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A febre amarela no Brasil: memórias de um médico da Fundação Rockefeller

Yellow fever in Brazil: memories of a medical doctor from the Rockefeller Foundation

D E P O I M E N T O

A febre amarela no Brasil: memórias de um médico da Fundação Rockefeller

Yellow fever in Brazil: memories of a medical doctor from the Rockefeller Foundation

Desde a grande epidemia ocorrida no Brasil em 1849, a febre amarela passou a mobilizar a comunidade médico-científica do país em torno de temas controversos, como sua etiologia e profilaxia. No início do século, realizaram-se as primeiras campanhas de combate à doença no Rio de Janeiro e em cidades paulistas, seguindo a teoria do médico cubano Carlos Juan Finlay, segundo a qual o agente transmissor era o mosquito que hoje tem o nome de Aedes aegypti.

Em 1916, a Fundação Rockefeller, através de sua agência, a International Health Board, enviou ao Brasil uma missão especial para investigar as possibilidades de implantação de um programa nacional de combate à febre amarela. Queria também controlar outras doenças como sífilis e tuberculose em áreas urbanas, e malária e ancilostomose nas zonas rurais. Criou em 1923 o Serviço de Profilaxia da Febre Amarela que, em cooperação com o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), inaugurou ações sistemáticas de pesquisa e profilaxia da doença em âmbito nacional. Ocorreram diversas controvérsias envolvendo seus técnicos e as autoridades sanitárias brasileiras. Enquanto, por exemplo, a Rockefeller defendia o combate ao Aedes aegypti em estado larvário, os brasileiros advogavam o uso de fumigações contra o mosquito adulto. Outro ponto polêmico dizia respeito à existência da forma silvestre da doença postulada pelos médicos brasileiros e desconsiderada pela Rockefeller, cujas ações se limitavam às grandes cidades litorâneas. Todavia, a epidemia ocorrida em 1928 na cidade do Rio de Janeiro, sem fonte perceptível de infecção na região, quebrou a resistência dos técnicos norte-americanos.

Estudos confirmaram, então, a existência de duas séries independentes de condições que fizeram malograr as tentativas de eliminar a doença na América do Sul: a distribuição rural dos mosquitos transmissores e a larga difusão da febre amarela silvestre, não suspeitada anteriormente, propagando-se sem a presença do Aedes aegypti e sem ter no homem o único hospedeiro vertebrado. A forma silvestre constitui um reservatório permanente de vírus para a reinfecção das áreas saneadas.

O ‘novo paradigma’ forçou a Rockefeller a enfrentar o problema em escala muito maior, inclusive nas pequenas cidades do interior.

Apresentamos a seguir trechos do depoimento concedido por José Fonseca da Cunha à Casa de Oswaldo Cruz,1 1 O projeto Memória de Manguinhos, formado pelas pesquisadoras Nara Azevedo, Wanda Hamilton e Rose Goldschmidt, vigorou de 1986 a 1989 e constituiu um acervo de cerca de 330 horas de entrevistas com cientistas e técnicos do Instituto Oswaldo Cruz. Para maiores detalhes, a íntegra do depoimento de José Fonseca da Cunha encontra-se no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. em que relata os esforços feitos pelo governo brasileiro e a Fundação Rockefeller para subjugar a febre amarela silvestre nas décadas de 1930 e 1940. Nascido em Itanhandu, Minas Gerais, em 1914, doutourou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1936. Ingressou na Rockefeller em 1940 e participou dos testes feitos em diversas regiões do país com a vacina desenvolvida em 1937 a partir de uma nova linhagem de vírus, a cepa 17D.

Incorporou-se aos quadros do Instituto Oswaldo Cruz em 1950, e firmou competência científica aí, na fabricação de imunobiológicos. Destacou-se na produção da vacina anti-amarílica, na vacina destinada à Campanha Nacional de Erradicação da Varíola, iniciada em 1962, e no aprimoramento da BCG e da vacina contra o sarampo.

Sua narrativa revela, com grande riqueza de detalhes, a complexidade dos processos de vacinação em massa de populações rurais e da organização de uma estrutura nacional para identificar focos de febre amarela através da viscerotomia. Fonseca da Cunha descreve também pesquisas feitas com o intuito de esclarecer aspectos ainda obscuros relacionados à imunidade dos animais silvestres, à distribuição espacial da doença, aos possíveis reservatórios de vírus etc.

Wanda Hamilton

Nara Azevedo

Pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Av. Brasil, 4365

21040-360 Rio de Janeiro — RJ Brasil

"A sede do Serviço de Febre Amarela era no palácio da marquesa de Santos, em São Cristovão. ... Fazia o combate a focos de mosquitos, a aplicação de vacina e a viscerotomia."

"Na Rockefeller era assim, pagavam bem, mas escalpelavam a gente. ... Aquele era o espírito ... ninguém fazia mais nada a não ser pensar, dormir, comer e sonhar com febre amarela!"

"Nós ganhávamos muito bem. E ninguém queria perder o seu salário. Não tinha dia, chuva, hora, tempo, nada. A gente só tinha que ter três coisas: saúde, disposição e honestidade."

"Um ou dois dos nossos doadores profissionais ... já tinham tido hepatite, sem o saber, e o sangue deles, empregado na produção da vacina, transmitiu hepatite a muitas pessoas."

"O método de combate à doença na cidade é acabar com o mosquito. No interior não se pode combater o mosquito. A técnica é vacinar as pessoas contra a doença."

"Epidemiologicamente sabe-se que uma doença só é erradicada, como foi a varíola, quando se consegue imunizar pelo menos 80% da população."

"A gente chegava, namorava, ficava noivo, quase casava, depois saía para outra cidade. Tinha o lado artístico da história, não era só dureza."

"Era uma espécie de fogo sagrado, que a gente não queria que se apagasse. Eu me lembro que depois, já no Instituto Oswaldo Cruz, um diretor disse: ‘Você e o Penna ainda têm o ranço da Rockefeller’".

"Em muitos lugares eu me utilizei do serviço dos curandeiros porque eles tinham muito mais credibilidade junto à população do que eu. Se eles dissessem: ‘Não vacina’, garanto que ninguém se vacinava."

"Hoje, o laboratório de vacina contra a febre amarela de Bio-Manguinhos, na Fundação Oswaldo Cruz, fornece cerca de 80% de toda a vacina produzida no mundo."

"A Fundação Rockefeller foi uma espécie de grande semente, foi a origem."

Trabalho árduo

Por que a Fundação Rockefeller se interessou pela febre amarela?

Primeiro, porque a febre amarela era uma doença importante, como é até hoje, principalmente na região amazônica. Segundo, porque a Rockefeller era pioneira em todos os trabalhos que se tinham realizado e se realizavam no mundo.

Ela se preocupou também com a malária, por ocasião da entrada do Anopheles gambiae. Deu apoio às ações do governo, porque tinha muita experiência de campo e pessoal bem treinado. Eu tenho a impressão de que o próprio Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) pediu a colaboração da Rockefeller, principalmente porque havia um grande receio de que esse mosquito entrasse no vale do Amazonas e subisse pelo México até os Estados Unidos. O Anopheles gambiae é um mosquito que tem capacidade muito grande de proliferação e causa um tipo de malária que provoca altos índices de mortalidade.

A Fundação Rockefeller desenvolvia um trabalho cooperativo com o governo brasileiro. Eles trabalharam no Hospital Gaffrée e Guinle, depois foram para o morro da Viúva, enquanto se construía um prédio no campus do Instituto Oswaldo Cruz, que ficou pronto em março de 1937. Abrigava o Laboratório de Histopatologia de Febre Amarela que fazia todo o trabalho de pesquisa, diagnóstico e produção da vacina contra a febre amarela.

Naquela época já existia o Serviço de Febre Amarela. Qual era a sua relação com a Rockefeller?

