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História e biologia: diálogos possíveis, distâncias necessárias

History and biology: possible dialogues, necessary distances

Resumos

A evolução foi muitas vezes rejeitada como teoria incompatível com uma reflexão histórica adequada. Certamente, há limites intransponíveis entre a biologia e o estudo do homem e da sociedade; entretanto, uma análise rigorosa da teoria darwinista evidencia zonas epistemológicas de contato entre a história e a biologia evolutiva. Uma perspectiva temporal vertiginosa comum às duas áreas de conhecimento delineia algumas pontes de comunicação, como a importância do acontecimento, a afirmação da criação, a rejeição da teleologia e da ideia de progresso, a complexidade de processos constituídos entre o acaso e a necessidade e a impossibilidade de realizar previsões. Essa aproximação possibilita uma abordagem transdisciplinar em face de vários desafios contemporâneos.

biologia; história; evolucionismo; transdisciplinaridade


Evolution has often been rejected as a theory incompatible with proper historical reflection. While there are undoubtedly insurmountable barriers between biology and the study of man and society, a rigorous analysis of Darwinist theory demonstrates epistemological areas of contact between history and evolutionary biology. The amazing temporal perspective shared by both areas of knowledge points to some bridges of communication, like the importance of the event and of creation processes, the rejection of teleology and the idea of progress, the complexity of events between chance and necessity, and the impossibility of making predictions. This affords an opportunity for a transdisciplinary approach at a moment of various contemporary challenges.

biology; history; evolutionism; transdisciplinarity


ANÁLISE

História e biologia: diálogos possíveis, distâncias necessárias

History and biology: possible dialogues, necessary distances

Regina Horta Duarte

Professora-associada do Departamento de História/Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627, Prédio da Fafich, 4o andar, 31270-901 - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil. reginahd@uai.com.br

RESUMO

A evolução foi muitas vezes rejeitada como teoria incompatível com uma reflexão histórica adequada. Certamente, há limites intransponíveis entre a biologia e o estudo do homem e da sociedade; entretanto, uma análise rigorosa da teoria darwinista evidencia zonas epistemológicas de contato entre a história e a biologia evolutiva. Uma perspectiva temporal vertiginosa comum às duas áreas de conhecimento delineia algumas pontes de comunicação, como a importância do acontecimento, a afirmação da criação, a rejeição da teleologia e da ideia de progresso, a complexidade de processos constituídos entre o acaso e a necessidade e a impossibilidade de realizar previsões. Essa aproximação possibilita uma abordagem transdisciplinar em face de vários desafios contemporâneos.

Palavras-chave: biologia; história; evolucionismo; transdisciplinaridade.

ABSTRACT

Evolution has often been rejected as a theory incompatible with proper historical reflection. While there are undoubtedly insurmountable barriers between biology and the study of man and society, a rigorous analysis of Darwinist theory demonstrates epistemological areas of contact between history and evolutionary biology. The amazing temporal perspective shared by both areas of knowledge points to some bridges of communication, like the importance of the event and of creation processes, the rejection of teleology and the idea of progress, the complexity of events between chance and necessity, and the impossibility of making predictions. This affords an opportunity for a transdisciplinary approach at a moment of various contemporary challenges.

Keywords: biology; history; evolutionism; transdisciplinarity.

Evolucionismo e história

Nos debates entre os historiadores, uma das críticas mais contundentes que se pode dirigir a uma análise é acusá-la de apresentar uma perspectiva evolucionista, na qual a história seria violentada por dois procedimentos. O primeiro delinearia uma concepção do tempo sob o signo da continuidade. Numa longa sucessão temporal, em que cada momento do presente se ligaria ao anterior por determinações necessárias, a história das sociedades - das cavernas aos shopping centers - revelaria o segredo do desenvolvimento de alguma tendência inscrita desde o início, presente desde os primórdios da aventura humana, e, simultaneamente, exterior a ela. No vislumbre dessa permanência, a história seria, sobretudo, um reencontro do homem consigo mesmo, e o tempo - matéria-prima básica do estudo histórico - seria uma imensa totalidade homogênea, na qual passado, presente e futuro se confundiriam, apresentando-se apenas como espaços distintos numa longa sucessão das eras.

Um segundo procedimento, supostamente desdobrado do evolucionismo, seria o de conceber a história sob a regência do progresso, numa atitude otimista, crédula: progresso da razão, das forças produtivas, da civilização. O tempo seria traçado como uma sucessão ascendente em direção a um fim predeterminado. Somando-se à lógica da continuidade, a história narraria a crescente concretização de um destino e acompanharia o desempenho humano em efetivá-lo nessa longa linha de sucessão. Entre a continuidade e o progresso, a história evolucionista seria fonte de segurança e conforto, porque designa reencontro, assim como reforço de uma imagem otimista do domínio humano sobre o mundo, validando valores e práticas contemporâneas como ápice de um trajeto percorrido.

A metáfora da evolução como uma escada serve bem à compreensão dessa abordagem historiográfica (Gould, 1999, p.49-55). Passo a passo, degrau a degrau, a ascensão humana seria premiada pela possibilidade de avaliar, a posteriori, o espaço percorrido ao longo do tempo contínuo e dirigir-lhe um "olhar de fim de mundo" (Foucault, 1984, 1986, p.1-20). O historiador, ao debruçar-se sobre o estudo dos homens que viveram no passado, ganha um quê de arrogância, pois deles detém os segredos e a chave de seu destino.

