natural, recorrendo aos grupos de alimentos consumidos na Europa medieval, porque, apesar de seguir o modelo dos regimes antigos, não inicia pelo grupo de cereais, mas pelo de carnes, seguido pelo de peixes, legumes, laticínios, frutas (com destaque para as nozes), e, por último, o vinho (em virtude dos problemas relativos às águas, o vinho tornou-se concomitantemente alimento e elemento integrante de remédios para diferentes males). O autor aponta a dieta adequada ao inverno e ao verão. O regime alimentar proposto permitiria equilibrar a dinâmica vital dos indivíduos conforme seu temperamento particular (fleumático, sanguíneo, colérico ou melancólico), em função das estações do ano, pelas qualidades específicas das substâncias naturais e pelas qualidades adquiridas por intermédio das formas de preparo culinário.

Na Idade Média, as paixões eram consideradas movimentos psicossomáticos afetivos relacionados diretamente ao corpo e indiretamente à alma - o termo correspondente, hoje, talvez seja emoção. As paixões se desencadeariam no plano do espírito ou da imaginação, com efeitos imediatos sobre o corpo, no qual produziriam uma série de reações vitais. O órgão central desse processo é o coração. A dinâmica emotiva seria desencadeada pela entrada ou saída do calor e dos espíritos no coração, seguida por mudança no sangue e manifestações somáticas características: avivamento da cor da pele e aceleração da respiração e do batimento cardíaco, por exemplo. Do ponto de vista da prevenção, classificavam-se paixões positivas, como a alegria, e negativas, como a tristeza e a ansiedade, dois estados contrários ao dinamismo vital, pois resfriam e secam o corpo e o coração. Também péssimos para o corpo seriam o medo e a cólera, sendo que esta dividia a opinião dos físicos medievais, pois alguns a consideravam boa em certas circunstâncias e perniciosa em outras. Para apaziguá-la, aconselhavam música, leitura e, sobretudo, um sono reparador (Sotres, 1995, p.276-277). No segundo opúsculo do Livro sobre a conservação da saúde, Pedro Hispano enumera uma série de elementos que fazem mal ao coração, incluindo também as paixões da alma: a tristeza e as preocupações: "Ao coração fazem mal peixes sem escamas, fumo ... tristeza, preocupações e qualquer causa que provoque a síncope. Excesso de estudo e meditação, coito frequente e tudo que fizer mal ao baço faz mal ao coração ... e o que quer que faça a alma entristecer-se, porque o coração é o princípio da vida e o termo da morte (Hispano, 1997, p.45).

Na parte final da "Suma", assim como em outros regimes de saúde (Regimen..., 1963, p.84-89), verifica-se preocupação com a terapêutica. Para Pedro Hispano, as ventosas são mais eficientes do que a flebotomia (sangrias) para limpar o sangue. Depois aborda os venenos variados, por mordedura de aranha, escorpião e serpente, e seus antídotos, a teriaga e outros, conforme a teoria dos semelhantes que se atraem. A seguir, os repercussivos, remédios para facilitar a cicatrização e para alívio da dor dos abcessos, e os maturativos, cuja função é amadurecer o pus e expulsá-lo. Por último, tece considerações sobre o excesso de calor, a cólera, as febres e apresenta receitas de remédios para tais enfermidades.

De um lado, depara-se com um tom moralizante em algumas passagens do texto e algumas referências bíblicas, que denotam a voz do eclesiástico; por outro, a voz do físico, do homem de saber impõe-se, pois em nenhum momento o texto estabelece relação entre saúde, doença e pecado, à exceção da referência à gula, porém a partir da leitura de Galeno: "Por isso diz Galeno: a gula é uma das causas da morte. Pois matou mais gente do que a espada ou o cutelo. Por isso os modernos são filhos da gula" (Hispano, 1997, p.89). Assim, demonstra Pedro Hispano profundo conhecimento das autoridades (auctoritates) médicas do período antigo e medieval: Galeno, João Damasceno, Avicena e Isaac. Percebe-se, ainda, um tom didático, sobretudo na parte terapêutica, o que permite levantar a hipótese de que a obra foi usada também na escolástica médica (Sotres, 1995, p.265).

Merece destaque a concepção de saúde galênica, baseada no equilíbrio dos humores do corpo humano, que evidencia preocupação com as condições de vida e hábitos considerados saudáveis. Assiste-se assim à busca da manutenção da saúde em dietética, fundada na polaridade do bem e do mal, nas coisas não naturais. Tanto a dieta alimentar quanto o sono, a vigília, o exercício, o descanso e o banho apresentam características positivas e negativas, de acordo com as circunstâncias, ou seja, a compleição, o meio ambiente etc.

Na leitura de certas partes do texto, a atualidade dos conselhos para a preservação da saúde é tão contemporânea que se assemelha à fala de um nutricionista, um fisioterapeuta ou um médico do século XXI. Contudo, outros trechos provocam certo estranhamento no leitor atual, porque evocam práticas terapêuticas antiquíssimas e que (felizmente) caíram em desuso, como a flebotomia ou sangria e as ventosas, explicadas no terceiro opúsculo.

A releitura e a análise de obras médicas medievais revelam outras experiências humanas, com inquietações perenes na preocupação com a prevenção das enfermidades e na manutenção da saúde corporal por intermédio de práticas e hábitos salutares.

NOTA

Recebido para publicação em junho de 2009.

Aprovado para publicação em março de 2010.

  • GARCÍA BALLESTER, Luis. Un reto para el galenismo: mejorar la salud. In: García Ballester, Luis. Artifex factivus sanitatis Granada: Editorial Universidad de Granada. p.533-553. 2004.
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  • JACQUART, Danielle. La scolastique médicale. In: Grmek, Mirko; Fantini, B. (Org.). Histoire de la pensée médicale en Occident. Paris: Le Seuil. p.175-210. (Antiqüité et Moyen Age, v.1). 1995.
  • NICOUD, Marilyn. Les regimes de santé au Moyen Âge: naissance et diffusion d´une écriture médical en Italie et en France (XIIIe-Xve siècle). Roma: Ècole Française de Rome. 2007.
  • PENA, Carmen, GIRÓN, Fernando. La prevención de la enfermedad en la España bajo medieval Granada: Editorial Universidad de Granada. 2006.
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  • VIGARELLO, Georges. História das práticas de saúde: a saúde e a doença desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Notícias. 2001.
  • *
    Este texto faz parte da pesquisa histórica intitulada O Percurso Intelectual do Físico Pedro Hispano: as Relações Entre a Medicina Universitária e a Sociedade Europeia no Século XIII, financiada pelo CNPq.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2009
    • Aceito
      Mar 2010
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