A sede do Serviço de Febre Amarela era no palácio da marquesa de Santos, em São Cristovão. Primeiro, chamou-se Serviço de Febre Amarela, à época em que esteve vinculado à Rockefeller. Fazia o combate a focos de mosquitos, a aplicação de vacina e a viscerotomia. Depois, desligou-se da Rockefeller e ficou subordinado ao DNSP, à época do diretor Barros Barreto, passando a se chamar Serviço Nacional de Febre Amarela. O diretor era o Waldemar Antunes, que tinha trabalhado com a Fundação Rockefeller. Esta continuou com a parte de investigação sobre o vírus da febre amarela, a produção e investigação da vacina e, em determinadas regiões, até a sua aplicação, como na Amazônia, no período da Segunda Guerra Mundial.

Em que ano o senhor foi convidado para trabalhar na Fundação Rockefeller?

Em 1940. Eu me formei em 1936 e fiquei com um consultório na Ilha do Governador até 1940. Ganhava meu dinheirinho, vivia por aí. Trabalhei também numa casa de saúde particular, fazia atendimentos de pronto-socorro; dava plantão uma vez por semana. Uma moça que queria se casar comigo perguntou-me se eu não gostaria de trabalhar no serviço público. Ela me apresentou ao prof. Hernani Agrícola, que me ofereceu um lugar em um leprosário. Mas lepra era um negócio que não me atraía, e não aceitei o emprego.

O prof. Hernani Agrícola estava muito interessado ou porque tinha gostado de mim ou porque queria atender ao pedido dessa moça. Ele perguntou: "Você não gostaria de trabalhar com a Fundação Rockefeller?" Eu disse: "Bom, o que é que a gente faz lá?". "Ah, viaja muito, trabalha com febre amarela e vai pelo interior do Brasil." Eu, que não tinha conseguido ser cirurgião, me sentia frustrado porque não tinha um padrinho que me dissesse: "Vem trabalhar comigo na enfermaria de cirurgia." Aí, fui encaminhado para a urologia onde, já naquela época, se ganhava dinheiro. E eu disse: "Tá, eu aceito." Na mesma hora, telefonou para o Waldemar Antunes, que era o diretor do Serviço de Febre Amarela, e fomos lá.

Antunes disse: "É lógico que você poderia trabalhar aqui, mas quem está precisando de um médico jovem", e eu era um jovem, "é a Fundação Rockefeller, o Laboratório de Histopatologia de Febre Amarela." Ele me deu uma carta para o diretor deste laboratório, o dr. Austin Kerr. Eu me apresentei ao dr. Kerr, que me disse: "O senhor está aceito. Vai trabalhar conosco. Poderia embarcar amanhã para o Espírito Santo?" Aquilo para mim foi um choque; nunca imaginei que alguém pudesse me dizer assim: "Você pode ir amanhã para o Espírito Santo?" "Eu queria que o senhor me desse uns dias, o senhor me pegou de surpresa." Mas achei que, se eu adiasse, ele podia dizer: "Não, então não serve." Na Rockefeller era assim, pagavam bem, mas escalpelavam a gente.

Por que o senhor foi trabalhar no Espírito Santo?

Naquela época — em 1939, 1940 — estava ocorrendo uma epidemia de febre amarela no estado do Espírito Santo. Foi uma campanha difícil porque os meios de comunicação eram muito precários e o número de casos, muito grande. Surgiam em vários pontos ao mesmo tempo. Era a chamada febre amarela silvestre. A zona do rio Doce era de extensas regiões ligadas por matas, de maneira que havia ótimas condições para a proliferação do mosquito contaminado pelo vírus. Saí daqui em um trem da Leopoldina e fui para Cachoeiro de Itapemirim.

Fui sozinho. Todo o meu treinamento foi feito no Espírito Santo, em um período de três meses, por um médico mais antigo da Rockefeller, o dr. Souza Aguiar, que se tornou um excelente amigo e até meu compadre. Fui treinado por ele na técnica de aplicação e conservação da vacina.

Cheguei a Cachoeiro de Itapemirim, depois de uma viagem cansativa no trem noturno da Leopoldina, por volta do meio-dia. Em geral, o médico ficava no hotel ou alugava uma casa ou um cômodo. Larguei minha mala no hotel e saí com o dr. Souza Aguiar para uma vacinação fora da cidade, numa fábrica de tecidos. De noite, cansado, pensei que no dia seguinte pudesse repousar um pouco, mas ele marcou nova vacinação, às oito horas da manhã. Aquele era o espírito da Rockefeller. A gente não descansava. Ninguém fazia mais nada a não ser pensar, dormir, comer e sonhar com febre amarela!

A Rockefeller oferecia condições para a realização do trabalho?

Não importava como a gente viajava: a pé, a cavalo, de automóvel, de barco, a nado ou de avião; a ordem era ir. Essa era uma característica da fundação. O trabalho ruim era para todos. Não havia amigos do diretor. Eram todos iguais perante a administração. Por outro lado, todos ganhavam muito bem. Eu não digo bem... nós ganhávamos muito bem! E ninguém queria perder aquele salário. Não tinha dia, chuva, hora, tempo, nada. A gente só tinha que ter três coisas: saúde, disposição e honestidade.

O senhor foi enviado para outro lugar, depois de Cachoeiro?

Fui para Castelo, se não me engano a sessenta quilômetros de Cachoeiro. Mas ao chegar, infelizmente, adoeci gravemente. Fui tratado de forma principesca pelos donos do hotel, e visitado pela cidade inteira, porque a Rockefeller tinha, na época, um grande prestígio no interior. Nós éramos recebidos como se fôssemos os ‘embaixadores da saúde’. Lembro que dois dias depois de ter levantado, montei em um cavalo e viajei cinco léguas para fazer uma nova vacinação no interior.

Qual foi sua experiência na campanha do Espírito Santo?

No Espírito Santo, meu trabalho teve dois aspectos. Primeiro, dediquei-me à vacinação em várias regiões, mas não por muito tempo, porque começaram a surgir os casos de icterícia pós-vacinal em decorrência do soro humano adicionado à vacina. Depois, meu trabalho passou a ser um pouco diferente.

Contaminação de vacinas

A febre amarela produz icterícia?

A febre amarela produz um derrame biliar, uma icterícia, em sua fase final. É a lesão total do parênquima hepático, que não tem nada a ver com a icterícia pós-vacinal.

A vacina foi aplicada no campo pela primeira vez em 1937. Pensava-se que, para que se mantivesse estável o vírus atenuado da febre amarela, chamado 17D, necessitaria de certa quantidade de soro humano. Por volta de 1940, começaram a surgir casos de icterícia em alguns vacinados, principalmente no Espírito Santo, onde a vacinação foi em massa. Mas ninguém acreditava que aquela icterícia estivesse associada à vacina, porque ninguém sabia que existia uma doença chamada hepatite e ninguém sabia, naquela época, que era um vírus transmissível pelo sangue. Um ou dois de nossos doadores profissionais, utilizados desde que a vacina começou a ser aplicada em campo, já tinham tido hepatite, sem o saber, e o sangue deles, empregado na produção da vacina, transmitiu hepatite a muitas pessoas.

Quem eram os doadores?

Eram guardas, mata-mosquitos do Serviço Nacional de Febre Amarela. Tinham sido selecionados quando ninguém sabia nada sobre hepatite. Eram pessoas saudáveis, com exame negativo para doença de Chagas, sífilis etc. Recebiam uma gratificação por isso. Num determinado dia, uma ou duas vezes por ano, eram convocados e nós os sangrávamos.

Voltando à hepatite...

A gente andava correndo atrás dos portadores de icterícia, associando-a a alimentos e plantas, até que se verificou que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, que a vacina estava sendo contaminada por um outro germe. Começaram então raciocínios mais perfeitos. O caso do Espírito Santo coincidiu com a morte de cem soldados norte-americanos na África, vacinados nos Estados Unidos contra a febre amarela. Ora, para eles era muito mais fácil fazer o diagnóstico do que para nós. Descobriu-se então que alguns lotes da vacina usada aqui estavam contaminados com o vírus da hepatite.

A descoberta do vírus da hepatite foi em decorrência disso?

Exatamente, foi feita nos Estados Unidos na época da guerra. A partir daí só havia uma solução: retirar o soro humano da vacina. Tudo era feito com muita segurança.

Como foi testada no Brasil a vacina sem soro humano?