Se o termo 'evolucionista' recebe conotação negativa quando se refere a análises sobre o homem e a sociedade, isso se deve, em grande parte, ao estreitamento da compreensão da teoria da seleção natural pelas correntes do darwinismo social - especialmente a partir da divulgação do pensamento de Herbert Spencer, desde finais do século XIX, e sua ênfase na 'sobrevivência do mais apto' - e da sociobiologia - sistematizada por Edward Wilson na década de 1970. Numa concepção de evolução reduzida à mera lei de sobrevivência do mais forte, o mais apto foi identificado ao melhor e mais perfeito, gerando uma série de trabalhos e práticas com duvidoso conteúdo político e ético. Após a publicação de A origem das espécies, a teoria evolucionista sofreu uma série de apropriações e traduções, em contextos diversos e por atores históricos muito variados. O darwinismo, na complexidade de suas proposições, possibilitou uma gama eclética de interpretações, com formas diversas de adesão e/ou rejeição de um ou mais aspectos (Gualtieri, 2003, p.80-82).

Darwin sistematizou um pensamento extremamente sofisticado sobre a evolução, passível de ser desdobrado em cinco teorias interdependentes: a evolução propriamente dita (ou seja, o mundo não é constante, nem as espécies); a ascendência comum dos seres vivos; o gradualismo; a especiação; e, last but not least, a seleção natural (Mayr, 2005, p.113-132).

Não obstante ter-se transformado numa fonte de críticas quando utilizada por representantes das ciências humanas, a teoria da evolução foi objeto de atenção e consideração extremamente positivas. Pensadores da importância de Marx e Freud - cujas obras acarretaram verdadeiras revoluções intelectuais no pensamento ocidental - realizaram leituras vigorosas de Darwin, numa abertura de janelas de comunicação entre diferentes áreas das ciências sociais e naturais.

Quando A origem das espécies foi publicada, em 1859, Marx vivia em Londres, trabalhando intensamente no Museu Britânico (hoje Biblioteca Britânica). Talvez seu acesso ao livro tenha ocorrido nesse local, pois certamente não teria dinheiro para comprá-lo. Naquele mesmo ano, ao terminar Para a crítica da economia política, Marx não pôde pagar os selos da postagem dos originais ao seu editor alemão, o que atrasou em muitos dias o envio. O livro de Darwin exerceu sobre ele forte impressão e foi apontado, em correspondências, como a base, nas ciências naturais, para sua teoria sobre a luta de classes. Em 1873, Marx enviou um exemplar de O capital a Darwin, autografando-o como "um sincero admirador" (Desmond, Moore, 2001, p.615; Giannotti, 1978, p.XVIII-XIX). Mesmo que pela mera expressão de franca simpatia, o movimento de aproximação de Marx evidencia o modo como ele dimensionou as profundas e latentes consequências no materialismo radical das teorias de Darwin, lidas e interpretadas como estímulo à sua disposição de compreender e transformar o mundo.

Poderíamos argumentar, com grande dose de razão, que o pensamento de Marx sobre a história privilegiou uma lógica de continuidade e progresso em direção a um final predeterminado. Afinal, o marxismo oferece uma explicação completa da história passada, presente e futura "segundo um plano imanente, necessário e favorável" (Monot, 2006, p.161). Ainda assim, e apesar da distância que a escrita da história atualmente adquiriu em relação às concepções marxistas ortodoxas, permanece inegável a contribuição de Marx, em seu tempo, para o surgimento de novos e decisivos parâmetros de reflexão no mundo contemporâneo (Foucault, 1997, p.19). E - o que interessa à proposição deste artigo - isso se fez num ambiente de rica comunicação entre o pensamento social e a reflexão sobre o mundo natural.

Posteriormente, Sigmund Freud notaria que a teoria da seleção natural desempenhou um papel essencial ao ofender o ingênuo amor próprio do homem, roubando-lhe qualquer privilégio de criação especial ao ligá-lo à natureza e relegá-lo a descendente do mundo animal. Referia-se ao cientista inglês como "o grande Darwin" e citou-o várias vezes, desde os primeiros escritos sobre a histeria, em finais do século XIX, até seu último livro, Moisés e o monoteísmo, publicado em 1939. Ao mudar-se para Londres, resgatado da Alemanha nazista, Freud levou consigo nove volumes de Darwin, adquiridos entre 1875 e 1883 (Ritvo, 1974).

Em contraste com a rejeição atual da maioria dos cientistas sociais ao evolucionismo, outras épocas testemunharam a relevância, para teóricos, de Darwin, cuja obra expressava o que então havia de mais avançado, definindo novas bases de reflexão sobre o homem e a sociedade. Considerando a riqueza da aproximação entre pensadores como Marx e Freud e a biologia evolutiva, argumento que contatos dessa ordem não apenas são possíveis no estado atual das reflexões dos historiadores, mas também podem contribuir decisivamente para o encaminhamento de alguns desafios a serem urgentemente enfrentados pela historiografia. Para tanto, será necessário retomar o significado da teoria darwinista da evolução e, levando em conta o vigor com que ela ainda responde a várias indagações da biologia contemporânea, redefinir o sentido que pode assumir na construção do conhecimento sobre os homens no tempo. Para contornar o horror que a proposta eventualmente provo que entre os historiadores, uma estratégia será seguida: antes de discutir as possibilidades do diálogo, serão estabelecidos limites de análise e algumas distâncias indispensáveis.