Foi organizado um trabalho no sul de Minas, em Pouso Alegre, região de poucas matas onde nunca existiu febre amarela. Pretendia-se saber, primeiro, se a vacina poderia ser usada sem risco com a retirada total do soro humano. Segundo, verificar qual a melhor via para aplicá-la: intramuscular, subcutânea ou intradérmica. Terceiro, saber quantas partículas de vírus seriam necessárias para imunizar uma pessoa.

A intenção era provar que aquele vírus, sem o soro humano, conferia imunidade perfeita. Verificar se as pessoas vacinadas ficavam protegidas e não pegavam nenhuma doença.

Vacinávamos as pessoas por grupos. Foram mil e não sei quantas, divididas por idade: de zero a quatro anos, de cinco a nove anos, de dez a 14, de 14 a 19, de vinte a 29, de 29 em diante. Esses diferentes grupos foram vacinados por via intramuscular, subcutânea e intradérmica. Outros grupos foram vacinados com quinhentas partículas, mil partículas de vírus, e assim por diante. No fim de trinta dias, nós recebemos as vênulas e fomos ressangrar as mesmas pessoas. Seis meses depois, voltamos a Pouso Alegre para sangrar as mesmas pessoas. Aí o negócio começou a ficar complicado. Chegávamos à casa do fulano onde cinco pessoas haviam sido vacinadas e encontrávamos tudo fechado. No fim de meia hora batendo, a gente desanimava, mas quando andávamos uns cinqüenta, cem metros e olhávamos para trás, as janelas e as portas estavam apinhadas de gente. Aquela gente estava farta de ser sangrada.

Mas os senhores conseguiam localizar essas pessoas por dez anos?

Evidentemente, não se conseguiu mais sangrar todo mundo, mas um número tal que, estatisticamente, representava um resultado ainda bastante satisfatório.

Esse trabalho foi fundamental para o resto da vida da vacina. Pela primeira vez foi estabelecido o chamado lote-semente. Existe um lote-mãe e existe um lote-semente primário, um lote-semente secundário, e, depois, os filhos. Eu preparo um lote-semente secundário e, com esse lote-semente secundário produzo mil lotes de vacinas. Todos eles são filhos da mesma mãe; é como se fosse uma mãe e mil filhos. Então não há mais o risco de alterações na estrutura do vírus, porque todos são irmãos. Antigamente, quando um laboratório produzia um lote de vacina, daquele lote ele produzia outro. Do segundo lote, produzia um terceiro. A partir do trabalho feito em Pouso Alegre, isso acabou. Esse método chamado de lote-semente se aplica, hoje, a todos os produtos biológicos que se fabricam no mundo inteiro.

Outro resultado importante é que a via intramuscular e a via subcutânea são iguais, as duas apresentam bons resultados, porém a subcutânea é de mais fácil utilização. Terceiro ponto: sabe-se, hoje, que com mil partículas de vírus, e até com quinhentas, pode-se obter a imunização de uma pessoa. Esses trabalhos foram fundamentais, inclusive para todas as outras vacinas.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) teve grande interesse nesses resultados, porque demonstraram que a imunidade do atestado de vacinação contra a febre amarela tem validade por dez anos. Antigamente eram dois anos, depois passou para cinco e agora são dez. E acredita-se que a imunidade seja por toda a vida.

Antes da pesquisa em Pouso Alegre, o senhor já estivera em Minas Gerais?

Sim. Como um seguimento da epidemia no Espírito Santo começaram a aparecer casos de febre amarela também no nordeste de Minas, na região de Teófilo Otoni. O mais interessante é que os médicos da cidade tinham diagnosticado a febre amarela como sendo uma epidemia de gripe. A Rockefeller, já conhecendo bem o problema e sabendo da capacidade de transporte do vírus, através dos animais selvagens, começou a investigação na área com coleta de sangue, e confirmou que os supostos casos de gripe eram casos benignos de febre amarela. Fiz a vacinação nessa região com o dr. José Rangel de Abreu.

De Teófilo Otoni fui vacinar o município de Itambacuri, onde também foram contabilizados casos de febre amarela. Logo em seguida fui mandado para Guanhães, no oeste de Minas, com o dr. Simon Lute Kossobubzki, um polonês naturalizado brasileiro, porque havia suspeita de ocorrência de febre amarela. Fizemos uma descrição nosológica — mata, campo, água, estradas, população etc. — para verificar se a região era propícia à doença. Coletamos amostras do sangue de pessoas de diferentes idades, nascidas e criadas na região, e que dali nunca tivessem se afastado, porque a Fundação Rockefeller queria identificar os períodos em que a febre amarela havia passado por lá. Em Guanhães, sangramos umas quinhentas pessoas. Foi um trabalho muito difícil, muito enjoado, porque a gente tinha que convencê-las a arregaçar a manga da camisa para que pudessem ser sangradas.

Eu aprendi a técnica com o dr. Fred Fausto. A hora ideal para pegar essa gente em casa era ao escurecer, quando voltava do trabalho. Muitas vezes, as pessoas eram sangradas à noite. Eu sangrei muita gente com lamparina, com palito de fósforo aceso. O auxiliar segurava dois palitos de fósforo. Acendia um, eu localizava a veia, metia o garrote, passava o álcool, aí aquele palito se acabava. Preparava a seringa ali, às vezes no farol do automóvel e dizia assim: "Acende outro palito." Eu pegava a veia, tirava o garrote, enchia a vênula e pronto. Levei anos sangrando adultos e crianças, o que é chato. Convencia primeiro os pais, depois a criança, dando-lhe bala e dinheiro, o que a Rockefeller não gostava que fizesse. Fui advertido de que não devia dar dinheiro, para não parecer que estava comprando sangue.

Quando exatamente se iniciou a produção da vacina contra a febre amarela no Brasil?

A vacina foi produzida a partir da cepa 17D, constituída do vírus Asibi extraído de um africano que morreu com a doença. A primeira vacinação feita no Brasil usando a cepa 17D foi em 1937, quando a Rockefeller mudou para o pavilhão edificado em Manguinhos. Naquela época, a produção era muito pequena, havia detalhes que ainda não estavam bem definidos.

Não se tinha muita segurança com relação à resistência do vírus fora dos meios ideais de conservação no laboratório. Precisávamos de um fator de prova. Cada unidade de vacinação tinha de transportar os seus grupos de camundongos. Quando se iniciava uma vacinação, a primeira dose de uma ampola era para um primeiro grupo de camundongos, e a última dose daquela ampola era para um segundo grupo. Um dos motivos pelos quais se usava o camundongo no campo era para saber se o vírus atenuado estava com sua modificação mantida. Os camundongos eram observados durante 21 dias, para que se pudesse saber se o vírus daquela vacina ainda estava vivo. O segundo grupo de camundongos servia para saber se, no período em que a vacina permanecera na seringa, a mortalidade do vírus tinha sido muito alta e se o vírus restante era suficiente para imunizar a população. Foi uma fase experimental da vacina.

Em 1939, as coisas já começaram a ficar mais claras. Quando eu entrei, em 1940, ainda se usava o camundongo, mas não como rotina, e foi abandonado logo depois . A vacina começava a ser mais confiável.

Quando é inoculado pela vacina, o camundongo contrai a febre amarela?

Não. O vírus atenuado da febre amarela produz no camundongo uma doença no sistema nervoso central. A partir do sétimo dia, começa a ficar doente e, dentro de 21 dias, ou fica paralítico ou morre. Somente o vírus selvagem da febre amarela mata o camundongo a partir do terceiro dia.

Se desse algum problema, haveria nova vacinação daquela população?

Evidentemente. Se os camundongos inoculados não mostrassem nenhuma prova de que tinham recebido o vírus atenuado 17D, certamente seria feita uma segunda vacinação. Mas, tanto quanto eu sei, isso jamais aconteceu, porque a vacina era testada aqui antes.

Outros fatores prejudicavam a vacina?

Como em toda vacina, o vírus sofre ação da luz solar e, principalmente, do calor. A alternância de temperatura interfere na qualidade da vacina que, em dois ou três dias, pode não prestar em virtude desse entra e sai da geladeira. Então se recomenda: se a vacina saiu da geladeira, ou usa ou joga fora.

Ela provoca algum tipo de reação no organismo?

Não, em algumas pessoas provoca mal-estar, dor de cabeça, dor nas pernas lá pelo sétimo dia. Há referência a casos de encefalite após a vacinação. Isso ocorre com qualquer vacina, mas é muito raro.

Como ela é produzida?

Apesar do grande progresso que alcançou, a fabricação da vacina é complicada. O vírus é aplicado em ovos embrionados de galinha. Antigamente usava-se ovo comprado na granja ou na quitanda. O importante para nós era que fossem férteis a partir do quinto dia. Hoje é diferente. Só se pode produzir vacina contra a febre amarela em ovos livres de germes patogênicos específicos, em embriões livres de qualquer tipo de contaminação. Chamam-se ovos specific patogenic free (SPF). Cada ovo desse tipo deve estar custando, em média, um dólar, e é produzido por duas granjas apenas: uma em Sorocaba, outra em Uberlândia.

A vacina era liofilizada? 2 2 Liofilização é o processo de secagem e eliminação de substâncias voláteis realizado em temperatura baixa e sob pressão reduzida.

Sempre foi. O que se usava para liofilizar a vacina era um caldeirão de alumínio, com tampa reforçada. Era uma caixa com isolamento térmico, onde você colocava um condensador, álcool, gelo seco e uma bomba de vácuo. Era um processo quase artesanal. Mas era assim que se produzia a vacina e foi assim que se vacinou o Espírito Santo e quase o Brasil inteiro.

Quanto se podia produzir com esse sistema artesanal?

Cada lote de vacina devia ter umas cem ou duzentas ampolas no máximo. Cada ampola tinha mais ou menos cem doses. Uma média de mil doses, aproximadamente, talvez duas mil doses por semana.

Atualmente, dois lotes são produzidos por semana com seis mil ampolas em cada ciclo. São aproximadamente 12 mil ampolas por semana. Ou seja, seiscentas mil doses de vacina por semana, dois milhões e meio por mês.

Como era o processo de aplicação da vacina?

O processo era muito especial e completamente diferente de tudo que se conhecia. Usava-se o método chamado sistema de Vin. Os discos Vin permitiam que vacinássemos em uma hora talvez duzentas pessoas. Cada disco daqueles tinha capacidade para cinqüenta agulhas, para cada pessoa vacinada, uma agulha. Isso permitia um trabalho muito rápido. Chegava-se numa casa, arranjava-se uma ou duas mesas grandes, com todo o ritual se estendia uma toalha — tinha que ser branca mesmo, limpa — e colocava-se um fogareiro a querosene e aquelas caixinhas com as seringas, as caixinhas com os discos e as agulhinhas. Cada caixinha era esterilizada durante dez minutos, marcados no relógio. E só se vacinava no braço esquerdo. Cada pessoa vacinada tinha uma ficha de identificação. Se amanh㠗 e isso aconteceu muitas vezes — eu quisesse procurá-la, iria direto à casa dela, pois sabia quem tinha sido vacinado, qual lugar, a que horas, quantas ampolas tinham sido abertas, quanto de vacina se perdeu. Era um negócio muito rigoroso e bem-feito. Não era uma vacinação feita à louca. Era um trabalho controlado. Enquanto estávamos em campo, o laboratório no Rio de Janeiro continuava as pesquisas.

Com o uso da vacina, a profilaxia mudou muito? A erradicação do mosquito continuou a ter a mesma importância que tinha antes?

São dois problemas diferentes. A febre amarela tem dois aspectos: o aspecto urbano e o silvestre. Há o mosquito transmissor da febre amarela urbana, que é o Aedes aegypti; esse é passível de ser combatido e erradicado. E existe o mosquito na mata, esse não tem como erradicar. Os transmissores são diferentes, não é a doença que é diferente. O método de combate à doença na cidade é acabar com o mosquito. No interior não se pode combater o mosquito. A técnica é vacinar as pessoas contra a doença.

O combate ao mosquito, competência do Serviço Nacional de Febre Amarela, era executado com eficácia?

Tanto era que o Aedes aegypti foi erradicado no Brasil. A Rockefeller juntamente com o Serviço Nacional de Febre Amarela, erradicou o mosquito. Houve nova invasão em torno de 1955, provavelmente através dos barcos que faziam a navegação costeira, vindos da região das Caraíbas, na Venezuela. Entrou no Maranhão. Foi outra vez erradicado. E agora ele entrou mais uma vez, foi encontrado na rua São Luís Gonzaga, no Rio da Janeiro, dentro de um tonel de água que tinha vindo em um caminhão da Bahia.

Esse desdobramento provocou a atual epidemia de dengue...

Agora está espalhado, porque, quando foi descoberto, ninguém sabia exatamente há quanto tempo aquele depósito de água estava ali. Ele foi se multiplicando.

Em 1939, quando o senhor começou a trabalhar, reapareceu o surto, não é?

A febre amarela ressurgiu em regiões onde não havia condições favoráveis para o Aedes aegypti. Esse é um fato importante, pois se descobriu o que hoje se chama febre amarela sem Aedes aegypti.

E como era a transmissão neste caso?

Pelo mosquito Haemagogus. O Aedes é um mosquito essencialmente doméstico ou, no máximo, peridoméstico. O Haemogogus é um mosquito silvestre.

Como hoje, com o desenvolvimento de técnicas e inseticidas, esse mosquito não é erradicado?

Há uma porção de fatores. O Rio de Janeiro de hoje não é mais o de Oswaldo Cruz e o da Fundação Rockefeller. É outra cidade. Hoje existem as favelas, promiscuidade, acúmulo de habitações impedindo uma polícia de focos eficiente, latas de cerveja, garrafas plásticas, que são jogadas aí a três por dois. Outro problema gravíssimo é o dos pneumáticos jogados no mato, que representam um foco em potencial para o Aedes aegypti.

Já não seria necessário combater os focos, mas fazer campanhas de educação sanitária?

Você tem que fazer tudo. Essas plantinhas com água que as pessoas têm em casa, garrafas de refrigerante... O povo tem que ser educado.

Antes a campanha era muito mais em cima do combate aos focos do que da própria educação sanitária?

Não, as duas coisas eram feitas simultaneamente: o combate direto ao Aedes aegypti e a educação da população, para que se deixe de fazer coisas que favoreçam o aparecimento e a multiplicação do mosquito. Eu mesmo tenho em casa plantas aquáticas, mas troco a água pelo menos uma vez por semana.

Se o combate ao mosquito apresenta esses problemas e nunca se pode esperar resultados muito positivos da educação sanitária, não seria o caso de se fazer uma vacinação em massa?

Seria o ideal. Mas como? Primeira coisa, teríamos que ter vacina em quantidade suficiente para vacinar pelo menos 80% da população. Epidemiologicamente sabe-se que uma doença só é erradicada, como foi a varíola, quando se consegue imunizar pelo menos 80% da população. Vamos supor que o Brasil tenha 140 milhões de habitantes, 80% são cem milhões de doses de vacina! Hoje, o laboratório tem capacidade para produzir cinqüenta milhões de doses de vacina por ano, com muito esforço. A produção média é de trinta milhões de doses. Quanto tempo levaríamos para vacinar cem milhões de pessoas? Levando em consideração que, quando se pretende vacinar essa quantidade de pessoas, é preciso produzir pelo menos 150 milhões de doses, por causa das perdas de vacina. É o caso da BCG, do sarampo, da varíola e da febre amarela. A melhor política, a do bom senso, é combater o mosquito na cidade.

No interior não tem outro jeito, tem que vacinar nas regiões endêmicas, epidêmicas e nas zonas de risco.

Qual era a estratégia de vacinação da Rockefeller?

Ela fazia os seus programas de vacinação de acordo com os dados epidemiológicos das regiões. O posto avançado da Rockefeller era a viscerotomia. Ela recebia os dados informativos através do Serviço de Febre Amarela encarregado da viscerotomia: coleta de amostras de fígados dos indivíduos que morriam num prazo de dez ou 12 dias. Quem analisava e proferia o diagnóstico era o Laboratório de Histopatologia.

Como eram obtidos os dados epidemiológicos de todo o país?