Limites: dos riscos do determinismo biológico

Em primeiro lugar, é importante recortar o limite desta reflexão. Não se tratará aqui de toda a biologia, constituída por campos distintos e ampla gama de aplicações práticas. No horizonte da complexidade dessa ciência, distingo a biologia funcional e a biologia evolucionista. A primeira lida com a fisiologia das mais diversas atividades dos organismos vivos, aproximando-se, em seus métodos experimentais e explicações, das ciências físicas e químicas. A segunda, também denominada biologia histórica, possui método ligado à construção de cenários hipotéticos e narrativas históricas, assim como à comparação de evidências variadas. Se traçássemos uma divisória entre as ciências exatas e as humanas, "tal linha cortaria a biologia bem ao meio e anexaria a biologia funcional às ciências exatas, ao mesmo tempo que classificaria a biologia evolucionista entre as Geisteswis-senschaften (ciências do espírito)", revelando "a fraqueza da velha classificação das ciências" (Mayr, 2005, p.49; 2008, p.151-171).

Estabelecido esse recorte, delineia-se outro ponto básico de partida. A proposta de diálogo entre a história e a biologia evolucionista não se refere a uma tentativa de aplicação, por parte de uma delas, dos resultados obtidos pela outra. Não é possível transferir a teoria da seleção natural para a produção do conhecimento histórico, como se ela pudesse explicar e esgotar a história social humana, resultado de práticas culturais marcadas pela flexibilidade e pela criatividade da mente humana. Tampouco se deve projetar as categorias de análise da sociedade humana nos reinos vegetal e animal, nem esvaziar as distinções inegáveis desses dois campos de conhecimento voltados para objetos diversos. Essa foi a perspectiva do darwinismo social (De Luca, 1999, p.133-155; Gualtieri, 2003, p.49; Schwarcz, 2003, p.170, Duarte, 2006), como também da sociobiologia, com resultados desastrosos.

Trata-se, antes, de explorar a maneira como formas de conhecimento distintas, com objetos de estudo diferentes, possuem alguns pressupostos similares que permitem uma espécie de tradução metodológica, através da qual se estabelece uma janela de comunicação. Considero, aqui, a inteligibilidade mútua entre experiências de campos de conhecimento, sem qualquer intenção de ignorar diferenças ou construir visões holísticas (Brandão, 2008, p.22). Desejo, ainda, avaliar em que essa abertura pode ser valiosa para a historiografia contemporânea e estabelecer a maneira pela qual a biologia traz, ao historiador que explore as porosidades e interfaces entre as duas disciplinas, elementos para um exercício efetivamente transdisciplinar, na busca de maior compreensão do mundo em sua complexidade.

No âmbito maior da relação entre a biologia e as ciências humanas - em que a história se inclui - e dos perigos de uma mera projeção de conhecimentos produzidos de uma área a outra, um alerta instigante vem do antropólogo Marshall Sahlins. Como estudioso da cultura, Sahlins (2003) lamenta as perdas sofridas pela biologia com a transferência, no estudo dos mais diversos seres vivos, de metáforas relacionadas ao imperialismo, à dominação política ou ao utilitarismo econômico do capitalismo contemporâneo. Escrevendo sob o impacto estrondoso da publicação, em 1975, do livro Sociobiologia: a nova síntese, de Edward Wilson, Sahlins denuncia um sério descarrilamento ideológico da teoria de seleção natural. A seleção, pervertida pela ideia de maximização e da vitória do melhor, transformou-se numa espécie de capitalismo genético.

Acusada por muitos de ser uma reencarnação do darwinismo social, a sociobiologia propõe uma nova síntese que englobe as ciências sociais e as humanidades à biologia, supondo a sociedade como resultado comportamental de interações de organismos com inclinações biológicas geneticamente determinadas (Wilson, 1980, p.564-595). Contra isso, Sahlins (2003, p.5-16, 67-81, 107) afirma a descontinuidade radical entre natureza e cultura. O campo inteiro das humanidades reside na impossibilidade de construir um conhecimento efetivo sobre a cultura humana com base em sua redução aos aspectos biológicos e naturais. De outra maneira, apenas nos restaria - mais que abandonar a compreensão do mundo humano como repleto de significados - perder a melhor esperança de conhecer a nós mesmos.

Outra crítica contundente ao uso da biologia para o esclarecimento da cultura e das sociedades humanas emerge dos inúmeros livros de Stephen Jay Gould. Segundo esse autor, o combate ao determinismo biológico apresenta-se como tarefa sempre na ordem do dia, pelo caráter impressionantemente recorrente de seus argumentos. Toda vez que se imagina a derrota do monstro, lá está ele, qual Hidra de Lerna, criando novas cabeças. Ao longo das décadas, os argumentos apresentam-se praticamente os mesmos, mas são eficazes também na justificativa de desigualdades sociais e políticas públicas de exclusão, revestindo-as de motivações supostamente científicas.