O Serviço Nacional de Febre Amarela dividia o Brasil em circunscrições e setores cujos chefes se encarregavam de organizar os postos de viscerotomia. Cada estado podia ter muitos postos, dependendo da importância e da extensão da área. Além disso, os inspetores do serviço eram obrigados a percorrer esses postos, de tempos em tempos, para ver como estavam funcionado. Por exemplo, muitas amostras que chegavam ao laboratório não eram de fígado humano, mas de porco, de cachorro, de cabrito, de boi. Brasileiro é muito esperto! O sujeito mandava a amostra, recebia o seu dinheirinho e quando chegava aqui o patologista dizia: "isso é fígado de porco." Então aquele viscerotomista não servia.

Quem eram os viscerotomistas?

Eram médicos, farmacêuticos, coveiros, funcionários da prefeitura escolhidos no local. O viscerotomista coletava amostras de fígado e mandava para o Laboratório de Histopatologia, chefiado pelo dr. Madureira Pará, que fazia os cortes, examinava e diagnosticava: "febre amarela" ou "negativo para febre amarela", ou pior ainda: "provavelmente positivo. Favor fazer investigação de campo." Então, a gente tinha que ir onde o cidadão tinha morrido e coletar dados, porque não bastava só o diagnóstico histopatológico. Podia ser que a pessoa tivesse morrido intoxicada por medicamentos que provocam lesões no fígado semelhantes aos do vírus da febre amarela.

A Rockefeller pagava os viscerotomistas ?

Sim. Se a amostra fosse negativa, ele recebia trinta mil-réis, e se fosse positiva, cinqüenta mil-réis. Naquela época, cinqüenta mil-réis valiam uma estocada na barriga do defunto. Eu me lembro que assisti a uma viscerotomia perto de Porto Alegre que me chocou um pouco. O médico foi puncionar o cadáver de uma criança, introduziu o viscerótomo no abdômen e disse assim: "Estou aqui defendendo o leite dos meus filhos." Achei aquilo um pouco de materialismo demais.

A viscerotomia não provocava reação entre a população?

Olha, algumas pessoas morreram por causa disso. As famílias, às vezes, se recusavam a concordar com a viscerotomia, o que criava um impasse, pois o médico proibia o enterro. Para a família era uma espécie de violação do cadáver, mas para o médico era uma prova de diagnóstico, nada mais que isso.

Quando os senhores iam para uma localidade para vacinar, quais eram os procedimentos?

A primeira coisa era saber do prefeito, do padre ou do farmacêutico quantas pessoas tinha o município. Estudava-se a possibilidade de vacinar o município e as áreas próximas. Depois, fazia-se o levantamento de possíveis pontos de afluência de vacinados. Escolhia-se a fazenda tal, ou a igreja, ou a escola pública, dependendo do tipo de localidade e da distância, porque havia o problema do transporte da vacina com gelo.

O senhor tem idéia de quantas equipes chegaram a trabalhar para a Rockefeller?

Podia haver várias equipes de vacinação espalhadas pelo país. É provável que várias delas tenham estado no Espírito Santo, onde houve uma epidemia muito intensa. A equipe era sempre formada por três pessoas: um médico, um auxiliar de vacinação e um motorista. O auxiliar se incumbia de ‘agasalhar’ o material, arranjar lugar para guardar sobretudo as marmitas de cinqüenta litros com gelo contendo a vacina. Naquele tempo eram raras as geladeiras pelo interior. A vacina era transportada de trem ou automóvel do Rio de Janeiro, e era mantida constantemente no gelo, no quarto do auxiliar de vacinação.

A gente tanto podia vacinar mil, como podia vacinar dez. Às vezes a população era mais acessível, outras mais refratária. Em Castelo, quando eu me levantei daquela cama do hotel, saí para uma vacinação, viajei cinco léguas a cavalo, e não vacinamos mais do que cem pessoas. Quer dizer, foi um fracasso, porque nós fizemos um enorme esforço, viajamos trinta quilômetros para vacinar cem pessoas. A população não atendeu ao chamado. Outras vezes a gente esperava vacinar duzentas e vacinava quinhentas. Era muito variado.

Nesses casos, a revacinação era necessária?

Nas áreas em que o número de vacinados era insatisfatório, de repente pingava um caso de febre amarela e a gente voltava. Quando aparecia, vinham aquelas trezentas e mais quinhentas pessoas, porque havia uma espécie de histeria coletiva. As pessoas tinham pavor de febre amarela. A gente fazia o programa para a semana. No fim da semana aproveitava o domingo, para quê? Para fazer diário, botar toda a escrita em dia. Era um negócio chato.

Era através desses diários que a Rockefeller monitorava o trabalho de campo?

Todos os médicos eram obrigados a fazer um diário remetido para o Rio de Janeiro, no máximo a cada 15 dias. O Laboratório de Histopatologia ficava com o original e o Serviço de Febre Amarela recebia uma cópia. O diretor sabia o que eu estava fazendo lá no Amazonas. Eu dizia onde tinha ido, o que tinha feito, a que horas, quantas pessoas tinha vacinado, quantos lotes de vacina usara, quantas ampolas abrira, a quantidade jogada fora. Era um controle perfeito. Assim, o laboratório mantinha o controle das necessidades de cada grupo, porque tinha gente no Amazonas, no Espírito Santo, no Rio de Janeiro.

O senhor não se sentia muito pressionado por essa rotina, essa disciplina de trabalho?

Olha, era uma questão de formação, compreendeu, porque alguns saíram. Eu costumo dizer o seguinte: há certas pessoas que não devem se dedicar ao trabalho de rotina. De fato era enjoado, cansativo e pesado. Eu pensei em pedir demissão várias vezes, mas tinha o lado bom. Passeava, viajava. Andei pelo Brasil inteiro, conheci muita gente boa, vivi bem, ganhei dinheiro, fiz boas amizades. No fundo, no fundo, eu gostava. Porque quando chegava na cidade, por exemplo, eu mudava. Nós gozávamos de muito prestígio. A gente chegava, namorava, ficava noivo, quase casava, depois saía para outra cidade. Tinha o lado artístico da história, não era só dureza.

O senhor prestava serviços médicos à população ?

Era proibido fazer clínica, mas muitas vezes cliniquei: fiz parto, pequenas cirurgias, abertura de abscessos. Eu me lembro que encontrei, no interior do Pará, uma menina que estava com prolapso de reto há dois dias e a família dando purgante para ela. Em outra ocasião, abri um abscesso na nádega de uma senhora com um canivete bem afiado e fervido, a mulher tomou uma dose tripla de cachaça para poder agüentar. Mas nada disso figurava no diário, porque aquilo era trabalho de caridade.

Por que era proibido clinicar?

A fundação não queria que o médico desviasse a atenção para nada mais além de seu trabalho. Podia ser que alguém se aproveitasse daquela situação para ganhar dinheiro.

O trabalho que a Rockefeller fazia estava impregnado de espírito missionário?

Exatamente, era uma espécie de fogo sagrado, que a gente não queria que se apagasse. Eu me lembro que depois, já no Instituto Oswaldo Cruz, um diretor disse: "Você e o Penna ainda têm o ranço da Rockefeller." Ele chamou de "ranço da Rockefeller". Era aquela escola de trabalho, de dureza, de disciplina. A gente fazia a barba todo dia, almoçava com o motorista e ninguém tomava cerveja. Era uma mística.

Sua relação com os médicos locais era boa?

Muito boa, mas em geral não tinha médico. Nos lugares onde não havia médico, eu me valia dos curandeiros, muito comuns no interior. Em muitos lugares eu me utilizei do serviço dos curandeiros porque eles tinham muito mais credibilidade junto à população do que eu. Se eles dissessem: "Não vacina", garanto que ninguém se vacinava.

Esses curandeiros viam com simpatia o seu trabalho?

Com simpatia. Lembro-me que encontrei um curandeiro desses na zona de Teófilo Otoni que foi se vacinar e me disse assim: "Eu curo as pessoas, porque eu tenho capacidade para isso. Mas acredito na medicina dos homens. Eu quero me vacinar."

O fato de extrair sangue das pessoas não causava má impressão? Não havia muita mística, muita crença a esse respeito? Vocês não ficavam com fama de vampiros?

Não, em geral perguntavam para que servia o sangue. Quando a pessoa perguntava, nós dizíamos: "Bom, você foi vacinado contra uma doença, febre amarela. Já ouviu falar?" "Ah, já ouvi falar sim, deu aqui em Varginha". As pessoas sempre tinham uma noção da coisa. "Pode ocorrer uma nova epidemia e nós queremos saber, o governo quer saber se a população daqui está protegida contra a doença."

Agora, havia queixas. A primeira era a de que o sujeito se sentia fraco: "Ah, já estou tão fraco, o senhor vai tirar meu sangue..." Eu me lembro, por exemplo, que em uma ocasião íamos por uma estrada e vinha um homem carregando uma onça morta nas costas. Paramos o homem, porque aquele era um elemento bom para ser sangrado! Ele disse: "Ah, doutor, não, eu sou muito fraco, doutor..." (risos) "O senhor é fraco? O senhor carrega uma onça nas costas!." "Não, eu não tenho saúde, sou muito anêmico." Mas a gente acabava tirando a amostra de sangue.

O senhor tinha a colaboração das autoridades locais?

Para a vacinação havia, porque contava voto. Até se dizia que o prefeito tinha promovido a vacinação, mas coletar amostra de sangue não, porque era um trabalho muito chato. Nós, por uma questão de cortesia, procurávamos o prefeito da cidade, mas o máximo que ele fazia era fornecer um guia.

Era muito raro uma pessoa se recusar à vacinação. Ao contrário, a tendência era ajudar e facilitar sempre. Eu chegava a uma cidade, acertava com o prefeito um programa de trabalho e marcava os locais de vacinação. Não ia de casa em casa. Quando chegava no local umas quinhentas, seiscentas, até mil pessoas estavam aguardando. Se não me engano, naquela época, 95% da população do Espírito Santo foi vacinada, com todo o sacrifício.

Impressionava o fato de ser médico do governo?

Impressionava, primeiro porque era um médico, segundo porque era médico do governo. A Fundação Rockefeller tinha um prestígio grande. Certa ocasião fui ao mais famoso clube de Vitória onde havia uma festa. Eu não era sócio, não tinha convite. Pois bem, nós ficávamos tão imbuídos daquela importância da Rockefeller que cheguei na porta do clube, e o camarada disse assim: "Seu convite, faz favor." Eu respondi: "Sou médico da Rockefeller." E entrei. Aquele "sou médico da Rockefeller" era uma espécie de "abre-te sésamo".

As viagens pelo Brasil continuam

Depois do Espírito Santo e de Minas Gerais, o senhor foi mandado para Goiás. Por quê?

Há um mistério que não está bem esclarecido ainda hoje sobre a febre amarela, com relação aos chamados reservatórios de vírus. Por exemplo, numa epidemia em Goiás, surgiram dois ou três casos no norte do estado. Uma semana depois surgiram dois ou três casos no sul ou no centro. Como? O que transporta o vírus?

Em virtude do longo trabalho da Rockefeller, nós sabemos que o vírus, nas regiões endêmicas, é mantido entre roedores, macacos etc. Mas, como se transporta tão rapidamente por regiões tão distantes? O dr. Kerr, que era o diretor do laboratório, levantou a hipótese de que talvez os pássaros transportassem o vírus. Então criou-se uma unidade em Goiás, em Caldas Novas, para comprovar se a teoria era verdadeira ou não. A gente ia para o campo matar e sangrar passarinhos. Paralelamente, foi feito um trabalho de captura de mosquitos em zonas muito altas nas florestas, por intermédio de pipas de filó, para capturar os mosquitos em correntes aéreas acima das árvores. Foi um negócio!

O mosquito viaja a longas distâncias?

Levado pelas correntes aéreas. Marcava-se a asa do mosquito com tinta indelével e depois o soltavam. Iam capturá-lo em outra região, tantas horas depois, tantos dias depois.

Uma agulha no palheiro, não é?

Era um trabalho sério e bem-feito, que envolvia tudo e todo mundo. Tinha postos de capturadores em várias regiões.

Para que o senhor foi a Belém do Pará?

Fui fazer um programa de vacinação em quatro municípios, na região do rio Guamar, porque havia uma epidemia de febre amarela. Fui no final de 1941 e fiquei todo o ano de 1942. Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial. E de onde o americano tirava a borracha para as suas manobras e indústrias? Era da Amazônia. Eles tinham bases militares em Belém. Quando houve a necessidade de arrancar mais borracha para a indústria bélica norte-americana, foi do Brasil que ela saiu. Começava o que se chamou "a guerra da borracha". O governo estava recrutando gente no Nordeste e mandando para os seringais na Amazônia

Com a guerra, o senhor recebeu novas atribuições?

Num belo dia, recebi um telegrama do dr. Soper autorizando-me a adotar todas as providências para a instalação de um posto de vacinação contra a febre amarela em Belém, inclusive entrando em contato com as autoridades para armar um dispositivo que obrigasse as pessoas que entrassem ou saíssem do vale do Amazonas a serem vacinadas. Eu recebi carta branca para atuar na região e organizar o controle dos emigrantes da borracha. Fui ao interventor e consegui dele um ato determinando que ninguém poderia entrar ou sair do vale do Amazonas sem o certificado de vacinação contra a febre amarela. E realmente isso funcionou.

Passei a ter sede em Belém e recebi uma outra incumbência: vacinar toda a 8ª Região Militar e treinar os oficiais para a aplicação da vacina. Passei a freqüentar os batalhões, as baterias dos regimentos, não só em Belém como em Óbidos, Clevelândia, sempre levando comigo um oficial-médico treinado nesse trabalho para que o Exército assumisse, depois, a responsabilidade de vacinar os seus soldados, o que realmente foi feito.

De Belém o senhor foi para Mato Grosso?

Saí de Belém em dezembro de 1942 e vim para o Rio de Janeiro. Cheguei e já recebi outra incumbência: Mato Grosso. Eu e o dr. Simon Lute Kossobubzki fomos incumbidos de fazer um levantamento epidemiológico na região. Teríamos que sangrar cem pessoas, nascidas e criadas lá, que jamais tivessem se afastado dela, e cinqüenta crianças de zero a cinco anos para saber se nos últimos cinco anos tinha havido febre amarela na região. Trabalho meio enjoado...

Qual foi a característica da experiência desenvolvida em Ilhéus?

Passei quase um ano em Ilhéus. Como sempre, o meu trabalho era coletar amostras de sangue. Ali, não se vacinava porque era uma área de estudo. A Fundação Rockefeller teve um laboratório de campo em Ilhéus, criado com a finalidade de elucidar uma série mistérios que existiam ainda com relação à epidemiologia da febre amarela e, principalmente, ao chamado reservatório de vírus, isto é, a respeito da permanência do vírus no campo: onde se escondia nos chamados períodos de silêncio, que podiam durar até dez anos.

O vírus circula na mata entre os mamíferos, roedores e macacos, por exemplo, e o ciclo se repete. O homem entra nessa história porque, às vezes, ele tem que ir à mata caçar, pescar etc. Outras vezes, a população de mosquitos infectados cresce de tal maneira que começa a descer pelas orlas dos rios, pelas matas ciliares. Em geral, a epidemia acompanha as margens dos rios das florestas.

Por que Ilhéus foi escolhida para essa pesquisa?

Ihéus, naquela época, era uma cópia fiel da região amazônica: clima, matas, temperatura, índice pluviométrico, condições nosológicas. Mais uma vez eu, que fazia uma espécie de cabeça-de-ponte, fui fazer o levantamento da região e escolher o local para abrigar a equipe. Havia um setor do Serviço Nacional de Febre Amarela, chefiado pelo dr. Virgílio de Oliveira, que me deu toda a colaboração.

Muito do que se fez aqui foi uma continuação do que tinha sido feito na África, onde as características da febre amarela são diferentes. Alguns técnicos da Rockefeller que viveram na África, e que tinham aquela experiência, também trabalharam no Brasil. Para se ter uma idéia da importância do trabalho de Ilhéus, a Fundação trouxe um especialista em mamíferos do Museu Nacional, que veio fazer um estudo sobre os reservatórios de vírus. Veio um colombiano, especialista em entomologia, que já tinha trabalhado em febre amarela com a Rockefeller na Colômbia. O serviço de campo era chefiado pelo dr. Hugo Lemmertz, brasileiro de origem alemã, e pelo dr. Leoberto Ferreira, que chefiava o laboratório. O grupo maior era o de campo. De tempos em tempos vieram outros diretores, como o dr. Taylor, o dr. Hughes e o dr. Causey.