Gould (1996, p.26-36, 1999, p.1-8, 215) traça um paralelo entre a ascensão do determinismo biológico nos Estados Unidos e períodos de avanço do conservadorismo político, com usos do evolucionismo associados a práticas racistas, sexistas e imperialistas, marcando vítimas com selos de inferioridade, num uso da 'biologia como cúmplice'. Como ápices do encontro entre conservadorismo e determinismo biológico, podemos destacar estes períodos: o pós-Primeira Guerra Mundial (com restrições à imigração, cotas de judeus, execução de Sacco e Vanzetti, aumento dos linchamentos nos estados sulinos); o final dos anos 1960 (marcado pelo assassinato de Martin Luther King, pela guerra do Vietnã, eleição de Nixon, Guerra Fria e anticomunismo); e o início da década de 1990 (era Reagan-Bush).

Assim, na sequência dos argumentos de Sahlins e Gould, é importante estabelecer as distâncias necessárias entre a história - área de conhecimento das ciências humanas na qual a presente reflexão se insere - e a biologia. Os resultados produzidos por uma não são aplicáveis à outra. Não se trata de qualquer pretensão de síntese, nem de negação da diferença entre os saberes disciplinares. Afinal, o limite é aquilo que se insinua entre dois ou mais mundos, dividindo-os, anunciando a diferença. O limite é salutar para a manutenção das alteridades entre um e outro, "insinua a presença da diferença e sugere a necessidade da separação" (Hissa, 2002, p.19). Na tradução dos conceitos de uma área do conhecimento a outra, nem tudo pode ser levado à 'zona de contato' entre as disciplinas; há lacunas e distâncias, nas quais emerge a especificidade das áreas diversas. Até porque, sem isso, só poderia existir "um monólogo sem sentido e rapidamente emudecido" (Brandão, 2005, p.46).

Janelas de comunicação: o tempo como ponte para o diálogo

Entre a história e a biologia, uma perspectiva temporal vertiginosa delineia algumas pontes de comunicação, das quais serão aqui focalizadas: a importância do acontecimento; a afirmação da criação; a rejeição da teleologia e da ideia de progresso; e a impossibilidade de realizar previsões (mesmo que prognósticos sejam possíveis).

O tempo da história é, segundo o filósofo Ivan Domingues, um motivo de 'escândalo' para quem deseja a identidade e a determinação. Ao experimentar o tempo, com sua ação corrosiva e denunciadora do caráter efêmero das coisas, os homens fazem tudo para negar e recalcar o que evidencia a decadência e a morte implacáveis, inscritas em sua condição (Domingues, 1996, p.18-19). Durante vários séculos, diferentes formas de relação com o tempo, fosse ele representado como cíclico ou linear, negaram o surgimento do novo, do imprevisto e do indeterminado. Reduzindo o devir à eternidade, estabilizou-se o seu fluxo, e estabeleceu-se um plano de permanência em que a ideia de destino ou de a priori puderam alojar-se.

Não menos escandaloso é o tempo da evolução. Ele traz a perturbadora constatação de que, ao ser humano, cabe uma parte muito pequena da história do planeta e assim afasta expectativas antropocêntricas de que tudo o que aí está seja organizado para nosso usufruto. Tem-se então que tanto o estudo da história quanto o da biologia evolutiva nos confrontam diretamente com a reflexão sobre as relações entre vivos e mortos, presente e passado, esperança e finitude, continuidade e criação.

A história como a biologia evolutiva são inconcebíveis sem o acontecimento e o tempo. Sem tempo não há acontecimento, sem acontecimento não há tempo; apesar de não serem idênticos, ambos partilham da mesma natureza (Domingues, 1996, p.116-123). Como 'acontecimentos' poderíamos apontar a extinção de uma espécie por um cataclismo; a migração de uma população de focas; a Revolução do Porto e sua exigência da volta de dom João VI a Portugal; os eventos de maio de 1968; a Comuna de Paris; e a aceitação, por Darwin, da viagem no Beagle como acompanhante do capitão Robert FitzRoy. Esses eventos são, por excelência, singulares, irreprodutíveis e trazem, não raras vezes, forte marca de contingência. Mas eles se ligam, também, a uma série de condições existentes, mesmo que não necessariamente determinantes. Nelas emergem, com elas interagem e, por vezes, as transformam radicalmente, através da criação. Nessa concepção do tempo e do acontecimento como surgimento do que não existia antes (mas, por vezes, também como permanência do que já existia), não há lugar para a teleologia, para a lógica do progresso, nem para a previsão do futuro a partir de raciocínios deterministas.

A emergência da vida como um acontecimento algo aleatório que, a despeito do caráter acidental, gera uma série de efeitos necessários, coloca a biologia como um saber intrinsecamente voltado para a reflexão sobre a criação (Domingues, 1996, p.151). Mayr (2005, p.91-94) discute o caráter controverso da 'emergência indeterminada' em sistemas complexos na filosofia da biologia e considera que três de suas propriedades são dificilmente aceitáveis por uma explicação puramente mecanicista: ela produz uma novidade genuína; essa novidade é qualitativa, ou seja, é diversa de tudo o que existia; ela era imprevisível antes de seu surgimento. Muitas vezes, o novo se origina da construção de uma relação entre componentes previamente desconectados, tal como um martelo surge da junção de um pedaço de pau com uma pedra. O martelo é criado nessa união, acrescentando uma propriedade inédita aos seus componentes originais (de modo que o pedaço de madeira passa a ser um cabo e uma pedra, a cabeça do martelo). Assim acontece nas interações de um sistema biológico complexo. A aceitação do princípio de emergência ajuda a explicar a origem de novidades no processo evolutivo, sem necessidade de recorrer a qualquer princípio metafísico.