Fazia-se a captura de mosquitos, em diversas alturas, na mata. No laboratório, eram triturados e inoculados em macacos, camundongos etc. Era uma busca do mosquito infectado em diversas alturas. Ao mesmo tempo, fazia-se a captura de macacos. Havia nessa região grande quantidade de micos, porque tinha muito cacau. O mico é comedor de cacau e eucalipto. E tinha a parte humana, pela qual eu era o responsável. Fiz um retrato da febre amarela da região de Ilhéus através da coleta de duas mil e duzentas amostras de sangue de moradores.

Uma das questões analisadas nesse laboratório foi a transmissão?

É, em Ilhéus aconteceu uma coisa única no mundo. Foi capturado um macaco doente que estava morrendo de febre amarela. Era a primeira vez que acontecia a captura de um animal solto na mata, com o vírus circulante no seu organismo, e que não fora infectado artificialmente. Isso nunca mais aconteceu.

Naquela época, também foram isoladas várias espécies de vírus, inclusive um que ficou conhecido como vírus de Ilhéus. Todos têm importância no trabalho epidemiológico, de investigação científica, trabalhos comparativos em virologia.

Era uma região em que havia muita gente contaminada?

Verificou-se que a estrada de ferro Ilhéus — Vitória da Conquista, que dividia o sul da Bahia em duas partes, era também um divisor epidemiológico. Abaixo da estrada de ferro, a produção clássica era o cacau. Acima, não existia cacau; o básico era milho, arroz, feijão etc. Entre as pessoas sangradas ao sul da estrada de ferro, cerca de 60% apresentaram soro imune para a febre amarela, isto é, tinham tido a doença sob a forma benigna. Ao passo que na região norte da estrada de ferro, o número de imunes não passou de 5%, porque as condições nosológicas e ecológicas eram completamente diferentes.

Até quando funcionou esse laboratório?

Creio que foi desativado em 1945. A febre amarela tinha seus pontos obscuros e um dos mais importantes foi exatamente o estudo dos reservatórios de vírus no campo. Tanto é que com a devastação das matas restantes, não houve mais febre amarela em Ilhéus. Hoje, a doença está limitada à região amazônica, onde continuam a mata, o mosquito, o macaco, os mamíferos roedores.

Depois dessas viagens, o senhor se fixou no Rio de Janeiro?

Quando voltei de Ilhéus em 1945, o dr. Taylor me disse: "Bom, eu acho que o senhor já pagou os seus pecados. Há quanto tempo está no campo?" "Quase seis anos." Ele disse: "Eu acho que está na hora de vir para o laboratório, porque o dr. Henrique Penna está sem um assistente e propôs o seu nome para trabalhar com ele. O senhor aceita?" Era, como se costuma dizer, sopa no mel, não é? Eu mudei completamente meu ritmo de vida. Quando vim trabalhar com o dr. Penna, eu era um ‘nhô’ em matéria de ciência de laboratório, de virologia, bacteriologia etc. O que eu sabia de febre amarela tinha lido e visto no trabalho de campo, ou tinha ouvido nas conferências semanais aqui no Rio de Janeiro, quando o grupo do laboratório se encontrava e discutia os problemas relacionados à doença.

Enquanto eu estava no trabalho de campo, nas breves vindas ao Rio de Janeiro, tinha feito um bom relacionamento com o dr. Penna, chefe do laboratório de vacina antiamarílica. Eu costumo dizer que ele foi meu pai espiritual, o pai científico. Foi com ele que aprendi bacteriologia — que eu tinha visto na escola de medicina — e virologia, mas principalmente aprendi matemática, coisa que não tinha conseguido durante a minha vida inteira.

Com o dr. Penna fui forçado a me entrosar com os trabalhos de laboratório. Naquela época, todo o processamento da vacina era feito por ele — inclusive as inoculações dos ovos — e um auxiliar, o Manuel Fratelo de Oliveira. À medida que fui me desenvolvendo, passei a substituir o dr. Penna, e a executar o trabalho junto com o Fratelo, o Gonçalves e outros. Não sei se ainda andam por aí. Fiquei no laboratório, na produção de vacina contra febre amarela, durante mais ou menos dez anos, até 1955.

Por que a Fundação Rockefeller decidiu se retirar do Brasil?

Bom, tenho a impressão de que, primeiro, o problema estava, não digo resolvido, mas equacionado. Havia uma vacina de boa qualidade, um laboratório funcionando bem, o Serviço de Febre Amarela funcionando. Ela não tinha mais nada a fazer aqui. E, parece-me, decidiu se afastar dos programas de saúde nos países estrangeiros, passando a se dedicar somente à educação.

É verdade que quando a Rockefeller se retirou houve certa tensão entre o Instituto Oswaldo Cruz, dirigido na época por Henrique Aragão, e o Serviço de Febre Amarela?

A Rockefeller se desinteressou do problema em 1946. Naquela época, o governo brasileiro já tinha estabelecido que, no momento em que a Fundação Rockefeller se retirasse do país, entregaria todo o seu acervo ao Instituto Oswaldo Cruz. O laboratório não tinha nada a ver com o instituto, apenas se situava em seus terrenos.

Quando a Rockefeller foi embora, o diretor do Serviço de Febre Amarela, o dr. Waldemar Antunes, e o Clemente Mariani, ministro de Educação e Saúde resolveram — não quero empregar termos descorteses — que o laboratório deveria estar ligado ao serviço que aplicava a vacina. Isso causou muita contrariedade na direção do instituto, mas fizeram um acordo político e conseguiram com o presidente da República um ato subordinando o laboratório ao Serviço Nacional de Febre Amarela. Para demonstrar seu repúdio àquela decisão, o dr. Henrique Aragão pediu demissão em sinal de protesto pela transferência indevida.

Ficamos assim até 31 de dezembro de 1949. Eu, o dr. Penna e todo o grupo passamos a depender do serviço. Éramos as sardinhas no meio desse mar agitado, afinal não tínhamos nada com a história. Pagavam os nossos salários, trabalhávamos, produzíamos a vacina, não tínhamos dificuldades de ordem administrativa, ao contrário, havia até interesse em mostrar ao laboratório que seria bom para ele pertencer ao Serviço Nacional de Febre Amarela.

O método de trabalho da Rockefeller foi repassado ao Serviço Nacional de Febre Amarela? Havia condições de mantê-lo?

Sim, porque as pessoas eram as mesmas. Os diretores e seus assistentes, e os chefes de setor, que tinham trabalhado com a Rockefeller no Nordeste, voltaram e ficaram na febre amarela.

Em que ano começou a discussão?

Ah, eu não lembro exatamente, mas deve ter sido por volta de 1946. A luta durou muito tempo, tanto que quando finalmente passamos para o Instituto Oswaldo Cruz, em dezembro de 1949, o diretor já era o prof. Olympio da Fonseca, que assumiu no lugar do dr. Aragão.

Como os senhores vieram para o Instituto Oswaldo Cruz?

O prof. Olympio da Fonseca, que tinha força, e outras grandes figuras da instituição, acharam que perder um laboratório como aquele, com todo o equipamento e pessoal treinado de forma até certo ponto incorreta, não era bom para o Instituto Oswaldo Cruz. Se a lei dizia que seria do Instituto Oswaldo Cruz, a lei tinha que ser cumprida, não é? Deram uma guinada e nós viemos para o Instituto Oswaldo Cruz.

O interesse pelo laboratório de febre amarela estava relacionado ao prestígio político que a vacina poderia trazer ao instituto?

É evidente. Era o único país no mundo, senão o mais importante, que produzia uma vacina contra a febre amarela. A produção sempre dá prestígio a qualquer instituição. Eu fui da febre amarela e da varíola, e sei como dá prestígio à instituição.

Então houve interferência dos pesquisadores do instituto nas negociações?

Ah, sim! Para fazer valer a lei, que tinha sido, vamos dizer assim, alterada.

Os técnicos que trabalhavam no laboratório achavam que estariam melhor no serviço do que no instituto?

A gente não sabia de nada. Nós não conhecíamos o Instituto Oswaldo Cruz. Estávamos saindo de um serviço de estudos e pesquisa sobre a febre amarela... É como se você estivesse vindo de São Paulo para o Rio de Janeiro e quando você chegasse em Cruzeiro, dissessem: "Não, você não vai para São Paulo. Você vai para Guaratinguetá." Mas ninguém nos perguntou nada. A gente sabia porque se comentava. E principalmente sabia da briga que se formou.

Quando o senhor se transferiu para o Instituto Oswaldo Cruz continuou trabalhando com febre amarela?

Ali fiz meu verdadeiro aprendizado. O que eu sabia de bacteriologia e virologia tinha aprendido com o dr. Penna, que se preocupava em me ensinar. Preparava meios de cultura, e coisas, às vezes, que não tinham nada a ver com a febre amarela. Mas a finalidade era me ensinar, para que eu aprendesse. Quando fomos transferidos para o Instituto Oswaldo Cruz, em janeiro de 1950, o diretor, o prof. Olympio da Fonseca, foi ao laboratório, no prédio da febre amarela, e disse: "Vim aqui convidar o senhor para fazer o Curso de Aplicação do Instituto Oswaldo Cruz." Era um curso de bacteriologia, parasitologia e imunologia, e durava dois anos em média. Era bastante bom. Não fazia ninguém sábio, mas dava uma abertura muito grande a quem o fazia, principalmente porque a gente aprendia a saber onde encontrar os assuntos, onde e como estudar. Todos os grandes nomes na época eram professores: o próprio Olympio da Fonseca, Genésio Pacheco, Souza Araújo, Lauro Travassos, Herman Lent, Humberto Cardoso, Gilberto Vilela, Júlio Muniz.

Havia intercâmbio entre os pesquisadores oriundos da Rockefeller e o pessoal do Instituto Oswaldo Cruz?

Eu tenho a impressão de que o intercâmbio era mais na área de anatomia patológica e histopatologia. O chefe do laboratório de diagnóstico e histopatologia da febre amarela era o dr. Madureira Pará. Havia também um intercâmbio grande com os drs. Magarinos Torres, Osvino Pena, Eitel Duarte, também patologista, e depois com o dr. Henrique Pena de Azevedo, que não tem nada a ver com dr. Henrique de Azevedo Penna. Ah! Parece que o dr. Haity Moussatché, da fisiologia, fez um trabalho com o dr. Penna sobre o vírus da cepa 17D.

O salário foi mantido?

O serviço manteve o mesmo status, o mesmo padrão de salário. Para você ter uma idéia, quando passamos para o Instituto Oswaldo Cruz, nosso salário era tão alto que causou um pouco de irritação aqui dentro. Ficamos durante uns dois ou três anos sem ter um aumentinho, até que o pessoal do Instituto Oswaldo Cruz chegasse onde nós estávamos. Eu ganhava quatro mil e quinhentos cruzeiros, e um pesquisador como o dr. Cássio Miranda, que estava no fim da carreira, ganhava três mil! Eles achavam que era um negócio, vamos dizer assim, anormal.

Havia um caminho aqui ao lado do instituto pelo qual descíamos para ir até o ponto de ônibus. Eu desci para pegar o ônibus e escutei a conversa de dois funcionários do instituto que não me conheciam. Um perguntou ao outro assim: "Afinal de contas, foi a ‘Rockefelis’ que passou para o instituto ou foi o instituto que passou para a ‘Rockefelis?’

O mais interessante é que o pessoal que veio da Rockefeller começou a ocupar cargos de chefia. O dr. Penna tornou-se chefe da Divisão de Vírus; eu fui chefe da Seção de Vírus, e depois, já em 1950, chefe da Seção de Produção. É isso mesmo, a gente vai falando, vai lembrando. O Amilar Tavares foi chefe de Seção de Administração.

Por que a Fundação Rockefeller pagava salários tão altos?

Era uma outra estrutura, baseada no estilo norte-americano de trabalho. Tinha dinheiro. Eu comecei ganhando um conto e quinhentos. Três meses depois, passei para um conto e oitocentos e, se não me engano, dois ou três meses depois, passei para dois contos. Era muito dinheiro! Eu fui para Ilhéus ganhando dois contos. Eu era rico!

Há tem algum centro importante de fabricação de vacina ou de pesquisa sobre febre amarela na América Latina?

Não. Hoje, o laboratório de vacina contra a febre amarela de Bio-Manguinhos, na Fundação Oswaldo Cruz,3 3 Em 1970, foi criada a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) incorporando o Instituto Oswaldo Cruz e outros institutos vinculados ao Ministério da Sáude. Em 1976, a vacina contra a febre amarela passou a ser desenvolvida por Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz responsável pela fabricação de imunobiológicos. fornece cerca de 80% de toda a vacina produzida no mundo. Existe um laboratório de pequena capacidade na Colômbia, que tem atravessado crises muito difíceis, quase interrompeu sua produção. Há outros laboratórios, mas todos produzem pouca quantidade de vacina, ao passo que, dado o volume de nossa produção, temos capacidade para atender às necessidades do Brasil e ainda exportar.

Em sua opinião, qual foi a importância do trabalho da Rockefeller no Brasil?

É preciso destacar uma coisa: a Rockefeller representou no Brasil uma grande escola. Quando os serviços de combate à febre amarela se expandiram para outros países, todos os cargos de chefia foram ocupados por brasileiros experientes.

Quando se criou a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), os cargos mais importantes foram ocupados por brasileiros que tinham vindo da Rockefeller. Acho que o grande mérito foi a escola de trabalho técnico-científico e a disciplina que ela introduziu no Brasil. O Serviço de Malária do Nordeste, o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), o Serviço Nacional de Febre Amarela foram frutos dessa experiência.

A fundação foi uma espécie de grande semente, foi a origem. Todos os estudos feitos sobre epidemiologia, transmissão, reservatório de vírus, métodos básicos de combate ao mosquito e depois o desenvolvimento e a produção da vacina de febre amarela foram feitos pela Fundação Rockefeller.

Ficha Técnica

Local da entrevista:

Pavilhão Rockefeller/Bio-Manguinhos/Fiocruz - Rio de Janeiro

Data:

agosto de 1987 a março de 1988

Duração:

30 horas

Entrevistadores:

Jaime Benchimol, Nara Azevedo, Wanda Hamilton

Edição da entrevista:

Wanda Hamilton, Nara Azevedo

NOTAS:

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Benchimol, Jaime jul.-out. 1994 ‘História da febre amarela no Brasil’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. I (1), pp. 121-4.

Faria, Lina R. 1994 A fase pioneira da reforma sanitária no Brasil: a atuação da Fundação Rockefeller (1915-1930). Tese de mestrado, Instituto de Medicina Social/UERJ, Rio de Janeiro.

Soper, Fred Lowe 1942 ‘Febre Amarela’. Separata d’ O Hospital. Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas de A Noite.

Williams, Steven C. 1994 ‘Nationalism and public health: the convergence of Rockefeller Foundation technique and Brazilian federal authority during the time of yellow fever (1925-1930)’. Em M. Cueto (org.), Missionaries of science. The Rockefeller Foundation and Latin America. Bloomington/Indianapolis, Indiana University Press.

  • 1
    O projeto Memória de Manguinhos, formado pelas pesquisadoras Nara Azevedo, Wanda Hamilton e Rose Goldschmidt, vigorou de 1986 a 1989 e constituiu um acervo de cerca de 330 horas de entrevistas com cientistas e técnicos do Instituto Oswaldo Cruz. Para maiores detalhes, a íntegra do depoimento de José Fonseca da Cunha encontra-se no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz.
  • 2
    Liofilização é o processo de secagem e eliminação de substâncias voláteis realizado em temperatura baixa e sob pressão reduzida.
  • 3
    Em 1970, foi criada a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) incorporando o Instituto Oswaldo Cruz e outros institutos vinculados ao Ministério da Sáude. Em 1976, a vacina contra a febre amarela passou a ser desenvolvida por Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz responsável pela fabricação de imunobiológicos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 1999
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