Na reflexão sobre a história, a emergência do novo como criação absoluta também se apresenta com um grande debate. O tempo, instituído social e historicamente, é devir, alteridade, emergência, criação. Considerar a criação exige o rompimento com a ontologia herdada, na qual o ser é sempre determinado. Isso não implica a inexistência de condições históricas: o que surge sempre ocorre em certo momento, em certas condições, num ambiente específico, criado por seres humanos históricos e pertencentes a um lugar social. Mas aquilo que se cria não é causado ou determinado por esses elementos; há uma diferença entre condições e causas. O que surge não é necessariamente dedutível do que existe. Assim, pensar o ser no tempo exige pensá-lo como 'fazer ser' de outros modos. O estudo da história oferece um panorama exuberante de criações: democracia grega, a cidade, a universidade, movimentos como a Revolução Francesa, a Comuna de Paris, a Revolução Húngara, o Maio de 68. Mas a criação não é necessariamente 'boa' ou eticamente aceitável: os campos de concentração são também uma criação humana, assim como a Inquisição, o apartheid, o totalitarismo. É importante ressaltar ainda que nem tudo é sempre novo, já que, além de uma "sociedade instituinte", existe sempre uma "sociedade instituída" (Castoriadis, 1982, p.243).

Outra ponte de comunicação refere-se à crítica do raciocínio teleológico. Para Mayr (2005, p.55-81), a biologia só logrou ser uma ciência bona fide quando eliminou a teleologia de seus procedimentos teóricos, quando descartou a concepção de uma causa final a reger os fenômenos e conduzilo-os a um fim ou uma meta. Segundo Mayr, isso foi efetivado primeiramente por Darwin e retomado com vigor na síntese evolucionista da década de 1940. As transformações evolutivas realizam-se, grosso modo, no seio da combinação entre a ocorrência de uma grande variação a cada geração e a maior probabilidade de seleção dos organismos com fenótipos mais favoráveis à sobrevivência em determinadas condições ambientais. São resultados a posteriori e não de uma busca definida a priori.

Um exemplo clássico seria o das espécies de salmão do Oceano Pacífico. Esses peixes realizam uma longa e turbulenta viagem, que pode abranger cerca de 5.500km entre a área de alimentação, nos oceanos, e a de desova, em rios, ribeiros e lagos de água doce. Após nadar durante várias semanas e enfrentar inúmeras adversidades, o salmão chega ao seu objetivo extremamente debilitado, magro, com cortes sofridos ao nadar sobre as pedras de rios rasos, corredeiras e quedas d'água. Suas barbatanas estão rasgadas, os olhos e brânquias, infestados de parasitas. Ao entrar na zona de água doce, o salmão para de se alimentar, contando apenas com suas reservas. Com isso, diminui o espaço ocupado pelo aparelho digestivo e aumenta o espaço para armazenamento de ovos, que atingem um número expressivo. Ao chegar à zona de reprodução, a fêmea faz uma pequena cavidade no fundo do rio, onde realiza a única desova de sua existência, seguida pela fecundação a cargo do macho. Ambos morrem logo depois, sem forças para voltar ao oceano e se alimentar. O trajeto para a reprodução é, assim, tanto uma viagem em direção à morte quanto uma garantia da sobrevivência da espécie. Entretanto, seria erro imenso tomar o modo como essa espécie se reproduz como causa final que explica todas as suas adaptações. Ou seja, não se pode pensar que todas as características do salmão foram obtidas com o fim de maximizar esse momento de uma só postura seguida de morte, como se fosse um destino inato. Tal 'solução' foi fruto de processos delineados a partir das variações apresentadas nas sucessivas gerações da espécie. Não se pode explicar sua transformação como se toda ela fosse direcionada para uma única e suicida postura de ovos. O resultado, que parece perfeito até por seu imenso apelo poético, é fruto de milhões de anos de seleção natural, na qual atuaram o acaso e a necessidade (Sahlins, 2003, p.81-84; Rodrigues, 2002).

O estudo da história também rejeita explicações teleológicas, 'olhar de fim de mundo', em que o passado é indagado apenas sobre o que confirma determinada situação, pela reinterpretação de todos os processos e exclusiva valorização dos acontecimentos que se prestam como passos lineares de sua concretização. Tomarei o exemplo da proclamação da independência do Brasil. Em finais do século XVIII e nos primeiros anos do XIX, grandes transformações marcaram as relações entre a metrópole portuguesa e sua colônia mais preciosa, o Brasil. Uma elite luso-brasileira, vivendo nos trópicos e com interesses aqui bem estabelecidos, entrava em constantes divergências com Lisboa. Após a vinda da corte, decorrente da invasão napoleônica, houve uma verdadeira 'interiorização da metrópole' portuguesa na região Centro-Sul da colônia, com significativas mudanças. Muitos súditos que viviam do lado de cá do Atlântico prosperaram com o incremento do comércio de tropas para o abastecimento dos mercados dinamizados pela presença da corte no Rio de Janeiro. Muitas dessas famílias mesclaram-se, por meio de inúmeros casamentos, com a nobreza recém-chegada - a exibir grande pompa, mas de mãos abanando. Ainda no Centro-Sul, a agricultura para o mercado interno se intensificou-se. A vida cultural e científica conheceu mudanças significativas. Em 1815, atendendo às exigências do Congresso de Viena, mas também satisfazendo aos interesses internos classe senhorial luso-brasileira, dom João VI eleva o Brasil à condição de Reino Unido (Dias, 1972; Lenharo, 1993; Mattos, 1990, p.9-80).

A partir de então, as elites buscaram a manutenção do Reino Unido português, no qual o Brasil gozava de autonomia administrativa. Essa solução, entretanto, sofreu grande abalo e se tornou inviável com a Revolução do Porto, que exigiu a volta de dom João VI e estabeleceu medidas recolonizadoras. Se acompanharmos os acontecimentos em 1822, perceberemos que a independência só se tornou opção real, para as elites dominantes, num momento bem próximo ao dia 7 de setembro. Aliás, para os homens da sociedade imperial, esse dia só passou a ser marco oficial da independência após a mediação do reconhecimento pela Inglaterra e com a crescente projeção da ideia de soberania centrada na hereditariedade do poder imperial. Outros momentos foram marcantes para os que viviam naqueles meses decisivos. Datas como o 1º de agosto de 1822 (quando um decreto de dom Pedro convocou a Assembleia Constituinte, "tendo em vista o Brasil já ter proclamado sua independência"), assim como o 12 de outubro (quando dom Pedro foi aclamado, pelo povo, Imperador Constitucional e Defensor do Brasil) foram obscurecidas como marcos de independência, a despeito de sua repercussão imediata ter sido incomparavelmente superior à do 7 de setembro (Lyra, 1994, p.191-227, 1995, p.177-189).

Seguiram-se anos de grandes conflitos entre as elites e dom Pedro. Após a abdicação, no turbulento período regencial, as elites se viram aterrorizadas por movimentos que envolviam populações escravas, homens livres pobres e tropas de soldados. Também os conflitos intraelites, com lutas incessantes entre grandes famílias pelo controle dos poderes locais, tumultuavam a vida em várias províncias, desde o Rio Grande do Sul até o Maranhão. Na década de 1840, iniciativas de centralização e organização de um Estado nacional foram defendidas e praticadas como solução para tantas atribulações. Durante o Segundo Reinado, a história do período precedente a 1822 foi contada (e recontada por várias décadas) como uma inexorável marcha em direção à independência do Brasil como nação monárquica, marcha essa conduzida por homens que já traziam o amor à nação brasileira como móvel quase inato. Porém, é significativo que projetos republicanos de nação - os de líderes como Cipriano Barata e frei Caneca - foram ocultados tanto quanto possível pelos relatos imperiais, por contrariar a opção da independência monárquica sob controle da Casa de Bragança e a outorga de uma constituição.

Enfim, ao contrário do que possam estabelecer as visões teleológicas, a cada momento do passado o futuro se apresentava em sua indeterminação, e as possibilidades disponíveis eram muitas. Em história, sempre é preciso considerar-se "aquilo que foi e não é mais, as promessas não cumpridas do passado" (Ricoeur, 2002, p.377-378). A explicação histórica não pode ter caráter retrospectivo, como se o presente fosse inexorável e inelutável. Nesse ponto reside uma das melhores notícias que a história tem para dar: o mundo em que vivemos não precisa ser necessariamente do jeito que é.

No que diz respeito à biologia, o diagrama de divergência de táxon, desenhado em A origem das espécies, nos mostra que a metáfora capaz de expressar a teoria da evolução não é a da escada, mas sim a da árvore, com largo tronco evidenciando um início comum e ramificações dispersas, não regulares, algumas interrompidas bruscamente, outras subdivididas em ramos, que por sua vez se multiplicam novamente (Darwin, 2001, p.514; Gould, 1999, p.49-55). Resultado a posteriori, a evolução mistura acaso e necessidade: acaso das variações dos seres vivos; necessidade decorrente das condições de existência em que se dá a seleção.

Um dos pontos mais importantes a ressaltar diz respeito ao desafio da ideia de um progresso a ser concretizado no tempo. Não se trata da sobrevivência do melhor, nem do mais perfeito. Os seres vivos se reproduzem com grandes variações, passíveis de serem herdadas pelos descendentes. A variação é casual, e não dirigida a uma determinada forma final a ser alcançada. No âmbito dessa variação, há indivíduos com características, frequentemente mínimas, que lhes podem conferir certa vantagem sobre os demais. Com maior probabilidade de sobreviver, esses organismos terão mais chances de transmitir aos descendentes uma característica vantajosa naquele momento, naquelas condições. Mas essa aptidão maior é extremamente relativa e contingencial, pois, ao lado de uma ou mais características que os favorecem, abrigam outras não necessariamente melhores. As variações que se apresentarem favoráveis ou nocivas não serão afetadas pela seleção, "permanecendo como característica oscilante" (Darwin, 2001, p.81; tradução livre). Com o passar do tempo, e ao sabor das mudanças das condições de existência, algumas das características desse conjunto podem tornar-se desfavoráveis na luta pela sobrevivência de seus descendentes. Em outro contexto, sua aptidão pode transformar-se no motivo de sua extinção. A antiga concepção de uma scala natura - definidora da perfeição e progressão ascendente dos seres vivos - foi radicalmente contestada pela teoria da seleção natural (Mayr, 2000, p.477-500; Gould, 2003, p.293-294).

Ao considerar a proximidade entre a biologia e a história, Ernst Mayr (2008, p.64) recorre ao historiador inglês Edward Hallet Carr, para quem a história se diferencia das outras ciências em cinco aspectos: ela não ensina lições; é necessariamente subjetiva; lida com o que é único; tange a questões morais; e é incapaz de fazer previsões. Desses, os dois primeiros não são reconhecidos por Mayr como comuns à biologia; os demais a ela se aplicariam.

Embora as previsões exatas sejam impossíveis, em ambas as disciplinas se podem esboçar prognósticos. No estudo da história - que deixou de ser vista, na virada do século XVIII para o XIX, 'mestra da vida' de onde se poderiam retirar lições seguras para as decisões presentes -, os prognósticos são possíveis desde que se observem alguns procedimentos: eles devem ser feitos em caráter mais geral e renunciar ao detalhe, descartar o impossível, avaliar as condições presentes e - por último, mas não menos importante - reconhecer a contingência como elemento sempre pronto a emergir. Da mesma forma, na biologia, o alerta presente nas listas dos espécimes ameaçados é um prognóstico realizado com base nas condições atuais. Ao mesmo tempo, muitos observam com apreensão o que acontecerá aos ursos polares à medida que o aquecimento global avance. Note-se ainda que o prognóstico associa-se a uma ação política, sendo dela um momento consciente: "produz o tempo que o engendra e em direção ao qual ele se projeta" (Koselleck, 2006, p.32).

Uma vez indicadas algumas janelas de comunicação entre a história e a biologia, e após a imprescindível indicação das distâncias necessárias entre essas disciplinas, restaria indagar como esse diálogo pode ser profícuo para os respectivos pesquisadores e para a construção do conhecimento como uma prática transformadora do mundo em que vivemos.

Kairos

Uma das barreiras à expansão do conhecimento, na atualidade, tem sido a excessiva especialização dos profissionais das várias áreas e a hiperfragmentação do saber. Perante os desafios da globalidade e a necessidade de intervir em realidades "multidimensionais, globais, transnacionais, planetárias", com problemas crescentemente "transversais, polidisciplinares e até mesmo transdisciplinares", a proposta de 'religação' dos saberes apresenta-se não apenas necessária, mas sobretudo urgente. O novo milênio demanda 'passarelas' permanentes entre saberes particulares, na construção do conhecimento (Morin, 2002, p.14-21). Como vimos, obras vigorosas como as de Marx e Freud foram capazes de, entre meados do século XIX e as primeiras décadas do seguinte, traduzir conceitos entre o estudo do homem e das sociedades e a biologia evolucionista (mesmo que vários conceitos ou perspectivas desses pensadores possam, hoje, ser alvo de críticas). Não se trata de retornar ao século XIX, mas sim de reativar possibilidades de reflexão, traduzir conceitos, compartilhar metodologias e aproximar disciplinas, num momento em que a biologia se apresenta como uma das ciências mais instigantes e complexas (Morin, 2001, p.28; Monot, 2006, p.19; Brandão, 2008, p.21).

Vejamos, primeiramente, o que a história pode oferecer à biologia. Um dos métodos primordiais da biologia evolutiva reside na comparação de evidências variadas num teste constante de narrativas (Mayr, 2005, p.40). Ora, um dos principais dilemas das narrativas dos processos de seleção reside na constatação da inexistência de 'fatos puros'. Os fatos só ganham sentido à luz de uma teoria, o que traz o imenso perigo, para o cientista, de só enxergar o que a teoria predominante destaca, reforçando apenas o que se sabe de antemão.

Há sempre o perigo de esquecermos que a história da natureza não tem um sentido intrínseco. Antes, ela é uma construção humana, culturalmente informada. Com base nos mesmos dados, diversas narrativas evolucionistas podem ser construídas, evidenciando, mais uma vez, a distância a ser respeitada entre natureza e cultura, assim como os perigos de um evolucionismo ingênuo ou, o que seria pior, dogmático (Gould, 1999, p.158-163). Nesse aspecto, certamente os biólogos se podem beneficiar dos trabalhos de muitos historiadores que, desde sempre, enfrentaram os limites de suas narrativas, a historicidade da própria história e o movimento que liga as práticas interpretativas às sociais. Os historiadores continuamente realizam a crítica do anacronismo, consideram o lugar histórico a partir do qual realizam suas enunciações, percebem as relações entre o saber que produzem e os dilemas de seu próprio tempo. Esses debates são complexos e não têm solução única (Certeau, 1982, p.65-77; Hartog, 1998; Le Goff, 1985, p.162-179). Não obstante, podem servir ao incremento de uma 'história natural humanista', na qual o pensamento criativo se alimenta de intensa pesquisa e rigor, mas também de intuição, da consideração dos preconceitos a serem combatidos, de insights experimentados através de contatos com outras disciplinas e do posicionamento do cientista em relação aos seus contemporâneos (Gould, 2003, p.10-13).

Para os historiadores, rever a recusa à biologia e dispor-se ao diálogo são atitudes de reconsideração de preconceitos advindos de uma compreensão da biologia reduzida às formas de divulgação mais simplistas e espúrias, como no caso do darwinismo social. Um conhecimento mais fundamentado da biologia é essencial neste momento em que a história se debruça sobre a questão ambiental, um dos mais importantes impasses do mundo contemporâneo. A cada dia, pesquisas históricas focalizam relações entre as sociedades e o ambiente. Temas diversos ganham destaque [com essa aproximação da história com a biologia], e os exemplos são inúmeros: aclimatação de plantas e animais, uma verdadeira globalização das espécies, no contexto colonialista; representações diversas sobre a natureza em diferentes sociedades humanas; as relações dos homens com animais domésticos e selvagens; histórias de florestas, rios, paisagens, práticas agrícolas e interferências no meio ambiente; as relações entre as cidades e a natureza; os resultados da ação de diferentes sociedades na transformação, sobrevivência ou destruição dos seres vivos. Enfim, uma miríade de novos objetos para a história que envolvem a necessidade de maior conhecimento da biologia e áreas afins (Thomas, 1988; Dean, 2000; Mitman, 1992; Soluri, 2005; Fuñes Monzote, 2008; Grove, 1995; Crosby, 1993).

Como já sublinhei, não se trata de aplicar resultados, mas sim de abrir janelas de comunicação. Nesse ponto, evoco um dos argumentos mais lembrados em defesa do estudo da seleção natural. Sem finalidade, sem progresso, sem metafísica que a apoie, ela contraria o profundo antropocentrismo de nossa cultura. Ao longo dos séculos, representações religiosas, filosóficas e até científicas constituíram um "incansável e heroico esforço da humanidade em negar desesperadamente sua própria contingência" (Monot, 2006, p.56). Entretanto, na história do planeta, o surgimento da espécie humana não era necessário, inevitável ou predestinado. Ao explicitar isso, a biologia se apresenta como um conhecimento que ignora qualquer imanência (Monot, 2006, p.142).

Paradoxalmente, ao aprender com a biologia o questionamento do antropocentrismo, o historiador só o faz interessadamente, buscando revertê-lo em proveito do próprio homem, visando estender a expectativa da sobrevivência das suas sociedades. Os homens não vivem isolados, mas se inserem no devir da natureza. Diferentes dos outros seres vivos pela cultura que inventam, "compete a eles a responsabilidade de se encarregarem, em seu próprio interesse, dessa relação homem-natureza" (Elias, 1998, p.12). Ao constatar sua própria contingência, os homens rompem antigas alianças metafísicas, sofrem a solidão de sua espécie na "imensidão indiferente do universo, de onde emergiu por acaso" (Monot, 2006, p.164). Seu destino não está escrito em lugar algum; resta-lhe a preciosa e decisiva responsabilidade de suas escolhas (Monot, 2006, p.170). A construção de valores e práticas não possuirá outra justificativa que não a própria autoinstituição da sociedade. Não se trata de relativismo, mas de saber que "as significações nas quais e pelas quais uma sociedade vive e existe" são construídas por ela própria, entre a necessidade e a contingência (Castoriadis, 1987, p.393).

Uma vez que estamos 'aqui', é essencial considerar nossa existência em sua complexidade: é preciso ressaltar o intervalo intransponível entre natureza e cultura, mas também a continuidade entre o homem e a natureza. Afinal, se o homem vive e exerce a liberdade da criação, e o seu devir no tempo é capaz de engendrar o novo, a vida humana também traz a marca inegável da necessidade. A natureza nos impõe várias condições, das quais a maior e mais temível é a morte biológica e - se abrirmos um pouco o campo de visão - a finitude de nossa espécie e o pequeno intervalo de tempo que sua passagem representa na história deste planeta.

Falando de vivos e de mortos, a história e a biologia privilegiam a vida como grande tema. Entre o acaso e a necessidade, evidenciam a criação. São conhecimentos elaborados por homens e para os homens, e perscrutam passado e presente na indagação dos futuros possíveis. Não podem fazer previsões exatas, mas certamente esboçam prognósticos. Trazem a consciência da responsabilidade, assim como um horizonte de ação para o homem, criador de cultura, inventor de artefatos e letras. Sobretudo, tanto a história como a biologia nos ensinam que, a cada momento, há várias possibilidades em aberto. Tratemos de mapeá-las, pois, no horizonte de nossa contemporaneidade. Numa experimentação do tempo como kairos, momento certo, instante propício, ocasião para a ação, a iniciativa do homem pode "colher a oportunidade favorável e decidir, num átimo, a própria liberdade" (Agamben, 2005, p.128).

Recebido para publicação em novembro de 2008.

Aprovado para publicação em junho de 2009.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2009

Histórico

  • Aceito
    Jul 2009
  • Recebido
    Nov 2008
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